Categoria: / Ciências Sociais Aplicadas

  • De onde vem a hegemonia do dólar?

    Autoria

    Victor Augusto Ferraz Young

    Introdução

    Conforme havíamos prometido, este ano trataremos de recortes sobre a economia global contemporânea. Não temos a pretensão de explicar aqui o funcionamento do sistema capitalista e as relações que este determina entre os países que dele fazem parte. Buscaremos trazer as questões mais relevantes para instigar aqueles que se interessam pelo tema e nos procuram com suas dúvidas. Tratarei primeiramente do que considero fundamental para o funcionamento do atual sistema econômico global, ou seja, o uso do dólar estadunidense como o principal meio internacional para as trocas comerciais e operações financeiras que é, ao mesmo tempo, o principal ativo financeiro de reserva de valor. Pretendo apresentar, dessa maneira, como a centralidade do dólar no sistema internacional se deu por determinações político históricas.

    O Ouro e a Libra Esterlina

    Primeiramente, e de forma bastante suscinta, podemos dizer que, antes do advento de um sistema econômico com base no dólar, o principal meio para a conservação da riqueza e para as trocas comerciais e financeiras internacionais era o ouro. Havia, até o início do século XX, moedas de diferentes países que podiam ter seu valor cotado em ouro, sendo a libra esterlina a referência mais estável. Este era o chamado padrão-ouro ou padrão libra-ouro. Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a crise financeira internacional desencadeada alguns anos depois com a Quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929, este padrão monetário internacional deixou de ser predominante até o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), momento em que o Sistema Financeiro Internacional foi redefinido.

    A Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e o Dólar-Ouro

    O fim da Segunda Guerra Mundial marca, ao mesmo tempo, a emergência da hegemonia norte-americana sobre o bloco de países capitalistas e dá início ao antagonismo norte americano em relação ao bloco de países comunistas sob a liderança da então União Soviética, a chamada Guerra Fria. A constituição desse bloco passou a ser vista pelos Estados Unidos como uma ameaça vital a seus interesses e até mesmo à sua própria existência, já que sua forma de organização sócio-política não considerava a propriedade privada do capital e dos meios de produção.

    Os Estados Unidos, que não haviam passado pela destruição da guerra em seu próprio território, eram, por sua vez, uma potência vencedora que havia projetado sua marinha e exército por todo o globo terrestre. Eles detinham a tecnologia da bomba atômica, haviam renovado sua capacidade industrial e tecnológica, contavam com superávits comerciais crescentes, eram os maiores credores das potências econômicas sobreviventes e possuíam um estoque de ouro equivalente a 70% das reservas mundiais. Os americanos, dessa maneira, se empenharam na reconstrução do sistema capitalista e buscaram estabelecer sua liderança sobre a nova ordem capitalista emergente. O desenho dessa ordem levaria em conta o objetivo de enfraquecer e/ou anular a chamada ameaça comunista.

    A reconstrução dos países capitalistas exigia certo controle sobre as relações econômicas dentro do sistema, assim, a determinação do dólar como a principal moeda internacional foi elemento de fundamental importância nas conferências para reestruturação do sistema financeiro em Bretton Woods em 1944. Naquela convenção, a proposta do representante norte-americano, Harry Dexter White, estabeleceu que o dólar lastreado em uma certa quantia de ouro seria a divisa internacional balizadora para o valor fixo (mas ajustável) de outras moedas dos outros países que fizeram parte da reunião[1].

    Com o poder que detinham, os EUA impuseram o dólar como moeda internacional em contraposição a ideia de uma unidade monetária alternativa, o bancor, sugerida na conferência pelo economista e representante inglês, John Maynard Keynes[2]. Esta outra seria uma moeda internacional a ser emitida por uma entidade internacional multilateral, não estando, dessa forma, sob supervisão do banco central norte-americano. Naquele momento, os EUA fizeram valer sua força política e econômica e ficou estabelecido o padrão dólar-ouro como divisa chave para todas as operações comerciais e financeiras entre os países. A vantagem desse modelo ficava, obviamente, para a economia norte-americana, já que seu governo poderia, no futuro, dispensar superávits comerciais e empréstimos internacionais para conseguir recursos para comprar e/ou financiar qualquer coisa que desejasse no exterior. Ou seja, o Estado americano não precisaria necessariamente acumular reservas internacionais, bastaria, grosso modo, emitir a sua própria moeda.[3]

