A Carta se trata de um manifesto em defesa da democracia e da justiça, cuja iniciativa foi encabeçada pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), foi lida na Faculdade de Direito (FD) da USP, em São Paulo e transmitida por Universidades, entidades, imprensa e institutos de pesquisa.
A Unicamp também participou da leitura da carta com evento solene.
A ação ocorreu no Teatro de Arena, no campus de Barão Geraldo, em Campinas, transmitida ao vivo pelo canal da TV Unicamp no YouTube.
Em seguida, houve a transmissão da leitura da carta realizada no Pátio das Arcadas da Faculdade de Direito da USP. A ação é uma iniciativa conjunta da Reitoria, da Associação dos Docentes da Unicamp (ADunicamp), do Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp (STU) e da Associação Central de Pós-Graduação da Unicamp (APG)
Unicamp realiza leitura pública da ‘Carta em Defesa do Estado Democrático de Direito’
Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!
Em agosto de 1977, em meio às comemorações do sesquicentenário de fundação dos Cursos Jurídicos no País, o professor Goffredo da Silva Telles Junior, mestre de todos nós, no território livre do Largo de São Francisco, leu a Carta aos Brasileiros, na qual denunciava a ilegitimidade do então governo militar e o estado de exceção em que vivíamos. Conclamava também o restabelecimento do estado de direito e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.
A semente plantada rendeu frutos. O Brasil superou a ditadura militar. A Assembleia Nacional Constituinte resgatou a legitimidade de nossas instituições, restabelecendo o estado democrático de direito com a prevalência do respeito aos direitos fundamentais.
Temos os poderes da República, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, todos independentes, autônomos e com o compromisso de respeitar e zelar pela observância do pacto maior, a Constituição Federal.
Sob o manto da Constituição Federal de 1988, prestes a completar seu 34º aniversário, passamos por eleições livres e periódicas, nas quais o debate político sobre os projetos para país sempre foi democrático, cabendo a decisão final à soberania popular.
A lição de Goffredo está estampada em nossa Constituição “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Nossas eleições com o processo eletrônico de apuração têm servido de exemplo no mundo. Tivemos várias alternâncias de poder com respeito aos resultados das urnas e transição republicana de governo. As urnas eletrônicas revelaram-se seguras e confiáveis, assim como a Justiça Eleitoral.
Nossa democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito. Vivemos em país de profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública. Temos muito a caminhar no desenvolvimento das nossas potencialidades econômicas de forma sustentável. O Estado apresenta-se ineficiente diante dos seus inúmeros desafios. Pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual ainda estão longe de ser atendidos com a devida plenitude.
Nos próximos dias, em meio a estes desafios, teremos o início da campanha eleitoral para a renovação dos mandatos dos legislativos e executivos estaduais e federais. Neste momento, deveríamos ter o ápice da democracia com a disputa entre os vários projetos políticos visando convencer o eleitorado da melhor proposta para os rumos do país nos próximos anos.
Ao invés de uma festa cívica, estamos passando por momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições.
Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o estado democrático de direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira. São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional.
Assistimos recentemente a desvarios autoritários que puseram em risco a secular democracia norte-americana. Lá as tentativas de desestabilizar a democracia e a confiança do povo na lisura das eleições não tiveram êxito, aqui também não terão.
Nossa consciência cívica é muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar ao lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática.
Imbuídos do espírito cívico que lastreou a Carta aos Brasileiros de 1977 e reunidos no mesmo território livre do Largo de São Francisco, independentemente da preferência eleitoral ou partidária de cada um, clamamos as brasileiras e brasileiros a ficarem alertas na defesa da democracia e do respeito ao resultado das eleições.
No Brasil atual não há mais espaço para retrocessos autoritários. Ditadura e tortura pertencem ao passado. A solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa necessariamente pelo respeito ao resultado das eleições.
Em vigília cívica contra as tentativas de rupturas, bradamos de forma uníssona:
A PEC 206 pode destruir a universidade pública brasileira. Precisamos defendê-la de argumentos falsos.
O deputado Kim Kataguiri (Democratas-SP) colocou em pauta hoje um projeto que visa alterar a constituição, o qual ele é relator. A PEC 206/2019, redigida em 2019 pelo deputado General Peternelli (PSL-SP), propõe a cobrança de mensalidade nas universidades públicas para todos os seus frequentadores, e aqueles que não puderem pagar, podem usufruir da universidade pública gratuitamente. O progresso científico e tecnológico brasileiro é diretamente afetado e atacado com esse projeto, que antes de mais nada, é deturpado e usa de pressupostos errôneos. Primeiramente, a PEC usa pressupostos completamente equivocados. Vamos debatê-los a seguir.
O texto enganador da PEC
Logo após a leitura do texto da PEC, uma problemática bem clara sobre o pressuposto do projeto de lei se mostra. A defesa nefasta que está acontecendo nas redes sociais não leva em consideração os parâmetros da lei em si.
Trecho retirado da PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO N.º206 , DE 2019
Conforme o texto acima, a lei propõe justamente que exista uma comissão que avalie a situação socioeconômica dos estudantes e faça uma deliberação sobre o pagamento ou não da mensalidade. Ou seja, a base é que TODOS os estudantes paguem mensalidade, estando apenas alguns eximidos da conta. Decerto, essa lógica levanta muitas questões problemáticas. Vamos a algumas delas:
Como essa comissão será formada? Como ela atenderá todos os estudantes? Quais critérios serão utilizados para essa escolha? Essa comissão não poderia ser utilizada de forma a excluir ainda mais os estudantes? Eles não precisariam passar por mais uma etapa burocrática para conseguir se manter na universidade pública?
Uma vez que esse debate entrou na esfera pública novamente, podemos nos debruçar em alguns pressupostos que esse projeto de lei. A seguir, coloco algumas dessas questões para conversa.
Quem frequenta a universidade pública?
Inicialmente, a defesa dessa PEC sugere que as universidades públicas brasileiras são frequentadas majoritariamente por pessoas oriundas das classes mais altas. Sendo assim, elas teriam o poder aquisitivo necessário para pagar os custos de seus estudos na universidade. Ainda que esse discurso pareça verdadeiro, ele atualmente é falso. Segundo dados da pesquisa do perfil socioeconômico dos estudantes de graduação das universidades federais, o perfil brasileiro é: 53,5% dos estudantes vivem com renda de até 1 salário mínimo por pessoa nas famílias. Esta pesquisa coletou dados de 63 universidades federais brasileiras. Confira abaixo os dados na tabela:
É necessário debater sobre as formas que universidade pública elitiza o conhecimento e cria modos de facilitar a permanência de pessoas com renda maior, nós sabemos disso. Contudo, o projeto de lei não serve como resposta para esse problema.
Ou seja, a PEC coloca como responsável por essa problemática os estudantes. Como assim? Atualmente, a universidade não possibilita o acesso e a permanência de pessoas sem os recursos financeiros, o que falarei mais adiante. Mas o mais relevante é: cria uma disputa por vagas e cotas entre os próprios estudantes já em situação de vulnerabilidade social e financeira. Esta PEC cria, portanto, uma narrativa de embate entre os estudantes para tirar o foco da problemática real das universidades: as políticas públicas e como são feitos os investimentos.
Atacando o problema de verdade
Para que essa elitização velada da universidade comece a ser combatida de verdade, precisamos focar em duas frentes. Primeiramente, o debate sobre o vestibular. Ele sim, um gargalo colocado de forma proposital para excluir uma parcela dos estudantes. Ele afunila a entrada na universidade, principalmente quem não consegue dedicar o tempo necessário de estudos para enfrentar a maratona dos vestibulares (e não consegue pagar por cursos pré-vestibulares).
Em seguida, as políticas públicas de permanência. A universidade pública brasileira é um espaço de formação que exige a dedicação quase exclusiva de seus alunos, sem tempo para trabalhos externos. Para criar condições aos estudantes usufruam de suas possibilidades formativas, a universidade precisa garantir moradia, alimentação e renda para os estudantes.
Nossa defesa, como política pública, é oposta ao projeto de lei. Isto é, o financiamento para permanência de estudantes na universidade pública deve ser proveniente de políticas públicas inclusivas, que abarquem a diversidade, origem e identidades diversas. Quem deve financiar esses estudantes, portanto, não devem ser eles mesmos, mas políticas públicas destinadas a sua formação.
O que se desenvolve na universidade pública no Brasil?
Ao mesmo tempo, o discurso de se pagar é nefasto por não compreender a complexidade da produção e da vivência nas universidades brasileiras. A ideia de que é um local de apenas estudo, em que o estudante apenas assiste aulas e realiza provas é falacioso. A universidade pública, desde os estudantes de graduação, desenvolve ciência, forma profissionais, produz conhecimento que retornará para a sociedade.
O desenvolvimento da ciência brasileira, realizada por graduandos e pós-graduandos, foi o que nos garantiu o desenvolvimento de diagnósticos, com agilidade e eficiência, durante toda a pandemia da Covid-19, aqui na Unicamp e em várias universidades brasileiras. Além disso, a grande quantidade de pesquisas e atuações acadêmicas neste período, em todas as áreas de conhecimento, tiveram participação ativa de estudantes ainda em formação, de modo voluntário ou com bolsas, que minimizaram os efeitos da doença em toda a sociedade brasileira.
Uma nação que busca o progresso sustentável e tecnológico precisa do desenvolvimento científico, que acontece unicamente nas universidades públicas. Isto é, a proposta de se pagar para estudar em uma universidade pública, além de afastar futuros cientistas que poderiam surgir de diversas origens sociais e econômicas, deturpa a própria ideia de desenvolvimento científico em nosso país.
