Categoria: 2022

  • Volóchinov, Marighella e o camarão de Wagner Moura

    Texto por Armando Martinelli Neto

    “Quero ser apenas um entre
    os milhões de brasileiros que resistem”
    (Carlos Marighella)

    Enquanto escrevo esse texto, no dia 04 de dezembro, data em homenagem a Orixá Iansã (rainha dos ventos, raios e tempestades), vejo um vídeo nas redes sociais com a primeira-dama do país saltitante a gritar “glória a Deus, aleluia, aleluia”, em razão da aprovação do Sr. André Mendonça ao cargo de juiz do Superior Tribunal Federal (STF). É, segundo os próprios seres que choram e rezam no vídeo, um feito histórico, pois trata-se de um representante terrivelmente evangélico a ingressar no STF.

    É dentro desse contexto de distopia ao vivo, que no segundo semestre tive a oportunidade de tomar conhecimento das ideias centrais do pensador russo Valetin Volóchinov, por meio do livro “A palavra na vida e a palavra na poesia – ensaios, artigos, resenhas e poemas”. Falar em coletivo, em compartilhamento de ideais, me faz conectar as páginas do livro com o filme Marighella, dirigido por Wagner Moura e lançado em 04 de novembro.

    A obra, pronta desde 2018, sofreu inúmeras retaliações da Ancine (órgão oficial do cinema nacional), atuando, principalmente, em dificultar sua chegada aos cinemas. Calhou que depois de tanto atraso, o lançamento ocorresse justamente em período de menor contágio da pandemia, possibilitando o acesso maior das pessoas.

    O filme, como esperado, sofreu muitas críticas das narrativas centradas nas alas conservadoras que lideram o país, uma delas, com grande repercussão, foi o episódio da marmita com camarão degustada por Wagner Moura, em uma das exibições realizadas em acampamento do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).

    É dessa junção do lançamento de Marighella, das repercussões sobre o prato com camarão degustado por Wagner Moura, ladeados pela distopia nacional, que esse texto pretende conduzir algumas reflexões, tendo como base ideias de Valetin Volóchinov, mostrando quão atuais são os pensamentos desse filósofo, poeta, linguista e crítico literário, falecido em 1936.

    Marighella Vive

    Um adolescente viaja no carro com o pai saindo do interior do estado com destino a São Paulo, capital. Visitar São Paulo sempre foi para aquele jovem um grande fascínio, com as misturas de fachadas e cores que se prolongavam diante dos curiosos olhares, ao mesmo tempo que um tom melancólico irrompia diante das cenas explícitas de miséria, com os barracos de papelão nas bordas das grandes avenidas e a multiplicação de pessoas pedindo esmolas. Nesse dia, em particular, uma pichação chamou sua atenção. Como essa da foto abaixo:

    Pixação em João Pessoa – Murilo Endriss
    https://www.flickr.com/photos/50496888@N00/8746527671/

    – Pai, quem é Marighella?
    O pai, que assoviava distraidamente na espera do semáforo, com a vista para uma roda de samba na esquina, coçou levemente a cabeça e respondeu.
    – Ah, filho, foi um terrorista, comunista, algo assim. Olha, já estamos quase na av. Paulista.

    Naquela época não havia google para que o jovem digitasse Marighella e recebesse inúmeras informações sobre o personagem. Anos mais tarde, na faculdade de Jornalismo, ele finalmente teve elementos mais contundentes sobre a vida de Carlos Marighella, durante aulas que abordaram a relação da imprensa e a ditadura militar no Brasil.

    Foi aí que ele entendeu a importância daquela frase no muro, ao se deparar com a trajetória do poeta, escritor, político, e um dos líderes da resistência armada contra a ditadura militar no Brasil. Como constatado no impactante filme de Wagner Moura, uma das grandes frentes de atuação da resistência era fazer chegar à população brasileira a mensagem de que havia um grupo de pessoas lutando pela liberdade do país.

    A expectativa de Marighella consistia em quebrar a versão oficial dos fatos disseminada pelo governo golpista, que sob a égide da truculência dos coturnos impunha a censura a qualquer veículo de comunicação. Mais do que nunca, a “verdade” oficial dos militares procurava ter um caráter eterno, e, assim, apagar qualquer fresta de comunicação que pudesse ampliar os horizontes, como Volóchinov explica.

    A classe dominante aspira dar ao signo ideológico um caráter eterno, acima das classes, apagar ou encurralar a luta de relações de classe que ocorrem no seu interior, fazer dele a expressão de apenas um olhar firme e imutável. (VOLÓCHINOV. A palavra na vida e a palavra na poesia. Pág. 320)

    O que mais assombra diante da pontuação dos fatos acima citados não é constatar que grande parte da população brasileira tenha aceitado o discurso dos “terroristas da luta armada”, que insistiam em atrapalhar a ordem e progresso do país. Afinal, a massificação da mensagem oficial torna o receptor alvo fácil. (Caso queira sentir hoje em dia o mesmo “gosto” da comunicação unilateral dessa época, basta sintonizar na emissora Jovem Pan).

    Junta-se a isso a “caça às bruxas” ocorrida em nível mundial decorrente da Guerra Fria, como no período do Macarthismo estadunidense, com listas de comunistas sendo expostas como inimigos da pátria (O filme Trumbo é bom exemplo da época, com inúmeros artistas e diretores de cinema americanos ameaçados de boicotes por serem comunistas) e compreende-se, assim, a força do discurso impregnado.


    A questão é verificar como a mensagem oficial perpetuou uma sensação positiva nas pessoas, em contraponto ao apagamento de Marighella e do grupo de resistentes, lembrados majoritariamente como terroristas. E, nesse sentido, existe um componente comunicacional crucial, a chamada mídia jornalística de massa. (Você pode conferir mais sobre isso no texto “Qual a diferença da comunicação antes da internet e agora?“)

    Se na ditadura militar os veículos de comunicação sofriam censura em razão do Ai-5, muitos anos depois constata-se que a cobertura tendenciosa de alguns casos auxiliou na corroboração de discursos cruciais para a conjectura política e social dos últimos anos. Exemplo claro foi a participação ativa da Rede Globo na valorização da operação Laja Jato.

    O veículo The Intercept Brasil teve acesso a várias mensagens virtuais que comprovaram a estreita relação entre a emissora e os procuradores-chaves da operação, conforme trecho da matéria abaixo.

    “Por anos, a Globo trabalhou com a operação Lava Jato numa parceria de benefício mútuo. O arquivo da Vaza Jato mostra que a força-tarefa antecipava informações para jornalistas da emissora e dava dicas sobre como achar detalhes quentes nas denúncias. A Globo usava os furos para atrair audiência e servia como uma plataforma para amplificar o ponto de vista dos procuradores. O espaço dado à defesa dos suspeitos e investigados viraria nota de rodapé, e minguava a esperada distância crítica que jornalistas precisam ter de suas fontes e de grupos políticos que são tema de suas reportagens. A parceria da Globo com a Lava Jato foi fundamental para consolidar a imagem de heróis que procuradores e o ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sergio Moro sustentaram por anos”.
    ‘UM TRANSATLÂNTICO’ – O namoro entre a Lava Jato e a Rede Globo

    A frase “O espaço dado à defesa dos suspeitos e investigados viraria nota de rodapé…”, demonstra bem a tendenciosa apuração dos fatos, e a força que o tom das matérias alcançou, elevando figuras como o então juiz Sérgio Moro. A valorização da Lava Jato, sobretudo na concentração de denúncias contra o PT, impulsionou o discurso de ódio contra a esquerda. O conceito de entonação de Volóchinov traduz bem a forma da cobertura da Rede Globo, e como a construção das matérias sobre a Lava Jato auxiliou na simpatia com o auditório.

    A ideologia de classe penetra de dentro (por meio da entonação, da escolha e da disposição das palavras), qualquer construção verbal, ao expressar e realizar não só por meio do seu conteúdo, mas pela sua própria forma, a relação do falante com o mundo e as pessoas, bem como a relação com dada situação e dado auditório. (VOLÓCHINOV. A palavra na vida e a palavra na poesia. pág. 309)

    A Globo, assim como outros veículos de comunicação de massa do país, conduziram a entonação favorável para cristalizar a Lava Jato como uma operação séria e vital para o bom andamento do Brasil. A entonação utilizada pelos grandes veículos de mídia de massa fez com que um inimigo fosse criado, simbolizado na figura de Lula, adjetivado pelos signos vermelho, comunista, socialista, petista etc. O Brasil necessitava, novamente, de ordem para manter o progresso. Marighella renascia no filme de Wagner de Moura, no país que nunca saiu de 1964.

    Pobre pode comer camarão?

    Repare bem na foto abaixo. O leitor nascido no Brasil pode identificar que se trata do ator e diretor Wagner Moura, comendo uma refeição em evento de alguma unidade do MTST. Afinal, o símbolo do movimento está estampado nas paredes, bonés e vestes das pessoas que surgem na cena.

    Fonte: Uol

    Dentre as inúmeras polêmicas com o filme Marighella, uma das maiores originou-se na exibição, mais propriamente, em uma das várias sessões realizadas junto aos representantes do MTST, com a participação do diretor do filme, Wagner Moura, notoriamente reconhecido como um artista atuante em frentes políticas, sem nunca ter escondido suas críticas ao atual governo do país. Tudo tem origem com a foto acima publicada por Guilherme Boulos (Psol) em sua página no Twitter.

    O pré-candidato pelo Psol ao governo de São Paulo legenda seu post com o seguinte texto – “Wagner Moura comendo uma quentinha na ocupação do MTST, onde fizemos ontem a exibição popular de Marighella. Foi potente! Viva a luta do povo!”

    Fonte: @GuilhermeBoulos

    O post de Boulos reverbera e acaba por gerar comentários dos representantes da direita, como esse de Eduardo Bolsonaro. “Agora tem o MTST raiz e o MTST nutela. Ou será que já é o comunismo purinho, onde a elite do partido come camarão e o restante se vira e passa fome igual à exemplar Venezuela?

    Fonte: @BolsonaroSP

    Depois de muita polêmica e ataques no Twitter, Boulos fez novo post dizendo: “Direitistas raivosos com a foto do Wagner Moura comendo acarajé no prato na ocupação do MTST mostra que o bolsonarismo vibra com a fome e, acima de tudo, desconhece a cultura brasileira”.

    Fonte @GuilhermeBoulos

    Como podemos ver, a questão crucial é a ingestão de camarão dentro de um ambiente geograficamente destinado a pessoas de origem humilde. Notem que algumas palavras do diálogo deixam claro as relações de classes. Boulos em sua primeira mensagem denomina a refeição de Moura como quentinha, termo comum para designar as marmitas em embalagem de isopor ou alumínio, normalmente atreladas aos trabalhadores de menor poder aquisitivo.

    Eduardo Bolsonaro frisa em seu comentário a presença do camarão servido a Wagner Moura, dizendo que a iguaria provavelmente era destinada somente à elite do movimento, pois os demais integrantes do MTST deveriam passar fome como na Venezuela.

    Em três linhas, o deputado federal cita o termo comunismo e o atrela com a Venezuela, relembrando a retórica chavão das eleições de 2018. Boulos retruca conectando os termos direita e bolsonarimo com vibração pela fome e desconhecimento da cultura brasileira, já que o prato em questão é um vatapá (comida originária da época da escravidão e que contém camarão).

    A fotografia, para alguém distante da realidade brasileira traria como significado apenas um homem comendo uma refeição, em pé, provavelmente em algum evento, já que aparecem cartazes ao fundo e outras pessoas ao lado. Mas, como explicado por Volochinov, a imagem é cheia de signos quando alocada diante de seu embate social.

    Na verdade, apenas graças a essa refração de opiniões, avaliações e pontos de vista é que o signo tem a capacidade de viver, de movimentar-se e desenvolver-se. Ao ser retirado do embate social acirrado, o signo ficará fora da luta de classes, inevitavelmente enfraquecendo, degenerando em alegoria e transformando-se em um objeto de análise filológica, e não de interpretação social viva. (VOLÓCHINOV. A palavra na vida e a palavra na poesia. pág. 319).

    O camarão de Wagner Moura é um exemplo perfeito das narrativas que se configuram diante do mesmo signo, de como a luta de classes se embrenha na imagem e possibilita o surgimento de retóricas. Em uma entrevista realizada ao podcast PodPah, no dia 03.12, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi questionado sobre a polêmica do “pobre pode comer camarão”. A resposta de Lula viralizou nas redes sociais e recebeu mais de 16 mil curtidas.


    PodPah – Lula, pobre pode comer camarão?
    Lula – “Deve e pode comer. Até porque é ele quem pega o camarão. É ele quem constrói o carro, é ele quem faz a roupa que você está vestindo, então ele tem o direito de ter as coisas que ele produz”.

