A ciência pelos olhos da doutoranda Dayane Machado

A doutoranda Dayane Machado. Arquivo pessoal. Todos os direitos reservados.

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Nos últimos anos temos vivenciado uma onda de desinformação nas redes sociais que se acentuou ainda mais durante a pandemia de COVID-19. Diversos grupos de pesquisa no Brasil e no mundo têm estudado movimentos e pessoas que espalham notícias falsas sobre vacinas e COVID-19 nas redes sociais. Para trazer à luz a discussão sobre os desafios da comunicação científica perante a desinformação na área da saúde, hoje o Ciência Pelos Olhos Delas entrevista a doutoranda Dayane Machado, especialista no assunto. 

A Dayane é mestre em Divulgação Científica e Cultural pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente, ela é doutoranda em Política Científica e Tecnológica, também na Unicamp, e o foco da sua pesquisa envolve desinformação sobre vacinas no contexto da pandemia de COVID-19. Confira abaixo a entrevista na íntegra, onde a Dayane nos conta sobre sua trajetória acadêmica, sua experiência como mulher na ciência e os desafios para combater os movimentos negacionistas e de desinformação nos meios de comunicação, com ênfase no YouTube.

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Cientista – era isso que você queria ser quando crescesse? 

Não, de jeito nenhum. Quando criança, eu nem sabia o que era um cientista ou que existiam cientistas no Brasil. Imagino que isso aconteceu principalmente por falta de referências. Foi só durante a graduação que eu tive contato com a prática da pesquisa e com o jornalismo científico e só a partir daí, eu comecei a me interessar pelo tema.  

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Como sua trajetória acadêmica a levou ao doutorado em Política Científica e Tecnológica na UNICAMP?

No mestrado, a minha proposta era analisar o imaginário de ciência e de cientista em materiais de divulgação científica. Eu resolvi trabalhar com canais do YouTube. Na época, o YouTube e os serviços de streaming em geral não eram muito estudados dentro da minha área. O ScienceVlogs Brasil era uma proposta recente, que criava uma comunidade de canais organizada em torno de alguns critérios. Esse modelo me chamou atenção e eu comecei a pesquisa com os canais que faziam parte da iniciativa. 

No meio do caminho, porém, eu comecei a ter contato com canais de fora dessa comunidade. Pra minha surpresa, muitos canais se identificavam como divulgadores de ciência naquela época, mas quando eu parava pra assistir o conteúdo, eu encontrava discurso antivacinação, negacionismo climático, terraplanismo. Muitos deles argumentavam que era ali que o público ia encontrar a ciência “de verdade”.

Depois de um tempo de análise, esses canais que alimentavam teorias da conspiração foram ganhando um espaço enorme no meu trabalho. Quando eu terminei o mestrado, então, a minha vontade era continuar pesquisando esse assunto.

No Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) e principalmente no LABTTS, que é o meu laboratório, eu encontrei uma estrutura que me permitiu aprofundar a pesquisa nessa frente de desinformação. Eu resolvi focar especificamente nos movimentos antivacinação e depois de um ano mais ou menos veio a pandemia de COVID-19 e a gente viu esse tema explodir. Ficou praticamente impossível continuar pesquisando rejeição a vacinas sem considerar a pandemia. Então eu acabei adaptando o projeto e passei a analisar esses dois temas ao mesmo tempo.

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Algum(a) profissional ou ação a inspirou na escolha dessa carreira?

Eu comecei a considerar a ciência como carreira há relativamente pouco tempo. No começo do mestrado, eu via o trabalho gigantesco que cientistas como a Suzana Herculano-Houzel conseguiam realizar apesar do contexto de sucateamento pelo qual as instituições de pesquisa brasileiras já vinham passando. Eu lembro dos relatos dela sobre a falta de insumos, sobre a necessidade de improvisar tudo, sobre a dificuldade de fazer pesquisa competitiva com tantos fatores atrapalhando. E eu ficava fascinada com o que o grupo dela conseguia fazer. A pesquisa dela foi uma grande inspiração.

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Conte-nos mais sobre a pesquisa que está realizando sobre desinformação no contexto da pandemia da COVID-19.

No doutorado, eu analiso especialmente conteúdos do YouTube. Mais uma vez, os vídeos (e os áudios) acabam não recebendo muita atenção nessa área de pesquisa. Analisar áudio e vídeo dá muito trabalho porque ainda não existem boas ferramentas que permitam análises mais automatizadas como acontece no caso de textos escritos, então a gente tem que fazer o processo manualmente.

