Texto escrito por Tatyana Tavella
#IVERMECTINA, um breve histórico
2015, o ano em que pesquisadores que descobriram um medicamento que contribuiu para uma diminuição drástica de doenças parasitárias em países tropicais, ganharam o tão almejado Prêmio Nobel de Medicina. William Campbel, da Merk, e Satoshi Omura, do Kitasato, foram laureados pela pesquisa que levou ao descobrimento da ivermectina!
No entanto, o que parecia um conto de fadas em formato de uma parceria público-privada bem-sucedida sofreu uma reviravolta. Isto é, Uma pesquisa voltada para o bem-estar social tão importante como esta ganhou um tom mais realista na pandemia do novo coronavírus. Qual? Nem toda história tem um final feliz.
Causos recentes: a persistência e manutenção da desinformação…
No fim de janeiro de 2021, começou a circular em alguns grupos e mídias sociais do Brasil, uma “Meta análise”. Mas, o que é uma Meta análise? É um estudo que coleta TODAS as informações disponíveis sobre um determinado assunto. Posteriormente a isto, avalia a qualidade e homogeneidade dos dados, para verificar se os estudos concordam entre si. Assim, o pilar da meta análise é o rigor científico. Isto quer dizer que existem critérios que devem ser seguidos para validar um estudo de Meta Análise.
No caso desta “meta análise” que estava circulando nas redes sociais e grupos, havia uma suposta “prova” que a ivermectina funciona no tratamento da COVID-19. Todavia, ressaltamos: no caso da Meta Análise divulgada sobre a ivermectina na COVID-19, nenhum critério científico que valide o estudo foi seguido.
Recentemente, um estudo clínico concluiu que o tratamento à base de ivermectina não apresentou benefícios clínicos em pacientes com COVID-19. Esta pesquisa cumpriu os protocolos de metodologia com duplo-cego randomizado e envolvendo mais de 400 pacientes. Sua conclusão foi de que o tratamento à base de ivermectina não apresentou benefícios clínicos em pacientes com COVID-19. O trabalho foi publicado no início de março (2021) na JAMA, uma das revistas de medicina mais prestigiadas do mundo.
Sobre a criação do mito da ivermectina
O Brasil é um dos únicos países do mundo que insiste em destinar recursos públicos para comprar ivermectina para tratamento da COVID-19. Mesmo sem comprovação científica. Isso ao invés de investir em estratégias que realmente funcionam, como VACINAS. Mas de onde veio a ideia de que esse medicamento funciona para o tratamento da COVID-19?
A ivermectina se tornou uma das drogas mais populares no mundo devido à pandemia do novo coronavírus, disso todo mundo sabe. O frenesi em relação à droga fez com que a medicação se esgotasse das farmácias por todo o Brasil. Lembrando que nós estamos entre os países que mais investem no medicamento para tratamento da COVID-19 (ao lado de México, Egito e Argentina).
Em março de 2020, um trabalho publicado mostrou que doses altas de ivermectina reduziram 99.98% do RNA viral em células infectadas com SARS-CoV-2 in vitro.
UM ALERTA: AS PALAVRAS “CÉLULAS” E “IN VITRO” INDICAM QUE A PESQUISA AINDA NÃO ACONTECEU NO SER VIVO “INTEIRO” – O TESTE ACONTECE NUMA PLACA DE LABORATÓRIO
Isto ocorreu pouco depois de a OMS declarar a pandemia de COVID-19, e a pesquisa era de um grupo australiano da Universidade de Monash.
Um trabalho aparentemente promissor, uma vez que o reposicionamento de fármacos reduz o tempo do descobrimento de drogas para uma doença emergente.
Este tipo de pesquisa, busca diferentes aplicações para compostos que já passaram por ensaios clínicos de segurança. Assim, por já terem cumprido uma etapa de segurança com sucesso, já estão aprovados para uso em humanos por órgãos regulatórios. Entretanto, bom lembrar que os “ensaios clínicos de segurança” incluem testes de toxicidade. Além disso, há prescrição de dose máxima e análise de doses letais para seres humanos. Ou seja, há indicação clara de qual dose é DANOSA ao ser humano (informação que vem na bula, por exemplo).