A pós-graduação: ela também pode ser afetada em médio e longo prazo
O pós-graduando, hoje, vivencia uma carreira de uma avassaladora precarização, sem recursos, com bolsas sem ajustes e com a visão social de que é “apenas um estudante”. Não, não é. O estudante de graduação e pós-graduação são profissionais que desenvolvem trabalhos em sua área de formação, desde o início do curso. Você, por exemplo, aceita trabalhar de graça por vários anos, sem nenhuma renda? Pois é, além de atuar de graça, ainda precisaria pagar, neste caso.
Na perspectiva desta lei, que prevê cobrança de mensalidade na graduação, também não afetaria essa etapa que acontece na universidade pública? Se cobrarmos os estudantes de graduação, depois de quanto tempo a pós-graduação que será cobrada? Essa proposta de lei é um afronte gigantesco à autonomia e ao ideal de universidade pública.
A educação deve sempre ser pública, gratuita, de qualidade e de fácil acesso
Em suma, esse é um projeto de lei que ataca diretamente a constituição nacional que garante o acesso à educação pública, gratuita e de qualidade para para todas as pessoas da nação. Em primeiro lugar, a garantia que ela é pública é a base para o desenvolvimento da ciência, da extensão e do ensino sem a necessidade de cumprir uma agenda empresarial e de resultados. Juntamente, a educação precisa ser gratuita, para garantir que todas as pessoas tenham acesso ao desenvolvimento cidadão, profissional, científico e humanístico. Assim como ela também precisa ser de fácil acesso, garantindo que todas as pessoas que busquem uma instituição de ensino consiga acessá-la.
O problema da elitização velada das universidades é importante e de necessária discussão. Mas que ela seja feita de forma séria, verdadeira e com propostas reais de sua superação, e não seja retirado do Estado brasileiro a sua responsabilidade.
Atualização (24 de maio, 19h21; Editorial)
A PEC não está mais em tramitação, enquanto finalizávamos o texto, em função do pedido de Audiência Pública, com participação de representantes da sociedade civil organizada, conforme consta neste documento.
BRASIL. PEC 206/2019, Dá nova redação ao art. 206, inciso IV, e acrescenta § 3º ao art. 207, ambos da Constituição Federal, para dispor sobre a cobrança de mensalidade pelas universidades públicas.
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, ostextos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp.
A palavra política parece andar desgastada, embora continue sendo cotidianamente utilizada. Há quem culpe a polarização entre ideais, há quem queira fugir de embates e apenas vivenciar sua rotina sem se preocupar com conversas como “em quem votou o seu vizinho, primo, tio, cachorro, papagaio?”.
Outras vezes, aquelas pessoas que parecem concordar em ideias e ideais de como deveria se organizar a vida social, discordam em detalhes e isso vira motivo de chacota, acirramento do discurso, brigas em redes sociais, etc.
Em anos como os que estamos vivendo, de emergência sanitária, crise econômica e debates nada tranquilos, parece ser sempre urgente se posicionar e cobrar posicionamentos.
Sobre Política
De maneira sucinta, política vem do termo Pólis, palavra grega que designava cidades — ou a organização social urbana (com tomadas de decisões) que acontecia no espaço público. O termo política derivaria exatamente das relações (institucionais e organizacionais) vinculadas ao gerenciamento da polis por seus cidadãos.
A política pode ser entendida como a ciência ou a arte de governar (uma cidade, um estado ou nação e tudo o que diz respeito à vida e aos espaços públicos).
Quando falamos atualmente sobre política, muitas vezes nos remetemos às relações partidárias ou inclinações ideológicas sobre como uma nação deveria ser governada (e por quem).
No entanto, a política é mais que lados opostos — direita e esquerda — com soluções diferentes para problemas semelhantes. A política diz respeito aos modos como pensamos as problemáticas cotidianas de uma população, possíveis soluções, como organizamos estratégias de funcionamento de instituições públicas e privadas, como analisamos, pesquisamos e atuamos nestes espaços públicos e privados e quem regulamenta o quê (e de que forma), dentre muitas outras questões.
Falar de política
Falar em política não é polarizar e escolher lados, tampouco é votar pura e simplesmente, é pensar em propostas para a vida coletiva e como gostaríamos de colocar em prática estas proposta. É ter princípios de uma vivência comum, analisar desigualdades, encarar questões de grande porte, para pessoas diferentes. Aliás, política é tomar decisões sobre a diversidade — levando-a em conta ou não.
Especial Política 2022
Como veículo de divulgação científica, temos a proposta, sempre, de pensar a ciência e abrir o diálogo com a sociedade. Neste sentido, abrimos nosso espaço para compreender o que é política e como esta se relaciona ao nosso cotidiano continuamente. Há inúmeros textos neste veículo, ao longo dos anos, que vêm debatendo sobre política — desde ações públicas e tomadas de decisões, até como a ciência, educação e saúde são pautas fundamentais como fomento e investimento na esfera legislativa e executiva.
Tendo em vista um ano de eleições como o que vivemos agora, decidimos montar o Especial Política 2022, nos dispondo a um diálogo entre a sociedade, as áreas de conhecimento acadêmico, as propostas políticas do âmbito executivo e, também, sobre as compreensões do que é e como se faz política e sua importância para estas diferentes áreas de conhecimento e para a sociedade.
Ciência, como ato humano com produção de conhecimento para a sociedade (e a partir do financiamento desta), é um ato político. Como tal, não poderíamos, jamais, nos eximir de debater sobre o tema, na divulgação científica.
No Brasil, nos mais variados meios de comunicação, assim como em conversas informais, quando o assunto é economia, algumas frases sempre se repetem: “No Brasil, paga-se muito imposto!”; “O Brasil tem a maior carga tributária do mundo!”; ou “Se não fosse o tamanho da carga tributária, o Brasil já teria se tornado um país desenvolvido!”. Estariam estes diagnósticos corretos? Baseiam-se em dados econômicos concretos? Neste texto, pretendemos verificar estas afirmações, discutir de um modo geral a questão do peso dos tributos sobre a nossa sociedade e responder com algumas informações a estas perguntas.
A princípio, temos que ter claro que a maioria dos tributos (também chamados de impostos) correspondem a um valor que se subtrai da renda gerada no país a partir do processo produtivo, ou seja, uma parte da renda gerada com a produção de todos os bens e serviços produzidos em nosso território será sempre retida pelo governo no sentido de custear a infraestrutura estatal e a oferta de bens e serviços públicos. Para esta discussão, utilizaremos com frequência o conceito de carga tributária, isto é, o percentual correspondente ao valor dos impostos cobrados em relação ao valor do PIB a preços de mercado (% de carga tributária sobre o PIB) [1]. Também usaremos o conceito de base de incidência de impostos que é, grosso modo, um certo percentual que se cobra sobre determinada renda ou valor de atividade econômica. Para fundamentarmos nossa análise, nos utilizaremos de tabelas e gráficos produzidos pelo Centro de Estudos Brasil Século XXI que se baseiam em dados e informações de instituições oficiais.
A carga tributária brasileira é a mais alta do mundo?
Para responder a esta primeira pergunta, podemos dizer que a carga tributária bruta, no Brasil, entre 2002 e 2019, esteve em média em 32,7% do PIB (os valores para cada ano estão na tabela abaixo, na coluna CTB. Se descontarmos os valores referentes aos repasses desses impostos por parte do governo para a Previdência, Assistência Social, Subsídios e Juros da Dívida Pública, teríamos um valor ainda menor conforme as linhas azul e vermelha do gráfico que se segue).
Sabendo, portanto, que o valor da carga tributária no Brasil gira em torno de 33% do PIB, podemos considerar isso um valor alto ou baixo? Uma forma plausível de se fazer essa avaliação é comparando o Brasil com outros países que tenham uma economia de tamanho parecido[2]. Vejamos então, no gráfico seguinte, a carga tributária de outros 27 países desenvolvidos e em desenvolvimento que fazem parte da OCDE mais a média de todos os países dessa mesma organização (OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento. Organismo constituído predominantemente por países ricos).
Podemos verificar que, no ano de 2018, entre os 28 países mais a média da OCDE, o Brasil está na 18ª posição em termos de carga tributária, estando, por exemplo, mais de 10% abaixo da carga mais alta, registrada na França no patamar de 46,1% sobre o PIB. Se dividirmos este apanhado de nações em duas partes, o Brasil se encontra entre os países com a menor carga tributária em relação a outra metade que tem a carga maior ou igual a 35%. Os Estados Unidos, que é sempre mencionado por comentarista econômicos, registraram uma carga menor, de 24,3% sobre o PIB. Todavia, a economia norte-americana é 15 vezes maior do que a economia brasileira, fornecendo, portanto, uma base maior para a arrecadação de impostos[3]. A Alemanha e a Itália, que também têm economias maiores do que a do Brasil, registram cargas tributárias de 38,2% e 42,1% respectivamente. Neste conjunto, apenas 9 países tem uma carga tributária menor do que 33%. Os países ricos e em desenvolvimento que fazem parte da OCDE registram em média 34% de carga tributária sobre o PIB. Nossa primeira conclusão, portanto, é a de que a carga tributária brasileira não é a mais elevada do mundo. Ela não está sequer entre as mais altas, considerando um conjunto significativo de economias próximas a do Brasil. Outra constatação é a de que, entre os países desenvolvidos, se estes não têm uma carga tributária parecida com a brasileira, usualmente têm um percentual tributário bem maior. A única exceção neste caso, seriam os EUA, país que, contando com 24,4% de carga tributária, tem uma arrecadação de impostos maior do que qualquer um dos outros países aqui considerados. Podemos afirmar, dessa maneira, que a carga tributária brasileira não é a mais baixa, mas definitivamente não é a mais alta.