    A luta de classes viralizando no Brasil polarizado.

    A palavra resistência, mencionada na frase de Marighella na epigrafe desse texto, talvez seja o termo mais importante às pessoas que se unem em prol da oposição do governo autoritário e desumano de Bolsonaro. Oposição que não se faz através de armas, mas da junção de posicionamentos e manifestações que valorizem a democracia. As armas, inclusive, são símbolos do governo, de quem prega o direito de “proteção” a vida por meio da força, especialmente no campo, estimulando o uso desenfreado da violência pelos latifundiários.

    É óbvio que mesmo com todo alarde em torno da exibição do filme, com as polêmicas geradas pela guerra de narrativas, o alcance da obra será pequeno diante da força do sistema, impregnado nos veículos da mídia jornalística de massa, nas redes de Fake News, nos discursos que menosprezam as posições consideradas de esquerda, eternas “ameaças” aos bons andamentos do setor financeiro.

    Pouco antes de ser preso pela operação Lava Jato, Lula fez um discurso onde destacou a seguinte frase: “Eu não sou um ser humano, sou uma ideia. E não adianta tentar acabar com as ideias”. Se o país ainda trava embates de narrativas que contestam as forças sistêmicas é porque há pessoas que construíram e seguem a defender ideias opositoras, que cruzam os tempos em prol da contestação das mensagens oficiais impostas e/ou manipuladas pelos interesses do capital. Todos os dias somos atravessados por notícias e imagens repletas de signos, narrativas propostas com interesses específicos. Cabe as pessoas compreenderem que toda a realidade circundante é marcada pelas batalhas da luta de classes, como define Volóchinov.

    Em suma, toda a realidade e toda a existência do homem e da natureza não apenas refletem-se no signo, mas também refratam-se nele. Essa refração da existência no signo ideológico é determinada pelo cruzamento de interesses sociais multidirecionados nos limites de uma coletividade sígnica, isto é, pela luta de classes. (VOLÓCHINOV. A palavra na vida e na poesia. Pág. 319)

    Que Iansã continue a ventar forte e siga espalhando os ideais de Volóchinov, Marighella, Wagner Moura e energize todas e todos principalmente na defesa da democracia, contra os discursos fascistas que insistem em nos rodear. Ainda aproveitando o clima de início de ano, finalizo com um post no twitter de 2019, da atriz Vera Holtz, muito compartilhado nas redes sociais, com a permissão de atualizá-lo para 2022, afinal, as esperanças, principalmente no Brasil, precisam ser continuamente renovadas.

    Desejo para esse 2022
    ⦁ consciência de classe
    ⦁ Pensamento crítico para checar as informações
    ⦁ Interpretação de texto


    Referências bibliográficas

    VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, 400 p.

    Filmografia – – Marighella – Direção de Wagner Moura – lançamento (2021) – 155 min

  • Esquerda e direita: quem é mais feliz? E por quê?

    (Capa: à esquerda, foto por Caco Argemi CPERS/Sindicato, usada sob CC BY 2.0; à direita, foto por Larrion Nascimento)

    Texto por Davi Carvalho

     

    Ao ler o título deste texto, seja você de esquerda ou de direita, é possível que tenha elaborado mentalmente uma resposta às perguntas ali levantadas e, então, iniciou a leitura em busca de possível confirmação de sua hipótese. Aí vai uma resposta curta: conservadores são mais felizes do que as pessoas de esquerda. Essa afirmação confirma ou não o que pressupunha? Seja como for, entender – de um ponto de vista científico – a extensão e o porquê dessa diferença pode mudar sua visão sobre o quão feliz você pode ser. 

     O que diz a ciência?

    A grande maioria das pesquisas indicam que conservadores são realmente mais felizes, na média, do que as pessoas mais à esquerda no espectro político-ideológico. Um estudo do Pew Research Center (PRC), nos EUA, apontou que 45% das pessoas de direita (republicanos) contra apenas 30% das de esquerda (democratas) consideram-se “muito felizes”. [1]  Apesar de esses dados serem de uma pesquisa com mais de uma década, o aspecto mais interessante dos levantamentos feitos pelo PRC é a constância nos resultados sobre felicidade: desde 1972, os conservadores consistentemente aparecem como mais felizes do que os progressistas. 

    Esquerda e direita: quem é mais feliz?
    Afinal, quem é mais feliz? (Fonte: Pixabay)

    Outro estudo, de 2014, feito por pesquisadores da Universidade de Nova Jersey, EUA, apoiado em uma gigantesca base de dados (mais de 1 milhão de indivíduos oriundos de 16 países europeus), também apontou que as pessoas de direita são mais felizes do que as de esquerda [2].  Por fim, em um terceiro estudo, envolvendo 15 países europeus, além dos EUA, pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia e da Universidade de Utah descobriram que conservadores veem maior significado na vida do que progressistas [3]. Um ponto curioso dessa pesquisa é que, entre as pessoas de direita, aquelas mais conservadoras nos costumes (contra o casamento gay e o aborto, por exemplo) foram as que mais acentuadamente reportaram ver a vida com grande significado. 

    Tais pesquisas levantam uma questão ainda mais importante: afinal, por que as pessoas de direita são mais felizes? A literatura científica a respeito do assunto aponta três grupos de fatores que influenciam nisso:  1) aspectos demográficos – tais como casamento e religiosidade; 2) diferenças ideológicas ou comportamentais – como o grau de crença na meritocracia; 3) e, por fim, até mesmo a ideologia predominante do governo do país em que essas pessoas vivem. Quanto a este último fator, principalmente se não está contente com o governo atual de seu país, dificilmente você duvidaria do impacto disso em sua felicidade, não é mesmo? Vejamos, então, o que a ciência diz sobre a relevância de cada um desses fatores para o nosso bem-estar. 

    1)  Fatores demográficos:

    As pessoas de orientação política de direita casam-se mais [4], têm mais filhos [5] e são mais religiosas [6], quando comparadas às de esquerda. Ocorre que esses fatores todos se relacionam com a felicidade. Um estudo dos sociólogos Steven Stack and Ross Eshleman, da Wayne State University, encontrou que, em 16 de 17 países industrializados pesquisados, o casamento estava positivamente associado a um maior grau de felicidade [7]. E os conservadores não só se casam mais como, em comparação com esquerdistas casados, há maior probabilidade de se afirmarem “muito felizes” no casamento [8]. 

    Uma família feliz. Quais seriam as causas? [Fonte: Pixabay]

    Quanto à crença religiosa, segundo o célebre psicólogo social Jonathan Haidt, pessoas que comungam da mesma fé costumam compor comunidades de apoio social mútuo, o que as torna menos isoladas [9]. Além disso, sistemas religiosos oferecem explicações sobre algumas das questões mais profundas que afligem os seres humanos, como sobre a finitude e o que ocorre após a morte [10]. A crença em tais narrativas pode aplacar a angústia existencial, o que tem o potencial de proporcionar maior nível de felicidade aos religiosos.

    Quando tais fatores demográficos são considerados em conjunto, a diferença dos níveis de felicidade entre pessoas de ideologias políticas opostas pode ser muito expressiva. Segundo o cientista social Arthur Brooks, da Universidade de Harvard, 52% dos conservadores casados, religiosos e com filhos se afirmam muito felizes, contra apenas 14% das pessoas de esquerda solteiras, sem religião e sem filhos [11]. Esses fatores, porém, não explicam tudo. As próprias características ideológicas dos indivíduos também contam (e muito).

     2) Características ideológicas e comportamentais:

    Segundo pesquisas do proeminente psicólogo social John Jost, da Universidade de Nova York, o conservadorismo político é uma ideologia que justifica o sistema social, isto é, seus portadores endossam e defendem o status quo, a realidade social, política e econômica como ela é [12]. Conservadores, além de aceitarem as desigualdades sociais, também as enxergam como causadas por mecanismos que consideram justos e legítimos. Assim, Jost argumenta que essa ideologia política acaba tendo uma função paliativa, ou seja, como pessoas de direita tendem a justificar a realidade social, é menor a possibilidade de  sofrerem em relação aos problemas sociais, como a desigualdade, o que as tornaria mais felizes do que as de esquerda [13].

    Para testar essa hipótese, John Jost e a psicóloga social Jaime Napier realizaram três estudos baseados em surveys [14]. Como resultado desses estudos, amparados em dados de dez países, encontraram que, em comparação com pessoas de esquerda, o maior bem-estar subjetivo de conservadores está de fato relacionado à sua capacidade de racionalizar a desigualdade. Por “racionalização”, conceito bastante conhecido na psicologia social, entenda-se que as pessoas criam narrativas e explicações próprias para as coisas – explicações essas frequentemente bem distantes da realidade – para que se sintam confortáveis com suas crenças e formas de ver o mundo. Um exemplo disso pode ser observado quando uma pessoa conservadora considera que a pobreza seja resultado de apatia, de uma suposta indolência das pessoas: se são pobres, é porque não se esforçaram o suficiente. Eis aí uma típica e clara racionalização de um fenômeno social complexo.

    Não à toa, com base nos estudos mencionados, Napier afirma que a crença na meritocracia – a ideia segundo a qual o trabalho duro leva necessariamente ao sucesso na vida – é o principal fator para se predizer quem é mais feliz. Quanto mais se crê na meritocracia, mais feliz é o indivíduo. E os conservadores são os maiores defensores dessa crença.

    Esquerda e direita – nível de bem-estar em queda

    Em um dos três estudos referidos, Jost e Napier encontraram também que o nível de bem-estar subjetivo geral diminuiu significativamente, nos EUA, entre as décadas de 1970 e 2000. E essa queda geral da felicidade acompanhou um aumento expressivo da desigualdade naquele país. Curiosamente, ao mesmo tempo que a felicidade da população como um todo declinou ao longo do período relatado, aumentou a diferença do nível de felicidade entre os lados ideológicos: as pessoas de direita também foram afetadas e tiveram queda no nível de felicidade, mas em proporção bem menor do que as de esquerda. Observe o gráfico:  

    (Relação entre orientação política e felicidade declarada como função do índice de Gini – 1974 a 2004 – Extraído de JOST & NAPIER, 2008)

    Jost e Napier supõem que isso ocorra porque os conservadores possuem, em sua visão de mundo, um “amortecedor” ideológico contra os efeitos deletérios da desigualdade econômica no bem-estar das pessoas. Assim, conforme a desigualdade cresce, isso afeta negativamente a todos, mas atinge mais acentuadamente a esquerda, que, em vez de justificar a realidade social e suas mazelas sociais, a elas se opõe. 

    Contudo, tais características ideológicas das pessoas aparentemente também não explicam, por si só, sua diferença nos níveis de felicidade. O contexto político e social em que vivem também pesa nessa equação.

    3) Diferenças no tipo de governo

    Para cada minuto que você sente raiva, perde sessenta segundos de felicidade. – Ralph Waldo Emerson

    Se, por acaso, você se opõe firmemente ao governo atual de seu país, suas chances de ser bastante feliz diminuem. Difícil discordar dessa afirmação, não acha? Se os valores que permeiam os governantes no poder são opostos aos seus, isso tem grande potencial para reduzir seu bem-estar.  É nesse sentido que apontam alguns estudos.

    Em um extenso estudo que envolveu 98 países (incluindo o Brasil), economistas da Universidade de Heidelberg, Alemanha, investigaram a relação entre felicidade individual e ideologia de um governo. Esta última foi aferida a partir da orientação político-ideológica do chefe do Executivo, no caso de sistemas presidencialistas, e a partir da ideologia do maior partido no governo, nos países de regimes parlamentaristas. Como resultado geral da pesquisa, encontraram que as pessoas de direita são, de fato, mais felizes em média; já as pessoas de esquerda têm maior probabilidade de se declararem satisfeitas com a vida quando vivem sob governos de esquerda [15]. 

    Esquerda e direita
    A ideologia política do governo de onde vivemos também impacta nossa felicidade

    Em outro estudo bastante extenso, similar ao dos economistas alemães, psicólogas sociais da Universidade de Colônia também analisaram a questão. Com base em dados extraídos ao longo de 40 anos, de mais de 270 mil indivíduos, oriundos de 92 países (Brasil incluído), as pesquisadoras questionaram a universalidade da diferença de níveis de felicidade entre esquerda e direita. Segundo elas, seus dados mostram que, em comparação com progressistas, conservadores se declaravam mais felizes e mais satisfeitos com suas vidas à medida que a ideologia política conservadora prevalecia no contexto sociocultural do país em que viviam. Nesse estudo, as pessoas de direita se afirmaram mais felizes em 65% dos países e épocas analisados. Em parte das análises, não houve diferença significativa entre os lados ideológicos. Por fim, as pessoas de esquerda se afirmaram mais felizes em 5 dos 92 países estudados [16].