Ano passado, nós publicamos os primeiros resultados da pesquisa. A gente identificou canais em português que lucram com as desinformações sobre vacinas. Além de aproveitarem o sistema de monetização do YouTube — exibição de anúncios ao longo dos vídeos, venda de produtos na prateleira da plataforma, recursos para receber doações durante as lives etc. —, esses produtores de conteúdo colaboram e criam táticas para aumentar a audiência e garantir os lucros, mesmo que a plataforma identifique o conteúdo como perigoso e desmonetize algum vídeo.

Recentemente, nós expandimos a amostra. Estamos analisando os vídeos produzidos por 50 canais ao longo dos 6 primeiros meses de pandemia no Brasil, uma amostra de mais de 3 mil vídeos. A minha sorte é que eu tenho uma parceira de pesquisa incrível, a Natiely Rallo Shimizu, que também é mestre em Divulgação Científica e pesquisa movimentos antivacinação há um bom tempo. Nós começamos a primeira etapa de análise em outubro do ano passado e vamos terminar a última etapa nos próximos meses.  

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Quais são os principais desafios que as iniciativas de divulgação científica enfrentam no combate a essa “onda” de desinformação?

Acho que hoje o principal desafio é ser ouvido no meio de tanto ruído. Essa é uma característica, aliás, do momento que a gente está vivendo. Tem informação demais circulando ao mesmo tempo e fica muito complicado para o público distinguir o que é confiável do que não é. 

Hoje, os falsos especialistas conseguem seduzir a audiência e atrair a atenção da mídia com muito mais facilidade. Fora isso, a gente tem que lembrar que conteúdo apelativo, sensacionalista e desinformativo pode gerar mais engajamento, então as plataformas acabam beneficiando esse tipo de material. Competir com esse cenário fica cada vez mais difícil para quem divulga ciência. 

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Dayane com parte da equipe do Projeto Matemática no Ar e alguns entrevistados durante a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (2017). Arquivo pessoal. Todos os direitos reservados.

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Ao longo da sua carreira, você já enfrentou alguma dificuldade enquanto cientista por ser mulher?

Depende do que a gente estiver considerando como dificuldade. Conheço pessoas que já passaram por situações muito mais sérias, como assédio sexual, perseguição e coisas do tipo. Eu nunca passei por isso, mas me sinto muito menos respeitada do que os meus colegas. 

Um fator que acho que faz bastante diferença no meu caso é a minha área de pesquisa. Vejo que as ciências sociais e humanas ainda são tratadas por muita gente como se fossem questão de opinião. Já ouvi muita piadinha questionando a seriedade e a relevância de pesquisas qualitativas, além das piadinhas rotineiras sobre a presença de cientistas mulheres só servir pra “embelezar” o ambiente. É desagradável e, infelizmente, esse tipo de coisa não acontece só dentro da universidade. 

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Descreva a ciência pelos olhos da doutoranda Dayane Machado.

O processo científico é algo que me fascina. Nunca dá pra ter certeza do que vamos encontrar ao longo da pesquisa e o trabalho costuma ser lento, cheio de complicações, a gente leva muita paulada na cabeça e, com o passar do tempo, se acostuma com essa sensação constante de estupidez, mas existe um momento que nos faz esquecer esses problemas: é aquele instante em que a gente descobre algo que ninguém percebeu ainda. E o mais fascinante é que esse processo não acaba, a gente sempre vai ter coisas incríveis pra descobrir.

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Nós, do Ciência Pelos Olhos Delas, agradecemos a generosidade e a disponibilidade da Dayane em responder nossas perguntas e contar um pouco mais sobre a pesquisa essencial que ela desenvolve no combate à desinformação. Sigam a Dayane no Twitter para saber mais sobre o trabalho dela: @DayftMachado!

Este texto foi originalmente no blog Ciência pelos olhos delas

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Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


editorial

Comentários

Uma resposta para “A ciência pelos olhos da doutoranda Dayane Machado”

  1. Avatar de Susilene Maria Tonelli Nardi
    Susilene Maria Tonelli Nardi

    Parabenizo pela brilhante entrevista e pelo conhecimento gerado. Dra Dayane dá um exemplo claro de responsabilidade, perseverança e resiliência para os que lutam pela ciência brasileira.

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