Os brasileiros pagam muitos impostos?
Esta outra questão se refere à sensação de que no Brasil, os preços dos bens e serviços seriam muito altos em função de uma carga tributária muito alta. Seria esta uma sensação real? Sim e não. Podemos dizer que no Brasil, tudo depende de como cada indivíduo obtém sua renda e de como a utiliza depois que a recebeu. Se, por um lado, tudo o que um cidadão recebe é gasto por ele no consumo de bens e serviços, como é o caso dos indivíduos que fazem parte de classes sociais de renda média e baixa, então os impostos para estes incidem com maior peso. Por outro lado, se o gasto realizado com bens e serviços não é pouco, mas é comparativamente pequeno em relação ao total da renda recebida, então os impostos são sentidos com intensidade muito menor, ou seja, no Brasil, a maior parte dos impostos são cobrados sobre o consumo e não sobre a renda recebida ou sobre a propriedade privada. Assim, as classes sociais que não utilizam toda a sua renda para o consumo tendem a pagar uma proporção menor de impostos em relação a sua renda. Esta renda que não é utilizada para consumo é usualmente aplicada em outras atividades rentáveis que tendem a não sofrer o mesmo impacto tributário que o consumo. Grosso modo, no Brasil, os contribuintes pagam mais impostos sobre o consumo do que sobre eventuais rendimentos de sua poupança[4]. O resultado é o de que a carga tributária que recai sobre uma parcela social mais abastada acaba sendo relativamente menor do que aquela que recai sobre a parcela social mais humilde.
Para que esta afirmação fique mais clara, primeiramente iremos separar os impostos cobrados no Brasil da seguinte maneira:
Imposto sobre a Renda de Capital (juros, lucros, dividendos, aluguéis, etc.): IR; IOF; etc.
Imposto sobre a Renda do Trabalho (salários e rendimentos autônomos): IR.
Impostos sobre o consumo de bens e serviços: IPI; ICMS; ISSQN; PIS; COFINS; etc.
Impostos sobre propriedade: IPTU; IPVA; ITR; ITBI; etc.
Em segundo lugar, definiremos dois indivíduos hipotéticos que se encontram, cada um, em um extremo da pirâmide social.
João é um indivíduo sem muitas posses que no Brasil ganha um salário mínimo (R$1.212,00 no ano de 2022), e deverá, em grande medida, utilizar praticamente todo seu salário para o sustento próprio e o de sua família. Em função do valor de sua renda João paga pouco, ou praticamente nada, de imposto sobre a renda do trabalho (IRPF)[5]. Os impostos sobre os seus ganhos recairão, dessa maneira, predominantemente sobre os bens e serviços que consome.
Antônio, por outro lado, recebe rendimentos de capital provenientes de lucros, de aplicações financeiras e do aluguel de propriedades que possui. Sendo o montante de sua renda mensal elevado, somente uma parte pequena de toda a renda se destina ao consumo pessoal e o de sua família. Antônio paga, assim, relativamente menos impostos sobre consumo e mais impostos sobre rendas de capital e sobre rendas de propriedade.
Vejamos então, na tabela a seguir, como os impostos tendem a incidir sobre a renda destes dois indivíduos no caso do Brasil[6]:
Conforme a tabela, os impostos incidem com mais força sobre o destino da renda (a compra de bens e serviços) do que sobre as origens das rendas. Em 2019, os impostos sobre consumo incidiram, em média, em 43,3% sobre o valor dos bens e serviços, tendo sido esta incidência ainda maior em anos anteriores. De outra maneira, mesmo que a incidência do imposto de renda chegue a 27,73% para os trabalhadores que recebem as melhores remunerações, a incidência sobre as rendas de capital e aplicações financeiras foi de 22,45% para estas, de 4,82% sobre a propriedade e de 1,7% sobre as transações financeiras. Podemos constatar preliminarmente que a incidência de impostos sobre a renda, os salários, a propriedade e as transações financeiras é, em todas elas, muito menor do que sobre o consumo de bens e serviços.
Grosso modo, para João e toda a população que depende totalmente do salário e gasta todo ele em consumo, a tributação é alta. Para Antônio e as famílias que dependem de rendimentos de suas posses em termos de propriedades, de capital e de aplicações financeiras – consumindo bens e serviços com parte proporcionalmente muito menor de sua renda total – a tributação só em termos de incidência é quase a metade.
Nossa segunda constatação é a de que parcelas mais humildes da sociedade entregam ao fisco uma parte maior de sua renda total do que parcelas sociais de renda mais elevada.
Se não fosse o tamanho da carga tributária, o Brasil já teria se tornado um país desenvolvido?
Verifiquemos então esta última questão. Podendo já afirmar que a carga tributária brasileira está longe de ser das mais altas do mundo, podemos verificar como se distribui a carga no Brasil comparando esta aos países desenvolvidos. Analisemos os gráficos a seguir:
No gráfico acima, referente a 2017, podemos verificar que em termos de carga tributária o Brasil impõe um peso de 14,3% do PIB sobre a sociedade no que se refere ao consumo de bens e serviços. Entre os 32 países analisados, verificamos que a carga tributária brasileira sobre o consumo de bens e serviços é uma das mais altas do mundo, ficando atrás apenas de Hungria, Grécia e Dinamarca. Quatro pontos percentuais a mais do que a média dos países que compõem a OCDE.
Neste outro gráfico acima, também em 2017, a carga tributária brasileira sobre os rendimentos do salário (incluindo recolhimento previdenciário) está entre os países que menos oneram as remunerações, estando 1% abaixo dos países da OCDE e com pelo menos a metade do percentual do primeiro colocado, a França.
A carga de tributos cobrados em relação ao conjunto renda, lucros e ganhos de capital, no Brasil em 2017, conforme este outro dado acima, é, por outro lado, uma das mais baixas (7%) frente aos outros 32 países da comparação. Junto com Chile, Polônia, Hungria e Eslovênia, a carga tributária brasileira é de apenas 7% sobre esses rendimentos, estando quatro pontos percentuais abaixo da média da OCDE.
Quanto aos tributos cobrados sobre a propriedade, novamente o Brasil está entre os países que impões relativamente menos impostos sobre a propriedade privada de seus contribuintes, ou seja, de acordo com o gráfico acima, a carga é de 1,5% do PIB. Esta é maior do que a da República Eslováquia (0,4%) – a mais baixa carga tributária neste quesito -, mas é bem menor do que a da França, que impõe uma carga de 4,4% do PIB em impostos sobre propriedade.
O que se confirma novamente é que, no Brasil, os impostos recaem com muito mais peso sobre o consumo de bens e serviços do que sobre a origem das rendas em geral. Na comparação com os chamados países desenvolvidos que compõem a OCED, o Brasil faz exatamente o inverso, ou seja, cobra mais impostos dos mais pobres e menos impostos dos mais ricos. Isso perpetua a má distribuição de renda existente no país e impede uma expansão do consumo que poderia dinamizar a economia.
Dessa forma, talvez não seja a carga tributária total sobre o PIB, mas a distribuição desta entre as camadas sociais o que perpetue no Brasil a concentração de renda e, tendo como consequência a manutenção da desigualdade social e do subdesenvolvimento econômico.
Conclusão
Nossa análise buscou fazer uma aproximação geral do quadro de tributação no Brasil. Para isso, fizemos uma comparação desse panorama brasileiro com países desenvolvidos e em desenvolvimento. Utilizamos como parâmetro a carga tributária percentual sobre o PIB e a base de incidência dos impostos. Esta análise poderia ser ainda mais profunda, mostrando diferenças entre cada faixa de renda, o que tornaria este texto muito extenso para nossos propósitos[7]. Com o que levantamos, contudo, já podemos responder com segurança que a carga tributária brasileira, na atualidade, depois de comparada com 27 países da OCDE, está abaixo da média destes e abaixo da média de todos países da OCDE em conjunto. A incidência, todavia, é a que parece ser a grande injustiça do sistema tributário brasileiro, comparando-a com outros países. Em função da forma como os tributos são cobrados no Brasil, famílias de renda mais baixa pagam um montante muito elevado de impostos, enquanto as de renda mais elevada pagam um montante relativo muito menor. Conforme nosso exemplo, a injustiça se faz presente e se perpetua com o fato de que João, de baixa renda e de poucas posses, paga muito imposto sobre o que ganha, enquanto que Antônio, de renda alta e de muitas posses, paga relativamente muito menos sobre aquilo que recebe. Este infortúnio é, a nosso ver, um dos elementos que atrapalham nosso pleno desenvolvimento social e econômico.
Referências
Para o acesso aos dados utilizados neste texto, ver:
[1] O PIB corresponde a soma do valor de todos os bens e serviços finais produzidos dentro de uma economia nacional no período de um ano. Geralmente, os meios de informação utilizam o conceito de PIB a preços de mercado, tendo em conta que no valor do PIB estão inclusos os impostos e descontados os subsídios concedidos pelo governo.
[2] Em 2019, o Brasil estava posicionado como o 12ª PIB mundial em termos de dólares depois dos EUA, China, Japão, Alemanha, Reino Unido, Índia, França, Itália, Canadá, Coreia do Sul e Rússia. Ver: World Economic Outlook Database. International Monetary Fund. Outubro de 2019.