    E a sua felicidade e bem-estar? Como andam?

    E a felicidade, ainda que tardia, deve ser conquistada. – Sérgio Vaz

    Fato já bem documentado na literatura científica, o grau de felicidade que sentimos se relaciona com a nossa orientação político-ideológica. Ocorre que essa última é provavelmente imutável por vontade própria. Em verdade, as pessoas que têm lado definido no espectro ideológico costumam mesmo exibir até certo orgulho de sua posição. É possível, porém, dar sua contribuição para que seu entorno mude a favor de sua visão de mundo. Em regimes democráticos, isso não só é possível, como também é absolutamente legítimo.

    A luta política pode ser travada de mil maneiras na democracia. Quando você participa de manifestações democráticas de rua ou compartilha um post de cunho político e se posiciona, discutindo e debatendo temas, está influenciando as pessoas ao seu redor em algum grau. Sua meta maior pode mesmo ser a de dar sua contribuição para eleger um governo alinhado com seus valores. Nada mais legítimo. Afinal, sua felicidade e bem-estar podem disso depender. 

    Referências

    1. (2016) Are We Happy Yet? – Pew Research Center. Acesso em: 10 Out. 2021.

    2. Okulicz-Kozaryn, A., Holmes IV, O., & Avery, D. R.  (2014).  The Subjective well-being political paradox:  Happy welfare states and unhappy liberals.  Journal of Applied Psychology, 99(6), 1300-1308.

    3. Newman, D. B., Schwarz, N., Graham, J., & Stone, A. A. (2019). Conservatives report greater meaning in life than liberals. Social Psychological and Personality Science, 10(4), 494-503

    4. Wilcox, W. Bradford. & Wang, Wendy. (2019) Conservatives: Happier at Home, Worried for the Nation. Institute for Family Studies – IFS. Acesso em: 11 Out. 2021. {link}

    5. Stone, Lyman. (2020) The Conservative Fertility Advantage. Institute for Family Studies – IFS. Acesso em: 11 Out. 2021. {link}

    6. (2014) Religious Landscape Study – Religious composition of conservatives, Pew Research Center. Acesso em: 15 Out. 2021. {link}

    7. Stack, Steven. & Eshleman, Ross (1998) Marital Status and Happiness: A 17-Nation Study. Journal of Marriage and the Family, 60, 527-536.

    8.  Wilcox, W. Bradford & Wolfinger, Nicholas H. (2015) Red Families vs. Blue Families: Which Are Happier? Institute for Family Studies – IFS. Acesso em 17 Out. 2021. {link}

    9. Haidt, J. (2006). The happiness hypothesis. New York: Basic Books.

    10. Myers, David G. 2000. The Funds, Friends, and Faith of Happy People. American Psychologist 55:56–67.

    11. Brooks, Arthur C. (2012) Why Conservatives Are Happier Than Liberals. The New York Times. Acesso em 17 Out. 2021. {link

    12. Jost, J.T., Nosek, B.A., & Gosling, S.D. (2008). Ideology: Its resurgence in social, personality, and political psychology. Perspectives on Psychological Science, 3, 126–136.

    13. Jost, J.T., & Hunyady, O. (2002). The psychology of system justification and the palliative function of ideology. European Review of Social Psychology, 13, 111–153.

    14. Napier, Jaime L.  & Jost, John T. ( 20008) Why Are Conservatives Happier than Liberals? Psychological Science – Vol. 19, No. 6, 565-572

    15. Dreher, Axel & Öhler, Hannes. (2011) Does government ideology affect personal happiness? A test. Economic Letters. (2):161–5. 

    16. Stavrova, Olga. & Luhmann, Maike. (2016) Are conservatives happier than liberals? Not always and not everywhere. Journal of Research in Personality. 63:29–35. 

     

    Agradecimentos

    Este texto contou com a sempre excelente revisão de Caroline Frere e Eduardo J. V., aos quais sou muito grato. Sem a decisiva contribuição do amigo Daniel Nunes, que trouxe referências, ideias e insights, o texto também não seria o mesmo. Gracias!

     

  • Balanço da COP26: o que é possível comemorar

    Texto por Jaquelini Nichi

     

    Nesta 26ª edição da COP, que acaba de ser encerrada em Glasgow, no Reino Unido, o mercado global de carbono, que trata da regulamentação do artigo 6, deve possibilitar a transferência de renda de países ricos – que emitem maior quantidade de carbono – para países mais vulneráveis, que geram créditos de carbono. Previsto pelo Protocolo de Kyoto e ratificado no Acordo de Paris, em 2015, ele seguia travado por falta de entendimento entre os países.

    A presidência da COP26, divulgou uma primeira versão de um acordo para que o mercado de carbono seja regulamentado com a resolução de questões dúbias como a dupla contagem dos créditos a metodologia para valorar e quantificar o carbono como ativo. No entanto, para ser aprovado, o documento requer mais reuniões a serem realizadas em 2022.

    A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática (UNFCCC) é um tratado internacional para reduzir as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera. A Conferência das Partes (COP) tem o papel de revisar as comunicações nacionais e os inventários de emissões dos países-membros para monitorar seu progresso.

    No panorama geral das negociações e discussões em torno desta COP ficou evidente o protagonismo do setor privado e financeiro na busca por soluções para os impactos das mudanças climáticas. Outra novidade foi a forte atuação de movimentos jovens negros e indígenas, pouco visto nas edições anteriores, uma sinalização de que diversidade e inclusão são importantes para aplacar a injustiça climática.

    E desta vez, o carvão entrou na mira de mais de 40 países que se comprometeram a abandonar a geração de energia baseada nessa fonte de origem fóssil até 2030. E outros, como o Brasil, assumiram o compromisso de zerar o desmatamento ilegal até 2028.

    O carvão é o combustível fóssil mais poluente e o mais caro entre as fontes de energia. Foto: Pexels

    Mas, se por um lado houve avanços, por outro, pontos importantes como o financiamento para alcançar as metas do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global abaixo de 2ºC ou mais próximo a 1,5ºC continua a enfrentar impasses. A premissa é que os países desenvolvidos devem financiar iniciativas de adaptação e mitigação dos países mais vulneráveis, já que são as maiores emissoras de GEE. Vale ressaltar que a meta de US$ 100 bilhões de repasse anuais até 2020, estabelecida em 2009, não foi cumprida, mas o Climate Home News aponta que o montante correto para atender a essa demanda após 2025 seria de US$ 1,3 trilhão por ano, muito acima da meta atual.

    O que ficou estabelecido no documento final?

    O novo documento do acordo final da Cúpula do Clima, assinado por 200 países e divulgado no final do encontro, em 12 de novembro, tenta equilibrar as demandas dos diferentes países com um reforço para que os países desenvolvidos dobrem o financiamento para medidas de adaptação contra o aquecimento global com prazo estabelecido até 2025. Assim, falta saber como os objetivos de descarbonização serão atingidos na prática, já que regras mais objetivas de contribuição de cada setor ainda não são claros.

    De acordo com dados do Carbon Action Tracker, se os setores se comprometerem realmente para: reduzir emissões de metano, eliminar o uso do carvão, ampliar o uso de energia limpa e acabar com o desmatamento, será possível alcançar a meta. Agora, é a nossa vez de cobrar os países para que cumpram com esses compromissos com metas mais ambiciosas e com ações efetivas.

    Mais de cem países, incluindo o Brasil, assinaram acordo para zerar desmatamento até 2030. Foto: Matt Palmer, Unsplash

    Jaqueline Nichi é jornalista e cientista social com mestrado em Sustentabilidade pela EACH-USP. Atualmente, é doutoranda no Programa Ambiente e Sociedade do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM-UNICAMP). Sua área de pesquisa é centrada nas dimensões sociais e políticas das mudanças climáticas nas cidades e governança multinível e multiatores.

     

     

     

    Este texto foi publicado originalmente no blog Natureza Crítica.

  • Porque liberdade de expressão não é desculpa para falar o que quiser na internet?

    Arte de Capa: Arte por @galvaobertazzi – https://www.instagram.com/galvaobertazzi/

    Texto por Erica Mariosa Carneiro

     

    Hoje vamos conversar um pouco sobre a evolução da comunicação e a responsabilidade que devemos ter ao colocar informação na internet: 

    Quem um dia iria dizer que colocar na mão de qualquer pessoa a possibilidade de produzir conteúdo informativo daria “errado”?

    Esperançosos pela promessa de conectar as vozes em torno do planeta, promoção do diálogo e do acesso a informações negligenciadas pela mídia tradicional. O comunicador de hoje enfrenta algo muito diferente do idealizado nos anos 90 com o advento da internet. 

    Na era da informação todos podem ser produtores de conteúdo. Basta ter o acesso a internet que qualquer pessoa, sem restrições geográficas ou de horários, possa publicar informações que o mundo todo tem acesso. O resultado disso? Um mundo exausto da informação, fadigado por não saber em qual ou em quem confiar e imerso em uma avalanche de desinformação.

    A primeira vista, o início dessa postagem parece um pouco exagerada, mas insisto que observe e faça o exercício de conferir suas redes sociais, canais de chat e canais de informação (todas elas) para perceber, ao final dessa tarefa, o esgotamento, entraves e dificuldades em encontrar informações confiáveis.

    Falei um pouquinho mais sobre as diferenças entre Fake News, Desinformação e Infodemia e como identificá-las e combatê-las nos textos: O que é “Fake News” e por que devo me preocupar com isso? e Fake News, Desinformação e Infodemia. Qual a diferença?. Também recomendo os textos: Coronavírus e Fake News na Saúde e Corrigindo boatos de forma estratégica

    Ser produtor de conteúdo

    A rotina diária do produtor de conteúdo, (principalmente o de conteúdo informativo e que se dedica ao trabalho de forma profissional) passou a ser dividida entre as horas de discussões e planejamento sobre como promover uma comunicação mais ética, empática e de credibilidade. E outras tantas horas sobre como dispor esse conteúdo em veículos saturados, na qual a relevância e sua distribuição é medida de acordo com as decisões de algoritmos, que se baseiam, entre outras coisas, em bolhas e pela quantidade de dinheiro investida nessa distribuição.

    Falei um pouco sobre os algoritmos e a sua influência nos problemas contemporâneos no texto: O Dilema das Redes e porque esse problema também é seu! e recomendo esta seleção de textos do Blogs de Ciência da Unicamp sobre os desafios da divulgação científica em tempos de pandemia

    Já a rotina diária do consumidor de conteúdo, está longe de ser menos complicada que do produtor de conteúdo, esta rotina é permeada pela confusão e dificuldade em identificar qual das postagens que passa por sua tela é confiável. Já para a tarefa de checagem da informação é preciso uma dose extra de paciência, acesso a internet e até um sexto sentido para se perceber envolvido em bolhas que devem ser furadas e alteradas consultando novos canais de informação.

    O que são Bolhas? É a lógica ditada pelos algoritmos da internet/redes sociais que criam filtros e classificações de postagens de acordo com os seus interesses, (apresentados como curtidas, comentários ou tempo de visualização, por exemplo) ou o sobre conteúdos que são mais acessados que outros. Esses filtros limitam o seu acesso as informações dispostas na internet afetando assim a sua possibilidade de conhecimento, discernimento, tomada de decisão, e por consequência, o modo como agimos, pensamos e/ou aprendemos.

    Ser produtor de conteúdo no Blogs de Ciência da Unicamp

    Como comunicadora reconheço que, neste mundo conectado e sempre com pressa, é normal que fique cansativo pensar constantemente em formas de melhorar o trabalho de produção de conteúdo, mas é necessário. Por isso insistimos na importância de pararmos para refletir e conversar sobre as dificuldades e ideias que surgem na rotina de produção de conteúdo e sua divulgação.

    A equipe aqui do Blogs de Ciência da Unicamp aprendeu a importância desse tempo de estudo e de reflexão. E achamos tão importante quanto reproduzir o que aprendemos nos textos desse blog. Pensar nessas questões nos ajudou a entender que a comunicação é muito mais do que as “trends” do Twitter, pautas quentes que pipocam no jornalismo ou se devemos ou não nos render as dancinhas no TikTok ou Reels. Optar por trabalhar com qualquer uma dessas opções acima, é uma questão de conhecimento, planejamento e estratégia, apesar de parecer simples aos olhos dos desavisados, na prática não é bem assim.

    Antes…

    By THE DENVER POST | newsroom@denverpost.com
    PUBLISHED: March 26, 2009 at 2:55 p.m. | UPDATED: May 7, 2016 at 1:00 a.m. https://www.denverpost.com/2009/03/26/evolution-of-communication/

    Dos primórdios da comunicação até os dias de hoje, a história da civilização, as discussões e a evolução tecnológica da comunicação determinou como consumimos, produzimos e guardamos a informação.