É importante ressaltar que esse estudo foi publicado em um momento de tensão em que o mundo assistia o sistema de saúde italiano colapsar. Dessa forma, viralizou como uma faísca de esperança no combate do novo coronavírus.
No entanto, antes de acabar com os estoques de ivermectina das farmácias achando que a ivermectina previne, trata, ou cura COVID-19, devemos considerar alguns pontos desse estudo:
1. Tratava-se de um estudo preliminar in vitro.
Os testes in vitro são realizados em cultura de células (ambiente artificial, controlado) para verificar a atividade e toxicidade de um composto ou medicamento. Assim, com esses testes, são selecionadas moléculas promissoras para testes em modelos animais, os chamados testes in vivo. Isto é, estes testes são modelos um pouco mais próximos do organismo humano (ensaios pré-clínicos). Os compostos promissores nos modelos animais avançam para serem testados em humanos quanto à eficácia e segurança (ensaios clínicos), antes de serem comercializados.
Nesse estudo, a ivermectina foi testada em doses altas em células de rim de macaco in vitro. Outros estudos já haviam reportado atividade antiviral da ivermectina contra vírus de RNA in vitro.
No entanto, nenhum trabalho demonstrou atividade antiviral da ivermectina in vivo.
Apesar de inibição in vitro, o tratamento à base de ivermectina não mostrou benefícios na prevenção da infecção letal de Zika vírus em camundongos. Isto é, mesmo funcionando in vitro, no modelo in vivo não obtivemos resultados. E todo o experimento com fármacos precisam desta fase pois é ela que PROVA que dentro do corpo, existe combate à doença.
Apesar de atividade contra dengue in vitro, um ensaio clínico de fase III feito na Tailândia mostrou que o tratamento com ivermectina não reduziu a viremia. Além disso, os resultados também não apontaram benefícios no quadro clínico de pacientes com dengue. Vale frisar que no pipeline de descobrimento de drogas existem dezenas de milhares de compostos testados. No entanto, quando vamos olhar o número de compostos aprovados para uso comercial cai para casa de um dígito. Ou seja, é MUITO difícil encontrar uma molécula que passe por todas as fases do pipeline. Em suma, a pesquisa in vitro e as análises in vivo são etapas fundamentais e representam resultados parciais em um trabalho INICIAL.
2. A dose de ivermectina utilizada no estudo é alta.
O estudo constatou que em tratamentos in vitro realizados com a dose de 5 µM, a ivermectina foi capaz de reduzir em 99.98% a quantificação de RNA viral da célula infectada com SARS-CoV-2. Aparentemente a ivermectina tem uma atividade potente contra o novo coronavírus in vitro. No entanto, quando consideramos as propriedades farmacocinéticas desse composto, observamos outra coisa. Essa concentração é mais 17 vezes maior do que a concentração sérica máxima mais alta (Cmax) de ivermectina reportada na literatura.
Assim, isso significa que para testar se a ivermectina tem um potencial clínico no tratamento da COVID-19, precisaríamos de uma dose de ivermectina muito maior do que as reportadas nos testes de segurança desse medicamento. Ou seja, a dose necessária para o teste clínico equivale a uma dose maior do que a segurança para as pessoas. Em suma, de novo, traduzindo: esta dose equivale a uma intoxicação grave e as pessoas podem MORRER tomando as doses reportadas no estudo.
3. O reposicionamento de fármacos só funciona em uma situação específica
O reposicionamento funciona? Sim, mas com uma ressalva fundamental! Se as doses utilizadas para tratar uma doença nova se encontram dentro do intervalo de segurança clínica para qual o composto obteve aprovação! Dessa forma, nesse caso, o estudo utilizou uma concentração de droga extremamente alta e inatingível, mesmo com dosagens excessivas do medicamento. Isto é, a ivermectina tem ação in vitro contra o vírus. Mas no corpo humano, na concentração usada no estudo, ele mataria o hospedeiro também (ou seja: nós…). Conclusão: a concentração de ivermectina utilizada no estudo é IRRELEVANTE do ponto de vista clínico, pois pode (e eventualmente vai) matar o ser humano.