[3] Também não podemos deixar de mencionar que os Estados Unidos são os emissores do dólar, moeda reserva de valor internacional. Podem, dessa maneira, cobrir seus gastos governamentais com um endividamento crescente sem que isso provoque maiores prejuízos a sua economia.
[4] O conceito econômico de poupança refere-se a parte da renda das famílias que não é gasta no consumo de bens e serviços. A teoria econômica dominante considera que a maior parte da poupança das famílias é usualmente emprestada aos agentes financeiros na forma de compra de papéis financeiros em troca de rendimentos futuros na forma de juros. Não podemos, portanto, confundir poupança com caderneta de poupança que é apenas um tipo de aplicação financeira.
[6] Salientamos que o conceito, base de incidência, que mostra o percentual de imposto incidente sobre uma renda especificada é diferente do conceito de carga tributária sobre o PIB, que se refere ao valor total arrecadado de determinado imposto em relação ao valor total do PIB.
[7] Não fizemos uma abordagem mais profunda sobre isenções sobre aplicações financeiras, por exemplo. Tal análise pode expor as diferenças que existem entre grandes aplicadores e pequenos aplicadores.
Sabemos que nenhuma manifestação humana é dissociada do contexto em que foi produzida. Das artes plásticas, passando pelo cinema, pela literatura e outras expressões como as histórias em quadrinhos, essas expressões representam não só a visão de um artista sobre algo, mas indicam também quais são as condições sociais, políticas, culturais que possibilitaram a existência de suas obras.
Painel da HQ “Vingadores: A cruzada das crianças” Foto: Reprodução
Ao mesmo tempo, o apagamento sistêmico da produção de determinados grupos, hoje entendidos como minorizados (a saber: mulheres, negros, LGBTs…), causa ausências que também são melhor compreendidas quando conhecemos o contexto político e social de cada época e de cada cultura.
Nos quadrinhos, a política sempre esteve presente.
Às vezes de maneira mais explícita, reforçando certos discursos e às vezes de maneira menos explícita, contrariando os discursos hegemônicos vigentes. Esses discursos podem ser examinados a partir de diversos vieses e é nas áreas como História e Ciências Sociais que estas análises encontram terreno muito fértil.
Por exemplo, um dos marcos do desenvolvimento dos quadrinhos é o personagem Yellow Kid, de Richard Outcault. O garoto careca e de orelhas grandes já havia aparecido em outras publicações antes de se tornar o primeiro personagem colorido dos jornais estadunidenses.
Suas tiras exerciam grande apelo ao púbico por reproduzir um tipo de humor carregado de estereótipos e era facilmente compreendida por imigrantes que não compreendiam bem a língua inglesa. Ou seja, por mais inocente que possa parecer, há uma série de elementos que podem ser observados a respeito do momento que os Estados Unidos atravessavam (MOREAU; MACHADO, 2020).
Os códigos de ética e censura nos quadrinhos
Com o surgimento dos quadrinhos de super-heróis no final dos anos 1930, o sentimento de nacionalismo inflamado pelas histórias de personagens como Capitão-América, Mulher-Maravilha e tantos outros tomou conta do dos EUA e contribuiu ainda mais com o sucesso das histórias em quadrinhos que enfrentariam um duro golpe nos anos 1950, quando o Comics Code Authority (código de ética dos quadrinhos) foi implementado pelas editoras (MOREAU; MACHADO, 2020).
Em sua forma original, o código impõe, entre outras, as seguintes regras:
Qualquer representação de violência excessiva e sexualidade é proibida.
As figuras de autoridade não devem ser ridicularizadas ou apresentadas com desrespeito.
O bem deve sempre triunfar sobre o mal.
Personagens tradicionais da literatura de terror (vampiros, lobisomens, ghouls e zumbis) são proibidos.
Anúncios de tabaco, álcool, armas, pôsteres e cartões — postais nus são proibidos nas histórias em quadrinhos.
Zombarias ou ataques contra qualquer grupo racial, ou religioso são proibidos.
Profanidade — uso de palavras como “Deus”, “Senhor”, “Jesus” ou “Cristo” (a não ser no contexto de cerimônias religiosas), “inferno”, “droga” e outras palavras profanas e expressões vulgares de qualquer forma;
Nudez — de facto ou insinuada
Tráfico de drogas
Insinuação de perversões sexuais
Escravidão de brancos
Miscigenação — relações sexuais entre brancos e negros
Higiene sexual e doenças venéreas
Cenas de parto — de facto ou insinuada
Órgãos sexuais de crianças
Ridicularização do clero
Ofensa deliberada a qualquer nação, raça ou credo
Esse código impunha autocensura aos autores de quadrinhos a partir de critérios que foram acordados por editores após uma série de audiências no senado, após os estudos fraudados do psiquiatra Fredric Wertham em seu livro Sedução do Inocente (1954) terem ganhado popularidade. Com isso, vários temas e representações passaram a ser proibidos de serem retratados nos quadrinhos. Esse período coincidiu com o backlash (retrocesso) que as mulheres sofreram após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando toda indústria cultural reproduzia valores e discursos que pregavam a submissão da mulher ao marido, entre outras coisas.
Paralelamente, em outros países do mundo também se observava esse movimento de constante entrelaçamento dos quadrinhos e da política. Fosse na censura da antologia de quadrinhos produzidos por mulheres na França, como o que ocorreu com a revista Ah! Nana! (NOGUEIRA, 2015), fosse na representação cômica dos gauleses e romanos nos quadrinhos de Asterix, que sempre representou uma crítica ao imperialismo britânico ou mesmo em nas caricaturas que Nair de Teffé fazia de personalidades brasileiras na primeira metade do século XX.
Ainda sobre os quadrinhos mainstream, podemos citar os X-Men, que surgiram nos anos 1960 como uma alegoria para a situação de negros, mulheres e LGBTs nos EUA e que cujas causas ganharam visibilidade com os movimentos sociais que clamavam por direitos iguais na época. Com a equipe mais diversa de super-heróis já criados atém então, suas histórias inspiraram filmes, jogos e animações que traziam em seus discursos questionamentos sobre o ódio a quem era diferente. Porém, foi no final dos anos 1960 e durante os anos 1970 que os quadrinhos independentes, muitos deles com narrativas autobiográficas, definiram o tom de um estilo de quadrinhos que é publicado até hoje.
Nomes como Robert Crumb, Art Spielgeman, Justin Green, Trina Robbins, Aline Kominsky-Crumb e tantos outros, encontraram no meio underground a chance de abordar temas tabu como sexualidade, aborto, direitos civis… e, em 1992, com o reconhecimento da HQ Maus, de Art Spielgeman (1986), contemplada com o prêmio Pulitzer, pessoas do mundo todo conheceram a história biográfica que narrava os horrores do Holcausto.
Sem dúvida alguma, é por meio das publicações independentes que os autores alcançam maior autonomia para abordar temas como guerras, conflitos políticos, sexualidade, luta por direitos, como é o caso também da premiada HQ Persépolis (2000), da iraniana Marjani Satrapi, que aborda a revolução islâmica, ou de Fun Home (2006), de Alison Bechdel e que fala sobre sua homossexualidade e seu relacionamento com sua família enquanto tenta lidar com seus conflitos internos.
E no Brasil?
Com o golpe militar no Brasil nos anos 1960, a imprensa alternativa atingiu seu auge e entre os veículos de maior expressão na época, estava o periódico Ovelha Negra, editado pelo cartunista Geandré.
Sua relevância é tamanha que o pesquisador e professor Osvaldo da Silva Costa decidiu registrá-la em sua dissertação de Mestrado, onde entendemos porque o humor gráfico teve um papel tão importante na propagação de ideais de oposição à Ditadura, fazendo com que muitos artistas que contribuíram com o jornal fossem perseguidos pelos militares.
Capa do jornal Ovelha Negra fundado pelo cartunista Geandré (Foto: Divulgação)
Nos anos 1970, desenhistas e jornalistas que colaboravam com edições como O Pasquim, entre eles Ziraldo e Henfil, foram presos e várias publicações passaram a sofrer censura. Esta censura resultou na proibição de publicação de caricaturas durante o período de dez anos:
“A censura proibia a publicação de caricaturas de autoridades nacionais e estrangeiras. Havia a censura prévia, que consistia na presença de um censor junto às redações até 1977”. (DA COSTA, 2012, p.73).
Laerte Coutinho, uma das mais influentes cartunistas brasileiras, colaborou com muitos dos periódicos alternativos que circularam no Brasil e ainda hoje, seja em suas tiras como Piratas do Tietê ou em cartuns e charges encomendadas especialmente para ilustrar colunas de política em jornais, seu trabalho continua irreverente e provocativo.
O cartum abaixo é um exemplo do diálogo entre o humor gráfico e a crítica político-social. Reflexo de temas recentes como os 50 anos do Golpe Militar no Brasil e uma pesquisa feita pelo Instituto de Pesquisa econômica aplicada havia apontado que 65% das pessoas entrevistadas acreditavam que mulheres que usam roupas curtas devam ser atacadas/estupradas, o cartum chama a atenção para os dois fatos diferentes e promove uma reflexão sobre ambos.
Apesar da vocação dos quadrinhos para o entretenimento, não podemos negar sua importância no que se refere à crítica social e política através da História de diversos países. Muitas delas desempenharam um papel significativo na articulação de ideias durante regimes ditatoriais em países como Brasil e Argentina. Hoje, embora o Brasil viva um regime democrático, problemas como corrupção, escândalos políticos, desigualdade social, falta de investimento em programas de saúde e educação são temas recorrentes em tiras e charges de todo país.