    Vários marcos históricos foram importantes para mudanças nos modelos de comunicabilidade, e apesar da internet e as redes sociais serem o marco histórico mais comentado dos últimos tempos, é preciso lembrar que a comunicação não surgiu em 1995 com o surgimento da primeira rede social, o ClassMates.com 

    Na comunicação oral, por exemplo, as informações eram passadas de pessoa por pessoa ou por oradores que tinham como função de se posicionarem em locais de grande circulação para apresentar as informações que lhe fossem confiadas e como, por muito tempo, as massas não eram alfabetizadas, restava a população acreditar no dito.

    Já com a escrita manual o registro da informação e posterior consulta se tornou possível, contudo apenas com o avanço da alfabetização e, no século XV, com a prensa Gutenberg que a informação escrita passou a ganhar amplitude e chegar a número muito maior de pessoas. Mesmo assim foi só com a invenção do rádio em 1906 e da TV em 1927 que a comunicação realmente se tornou de massa, ou seja, a informação era disponibilizada a uma massa de pessoas geograficamente enorme, e cada vez maior conforme as tecnologias de áudio e imagem fossem sendo melhoradas.

    O que é Comunicação de Massa?

    Comunicação de Massa é o processo pelo qual se cria uma mensagem (de forma individual, em grupo ou de forma institucional) e a transmite por algum meio de comunicação para um grande grupo anônimo e heterogêneo. Na comunicação de massa o emissor da mensagem é sempre um comunicador profissional ou uma empresa de comunicação e a mensagem precisa ser rápida e pública. Os meios de comunicação de massa são televisão, rádio, revista, Internet, livros e cinema, pelo menos os mais comuns, e tem como principal função informar, mas ao longo do tempo também assumiram outras funções, como entreter, educar e comercial, por exemplo.

    * Nesta altura é importante deixar claro que a definição da comunicação de massa tem variações e semelhanças conforme os autores estudados.

    A Comunicação de Massa tem como base o envio da informação por um emissor que tem a responsabilidade de transmitir a informação da forma mais clara, completa, ética e acessível possível. Mas é claro que esse emissor/comunicador precisa adequar a informação ao meio de comunicação na qual está trabalhando.

    A título de exemplo e de forma simplificada: uma informação pensada para a televisão é diferente da pensada para jornais e revistas. Na televisão o comunicador precisa ser adequar a informação as características de tempo e áudio visuais que o veículo precisa. Já no jornal ou em uma revista a mensagem pode ser explicada por um longo período, se utilizando de desenhos, gráficos, tabelas e equações para que o receptor entenda a mensagem.

    Na comunicação de massa a informação, principalmente jornalística, antes de ser disponibilizada ao receptor precisa passar por um editor responsável que tem o poder de modificá-la ou até vetá-la, conforme entenda que o resultado final não cumpriu a chamada ética jornalística. Falo mais sobre esse assunto pelo olhar institucional/empresarial no texto: O que é Comunicação Institucional?

    Ética jornalística é um conjunto de normas e procedimentos éticos que regem a atividade do jornalismo e que podem ser adotadas por outros canais de comunicação.

    • Relevância e utilidade pública – a informação que a população tem o direito de ter conhecimento.
    • Objetividade – a informação deve ser produzida de forma objetiva, evitando subjetividades ou comentários (nesse caso se exclui artigos de opinião)
    • Imparcialidade – a informação precisa ter o compromisso com a diversidade e o equilíbrio dos pontos de vista, contudo essas duas “fases da moeda” devem ser equivalentes na credibilidade e na especialização do assunto.
    • Verdade e precisão – a informação precisa ser checada e conferida, buscando assim a veracidade e a precisão das informações.
    • Confidencialidade – as fontes jornalísticas devem ter sua identidade preservada e só revelado se a fonte permitir.
    • É função do jornalismo (nos regimes democráticos) fiscalizar e denunciar poderes públicos e privados, assegurando a transparência das relações políticas, econômicas e sociais. Por esse motivo, a imprensa tornou-se conhecida como Quarto Poder.

    * É importante ressaltar que cada um desses itens foi longamente discutido ao longo dos anos por cientistas e profissionais da comunicação, e ao com o tempo códigos de ética jornalísticas e manuais de comunicação foram sendo definidas e atualizadas.

    Aqui faço uma relação desses Manuais de Comunicação que podem ser baixados. E outras informações sobre o assunto podem ser conferidas também na Federação Nacional dos Jornalistas

    Acho importante também acrescentar a Liberdade de Imprensa e a Liberdade de Expressão. De acordo com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios – TJDFT

    A liberdade de imprensa decorre do direito de informação. É a possibilidade do cidadão criar ou ter acesso a diversas fontes de dados, tais como notícias, livros, jornais, sem interferência do Estado. O artigo 1o da Lei 2.083/1953 a descreve como liberdade de publicação e circulação de jornais ou meios similares, dentro do território nacional.

    A liberdade de expressão está ligada ao direito de manifestação do pensamento, possibilidade do indivíduo emitir suas opiniões e ideias ou expressar atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação, sem interferência ou eventual retaliação do governo. O artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos define esse direito como a liberdade de emitir opiniões, ter acesso e transmitir informações e ideias, por qualquer meio de comunicação.

    Importa ressaltar que o exercício de ambas as liberdades não é ilimitado. Todo abuso e excesso, especialmente quando verificada a intenção de injuriar, caluniar ou difamar, pode ser punido conforme a legislação Civil e Penal. 

    E por fim, devido as configurações dos meios de comunicação de massa dificilmente o emissor tinha condições de ter retorno do receptor sobre como a informação estava sendo entendida.

    Claramente algumas soluções foram pensadas, como as carta do leitor ou as ligações ao vivo durante os programas televisivos, por exemplo. Mas ainda hoje, essas soluções não são suficientes para que o emissor tenha real noção sobre como e de que forma a informação está sendo compreendida pela população.

    Agora…

    Em 1992, o cientista Tim Berners-Lee criou a World Wide Web e abriu um mundo de possiblidades, dentre elas, a comunicação. E conforme novas inovações eram oferecidas, como sites próprios e as redes sociais, por exemplo, fomos entusiasmados, como comunicadores, a ideia de solucionar muitos dos entraves da comunicação de massa, como: rapidez, espaço, facilidade na verificação, promoção do diálogo com o receptor e a possibilidade de ter acesso a vozes negligenciadas.

    Sendo assim, o modelo comunicacional sofreu uma nova mudança, conforme comenta Jesús Martín-Barbero em Diversidade em convergência

    A convergência digital introduz nas políticas culturais uma profunda renovação do modelo de comunicabilidade, pois do unidirecional, linear e autoritário paradigma da transmissão de informação, passamos ao modelo da rede, isto é, ao da conectividade e da interação que transforma o modo mecânico da comunicação a distância pelo modo electrônico de interface de proximidade.

    Por Erica Mariosa Moreira Carneiro em 05/11/2021

    Na imagem acima é possível ver a diferença entre a comunicação de massa e a digital no que se refere a esse novo modelo comunicabilidade em rede que comenta Barbero.

    Enquanto a comunicação de massa envia a informação a partir de um emissor (que é um comunicador ou empresa de comunicação) para o receptor que o recebe de forma “unidirecional, linear e autoritário” e tem poucas oportunidades de informar ao emissor suas opiniões, compreensões e dúvidas sobre a mensagem. Na comunicação digital a informação passa a ser enviada pelo emissor ao receptor que a recebe, interage e, muitas vezes, reformula o conteúdos, transformando-o em uma nova informação.

    Então Comunicação Digital é?

    A Comunicação Digital é o conjunto de normas, métodos e ferramentas de comunicação que se aplicam à web, redes sociais e dispositivos móveis. A comunicação digital conecta as pessoas ao redor do mundo possibilitando relações sociais e acesso a informação de forma ativa como produtor de informação e opinião e não mais passivamente como na comunicação de massa. A comunicação digital define a estratégia e as ações de comunicação dentro do ambiente digital de acordo com as caraterísticas: relacionamento, engajamento, produção de conteúdo e presença digital.

    Conforme novas tecnologias, plataformas, sites e aplicativos são criados, novas características e “regras” são inclusas no rotina do produtor de conteúdo, e esse é apenas um dos problemas. Às redes sociais possuem funcionamentos com regras próprias e de forma diferente dependendo da empresa que as administram. Esses algoritmos limitam o acesso ao público, ao contrário da sua premissa original e podem ser alterados sem aviso prévio.

    Para além disso, a falta de produtores de conteúdo com formação ou conhecimento mínimo em comunicação provoca enganos que dificilmente o emissor consegue mensurar ou lidar, como o recebimento constante de comentários com teor ofensivo, cancelamentos, conteúdo delicado sendo transmitido sem o devido cuidado. Não estou afirmando aqui que comunicadores treinados e especializados não cometam erros, mas a frequência desses erros são menores e a aplicação de estratégias para evitar danos sérios é mais ágil e consciente. Recomendo os seguintes textos sobre esse assunto: Então… O que é engajamento para você?, O que fica de aprendizado com a estratégia de divulgação “Enquete Terra Plana”?, Errei. E agora?, E o engajamento? e Refutando mitos: como evitar o ‘tiro pela culatra’ 

    Por isso, é fundamental estar de olhos na discussão sobre regras e leis que regularizem a atuação na internet e nas redes sociais que ganharam força no Brasil e no mundo após o escândalo de dados do Facebook – Cambridge Analytica. Como o Marco Civil da Internet, Lei Geral de Proteção de Dados, Artigos 138,139, 140 e 154-A do Código Penal que dizem respeito aos crimes de calúnia, difamação, injúria e invasão de dispositivos informáticos, respectivamente, e a Lei nº 13.718/2018 – crime de importunação.

    O texto Fake news – regulamentação por meio de leis fala um pouco mais sobre o assunto.

    Update necessário – 19/03/2022

    A questão da liberdade de expressão voltou nesses últimos dias após a repercussão de falas, como: a do Monark sobre nazismo, do ministro Alexandre de Moraes, do STF após ter determinado o bloqueio do aplicativo Telegram no Brasil e da determinação da retirada do filme ‘Como ser o pior aluno da escola’ do comediante Danilo Gentilli dos serviços de streaming.

    Assim usei minha conta no Twitter para comentar não só esses casos mas, principalmente, sobre como acredito que não só o autor da fala deve ser penalizado de acordo com a lei (conforme descrito no texto acima), mas o canal que permitiu a publicação da fala também deve sofrer as mesmas consequências.

    E como volta e meio esse assunto volta em reunião de colegas e palestras, achei importante também deixar aqui no texto essa continuidade da discussão feita no Twitter.

    Será mesmo que em nome da liberdade de expressão todo canal (grande ou pequeno) pode dizer qualquer coisa na internet?

    Vamos começar esse update deixando claro que mesmo um canal não jornalístico, ou seja, que se pretende ser informal e não adotar pauta ou conversa prévia precisa ser responsável com a informação que é disponibilizada.

    Utilizar-se da ética jornalística para compor os seus editoriais e normas de trabalho pode ser uma boa maneira de garantir essa responsabilidade da informação.

    E se mesmo assim, o canal prefere ter como direcionamento a Liberdade de Expressão, devo lembrar que essa liberdade também tem definições e parâmetros, como comentamos acima neste texto. Assim como leis e regras que regulariza a atuação na internet.

    Mas para continuarmos quero deixar destacado esse trechinho:

    “Devemos ressaltar que todo abuso e excesso, especialmente quando verificada a intenção de injuriar, caluniar ou difamar, pode ser punido conforme a legislação Civil e Penal.” 

    Portanto essa ideia de que a internet é “terra de ninguém” é totalmente furada, mesmo que tenhamos a sensação de “tudo pode”.

    E temos essa sensação devido aos constantes incentivos/cobranças das empresas de internet para que se consiga mais e mais visibilidade. Afinal fale bem ou mal mas falem de mim. E é claro que a lentidão do sistema jurídico também contribue para que se aumente essa sensação de que as leis não se aplicam a internet.

    Depois da entrega desse texto eu debati um pouquinho mais sobre esse assunto em outras postagens: O ódio como engajamento, O Influencer como Corpo Dócil e O Spoiler como discurso.

    O ponto é que o canal, mesmo não sendo formal ou de comunicação de massa como os programas exibidos na televisão, no rádio ou no jornal impresso, também tem a responsabilidade pela informação e possui o poder e o dever de, mesmo que ao vivo, monitorar as falas, orientar seus convidados e revisar o conteúdo antes da publicação.

    É de responsabilidade do canal a disponibilização de informação a sociedade.