Sobre a Ivermectina e o Tratamento precoce no Brasil
Em janeiro de 2021, durante o colapso do sistema de saúde de Manaus, o Ministério da Saúde lançou o aplicativo TratCov. Este aplicativo estava estruturado em uma pontuação de sintomas do paciente. Qualquer sintoma mínimo de COVID-19 (qualquer pontuação), sugeria a prescrição de um coquetel de medicamentos. Este coquetel tinha indicações SEM EFICÁCIA CIENTÍFICA para tratamento da COVID-19 (ivermectina estava incluída na lista).
Nesse mesmo período, o Twitter reconheceu as postagens do Ministério da Saúde do Brasil referentes ao “Tratamento Precoce” como “enganosas”.
Nós fomos o único país do mundo a ter posts de um ministério ocultados por uma rede social.
No início de fevereiro de 2021, a Merk publicou uma nota dizendo que não existem evidências científicas de que o medicamento funcione para tratar COVID-19. Quem é a Merk? A farmacêutica fabricante de ivermectina e principal beneficiada com as vendas do medicamento.
Além disso, apesar do silêncio dos Conselhos de Medicina do Brasil, muitos médicos fizeram um alerta sobre o surgimento de casos de hepatite medicamentosa causada por excesso de ivermectina. Até mesmo o Conselho Federal de Farmácia se manifestou contra o uso de ivermectina e do “tratamento precoce” como estratégia de tratamento para a COVID-19.
Por fim…
Não existem evidências científicas. Como assim? Não há estudos clínicos que passaram por revisão e publicadas em revistas científicas endossando ou justificando o uso de ivermectina no tratamento da COVID-19. Assim, Não existe tratamento precoce para COVID-19. A Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Pan-Americana de Saúde (PAHO), o FDA e a ANVISA não recomendam o uso de ivermectinapara tratamento ou prevenção da COVID-19.
Conclusão: a ivermectina não cura, não trata e não previne COVID-19 e seu uso prolongado PODE LEVAR A PESSOA À ÓBITO!
Para saber mais
- The FDA-approved drug ivermectin inhibits the replication of SARS-CoV-2 in vitro-
- Ivermectin: a systematic review from antiviral effects to COVID-19 complementary regimen. PMID: 32533071; PMCID: PMC7290143
- Lack of efficacy of ivermectin for prevention of a lethal Zika virus infection in a murine system.
- Ivermectin as a potential COVID-19 treatment from the pharmacokinetic point of view: antiviral levels are not likely attainable with known dosing regimens.
- WHO guideline on drugs for covid-19. BMJ. 2020;370:m3379
- Recomendação sobre o uso de ivermectina no tratamento de COVID-19 – OPAS/OMS | Organização Pan-Americana da Saúde (paho.org)
- FDA Letter to Stakeholders: Do Not Use Ivermectin Intended for Animals as Treatment for COVID-19 in Humans
- Agência Nacional de Vigilância Sanitária: nota de esclarecimento
- Merck: remédio em teste reduz infecção por covid-19, aponta dado preliminar.
- Médicos alertam sobre uso de ivermectina contra Covid-19, após suspeita de paciente com hepatite aguda-contra-covid-19-apos-suspeita-de-paciente-com-hepatite-aguda
- TrateCov: sistema do governo que sugere cloroquina não explica uso de dados
- López-Medina E, López P, Hurtado IC, et al (2021) Efeito da ivermectina no tempo de resolução dos sintomas entre adultos com COVID-19 leve : um ensaio clínico randomizado, JAMA, Publicado online em 04 de março de 2021.
- Busca de fórmulas milagrosas contra a Covid-19 continua impulsionando vendas de medicamentos
A autora
Tatyana Tavella, Farmacêutica pela Universidade de São Paulo, doutora em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, atualmente trabalha na área de descobrimento de fármacos no Laboratório de Doenças Tropicais da Unicamp.
Este texto é original e exclusivo do Especial Covid-19

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