Nem só de humor vive a crítica
Sabemos que nem todos os cartuns e tiras utilizam humor em sua linguagem, porém, é através do riso que grande parte dos artistas cria uma conexão com seu público. Tendo isso em mente, vale lembrar que não faltam estudos filosóficos, psicológicos e antropológicos acerca do poder do riso e suas funções, entre as quais podemos ressaltar a de atuar como arma de contestação política, como afirma Da Costa em sua pesquisa:
A linguagem do humor – arma política contra regimes repressivos – é também considerada subversiva e de contracultura – pode ser narrada por meio do teatro, da música, da literatura, da imprensa, do cinema e do desenho de humor. Tem como finalidade provocar o riso ou o sorriso. O risível nas piadas e paródias, como imitação burlesca, era um dos recursos mais populares entres os bufões na Antiguidade. Rir de si mesmo e do seu semelhante, seja em tom jocoso ou de escárnio, é um traço marcante da natureza humana desde os tempos mais remotos. (DA COSTA, 2012, p.18).
O escritor e semiólogo Umberto Eco, conhecendo o poder inquietador do riso, dedicou uma das de suas maiores obras a ele. Em O nome da Rosa, thriller ambientando na França medieval, a luta dos monges beneditinos do mosteiro de Melk para proteger um manuscrito nunca publicado de Aristóteles acaba causando inúmeras mortes e deixando um rastro de sangue.
De acordo com as convicções dos monges mais conservadores do romance, o riso seria algo muito próximo da morte e da corrupção do corpo, mas o filósofo grego, em seu livro que só existiu na ficção, alertava para o poder libertador do riso como um veículo da verdade.
O riso desvia, por alguns instantes, o vilão do medo. Mas a lei impõe-se através do medo, cujo nome verdadeiro é temor de Deus. E deste livro poderia partir a centelha luciferina que transmitiria ao mundo inteiro um novo incêndio: e o riso designar-se-ia como a arte nova, ignorada até de Prometeu, para anular o medo. Ao vilão que ri naquele momento, não importa morrer: mas depois, cessada a sua licença, a liturgia impõe-lhe de novo, segundo o desígnio divino, o medo da morte. E deste livro poderia nascer a nova e destruidora aspiração a destruir a morte através da libertação do medo. E que seríamos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais provido e afetuoso dos dons divinos? (ECO,1980, p. 359)
Sendo então o riso capaz de nos guiar no caminho de descobertas sobre verdades que talvez nossos governantes prefiram que não tomemos conhecimento, não é de se espantar que tantos cartunistas tenham sido ameaçados, torturados ou mortos durante regimes ditatoriais ocorridos na América Latina, como foi o caso do autor de El Eternauta. Héctor Germán Oesterheld foi sequestrado, assim como quatro de suas filhas, duas delas grávidas, durante o regime militar da Argentina.
Porém, engana-se quem acredita que essa tendência à crítica política mais explícita possa ser encontrada exclusivamente em charges e cartuns. Quadrinhos mainstream como V de Vingança ou Watchmen, por exemplo, são produções que também viraram filmes e que fazem críticas explícitas ao autoritarismo e à corrupção por exemplo. E até mesmo nos quadrinhos de Batman, cujos quadrinhos nos anos 1930 traziam forte propaganda dos esforços de guerra, é possível pensar sobre como Bruce Wayne se beneficia do capitalismo e contribui para a degradação de Gotham, como alerta a pesquisadora e especialista no personagem, Laluña Machado.
V de Vingança – Filme
No entanto, é por meio das charges que um tipo de humor costuma chamar os leitores à reflexão de maneira mais contundente, o que tem gerado consequências envolvendo censura e perseguição de artistas desde a eleição do atual presidente do Brasil ou até mesmo morte, como o que ocorreu com os cartunistas do jornal francês Charlie Hebdo.
Também não muito tempo atrás, que o projeto de quadrinhos Políticas, produzido por mulheres e dedicado a compartilhar charges e cartuns produzidos exclusivamente por mulheres (cis ou não) fez uma convocatória para homenagear a vereadora carioca Marielle Franco , brutalmente assassinada em 2018. Mais recentemente, a HQ da socióloga sueca Liv Stromqüist explorou a história da vulva a partir de inúmeras referências históricas, filosóficas e sociais em A Origem do Mundo (2018), enquanto artistas brasileiras como Carol Ito e Helô D’Ângelo exploram temas políticos em suas tiras online.
Assim, não só artigos, como teses e dissertações sobre quadrinhos costumam explorar os aspectos políticos apresentados nas HQ e independentemente de os discursos políticos estarem explícitos, eles atravessam as obras em maior ou menor grau.
DA COSTA, Osvaldo. Uma Ovelha Negra na Cultura Midiática: Inovações do Humor Gráfico na imprensa alternativa brasileira. Santos, Ateliê de Palavras. 2015.
ECO, Umberto. O nome da Rosa. São Paulo. Record. 2009 MARINO, Daniela; MACHADO, Laluña. Mulheres e Quadrinhos. Skript, 2019. MOREAU, Diego; MACHADO, Laluña. História em Quadrinhos EUA. Skript, Florianópolis, 2020.
O Brasil vive um cenário de eterno retorno à questão do aborto entre debates morais, criminais, de saúde, planejamento familiar e educação sexual e reprodutiva. Assim, não é incomum estas falas aparecerem em períodos eleitorais, como palco de intensas disputas entre grupos religiosos, feministas, acadêmicos e científicos, de saúde, dentre outros.
Além disso, é usual, também, apontar que o aborto deve ser tratado como um tema de saúde pública e que isso independe de opiniões individuais sobre ser favorável ou não à prática do aborto. Vamos compreender um pouco mais sobre o tema, pensando acerca de diferentes abordagens?
Saúde é um conceito
Sempre é bom conceituar o que é saúde e o que é saúde pública. O conceito de saúde não é simples ou definitivo. Em geral temos duas grandes ideias usuais (que não são muito compatíveis em vários sentidos):
Ausência de doença;
Completo bem estar físico, mental e social.
Enquanto o primeiro conceito olha para pessoas a partir apenas de suas características físicas (anatômicas e fisiológicas), ignorando fatores sociais amplos que podem contribuir para adoecimentos ou estados saudáveis; o segundo conceito aponta para a necessidade de olharmos para fatores psicológicos e sociais, traz a implicação do Estado para a manutenção da saúde (via questões sociais, mais amplas e que fogem ao controle de indivíduos), bem como insere a subjetividade no conceito, tendo em vista que diz respeito ao modo como lidamos com doenças, sintomas e muitos aspectos de nossa vida. Todavia, este segundo conceito insere, também, uma saúde inalcançável, tendo em vista que o conjunto “físico, mental e social” estando em completo bem estar não é, exatamente, a situação mais simples que existe.
Saúde Pública
Saúde Pública diz respeito a uma prática, que deveria ser embasada em dados técnicos e científicos, para direcionar políticas públicas que aumentem qualidade de vida, diminuam mortes, possibilitem uma vida sadia a uma população.
Lembrando que quando falamos de população, estamos falando de um conjunto de pessoas que vivem em um determinado território. Portanto, a Saúde Pública diz respeito a um conjunto de políticas públicas, direcionadas a uma população de um determinado lugar (município, estado, país, continente, mundo, por exemplo).
A Saúde Pública busca a saúde de uma população a partir de dados complexos, estatísticas de curto, médio e longo prazo, análises epidemiológicas e vigilância sanitária constantes.
E o que isto têm a ver com Aborto???
Tratar o aborto como temática de saúde pública é olhar, sem julgamento de valor, para a saúde de pessoas com útero, que estão gestando um feto e ver quais são as causas de adoecimento e morte destas pessoas. Dessa forma, ao constatar que aborto é uma destas causas, também procura-se interferir neste fator, diminuindo ele como causa de morte.
Quando eu falo de saúde pública, estamos falando sobre a diminuição de causas de mortes e adoecimentos em uma população, em modos de interferir em causas de mortes e adoecimentos. Não é, necessariamente, uma interferência médica, mas sim de interferências que podem abranger diversas áreas, em um trabalho interdisciplinar que diminua estes números de adoecimentos e mortes.
Entretanto, é claro que não é tão simples assim. Como podemos interferir em algo como o aborto? Primeiro devemos caracterizar a população que aborta. A segunda questão é perceber alguns dos fatores que levam ao óbito, mulheres que abortam. De maneira simples, parece óbvio: são complicações com o procedimento do aborto.
Ao olharmos com mais cuidado, um dos problemas é a busca por instâncias de saúde, quando estas complicações acontecem. Em função do aborto ser ilegal em nosso país, estas mulheres correm o risco de serem acionadas juridicamente, para responder pelo crime, previsto no código penal. Neste caso, a falta de assistência, por um receio de prisão, é uma das consequências sofridas por estas mulheres, que podem falecer.
Pensando a partir de dados públicos
Os dados trazidos a seguir são de Bonfim e colegas (2021), a partir de um levantamento e análise do banco de dados DataSUS. Entre 2010 e 2019, o Brasil teve cerca de 650 mil casos de abortos (procedimentos legalizados ou não), segundo dados do DataSUS. Destes casos, 44.70% tem entre 20-29 anos, 48.59% se autodeclara parda; 38.91% tem apenas ensino fundamental e 62.56% declara-se solteira. Em relação às internações durante uma gestação, nosso país registra cerca de 500 por dia, causadas por aborto (espontâneos/naturais ou provocados). Ao longo dos anos de 2009 e 2018, o Brasil registrou mais de 700 óbitos em decorrência de aborto, sendo 60% destas mulheres, pardas ou negras. Por fim, mas não menos importante, entre 2010 e 2019 o país registrou 24 mil internações por aborto, crianças entre 10 e 14 anos.