    Falas criminosas, fake news e informações que prejudicam a população devem ser revistas e se necessário excluídas da edição final. E isso também tem haver com a liberdade de expressão, já que com grandes poderes vem grandes responsabilidades, certo?

    Quero ressaltar que essa crítica não se trata apenas de canais com grandes audiências, mas também de canais pequenos ou até os infinitos compartilhamentos em redes sociais, se você está informando alguém tem que se responsabilizar pela informação e ponto final.

    Também é importante dizer que toda vez que você se engaja com esse tipo de informação, e não importa se concorda ou não com ela, mais incentivo esses canais recebem para produzir mais conteúdos parecidos.

    E não só isso, com esse “fechar os olhos” para as falas criminosas dos canais e das instâncias que aplicam as leis outros canais se sentem incentivados a “copiar”. Afinal aquele determinado canal ganhou milhões de seguidores com a polêmica fala que incentiva o ódio a uma população inteira.

    Na prática, quando você se deparar com conteúdos de ódio, falas que incitam a violência e informações criminosas não denunciem apenas a pessoa que disse mas também o canal que divulgou o conteúdo.

    Referências e outras sugestões de leitura:

     

    Este texto foi publicado originalmente no blog Mindflow.

     

  • Centrão ou arenão?

    Texto por Luã Leal

    Ele era, no início da carreira, apenas uma celebridade da TV que fazia uma parte da população rir. Antes de virar presidente, praticava o mesmo ofício de grande parte de sua família. Quando entrou na política, com discurso em prol da moralização, ele alinhavou seu programa de governo com discursos sobre fé e combate à corrupção. Candidato declaradamente cristão, se consagrou na eleição por um pequeno e novo partido de proposições nacionalistas e conservadoras. Grande parte de seus colegas de partido eram militares reformados. Conseguiu se eleger por pregar a moralização da vida política no país, mais uma república latino-americana exausta da “velha política”. Foi o mais votado no primeiro turno e derrotou um partido de inspiração social-democrata no segundo. Naquela conjuntura da votação para presidente, o seu país registrava inúmeras denúncias de corrupção, as quais atingiram inclusive o processo eleitoral, e era conhecido internacionalmente pela elevada taxa de homicídio intencional. Durante o século XX, a história dessa república teve várias rupturas com a ordem democrática, sucessivos golpes, ascensão de presidentes militares e alto grau violação de direitos civis. Representando a “nova política”, Jimmy Morales venceu a eleição presidencial na Guatemala em 2015.

    Durante a campanha, a primeira pergunta da peça publicitária – “por que estou na política?” – dá título ao vídeo e explica ao eleitorado porque o artista famoso na televisão se arriscou para concorrer ao cargo de presidente. Ao final da propaganda, o candidato nacionalista pergunta ao público: “quer uma Guatemala diferente?”. O então humorista e secretário-geral do partido Frente de Convergencia Nacional (FCN) tinha como mote parar com as pilhérias dos guatemaltecos acerca das próprias derrotas (inclusive no futebol). Desse modo, poderia ser construído um caminho sem os “guatemaltecos maus”, resgatando uma honra nacionalista. O seu slogan da campanha foi “Ni corrupto, ni ladrón”, uma opção de voto para derrotar os “maus políticos”.

    Em 2017, após ser acusado de financiamento eleitoral ilícito, o presidente Jimmy Morales considerou persona non grata o diretor da Comisión Internacional contra la Impunidad en Guatemala. Durante o seu mandato, esse presidente-humorista entrou em conflito com uma comissão da ONU e o Ministério Público da Guatemala, instituições que apuravam irregularidades no financiamento de sua campanha. Começaram então os protestos de rua, criticados prontamente por associações de empresários do país. Então, o presidente-humorista expulsou o diretor da comissão da ONU, que investigava complexos esquemas de corrupção. Surgiu uma onda de tensões internas para saber como o presidente deveria seguir a constituição e como poderia agir em relação à Comissão Internacional contra a Impunidade. No meio de uma crise política em 2018, a melhor opção de marketing político foi ligar as câmeras e entrar em um fast food.

    Cruzarei a fronteira para citar brevemente El Salvador, cujo universo partidário se assemelha ao do país vizinho. O principal partido de direita, Alianza Republicana Nacionalista (ARENA), foi fundado em 1981 e venceu as eleições de 1989, 1994, 1999 e 2004. O partido esquerdista Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional venceu duas eleições consecutivas, em 2009 e 2014. Nayib Bukele, sem poder se candidatar pelo seu partido, o Nuevas Ideas criado em 2018, precisou concorrer pelo GANA. Os egressos da ARENA e de outras organizações da direita salvadorenha formaram Gran Alianza por la Unidad Nacional (GANA) em 2010, partido vencedor das eleições de 2019 com o candidato Bukele. Nas eleições municipais de 2018, GANA foi o terceiro partido com mais vitórias nos municípios de El Salvador.

    A direita no Brasil, desde a redemocratização, reúne os “conservadores reformadores do Estado” e os “liberais reformadores”. Esses sustentam uma agenda de defesa dos direitos individuais, da propriedade privada e da redução das travas burocráticas, aqueles dependem da bandeira da gestão eficiente nos serviços públicos para angariar votos em suas bases conservadoras (da aristocracia dos políticos de bem incorruptíveis, segundo o dicionário udenista). Embora concordem na defesa dos interesses empresariais, sobretudo na crítica à burocracia estatal e ao corporativismo no serviço público, ambos os grupos (conservadores reformadores e liberais reformadores) representam a direita tradicional, que se esconde nos lemas da social-democracia europeia para conquistar o eleitorado das camadas médias urbanas. Percebemos, assim, alguns elementos que aproximam movimentos políticos de ascensão do discurso anticorrupção em três países latino-americanos: Guatemala, El Salvador e Brasil. Resposta das direitas à “onda rosa”? Talvez.

    O caso brasileiro tem suas peculiaridades, inclusive pela dimensão da fragmentação partidária, porém, assim como outros países, o seu panorama ideológico foi contaminado pelo período autocrático. Maria Victória Benevides, na revista Lua Nova em 1986, publicou uma genealogia das organizações do sistema bipartidário vigente da decretação do AI-2 (1965) até a Lei Nº 6.767 (1979). O objetivo principal do texto era analisar a conversão ideológica do MDB em PMDB. Nas palavras da autora, um “pacto conservador” resultou na formação do “partido-ônibus”:

    “Arenão” redivivo. Afinal, que revival maldito ronda o atual PMDB? Por que se lembram da UDN de tão triste memória, por que desenterram a Arena, pior ainda? Para entender as críticas — e, quem sabe, exorcizar as pragas — seria preciso voltar às origens do MDB, bem como tentar desvendar possíveis semelhanças entre o PMDB e a falecida UDN.

    Eleito presidente, o senador Fernando Henrique, representante do estado de São Paulo, usou a tribuna para se despedir do Congresso em dezembro de 1994. Seu compromisso era continuar uma “agenda de reformas políticas” que encerraria o ciclo de uma transição que durou de 1979 a 1994. De acordo com o texto lido, a eleição, sem sectarismos partidários, seria a comprovação do “fim da jornada da transição”, que resultaria em uma “democracia moderna” e com estabilidade econômica. Um trecho do discurso foi intitulado “O fim da Era Vargas”, pois, para FHC, o “autoritarismo” era “uma página virada na História do Brasil”. Restaria, contudo, atacar os “padrões de protecionismo e intervencionismo estatal”:

    um pedaço do nosso passado político que ainda atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade. Refiro-me ao legado da Era Vargas – ao seu modelo de desenvolvimento autárquico e ao seu Estado intervencionista[1].

    [1] Para quem tiver interesse, no link é possível conferir a transcrição do discurso no Senado: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes-oficiais/catalogo/fhc/discurso-de-despedida-do-senado-federal-1994

     A reforma – ou modernização – do Estado nunca saiu da pauta do PSDB, em sua agenda permanente para desestatização da economia e da abertura para aumentar a concorrência, sem esquecer a crítica contundente ao corporativismo e aos privilégios que distorcem a distribuição de renda. Em suma, o Estado produtor seria substituído pelo Estado regulador, preocupado em eliminar as “restrições anacrônicas ao investimento estrangeiro”. Pularei 20 anos nos capítulos da Sexta República para chegar a um discurso de novembro de 2014. O senador mineiro Aécio Neves discursou no Congresso após ser derrotado nas eleições presidenciais. Ainda o samba de uma nota só:

    Defendi a retomada das reformas para modernizar a nossa economia e retirá-la da paralisia em que o atual Governo a colocou.[…] Advoguei, em todas as partes do Brasil, a necessidade da maior participação do investimento privado na construção da infraestrutura, para que deixássemos de ser aprisionados por uma visão ideológica, estatizante e ultrapassada.[…] E propus a reaproximação do Brasil com o resto do mundo, ao qual demos as costas, nos últimos anos, ao priorizar as parcerias com governos ideologicamente alinhados[2].


    [2] Para quem tiver interesse, no link é possível conferir a transcrição do discurso no Senado: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/409754

    Evidentemente, pouca importa à cúpula dos partidos do Centrão um debate sobre o impacto das organizações criminosas, com armas disponíveis, nos resultados eleitorais. Tal tema não comove lideranças dos partidos que se interessam no binômio votos e cargos, com o único objetivo de sempre estar perto dos núcleos de poder no governo federal. Ignorar o permanente cenário de extrema violência durante as corridas eleitorais significa desluzir os poderes que financiam candidatos. O El País publicou um mapeamento de figuras políticas baleadas na Baixada Fluminense entre 2015 e 2016. O texto de María Martín, em 2016, analisou a conjugação de forças institucionais para elucidar nove execuções que ocorreram no período:

    A Procuradoria Regional Eleitoral pediu que a Polícia Federal participe das investigações pela suspeita de que a morte de pelo menos dois desses vereadores e quatro pré-candidatos se tratem de crimes políticos. 

    As legendas pendulares, que definem os gastos dos recursos indepentemente da bandeira ideológica do incumbente no Executivo, acompanham as tendências das marés. Até mesmo após um maremoto, como a provocada pela base bolsonarista em 2018. Para explicar a “utopia reacionária” de um presidente que assume um “sentimento antissistema”, Christian Lynch encontrou em 2015, no início do fim do governo Dilma, a gênese de

     uma vasta coalizão de oposição de liberais e conservadores. Diante da incapacidade de autorreforma do sistema político, emergiu, dentro do Poder Judiciário e do Ministério Público, uma “vanguarda” de juízes federais e procuradores disposta a derrubar a situação social-democrata, aproveitando a investigação contra a corrupção. Esse “judiciarismo” de índole liberal e retórica republicana (o “lavajatismo”) se legitimou como uma forma “democrática” de regenerar a República, pela mera aplicação destemida da lei por um grupo de patrióticos operadores jurídicos. 

    Alguns capítulos depois, no pleito de 2020, a principal característica foi a vitória daqueles personagens já conhecidos do eleitorado, os políticos profissionais. Alguns vencedores já haviam exercido o cargo, como em Belém, outros eram herdeiros de famílias poderosas na política local, como em São Paulo. Seria uma resposta ao fenômeno eleitoral de 2018? Fim do maremoto da “nova política”? Um candidato derrotado afirmou, em entrevista publicada na Folha em 2018, que o fracasso dos novatos resultaria no retorno dos políticos profissionais pois, com o ocaso da “nova política”, os eleitores e as lideranças partidárias “vão chamar quem tem um pouco mais de sobrevivência”. Gabriela Caesar publicou no G1 alguns infográficos que explicitam o êxito eleitoral dos principais partidos em 2020, quando 29 partidos conquistaram vitórias nas eleições para o executivo municipal.

    Uma máquina do tempo seria quase inútil para entender a repetitiva política brasileira. Themístocles Cavalcanti, então presidente do Instituto de Direito Público e Ciência Política e diretor da Revista de Ciência Política, publicou no segundo volume desse periódico um esforço teórico para conceituar “democracia”. Quero destacar o seguinte trecho do texto “A democracia como sistema político”, de 1968: “o progresso das comunicações e as facilidades crescentes no uso dos processos fraudulentos são outros tantos fatores que trouxeram para a democracia uma fase de crise”. Denúncias de fraude, compra de votos, oligopolização da mídia e bipolarização partidária: esses quatro ingredientes estiveram presentes nas eleições diretas desde 1945. E onde se situam as forças políticas do compadrio e do clientelismo?