E aí?
Em suma, a questão, olhada como saúde pública, é buscar entender o que leva a um abortamento da gestação e atender a estas pessoas, diminuindo os efeitos na saúde delas. Assim, a proibição legal, neste caso, fragiliza exatamente por expor a riscos de complicação, sem busca de socorro especializado, além do risco do aprisionamento.
Dessa maneira, a preocupação imediata é que estas pessoas tenham atendimento seguro, com procedimentos que acolham e atendam às necessidades de manutenção de suas integridades físicas, psicológicas, por ações sociais.
Além disso, o custo do SUS para remediar, cuidar e salvar mulheres que chegam aos hospitais a partir de procedimentos de risco, é altíssimo. Aliás, isso não é sobre ideias aleatórias, novamente é bom lembrar que esta defesa se faz por dados públicos. Por exemplo, segundo estudo recente, quase metade de gestantes (48%) precisa de internação para finalizar o procedimento de abortamento. Neste sentido, há risco de denúncia e, consequentemente, prisão. Além do risco de agravamento da saúde e possibilidade de óbito.
Todos estes dados constroem esta compreensão de que oferecer um serviço seguro de aborto diminui os riscos e a vulnerabilidade destas pessoas. E aqui, novamente, estamos falando de saúde pública. Isto é, diminuição de casos de morte e agravamento de riscos de saúde
– Ah, mas eu acho que o aborto não deveria ocorrer
Olhar o ato do aborto, como saúde pública, não é julgar os motivos pelos quais ele ocorre, mas assegurar que pessoas que precisem recorrer a este serviço, não se exponham a riscos à sua saúde. Dessa forma, neste caso, uma das medidas de saúde pública também é investir em educação sexual e reprodutiva desde períodos escolares e planejamento familiar em espaços de saúde pública, como postos de saúde, com distribuição de preservativos e contraceptivos.
Todavia, tratar deste tema como saúde pública, é mais do que apenas isso. Uma vez que precisamos trabalhar com campanhas reais, sem debates morais ao estilo “não transem”, que geram culpabilização e fragilização destas pessoas que podem engravidar. Ou seja, trabalhar com prevenção ao aborto, como medida de saúde pública, é trabalhar não na responsabilização de indivíduos, mas ações efetivas de educação, planejamento, prevenção.
Assim, o aborto, neste caso, é a última saída ou subterfúgio para assegurar a saúde das pessoas que precisam abortar.
É preciso encarar como saúde pública este dado, pois todos os anos pessoas morrem por falta de acesso a práticas seguras. É fundamental encarar o aborto como saúde pública, pois é tarefa deste setor social garantir saúde, minimizar mortes, promover vidas sadias, especialmente àquelas vulneráveis.
Finalizando
O aborto, como questão moral, pode e deve ser debatida publicamente. Mas é fundamental e emergente que tomemos estas questões como fundamentais para salvar vidas de pessoas vivas, mantendo sua integridade, sem expor a riscos desnecessários, causados por falta de políticas públicas de saúde eficientes para estas pessoas.
Ainda não concorda com o aborto? Ora, nos parece que a questão tangencia uma abordagem moral, de construção familiar, de aspectos sociais específicos e individuais. Mas aqui estamos falando de saúde pública, e a saúde pública trabalha com dados populacionais, proporcionando base para práticas para promoção à saúde – e não em detrimento desta.
Por fim, quer saber mais sobre questões individuais? O nosso próximo texto abordará estas relações! Por hoje, seguimos batendo nesta tecla: aborto, como prática em debate público, precisa analisar dados públicos e promoção à saúde.
Para saber mais
BOMFIM, VVB da S; ARRUDA, MDIS; EBERHARDT, EdaS; CALDEIRA, NV; SILVA, HFda; OLIVEIRA, ARdo N; SANTOS, ERdos; SILVA, LRMda; SOARES, LL; BEZERRA, MELdeM; OLIVEIRA, MPde; ANJOS, GFde PFdos; CAVALCANTE, RP; FERREIRA, PdeF; SILVA, JFT (2021) Abortion mortality in Brazil: Profile and evolution from 2000 to 2020, Research, Society and Development, [Sl], v10, n7.
Após o homicídio de George Floyd, asfixiado em público pelo policial Derek Chauvin, no dia 25 de maio em Minneapolis nos Estados Unidos, uma onda de protestos violentos se desencadeou em todo o País. Os manifestantes protestam pedindo a condenação do policial por homicídio em 1° (quando o autor do crime tem a intenção de matar) e, mais do que isso, esses manifestantes clamam pelas vidas de pessoas negras que, constantemente, são alvo de uma política de extermínio racista.
Já no Brasil, o recente homicídio do menino João Pedro, alvejado pela Polícia do Rio de Janeiro dentro de seu próprio lar, mostra novamente que em nosso país, o Estado segue uma política de extermínio da população negra, semelhante aos Estados Unidos. Isto quer dizer que não foi um caso isolado. Apontar que existe uma política de extermínio é afirmar que não foi o primeiro caso, não será o último e, mais do que isso, é prática rotineira e em muitas medidas legitimadas publicamente.
Os números têm nome e cor
Casos de pessoas negras que tiveram suas vidas interrompidas, como o de João Pedro, de Ágatha Félix, de Marielle Franco, mortos pelas mãos do Estado, permanecem sem resolução até hoje, compondo uma dolorosa e cruel estatística. A maior parte das justificativas compreende a Guerra às drogas e ao Tráfico, mas ao que fica evidente, esta guerra na verdade é declarada a somente uma parcela da população, a que possui cor e endereço bem determinados. Estas guerras acabam com balas perdidas que coincidentementesão sempre encontradas em corpos de comunidades de favelas ou de bairros de periferia, negros.
Essas situações não são novidade, mas têm inflamado ainda mais o descontentamento dos cidadãos brasileiros com o panorama atual do país. Similar aos protestos em Minneapolis, aqui também houve protestos e chamados para sairmos às ruas, exigindo justiça pelas mortes e igualdade racial nas políticas públicas e na vida em sociedade. Desse modo, as ameaças pelo contágio da doença COVID-19 causada pelo novo coronavírus, parece não serem suficientes para conter uma população que morre por tantos outros motivos, incluindo um período de isolamento social. Tais atos apresentam, assim, o lado cruel de políticas, de vivências, de rotina em que a morte é um enfrentamento cotidiano – dentro ou fora de casa.
Nas redes sociais não é diferente, pessoas das mais diferentes posições e crenças criaram filtros para destacar o seu compromisso com uma luta antifascista, têm postado questionamentos assertivos, cobrando posicionamentos de celebridades, intelectuais e veículos de comunicação.
Todos estes momentos e movimentos são fundamentais, pois tornam visíveis os problemas da sociedade. Exaltar a ideia de que “vidas negras importam”, tanto quanto o nome e as vidas que estão sofrendo, tornando-os símbolos não é apontar isoladamente um problema que aconteceu, nem deve ser tomado desta forma. É, sim, buscar empatia de quem não vivencia isto como cotidiano (a população branca, por exemplo), tornar evidente a questão como parte da vida de muitos brasileiros. A luta contra o racismo não deve, portanto, estar restrita aos momentos de solidariedade às vítimas. A luta e o engajamento devem ser diários, pois para as famílias de sangue retinto, muitas vezes esse momento já é tarde.
A famosa a frase da escritora Angela Davis segue apontando para o quanto é preciso protestar contra a desigualdade racial: não basta não ser racista, é preciso ser anti racista.
Você não acredita ou ainda tem dúvida que pessoas negras e suas vidas são as principais vítimas de violência no Brasil? Abaixo seguem estatísticas que retratam parte desta realidade.
Genocídio da juventude Negra no Brasil
Homicídio de pessoas negras no Brasil
O informativo de Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil mostra que a população negra tem 2,7 mais chance de ser morta do que a população branca.
Segundo dados do Sistema de Informação de Mortalidade do SUS, de 2012 a 2017, foram registrados 255 mil mortes de pessoas negras por assassinato.
Segundo a analista de indicadores sociais do IBGE – na série de 2012 a 2017, houve aumento da taxa de homicídios por 100 mil habitantes da população preta e parda (categorias adotadas pelo IBGE), passando de 37,2 para 43,4. Enquanto para a população branca esse indicador se manteve constante no tempo, em torno de 16.
Em 2017, para jovens brancos, de 15 a 29 anos, a taxa de mortalidade era de 34 em cada 100 mil habitantes. Para pessoas pretas, 98,5 mortes por assassinato a cada 100 mil habitantes; o recorte apenas para homens negros nessa mesma faixa etária, alcança a taxa de 185. No recorte para mulheres, a taxa é de 5,2 para brancas e 10,1 para pretas.
Crianças negras mortas nos anos de 2019 e 2020 vítimas de bala perdida
No Brasil, crianças negras são vítimas de balas perdidas, dentro ou fora de suas casas, no trajeto para escola ou onde quer que estejam. A seguir, lista de nomes de crianças negras que tiveram suas vidas interrompidas por esta causa nos anos de 2019 a 2020:
João Pedro Matos Pinto, 14 anos. Preto. 19/05/2020.
Luiz Antônio de Souza Ferreira da Silva, 14 anos. Preto. 06/02/2020.
Anna Carolina de Souza Neves, 8 anos. Preta. 29/01/2020.
João Vitor Moreira dos Santos, 14 anos. Preto. 09/01/2020.
Ketellen Umbelino de Oliveira Gomes, 5 anos. Preta. 13/11/2019.
Ágatha Vitória Sales Félix, 8 anos. Preta. 20/09/2019.
Kauê Ribeiro dos Santos, 12 anos. Preto. 08/09/2019.
Kauã Rosário, 11 anos. Preto. 16/05/2019.
Kauan Peixoto, 12 anos. Preto. 17/03/2019.
Jenifer Cilene Gomes, 12 anos. Preta. 14/02/2019.
PM’s negros lideram as estatísticas de mortesem serviço
Mesmo estando em menor número dentro da corporação (37% do efetivo policial), entre os anos de 2017 e 2018, 51,7% dos policiais mortos em serviço eram negros.
#vidasnegrasimportam
Vidas negras importam, seja aqui, seja nos Estados Unidos, seja em qualquer outro lugar do mundo. José Felipe Teixeira da Silva Santos (autor deste texto), em conjunto com toda a equipe do Blogs de Ciência da Unicamp, manifestamos com este documento nossa posição anti racista e antifascista, mais do que não apoiar, nos contrapomos à conivência a qualquer tipo de ação, ato ou política que se articule ao racismo e a antidemocracia, hoje e sempre.
José Felipe Teixeira da Silva Santos é estudante de Biologia da Unicamp, membro da equipe técnica, administrativa e científica do Blogs de Ciência da Unicamp. O texto tem apoio total e incondicional de toda a equipe técnica, administrativa e científica do Blogs de Ciência da Unicamp.
Assim como o genocídio promovido pelos nazistas se intensificou no final da 2ª Guerra Mundial, diante da derrota iminente, o atual governo federal e seus aliados no Congresso, que pouco representam os anseios e necessidades do povo brasileiro, estão correndo para aprovar neste ano derradeiro mais medidas para prejudicar a população.
No dia 22 de fevereiro, os deputados aprovaram a PEC 39, de 2011. Trata-se de um Projeto de Emenda à Constituição que propõe extinguir os chamados terrenos de marinha e dispor sobre a propriedade desses imóveis. “Os terrenos de marinha são as áreas situadas na costa marítima, as que contornam as ilhas, as margens dos rios e das lagoas, em faixa de trinta e três metros medidos a partir da posição do preamar (maré cheia) médio de 1831, desde que nas águas adjacentes se faça sentir a influência de marés com oscilação mínima de cinco centímetros.” Foram 389 votos a favor e 91 contra.
Os argumentos a favor da mudança, descritos na própria redação da proposta, criticam o fato das posses da marinha tratarem-se de uma instituição antiga e as apontam como não condizentes com a realidade brasileira atual. Também defendem a necessidade de uma eficiência econômica, que aconteceria a partir da mudança.
Antes mesmo da votação, o jornalista ambiental André Trigueiro mostrou sua preocupação ao dizer que tratava-se da boiada litorânea, fazendo referência a uma fala de Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente que em determinado momento do governo Bolsonaro propôs aproveitar que os holofotes da mídia estavam voltados à pandemia de Covid-19 para aprovar na surdina medidas que promovessem o desmatamento.
Acompanhando alguns debates e posicionamentos de membros da Frente Ampla Democrática Socioambiental (FADS), coletivo de luta pelo meio ambiente que congrega pesquisadores, professores, servidores públicos, ativistas e pessoas comprometidas com a justiça socioambiental, compreende-se que PEC 39 é uma grande ameaça.
As áreas das quais a proposta trata pertencem à União. A PEC propõe a transferência da propriedade de parte delas para estados, municípios e os atuais ocupantes. Muitas são ocupadas por particulares que pagam pelo uso. É um prato cheio para aqueles endinheirados que querem fechar praias. Também é um incentivo para que ocorram mais casos como o do município paulista de Ilha Comprida, onde houve no ano de 2019 a aprovação de uma lei municipal feita sem consulta pública e sob encomenda para que um determinado empresário pudesse construir prédios de até 30 metros de altura (7 andares). Após mobilização popular, o empreendimento foi cancelado. Mas com a PEC 39, haverá mais áreas como essa a serem loteadas e ocupadas.
Além da especulação dos grandes empreendimentos, pode haver distribuição de títulos de propriedade a populações em condições inadequadas de moradia e em áreas de risco, o que prejudica a realização das políticas públicas habitacionais e de urbanismo necessárias e perpetua a precariedade em que essas pessoas vivem.
A pressão do capital em nossa costa irá explodir cada vez mais em conflitos fundiários. Essa proposta de emenda é um saldão da especulação imobiliária de políticos (no mal sentido da palavra) para liquidar com as áreas de preservação e com as pessoas que estarão cada vez mais em risco nessas áreas sensíveis a inundações e enxurradas.
No momento, a proposta tramita para a apreciação do Senado Federal. O fim da posse desses terrenos da marinha leva à privatização turísticas de praias e caminha para a realização do sonho daquele sádico que botaram na presidência da república de termos uma (ou mais) Cancún brasileira. E isso não é uma coisa boa. Uma espécie de Apartheid vem por aí…
Paulo Andreetto de Muzio é graduado em Relações Públicas (2005) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP. Especializou-se em Jornalismo Científico (2016) pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo – Labjor, da Universidade de Campinas – Unicamp, e é mestre em Divulgação Científica e Cultural (2020), também pelo Labjor.
Imagine se fizessem o mesmo barulho para a liberação de veneno que fizeram e ainda estão fazendo para tentar barrar a aprovação de vacinas. Só imagine…
No dia 9 de fevereiro, a câmara dos deputados aprovou o Projeto de Lei nº 6.922 de 2002, conhecido como PL do Veneno, que flexibiliza o uso de agrotóxicos no Brasil. O resultado da votação foi de 301 a favor, 150 contra e duas abstenções. Neste momento o projeto tramita para o Senado.
Ano após ano o Brasil bate recordes de liberação de agrotóxicos. Em 2020 foram 493 e em 2021 mais 562. “Entre os 50 agrotóxicos mais utilizados no Brasil, 30 já são banidos em outros países”, afirma o deputado federal Alessandro Molon, do Partido Socialista Brasileiro, contrário à flexibilização. A aprovação de veneno vem aumentando desde 2016, ano em que Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores, foi tirada do cargo de Presidenta da República.
A língua não é neutra e sempre é utilizada na construção das narrativas. Luiz Nishimori, do Partido Liberal, relator do projeto, modifica alguns termos na própria redação do PL substituindo agrotóxicos (assim aparecem na Constituição Federal) por pesticidas. E quando utilizados em florestas e ambientes hídricos, passam a ser denominados produtos de controle ambiental. Também não é incomum militantes pró-veneno chamarem os agrotóxicos de defensivos agrícolas. É um belo eufemismo, pra não dizer mau-caratismo semântico. Um negócio que ataca a vida, que mata, ser colocado como algo que defende, que protege. O que está realmente sendo defendido é o lucro de alguns poucos capitalistas em cima de mortes e da degradação do meio ambiente.
Prejuízos à saúde humana e impactos no Meio Ambiente
Com tanto veneno sendo solto no mercado, fica bastante difícil especificar os impactos negativos de cada um deles. Alguns são mais leves, outros mais pesados.
O glifosfato, por exemplo, é o agrotóxico mais utilizado no Brasil. Um estudo realizado por pesquisadores das universidades de Princeton, Fundação Getulio Vargas e Insper revelou que a disseminação do glifosato nas lavouras de soja levou a uma alta de 5% na mortalidade infantil em municípios do Sul e Centro-Oeste que recebem água de regiões sojicultoras. Isso representa um total de 503 mortes infantis a mais por ano associadas ao uso do glifosato na cultura de soja.
Os agrotóxicos podem contaminar os corpos hídricos, afetando tanto a vida aquática quanto o abastecimento humano. Comprometem ainda a fertilidade do solo.
Alguns desses produtos podem impactar na biodiversidade de insetos. No caso da mortalidade de abelhas, principal polinizadora animal, comprometem a própria produção agrícola. Algumas culturas são essencialmente dependentes dessa polinização, como abóbora, acerola, cajazeira, cambuci, castanha do pará, cupuaçu, fruta do conde, gliricídia, jurubeba, maracujá, maracujá doce, melancia, melão e urucum. Quando não polinizadas, a produção cai entre 90 e 100%.
Lobby poderoso
No documentário O Veneno Está na Mesa (2011), de Silvio Tendler, Eduardo Galeano afirma que os agrotóxicos, que são venenos contra a natureza, estão sendo permitidos até mesmo por governos progressistas em nome de uma produtividade, a partir de um critério economicista do que é o desenvolvimento humano. E dessa forma, esses governos aceitam os agrotóxicos como se fossem uma necessidade inevitável. Vale lembrar que Kátia Abreu, pecuarista pró-veneno e atualmente senadora pelo estado de Tocantins, que não consegue parar quieta em um partido político, foi Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento no segundo mandato do governo Dilma.
Se em gestões progressistas já estava ruim…
Anos atrás, no Congresso Brasileiro de Jornalismo Ambiental, conversei com uma pessoa que representava uma ONG que exibia filmes sobre temas ambientais e havia firmado uma parceria com uma secretaria de estado de Meio Ambiente para a realização de sessões de cinema. O cronograma já estava rolando e vários filmes já haviam sido exibidos. Ela me contou que ao ser divulgada a exibição de O Veneno Está na Mesa, rolou censura. Tema sensível. Polêmico até mesmo para uma pasta governamental de Meio Ambiente.