    Em 24 de abril de 1995, no Painel da Folha, coluna assinada por José Roberto de Toledo e Gustavo Krieger, foi noticiada a “articulação” para a formação de um novo partido. Nos bastidores, articulavam duas lideranças do PFL: o vice-presidente Marco Maciel e o presidente da Câmara, Luís Eduardo Magalhães. A proposta era fundir PFL, PPR, PTB, PP, PL e parte do PMDB, formando assim uma frente apelidada jocosamente de Arenão. Essa coalizão unificada em uma sigla partidária facilitaria, de acordo com esse plano, o caminho do governo de Fernando Henrique Cardoso para aprovar reformas no Congresso.

    O partido Arenão não saiu do papel. Em 2007, um formidável rebranding transformou o PFL em DEM. O partido sobreviveu politicamente, apesar de algumas cisões, e desde 2019 se equilibra na corda bamba apenas para não se afirmar como governista. Em 2020, os partidos PP, PSD, DEM e PL venceram em 2148 municípios, cerca de 39% do total.

    CapitalVencedor no 1º turno2º colocadoEleito no 2º turnoVencedor buscou reeleição ou apoio da situação ?
    São PauloPSDBPSOLPSDBSim
    Rio de JaneiroDEMRepublicanosDEMNão
    SalvadorDEMPTXSim
    FortalezaPDTPROSPDTSim
    Belo HorizontePSDPRTBXSim
    ManausPODEAvanteAvanteNão
    CuritibaDEMPDTXSim
    RecifePSBPTPSBSim
    GoiâniaMDBPSDMDBSim
    BelémPSOLPatriotaPSOLNão
    Porto AlegreMDBPC do BMDBNão
    São LuisPODERepublicanosPODENão
    MaceióMDBPSBPSBNão
    Campo GrandePSDBAvanteXSim
    NatalPSDBPTXSim
    TeresinaMDBPSDBMDBNão
    João PessoaPPMDBPPNão
    AracajuPDTCidadaniaPDTSim
    CuiabáPODEMDBMDBSim
    Porto VelhoPSDBPPPSDBSim
    FlorianópolisDEMPSOLXSim
    Boa VistaMDBSDMDBSim
    Rio BrancoPPPSBPPNão
    VitóriaRepublicanosPTRepublicanosNão
    PalmasPSDBPROSXSim
    Partidos vitoriosos nas eleições de 2020 – capitais. O “X” sinaliza que houve vitória no primeiro turno.
    CapitalVencedor no 1º turnoVencedor buscou reeleição ou apoio da situação?Currículo do candidato ou vínculo familiar
    São PauloPSDBSimNeto de Mário Covas, vice-prefeito eleito em 2016.
    Rio de JaneiroDEMNãoPrefeito de 2009 a 2016.
    SalvadorDEMSimVice-prefeito eleito em 2016.
    FortalezaPDTSimPresidente da Assembleia Legislativa (2019-2020).
    Belo HorizontePSDSimEmpresário do ramo de engenharia. Eleito para primeiro mandato em 2016.
    ManausPODENãoGovernador interino (2017) e presidente da Assembleia Legislativa (2017-2019).
    CuritibaDEMSimPrefeito de 1993 a 1997. Eleito novamente em 2016.
    RecifePSBSimDeputado federal, filho de Eduardo Campos e bisneto de Miguel Arraes.
    GoiâniaMDBSimPrefeito de Aparecida de Goiânia de 2009 a 2017, governador de 1995 a 1998 e vice-governador de 1991 a 1994 de Goiás.
    BelémPSOLNãoPrefeito de Belém de 1997 a 2005.
    Partidos vitoriosos nas eleições de 2020 – 10 capitais com maior população. A última coluna apresenta um breve resumo do currículo dos vencedores apenas para corroborar a hipótese do texto.

    A fragmentação, no atual contexto, beneficia o Centrão. Essas duas tabelas comprovam que a maior parte do eleitorado, residente nas grandes capitais, experimentará uma onda do avanço dos partidos desse universo partidário. No Simpósio Direitas Brasileiras, em 2017, Rafael Mucinhato pontuou que o período antecedente às eleições (indiretas) de 1985 teve como marca a pulverização de siglas. Em seu texto, o pesquisador demarcou o seguinte processo de “arenização”, um “encontro com a velha direita”:

    Esse espalhamento e “infiltração” de ex-membros da Arena em partidos políticos que não eram seus sucedâneos diretos (no caso o PDS e o PFL), um processo que no caso do PMDB foi chamado por parte de seus políticos de “arenização do partido”, também foi notado por alguns membros do PSDB quando este chega ao governo em 1994.

    Se, entre as crises de 2013 e 2018, “mudança” era o substantivo que regia a busca pela “nova” política, os fluxos mais recentes indicam o retorno dos verbetes “experiência”, “confiança”, “continuidade” ou “estabilidade”. Importa menos a análise semântica do que apurar a tendência: os profissionais do varejo político aproveitaram o refluxo da onda “renovadora” para consolidar o seu protagonismo.

  • O valor da Constituição

    Texto por Victor Augusto Ferraz Young

    A crise social, política e econômica que se vive na atualidade em diversos países tem colocado em questão a viabilidade do Estado Social Democrático de Direito, ou seja, a ideia de que as sociedades devem persistir em sua tentativa de fazer com que todos vivam sob regras (da Constituição e das leis) criadas por esta mesma sociedade, mesmo em meio a todas as dificuldades que esse processo acarreta. A alternativa que vem sendo reiteradamente proposta por parte da sociedade a este caminho é, a nosso ver, muito arriscada e perigosa, pois baseia-se na concepção de que poderes acima de tais leis deveriam ser concedidos a um único grupo liderado por uma figura carismática que, em tese, superaria as dificuldades inerentes ao lento processo democrático. Espera-se com isso que as decisões políticas sejam mais rápidas e que o progresso econômico chegue mais cedo. O risco está justamente na entrega de poderes que estariam acima da lei produzida de forma representativa, pois a partir desse ponto pode surgir um antigo conhecido da história humana, a tirania. Foi justamente para impedir o risco de que esta prevalecesse que se criou o Estado de Direito que, ao logo do tempo, progrediria para o Estado Social Democrático de Direito.

    Estado de Direito e a Constituição

    Surgido sob a égide dos ideais iluministas, e principalmente após a revoluções liberais do século XVIII nos Estados Unidos e na Europa, a concepção de um Estado de Direito ocorreu em oposição ao então Estado Nacional Monárquico Absolutista. Ou seja, não haveria mais nenhum rei que encarnasse poder político absoluto sobre todos os outros cidadãos. Depois de sangrentas lutas revolucionárias, o Estado de Direito foi instituído em prol dos direitos e das liberdades individuais, em contraposição à arbitrariedade real, constituindo assim mecanismos para a proteção e perpetuação destes direitos e liberdades sem que para isso fosse necessária a abolição do Estado.

    O Estado de Direito com todo seu aparato subordina-se, dessa maneira, a uma lei superior, chamada de Constituição, que define direitos e garantias individuais, ou seja, trata-se de uma lei maior que protege esses direitos e garantias e está acima de qualquer arbitrariedade do próprio Estado. Este mesmo Estado deve limitar sua ação a apenas aquilo que é permitido pela Constituição. Esta vinculação do Estado à Lei Maior [Constituição] exige que sejam respeitados elementos como a supremacia da Constituição, a separação dos poderes, a superioridade das leis e a garantia dos direitos individuais.

    Dessa forma, a Constituição é a regra suprema, pois ela define os agentes (representantes) que farão as leis; estabelece como as leis devem ser feitas (processo legislativo); e baliza os limites de todas essas leis que são subalternas a ela. Caso uma lei inconstitucional, isto é, que não está de acordo com a Constituição, venha a ser aprovada (e promulgada), mecanismos de controle estabelecidos dentro da própria Constituição devem dar conta de expulsá-la do conjunto restante de leis (ordenamento jurídico). A Constituição, por seu turno, não é criada por nenhum dos poderes que delega, mas por um poder constituinte que assim o é dada sua força para fazer valer a regra para todos. Este poder de criação, geralmente constituído para a elaboração do texto, por fim, dissolve-se tão logo é promulgada a Lei Magna. O Estado de Direito e suas instituições emergem, portanto, depois de promulgada a Constituição. No Brasil, uma Assembleia Constituinte foi eleita para a confecção e promulgação da Constituição Federal de 1988.

    A Separação dos Poderes

    A separação dos poderes que deve, por sua vez, ser definida pela Constituição se faz necessária em função de o Estado necessitar de mecanismos de auto regulação que mantenham sua atuação dentro dos limites estabelecidos pela regra constitucional. De um modo geral, o poder do Estado fica, dessa forma, dividido em: Poder Executivo, que administra os negócios do Estado por meio de atos administrativos; Poder Legislativo, que cria as leis para a condução dos negócios do Estado e o regramento do convívio social; e Poder Judiciário, que julga os conflitos que podem ocorrer dentro do Estado, entre indivíduos e entre este e os indivíduos de maneira imparcial e mediante provocação. Os três poderes têm independência no exercício de suas funções. Os atos administrativos do Executivo e as leis emanadas do Legislativo submetem-se, todavia, à apreciação constitucional do Judiciário, ou seja, podem estar sujeitos a uma sentença que irá legitimar ou anular os atos daqueles poderes conforme dita a Constituição. O Estado de Direito busca, dessa maneira, autorregular-se, isto é, o Poder Judiciário não administra os negócios estatais, assim como não produz as leis, mas zela pela formação e pelo cumprimento dessas leis, assim como aprecia atos administrativos que possam ser ilegais. Por meio deste mecanismo de divisão de poderes, nenhum poder usurpa âmbito alheio, conduzindo a ação do Estado à submissão constitucional.

    A superioridade da lei e a garantia dos direitos individuais

    Outro elemento fundamental dentro do Estado de Direito é a ideia de que todos os entes estatais e não estatais estão sujeitos à superioridade da lei. No que se refere especificamente ao Estado, a lei, como expressão da vontade geral do povo, concede aos agentes do Estado poderes para que as funções do Governo, do Legislativo e da Judiciário sejam cumpridas por estes sob o império daquela.

    A garantia dos direitos individuais estabelecidos pela Constituição é também elemento que compõe o Estado de Direito. Resulta dela o direito subjetivo público que vai além do direito subjetivo privado, ou seja, o indivíduo não só pode reclamar direitos frente a outros indivíduos, mas pode também opor-se ao Estado, caso este venha a violar suas garantias constitucionais.

    Estado Democrático de Direito e Estado Social Democrático de Direito

    O Estado Democrático de Direito, de outra maneira, vai além do Estado de Direito, ampliando o âmbito jurídico para a conformação de um Estado que tenha por objetivo a promoção da justiça e da igualdade entre seus cidadãos, pois além dos elementos do Estado de Direito, no Estado Democrático de Direito tem como premissa a participação efetiva do povo no exercício do poder. Para tanto, valida-se o conceito republicano de agente público eleito como representante do povo para o exercício do poder que este lhe concede. Dessa forma, representantes legislativos e executivos são escolhidos por um processo eleitoral para mandatos periódicos que podem ou não ser renovados conforme a própria vontade popular. Estes mandatários eleitos podem ainda ser responsabilizados e impedidos do exercício das funções, caso violem as prerrogativas que lhes são concedidas. Neste Estado, é, portanto, fundamental o clima de liberdade política para o debate social, a escolha e/ou impedimento dos eleitos.

    Em período mais recente, novas Constituições têm contemplado um modelo de Estado ainda mais elaborado no sentido de estender novas proteções aos cidadãos. Trata-se do Estado Social Democrático de Direito, isto é, um Estado que não só visa garantir os direitos individuais, a participação popular no poder, mas também proteger o povo do poder e/ou do desamparo econômicos. Neste, a Constituição pode regular as relações econômicas como contratos entre empregados e empregadores, assim como estabelecer que sejam garantidos direitos sociais como educação, saúde, previdência, seguro desemprego, entre outros elementos que protejam a dignidade humana.

    Concluindo

    Podemos considerar, portanto, que a ideia de um Estado Nacional definido e constituído pelo povo tem nos desdobramentos históricos das concepções de Estado de Direito até a de Estado Social Democrático de Direito uma determinada evolução em que, a cada período de tempo, além de estabelecerem-se mecanismos para a garantia dos direitos individuais, agregou-se às Constituições maior proteção às sociedades, buscando torná-las e mantê-las mais livres, justas e igualitárias.

    Todo este aparato foi constituído com base na experiência política humana, tendo como primeiro impulso a ideia de se evitar a tirania. Fazer com que funcione para que cumpra os propósitos virtuosos aqui expostos é uma construção social de cada povo, pois não é difícil perceber que as experiências de mera transplantação desse constructo para dentro de outros países não faz com que o resultado seja sempre positivo. Dessa forma, o Estado Social Democrático de Direito não é solução pronta para as aflições humanas, mas é, sem dúvida, um caminho melhor e contrário ao de aventuras que podem levar a terríveis ditaduras.

    Referências

    SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. Malheiros, 2004.

  • Sobre o que o Brasileiro pensa sobre mudanças do clima 2

    Texto por Claudia Chow

    Me empolguei com esses dados e resolvi explorar um pouco mais.

    Conversando com o master jedi em computação Felipe Campelo, descobri que essa minha “análise” pode ser chamada de análise exploratória de dados…

    Pois bem, dessa vez resolvi juntar as 2 perguntas que analisei no post anterior. E resolvi ver qual a coerência das pessoas quando escolheram Proteger o meio ambiente, mesmo que isso signifique menos crescimento econômico e menos empregos e depois dizer se concordavam ou não com a frase: As queimadas na Amazônia são necessárias para o crescimento da economia.

    Para essa análise eu desconsiderei quem respondeu que não sabe para as 2 questões, não responderam uma das questões ou as 2. Esse grupo desconsiderado equivalem a 4,42% das respostas.

    Não me surpreendeu descobrir que 62,39% das pessoas foram muito coerentes e além de priorizarem a proteção do meio ambiente também discordavam que as queimadas na Amazônia são necessárias para o crescimento da economia. Apenas 3,9% das pessoas que priorizam o crescimento da economia concordam que as queimadas são necessárias para esse crescimento. Gostei de ver que 12,98% mesmo priorizando o crescimento econômico não concordam que as queimadas são necessárias. Porém as pessoas que não sabem ou estão em cima do muro (na minha opinião) em qualquer uma das questões, somam 11%.

    https://public.tableau.com/views/PesquisaPercepoclimaBrasil2/Planilha6?:language=pt&:display_count=y&publish=yes&:origin=viz_share_link

    Dessa vez eu resolvi levar em consideração o posicionamento político declarado dos entrevistados. Como comentei no outro post achei bem alto o dado que 25% dos entrevistados não responderam ou não souberam escolher entre direita, esquerda e centro.

    https://public.tableau.com/profile/claudia.chow7385#!/vizhome/PesquisaPercepoclimaBrasil2/Planilha7

    Ai, com esses dados eu resolvi cruzar com a pergunta: Você já votou em algum político em razão de suas propostas para defesa do meio ambiente?

    Ok, ok, vamos desconsiderar que “propostas para defesa do meio ambiente” é algo muito amplo.

    Algumas coisas que achei curioso: todas as pessoas que se declararam de esquerda responderam essa pergunta. E o grupo político com maior número de pessoas que responderam sim à questão foram os declarados de esquerda.

    https://public.tableau.com/views/PesquisaPercepoclimaBrasil2/Planilha8?:language=pt&:display_count=y&publish=yes&:origin=viz_share_link

    O curioso caso de quem não sabe se votou em alguém por conta de suas propostas de defesa de meio ambiente somam 0,51%.

    Porém é triste perceber que quase 60% das pessoas não consideram a pauta ambiental na hora de votar. E essa mesma pesquisa mostrou que 86% das pessoas se declararam preocupadas ou muito preocupadas com o meio ambiente.

    Mais algumas conclusões que me permiti tirar dessa pesquisa: Parece que as pessoas não conseguem relacionar voto e política com ação pelo meio ambiente. Parece que as pessoas pensam: Meio ambiente é uma questão para mim, mas na hora de votar esse não é um fator a ser levado em consideração.

    É muito curioso pois mais da metade das pessoas disseram nessa pesquisa que acham que os Governos são os principais atores na resolução do problema das queimadas na Amazônia!

    E pra quem pensa que as pessoas podem responder o que acham que é certo na pesquisa e não o que de fato pensam. Eu respondo que se as pessoas acham que se preocupar com meio ambiente, entender que para o crescimento econômico queimadas na Amazônia não é a melhor opção e que o tema aquecimento global é algo importante ou muito importante, eu acho que já é o suficiente para mostrar que estamos num bom caminho. Talvez seja demais afirmar com precisão que 90% dos brasileiros consideram a questão do aquecimento global importante ou muito importante. Mas vamos pensar que parte desses 90% só acham que é certo considerar esse tema importante ou muito importante, já não é um bom começo? Alguma coisa certa está sendo feita!

  • Sobre o que o Brasileiro pensa sobre mudanças do clima

    Texto por Claudia Chow

    Faz um pouco mais de 1 mês (início de fevereiro de 2021) o ITS junto com a Universidade de Yale e o Ibope divulgaram o resultado de uma pesquisa sobre a percepção do brasileiro com relação às mudanças climáticas. Confesso que só fiquei sabendo essa semana, pois o mesmo ITS lançou uma chamada pública para Programa de bolsas da pesquisa “Mudanças climáticas na percepção dos brasileiros”.

    Pedi os dados da pesquisa pra eles e resolvi usar meus rudimentares conhecimentos de Tableau (um software de visualização de dados) pra entender melhor os dados dessa pesquisa.

    Se você quer saber mais detalhes de como a pesquisa foi feita acesse: https://www.percepcaoclimatica.com.br/

    AVISO: Eu só estudei estatística 1 semestre durante a graduação, meus conhecimentos de Tableau, como já mencionei, são rudimentares, mas eu tenho bom senso, é suficiente? Talvez. Veja aí onde eu cheguei com os dados e me corrija se você ver erros.

    MINHA “ANÁLISE” – (É muita pretensão minha chamar isso de análise.)

    Eu selecionei algumas perguntas que achei mais interessante da pesquisa e resolvi destrinchar melhor como as respostas apareciam regionalmente. Até tentei fazer uns gráficos com a posição política declarada pelos entrevistados, mas achei que a quantidade de gente que não sabia ou não respondeu esta questão era muito grande (quase 25%).

    Eis o meu achado.

    Quando os entrevistados foram perguntados se concordavam ou não com a afirmação: As queimadas na Amazônia são necessárias para o crescimento da economia, em todo o Brasil a resposta foi que 74% deles discordavam essa afirmação. Achei sensacional esse resultado e ai resolvi fazer um recorte por região. Como a discordância ou não dessa afirmação se distribui pelas regiões do país? Eis que a região com maior número de “concordos” sobre a questão acima veio da região Norte, onde a Amazônia está localizada em sua maior parte. Enquanto no Sudeste nem 15% dos entrevistados concordavam com a afirmação, no Norte quase 30% concorda.

    Você pode ver o gráfico melhor aqui: https://public.tableau.com/views/PesquisaPercepoclimaBrasil/Planilha1?:language=pt&:retry=yes&:display_count=y&:origin=viz_share_link

    Essa tendência meio que se confirma quando a pesquisa pergunta o que é considerado mais importante para o entrevistado: A) Proteger o meio ambiente, mesmo que isso signifique menos crescimento econômico e menos empregos ou B) Promover o crescimento econômico e a geração de empregos, mesmo que isso prejudique o meio ambiente. No geral o brasileiro respondeu que a alternativa A é mais importante (77%). Mas quando abrimos as respostas por região, é o Norte mais uma vez que detém a maior quantidade de pessoas respondendo a opção B. Na região Norte 24,51% dos brasileiros consideram a alternativa B como mais importante para eles, enquanto que nas outras regiões esse número não chega a 17%.

    O gráfico fica melhor de ver aqui: https://public.tableau.com/views/PesquisaPercepoclimaBrasil2/Planilha23?:language=pt&:display_count=y&publish=yes&:origin=viz_share_link

    A minha opinião sobre esses dados pode estar muito errada, mas vou manifestá-la mesmo assim. Eu achava que era uma minoria de pessoas na região Norte que é a favor do desmatamento e pensa que pelo crescimento econômico vale tudo. Esses dados me mostram que não é bem assim, ainda tem muita gente por lá com esse tipo de pensamento desenvolvimentista a qualquer custo. E ai temos 2 possibilidades para mim: 1) eu era ingênua de acreditar que os maus eram a minoria, talvez eles até sejam, mas tem uns pseudos bons que os apoiam; 2) eu não sei mexer no Tableau, muito menos analisar dados e isso ai tá tudo errado… Aceito ajuda dos universitários!

    UPDATE: Fiz mais uma análise dessa pesquisa aqui.

     

    Este texto foi publicado originalmente no blog Ecodesenvolvimento.

     

     

  • Bolsonaro, a Petrobras e a luta de classes

    Texto por Vítor Lopes de Souza Alves.

    Na última sexta-feira, 19, o presidente Jair Bolsonaro manifestou a sua intenção de realizar uma troca no comando da Petrobras, substituindo o atual presidente da estatal Roberto Castello Branco pelo general Joaquim Silva e Luna. Em decorrência disso, as ações da empresa negociadas na Bolsa de Valores de São Paulo (a Bovespa, atualmente denominada B3) despencaram, fechando os pregões de sexta (19) e segunda (22) com quedas de cerca de 8% e 20%, respectivamente, o que totalizou uma perda de valor de mercado da empresa de pouco mais de 100 bilhões de reais.[1]

    A explicação para o ocorrido reside na disputa social em torno da definição da política de preços dos combustíveis praticada pela empresa. Em 2016, após o impeachment de Dilma Rousseff e a subida ao poder de Michel Temer, a Petrobras deixou de cobrar pelos combustíveis um preço compatível com os seus custos de produção domésticos e passou a tomar como referência de precificação o preço internacional do barril de petróleo. Como o custo para produzir petróleo no Brasil é bastante inferior ao custo médio do mundo, essa mudança impôs aos consumidores brasileiros um aumento dos preços pagos pela gasolina e pelo diesel. Além disso, passou-se a verificar uma maior volatilidade desses preços, uma vez que os reajustes passaram a ser mais frequentes a fim de acompanhar as variações dos preços internacionais. Por um lado, os preços maiores e mais voláteis representaram um prejuízo à sociedade brasileira como um todo, tanto aos motoristas em geral, que precisam abastecer os seus veículos, como aos caminhoneiros em particular, para quem o diesel representa a maior parte do custo dos fretes. Por outro lado, eles significaram uma vantagem para o mercado financeiro, pois elevaram a lucratividade da empresa, permitindo que ela distribuísse mais dividendos aos seus acionistas – a esse respeito, deve-se ter em conta que a Petrobras também possui ações listadas na Bolsa de Valores de Nova Iorque (NYSE, na sigla em inglês) e que uma parcela relevante dos seus acionistas é formada por estrangeiros.

    Dando continuidade ao viés liberal, entreguista e pró-mercado de Temer, o governo Bolsonaro tem mantido, desde o seu início, essa mesma política de preços. No entanto, tal como a greve dos caminhoneiros de 2018, ainda no governo Temer, que culminou com a demissão do então presidente da Petrobras Pedro Parente, novas ameaças de paralisação por parte da categoria pressionam hoje Bolsonaro a intervir na empresa, alterando o seu comando. Ainda que não seja certo que tal intervenção resultará em redução e controle dos preços dos combustíveis, pois o governo analisa outras alternativas para atender às reivindicações dos caminhoneiros[2], o mercado financeiro já avaliou a possibilidade da adoção dessa política e já precificou os seus efeitos. Imaginando que os preços da gasolina e do diesel voltarão a ficar abaixo do nível determinado pelo livre-mercado – isto é, o mercado internacional de petróleo –, os acionistas da Petrobras já previram receber menos dividendos no futuro, venderam as suas participações na empresa e provocaram o colapso do seu valor de mercado. Esse fato constitui um claro sinal de que a mobilização da classe trabalhadora ainda é capaz de produzir resultados efetivos. A simples ameaça de uma greve, que sequer chegou a se concretizar, forçou o atual governo a sinalizar que atuará – o que ainda não é certo – de forma intervencionista, nacionalista e pró-sociedade e provocou um enorme alvoroço na Bovespa. Bolsonaro, temendo que uma nova paralisação nacional possa trazer dificuldades ao seu governo e inviabilizar a sua reeleição, está sendo coagido a atuar à maneira como Dilma atuava, a abandonar um tópico importante da sua agenda liberal e a fazer com que a Petrobras volte a atender aos interesses do povo brasileiro e não mais aos de uma minoria detentora de títulos financeiros.