Ano passado escrevi aqui no blog como profissionais são perseguidos ao mexer em vespeiros como esse. Larissa Mies Bombardi, doutora em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP), publicou em 2017 o Atlas “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia”. Em 2019 foi publicado em inglês na Europa e, após a maior rede de supermercados orgânicos da Escandinávia boicotar produtos do Brasil, Larissa sofreu intimidações por personalidades e instituições do agronegócio. Além disso, foi vítima de um assalto a sua casa em que o notebook com dados de sua pesquisa foi roubado. Monica Lopes Ferreira, imunologista do Instituto Butantan, também sofreu retaliações por sua pesquisa. Em 2018, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), estudou 10 tipos de agrotóxicos e demonstrou que não há doses seguras para o uso de nenhum deles. A direção do Instituto Butantan proibiu Monica de submeter novos projetos de pesquisa por seis meses. Ela teve que entrar na justiça para reverter a situação.
Ainda temos fresco na memória a perseguição recente por parte do desgoverno miliciano a servidores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no contexto da pandemia de Covid-19, após a aprovação da vacina da Pfizer para crianças de 5 a 11 anos. Em 2010, José Agenor Álvares, um dos diretores da Anvisa, deu entrevista à edição brasileira do jornal francês Le Monde com o título “Brasil envenenado”, fazendo crítica ao uso excessivo de agrotóxicos pela agricultura brasileira. Na época, acabou sendo intimado pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado, na figura de Kátia Abreu, para prestar esclarecimentos.
Imagine se vacinar as crianças fosse mais fácil que envenená-las… só imagine.
Paulo Andreetto de Muzio é graduado em Relações Públicas (2005) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP. Especializou-se em Jornalismo Científico (2016) pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo – Labjor, da Universidade de Campinas – Unicamp, e é mestre em Divulgação Científica e Cultural (2020), também pelo Labjor.
O que vem à sua mente quando você vê uma performance como essa da imagem? E o que vem à mente se eu te contar que ela teve um custo de 20 mil reais para a prefeitura da cidade de Juiz de Fora / MG? Um absurdo? Qualquer coisa menos arte? Um dinheiro que poderia estar sendo utilizado para cobrir buracos, melhorar os postos de saúde, melhorar a segurança pública? Uma “lacração”?
Nesse texto, vamos conversar um pouco sobre gastos públicos com cultura e o que exatamente é arte.
Este conteúdo foi originalmente produzido em vídeo, mas se preferir pode lê-lo logo depois do player!
Cartaz chamando o público para a Semana de Arte Moderna de 1922.
100 anos da Semana de Arte Moderna de São Paulo
No dia 13 de fevereiro de 2022, a famosa Semana de Arte Moderna de 1922 completa 100 anos. A Semana aconteceu no Teatro Municipal de São Paulo e foi um grande catalisador de mudanças importantes na linguagem artística brasileira. A partir desse marco, surge o chamado “modernismo” no Brasil, trazendo uma estética bastante diferente.
Até aquele momento, prevalescia a expressão artística do academismo, baseada nas academias de arte europeias e instituída no país desde 1816, com a criação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios por D. João VI.
A arte acadêmica tinha um caráter bastante moralista, muitas vezes recorrendo a cenários bíblicos ou à coragem nobre de soldados em guerras. A idealização das formas e dos corpos também era algo que se perseguia, evitando-se ao máximo o mundano, o cotidiano e o real. As obras academistas eram carregadas de técnias complexas, uso moderado de cor e de tinta e as superfícies eram perfeitamente lisas (sem que se pudessem perceber os traços do pincel).
Com a intenção de promover uma renovação artística e social no Brasil, um grupo de artistas (revolucionários) que se apresentariam na grande e esperada Semana de Arte Moderna de 1922, resolveram apresentar obras que causavam drástico rompimento com a expressão artística vigente (o academismo). Dentre as várias apresentações de música, poesia, esposição de obras, as obras dos chamados “modernistas” eram muito mais mundanas, cotidianas, coloquiais, cômicas, irônicas e com temáticas bem brasileiras.
É claro que isso desagradou uma parcela importante da população e gerou diversos ataques aos artistas e a esse movimento. Mesmo assim, essa semente plantada em 1922 levou a uma série de movimentos e mudanças estilísticas nos anos seguintes.
Segundo a jornalista e historiadora Marcia Camargos, o maior legado da Semana de 1922 “foi no sentido de libertar as artes e a cultura das amarras do academicismo, do parnasianismo, dos padrões europeus, para dar inicio à construção de uma estética nacional”.
Primeira Missa no Brasil (1861). Obra de caráter histórico do período academicista do artista Victor Meirelles
Samba (1925). Obra modernista do artista Di Cavalcanti
Ataques à arte
Para homenagear o centenário da Semana de 1922, a Prefeitura de Juiz de Fora lançou o edital cultural “Pau Brasil” para apoiar 15 ações culturais e artísticas na cidade com o valor fixo de R$ 20.000,00.
Dos projetos contemplados o 5º lugar foi uma intervenção cultural chamada PRAIA. De acordo com a diretora dessa intervenção,
“A ideia é a gente ocupar o Parque Halfeld [um ponto de encontro importante da cidade] de uma maneira diferente do que acontece normalmente e estamos aqui para propor novos olhares, novas maneiras de estar, questionando protocolos sociais, preconceitos e se dando ao prazer de desfrutar esse momento”.
A intervenção artística, que ocorreu no dia 05/02/2022, consistiu em um grupo de artistas sobre uma lona amarela simulando que estavam na praia (tomando sol, conversando, etc.). Parte da população de Juiz de Fora criticou fortemente essa intervenção, alegando que: 1) isso não é arte e 2) foi um dinheiro jogado fora e os 20 mil reais gastos pela prefeitura poderiam ser utilizados para, por exemplo, cobrir buracos no asfalto.
As críticas foram tão intensas, que o setor de inteligência da Secretaria de Segurança Urbana recomendou a suspensão da segunda apresenação dessa intervenção, de modo a proteger a integridade física dos artistas.
É assustador ver uma performance artística precisar ser cancelada por risco à integridade física dos artistas. Da mesma forma que a Semana de Arte Moderna de 1922 sofreu ataques duros, essa intervenção (que homenageou a Semana de 1922) e outras obras artísticas que provocam rompimento com a arte mais pura, mais moralista, também sofrem ataques até hoje. Isso mostra que nesses 100 anos ainda não aprendemos tanto assim com os artistas modernistas, embora a arte tenha se transformado muito.
Dinheiro jogado fora?
O projeto “PRAIA” recebeu R$ 20.000,00, como estava previsto no edital Pau Brasil, sendo que cerca de 5.000,00 ficaram retidos por imposto de renda. O dinheiro restante foi usado para remunerar: 1) uma oficina de criação de 1 mês de duração; 2) duas apresentações de 2h de duração com um grupo grande de artistas; 3) a produção de um vídeo de registro; e 4) uma oficina de avaliação aberta ao público. Ou seja, não foram 20 mil reais por uma performance.
Para ser aprovado neste edital, o proponente deveria justificar a destinação de cada centavo gasto no projeto (e valores superfaturados ou gastos desnecessários poderiam fazer o projeto ser desclassificado) e após a sua execução todos os gastos deveriam ser comprovados. Ou seja, tudo é muito bem controlado e avaliado pela Comissão Municipal de Incentivo à Cultura (Comic), que é composta por membros do poder público e da sociedade civil (principalmente da classe artística).
Existem outros fatores importantes também: o projeto precisa ter alguma acessibilidade (seja para surdos, cegos, pessoas com deficiência, etc.); precisa estar muito bem justificado quanto ao seu objetivo artístico (e isso é avaliado por artistas); e ainda precisa oferecer uma contrapartida social gratuita (isso quer dizer que quem ganha essa verba precisa de oferecer gratuitamente uma oficina, um curso, uma aula, etc. para a poppulação da cidade. Ou seja, há aí uma importante devolutiva à sociedade, cujo dinheiro foi investido nesse projeto.
Por fim, vale dizer que seria impossível a prefeitura simplesmente pegar esse dinheiro e usar para cobrir buracos no asfalto, simplesmente porque é uma verba que já está destinada à pasta da cultura. Quando a prefeitura aprova a lei orçamentária de um ano, ela já estabelece quanto de verba vai para cada setor. Uma vez que o dinheiro foi para a cultura, lá ele fica, e quem vai administrá-lo é a secretaria responsável. Além disso, um investimento de 300 mil reais (que foi o orçamento do edital inteiro, que contemplou 15 projetos) pode até parecer um valor exorbitante, mas não é. Para uma cidade que tem um orçamento anual da ordem de 2 bilhões e 600 milhões, esse investimento é muito pequeno. A arte sempre recebeu, e recebe, muito pouco. E o pouco que ela recebe é sempre alvo de muitos ataques e questionamentos.
Sobre o argumento de que isso é ou não arte, nem faz sentido entrar nessa discussão, uma vez que as pessoas que mais estão defendendo que esta intervenção não é arte não têm qualquer formação artística e, pelo visto, não são consumidoras de algumas lingagens artísticas, como a arte performática. Muitas das críticas também se originam de um pensamento mais moralista e conservador e traz uma bagagem ideológica que dificulta o indivíduo a se abrir a expressões artísiticas que rompem com esse conservadorismo.
No fim, a melhor prova de que trata-se de uma obra de arte singela e potente é que ela cumpriu um papel importante de provocar, tocar em feridas da sociedade e efervescer discussões.