    A grande mídia brasileira, que mantém uma relação íntima com a burguesia financeira do país, fez críticas severas à atitude do presidente. Os exemplos a seguir ajudam a ilustrar o tom da reação midiática. Uma matéria da BBC News Brasil argumentou que a intervenção de Bolsonaro na Petrobras gerará aumento da inflação.[3] Isso é falso. O petróleo constitui um insumo para quase todas as mercadorias, que precisam ser transportadas para chegarem aos seus consumidores finais. Assim, uma queda dos preços do diesel e da gasolina deve contribuir para reduzir, e não para elevar, os preços de todos os bens e serviços. A revista Isto É deu destaque à declaração do senador Otto Alencar, do PSD da Bahia, de que a desvalorização da Petrobras equivale a duas vezes o valor do auxílio emergencial a ser pago pelo governo no ano de 2021, dando a entender que ela prejudicaria as camadas mais pobres da população.[4] Trata-se, novamente, de um raciocínio equivocado e enganoso. Assim como nenhum cidadão espera o preço da sua geladeira subir para vendê-la e com isso pagar o seu almoço, o Tesouro Nacional não financia os seus gastos a partir da valorização patrimonial do governo. Por fim, na Globonews, Marcelo Mesquita, integrante do Conselho de Administração da Petrobras (um dos 3 conselheiros, num total de 11, que são indicados por e representam os acionistas), defendeu a privatização completa da empresa e disse que Bolsonaro é tão comunista quanto o PT.[5] Na mesma linha da fala de Mesquita, Demétrio Magnoli, um dos comentaristas do canal, chamou Bolsonaro de ditador e o comparou a Hugo Chávez, lembrando que este, quando governou a Venezuela, também interveio na estatal petroleira de seu país. Deve-se reconhecer que Mesquita e Magnoli têm razão quanto ao caráter da intervenção de Bolsonaro, que tem, tal como no caso venezuelano, um viés popular. Muito estranha, no entanto, que o presidente brasileiro seja assim tachado por essa atitude, ao passo que, quando participa de manifestações por um novo AI-5 e pelo fechamento do Congresso e do STF, é tratado de forma muito menos hostil pelos veículos de imprensa.

    O que os episódios recentes evidenciam é uma vitória da classe trabalhadora brasileira, a qual só foi possível porque as relações de poder ainda se dão, no Brasil, sob um regime democrático. Numa ditadura, haveria um espaço muito menor para a luta de classes entre trabalhadores e burgueses, e qualquer ameaça de greve de caminhoneiros poderia ser facilmente reprimida com porretes, gás lacrimogênio, prisões ilegais e tortura. Como Bolsonaro, embora o deseje, não dispõe desses meios autoritários para o exercício do poder, só lhe restou, nesse caso específico, a alternativa de recuar ante as pressões dos trabalhadores e de contrariar os interesses da burguesia. Sob esse ponto de vista, sua intervenção na Petrobras é muito bem-vinda e deve ser comemorada. Em virtude dela, a estatal não perdeu capacidade técnica de produzir 1 mililitro de combustível, os ricos ficaram 100 bilhões de reais mais pobres, e os pobres – espera-se – poderão comprar combustíveis e mercadorias em geral por preços menores. Em outras palavras, o anúncio da alteração na chefia da Petrobras, ao provocar uma expectativa de redistribuição dos rendimentos gerados pela empresa, resultou numa enorme queima do seu capital fictício, sem destruição alguma do seu capital real. Em suma, a contradição trabalho x capital explicitou-se sob a forma do conflito entre caminhoneiros e acionistas pela política de preços da Petrobras, implicando um forte abalo para o governo.

    [1] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/02/petrobras-perde-r-1025-bi-em-valor-de-mercado-apos-intervencao-de-bolsonaro.shtml.

    [2] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/02/governo-estuda-bolsa-caminhoneiro-contra-alta-do-diesel-sem-interferir-na-petrobras.shtml.

    [3] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56161636.

    [4] https://istoe.com.br/intervencao-na-petrobras-em-dois-dias-o-governo-perdeu-duas-vezes-o-valor-do-auxilio-emergencial-diz-senador/.

    [5] https://g1.globo.com/globonews/globonews-em-pauta/video/marcelo-mesquita-conselheiro-da-petrobras-fala-sobre-a-troca-de-comando-na-estatal-9291870.ghtml.

     

     

     

     

    Este texto foi publicado originalmente no blog Sobre Economia.

     

     

  • O 7 de setembro de Jair Bolsonaro: defesa histórica da violência como fundamento da ordem

    Texto por Ulisses Rubio e Gustavo Zullo.*

    Consideramos que no pronunciamento realizado por Jair Bolsonaro no 7 de setembro algo foge ao estereótipo paradigmático dos discursos do atual presidente. Bolsonaro não repetiu as falas aparentemente desconexas, que têm deixado os analistas atônitos e os leva a análises no mínimo insuficientes, uma vez que enfatizam a incoerência e ressaltam um burro Bolsonaro. Ao contrário, consideramos que, na comemoração da independência, o presidente apresentou um discurso elucidativo e, na medida do possível, sereno sobre sua seleção do passado nacional e dos seus valores. Mais ainda, Jair Bolsonaro explicitou a sua visão de Brasil, na qual os dominantes desenharam a identidade nacional:

    “Naquele histórico 7 de setembro de 1822, às Margens do Ipiranga, o Brasil dizia ao mundo que nunca mais aceitaria ser submisso a qualquer outra nação”.

    Quem é o sujeito da ação? O Brasil. Mas quem é o Brasil? Mais que isso, quais seriam os “brasileiros [que] jamais abririam mão de sua liberdade”?

    Certamente não estão incluídos aí os negros escravizados, que permaneceram privados de sua liberdade ainda por mais de um quarto de século após a independência. Seriam os indígenas? Isto não seria coerente com as atuais políticas do executivo federal em relação aos povos indígenas, especialmente atingidos pela boiada incandescente que avança de modo acelerado sobre a Amazônia e o Pantanal.

     “A identidade nacional começou a ser desenhada, com a miscigenação entre índios, brancos e negros”.

    Nesse trecho do discurso, a vírgula após “desenhada” não é gratuita. Repare. A miscigenação não é o agente da passiva. O agente da passiva do verbo “desenhada” não aparece. A miscigenação é um aspecto muito importante da identidade nacional, mas não a sua realizadora. Assim, nos perguntamos quem seria este agente da passiva e por que ele teria sido ocultado? Para responder a estas questões, recorremos a um dos ícones do pensamento conservador brasileiro do século XX, Oliveira Vianna. Segundo ele, os principais acontecimentos que marcam a História do Brasil, inclusive a independência, foram protagonizados pela “Nobreza rural”. Coerente ao pensamento conservador, acreditamos que Bolsonaro está assumindo que são os dominantes que “desenharam” a identidade nacional.

    Implícita nesta posição está que a identidade nacional teria sido formada pelo andar de cima e para o andar de cima a partir da preservação da segregação social. E esta questão possui uma curiosidade quando a associamos à época da independência. Naquele período, a segregação social assumia a forma de um sistema escravista extremamente violento que, contudo, foi romantizado pelo conservadorismo brasileiro como um sistema em que se formaram afetos espontâneos entre negros e brancos. Como consequência, a interpretação conservadora da identidade nacional cancela a possiblidade dos dominados acessarem a cidadania sem que se o anuncie explicitamente – e aqui reside um dos grandes dilemas brasileiros.

    Na atual conjuntura, isto significa a supressão de todos os ensaios emancipatórios que se vislumbraram nos últimos anos, uma ofensiva a pautas sociais, culturais e econômicas que apontam para a construção de uma sociedade mais justa ou, se quiserem, menos injusta.

    Na visão conservadora da formação histórica do Brasil, a miscigenação cumpre um papel fundamental, mas não fundador, da identidade nacional. Para deixar ainda mais evidente o significado da miscigenação no discurso de Bolsonaro, recorremos a outro autor importantíssimo para o pensamento conservador brasileiro: Gilberto Freyre, autor que consolidou a ideia de que, no Brasil, vivemos numa “democracia racial” e que nos ajudará a decifrar a sequência do discurso de Bolsonaro.

    Assim, seguimos com o presidente: “Posteriormente, ondas de imigrantes se sucederam, trazendo esperanças que em suas terras haviam perdido. Religiões, crenças, comportamentos e visões eram assimilados e respeitados. O Brasil desenvolveu o senso de tolerância”.

    Bem… já identificamos “quem era o Brasil”. Agora vemos estes brasileiros serem “tolerantes”, “assimilando” e “respeitando” diferentes “religiões, crenças, comportamentos e visões”. A fala do presidente claramente retoma a “plasticidade” do português, o elemento branco da miscigenação exacerbada por Gilberto Freyre. Portanto, a suposta “democracia” racial decorreria da benevolência dos dominantes, caracterizada por sua plasticidade, isto é, por sua capacidade de “tolerar” e “assimilar” o caldo cultural dos dominados – e a esta altura já notamos que o termo “assimilação” significa dominar/sufocar. Mas esta não é uma dominação explícita – e esta tradição de se fazer parecer tolerante é preservada até por Bolsonaro, apelidado de “cavalão” nos seus tempos de exército. Isto é, se na frente das câmeras o discurso é de tolerância e mesmo de exaltação da diversidade, a prática é de perseguição social e policial de tradições e costumes não-hegemônicos, como ocorre com o candomblé.

    E aqui insistimos. O agente que integra é o mesmo brasileiro que realiza o movimento de independência. Este brasileiro absorve outros elementos culturais, mas não confere o mesmo valor à cultura dos povos escravizados e, consequentemente, não os concebe como dignos de fazerem reivindicações. Assim, a sua presença é tão somente tolerada na medida em que se preserva à sombra da sociedade. Portanto, compreendemos como “os diferentes tornavam-se iguais”, proferido na continuação da fala de Bolsonaro.

    Simula-se uma igualdade, posto que os povos dominados e as suas respectivas culturas jamais foram aceitos em pé de igualdade – isto é, o conflito nunca foi aceito como parte da construção de um ambiente verdadeiramente democrático. Esta “igualdade” a que Jair Bolsonaro se refere foi construída pelos dominadores. Isto é, uma igualdade que, na verdade, é absolutamente incompatível com a valorização real daquilo que o presidente ostenta orgulhosamente como um “conjunto de preciosidades culturais, éticas e religiosas”.

    Assim, a “plasticidade” que constrói a democracia racial de Gilberto Freyre pode se juntar à “placidez” da formação social brasileira de Oliveira Vianna, para quem “à sombra patriarcal deste grande senhor de engenhos, de estâncias, de cafezais vivem o pobre e o fraco com segurança e tranquilidade”.

    Com isto, Bolsonaro assume a figura de patriarca nacional, de defensor da ordem conservadora, entendendo que mobilizações sociais são bem vistas apenas quando subsidiam a sua ordem. E este detalhe é importante: a atuação do governo Bolsonaro não se restringe à perseguição de negros e indígenas, mas tem a relação histórica de perseguição e tutela a estes grupos como experiência a ser repetida quantas vezes forem necessárias para preservar privilégios.

    Podemos, assim, entender a narrativa que o presidente constrói no que segue de seu discurso:

    “Passados quase dois séculos da independência, nos quais enfrentou e superou inúmeros desafios, o Brasil consolidou sua posição no concerto das nações. Ainda no século XIX, durante o período do império, fomos invadidos e agredidos, derrotando a todos. Já no século XX, durante a II Guerra Mundial, a Força Expedicionária Brasileira foi à Europa para ajudar o mundo a derrotar o nazismo e o fascismo. Nos anos 60, quando a sombra do comunismo nos ameaçou, milhões de brasileiros, identificados com os anseios nacionais, de preservação das instituições democráticas, foram às ruas contra um país tomado pela radicalização ideológica, greves, desordem social, e corrupção generalizada”.

    O que vemos é a exaltação de três governos autoritários que sufocaram manifestações sociais que chacoalhavam a ordem.

    Estamos, portanto, preparados para entender a coerência do discurso do presidente quando ele afirma defender a democracia e a liberdade:

    “O sangue dos brasileiros sempre foi derramado por liberdade. Vencemos ontem, estamos vencendo hoje e venceremos sempre. No momento que celebramos esta data tão especial, reitero, como presidente da República, meu amor à Pátria e meu compromisso com a Constituição e com a preservação da soberania, democracia e liberdade, valores dos quais nosso País jamais abrirá mão. A independência do Brasil merece ser comemorada hoje, nos nossos lares e em nossos corações. A independência nos deu a liberdade para decidir nossos destinos e a usamos para escolher a democracia”.

    Nesta narrativa, já sabemos que quem teve a liberdade para fazer a independência e manter a ordem posteriormente foi o patriarca branco, intolerante e eugenista, oposto à imagem benevolente da miscigenação apresentada por Bolsonaro. Sabemos também que a democracia de que se fala, é a dita “democracia racial”.

    *Ulisses Rubio. Economista, Professor Universitário, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da UNICAMP.

    *Gustavo Zullo. Economista, Professor Universitário, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da UNICAMP.

    Referências:

    FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da familia brasileira sob o regime da economia patriarcal. 17. ed. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio, 1975.

    VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: historia – organização – psicologia. Belo Horizonte, MG; Niterói, RJ: Itatiaia: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1987.

    Pronunciamento do Presidente Jair Bolsonaro, 7 de Setembro de 2020. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=2iomceoXjOY. Acessado em 7 de setembro de 2020.

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