    Além do Dólar

    Em Bretton Woods, além do dólar-ouro, havia por parte dos norte-americanos a preocupação com a reconstrução de um sistema capitalista destruído física e moralmente. Era necessário superar a atração exercida pela ideia de igualdade comunista. Naquela conferência, estabeleceu-se que os fluxos financeiros seriam controlados unilateralmente pelos estados, eliminando a livre circulação de capitais e seus consequentes efeitos especulativos. Além disso, as taxas de câmbio seriam fixadas em relação ao dólar. Estas iniciativas visaram estabilizar no longo prazos as finanças e o comércio internacional, permitindo crescimento econômico mais rápido. Além disso, duas novas instituições de auxílio ao novo sistema foram criadas. No caso em que os países viessem a ter reiterados déficits no balanço de pagamentos com eventual falta de divisas fortes, tais países poderiam recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI) em busca de socorro financeiro.

    Para a reconstrução do pós-guerra e o financiamento do desenvolvimento econômico, os países requerentes poderiam buscar financiamento junto ao Banco Mundial. O que ocorreu, todavia, foi que estas novas instituições tiveram seus aportes, em grande medida, reaizados pelos próprios EUA o que as tornou na maioria das vezes dependentes de suas decisões. Os recursos alocados também não foram suficientes para os objetivos propostos e as futuras demandas. Depois da conferência, e ainda no sentido de evitar a ameaça comunista, os Estados Unidos criaram o Plano Marshall para ajuda econômica à Europa e os planos de ajuda econômica ao Japão que tinham como objetivo acelerar a recuperação desses países. As empresas norte-americanas não deixaram de penetrar nos mercados europeu e japonês, assim como, em função dos interesses geopolíticos, os EUA permitiriam a expansão e penetração das empresas daqueles países em seus mercados.

    O redesenho da estrutura financeira e comercial internacional com base no dólar-ouro depois de 1944 foi o que definiu, num primeiro momento, sua preponderância até os dias de hoje. Assim, a recuperação do sistema capitalista do pós-Segunda Guerra Mundial foi feita com o uso do dólar e definiu que esta moeda seria a forma da reserva de riqueza propriamente dita. Até que sua validade fosse questionada em momento posterior houve duas décadas ininterruptas de recuperação e desenvolvimento econômico nos principais países capitalistas e em outros em desenvolvimento. No próximo texto veremos como foi o fim da ordem de Bretton Woods, o fim do dólar-ouro e o início da ordem globalizada com o advento do dólar flexível.

     

    Referências:

    ANDERSON, Perry. A política externa norte-americana e seus teóricos. São Paulo, SP: Boitempo, 2015.

    EICHENGREEN, Barry J. A globalização do capital: uma história do Sistema Monetário Internacional. São Paulo, SP: Editora 34, c2000.

    HOBSBAWM, E. J. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1998, 1994.

    MAZZUCCHELLI, Frederico Mathias. Os dias de sol: a trajetória do capitalismo no pós-guerra. Campinas, SP: FACAMP, 2013.

    MEAD, Walter Russell. Special providence: American foreign policy and how it changed the word. New York, NY; London: Routledge, 2002.

    VAROUFAKIS, Yanis. O Minotauro Global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia global. São Paulo, SP: Autonomia Literária, 2016.

    YOUNG, Victor Augusto Ferraz. O Governo de Ronald Reagan (1981-1989) e a Consolidação da Nova Ordem Econômica Internacional. 2018. 1 recurso online (220 p.) Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia, Campinas, SP.

    [1] Uma onça troy de ouro (31,104 gramas) passaria a valer 35 dólares.

    [2] Temos vários textos sobre Keynes e suas ideias em nosso blog. Ver: As ideias fundamentais de Keynes; As propostas de reforma social de Keynes; e A Teoria Geral de Keynes: uma apresentação didática.

    [3] Os detalhes sobre este ponto específico veremos no próximo texto.

    Sobre quem escreveu

    Victor Augusto Ferraz Young, economista, pesquisador do Centro de Estudos de Relações Econômicas Internacionais (CERI) do Instituto de Economia da UNICAMP, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico nesta mesma Universidade, é professor de graduação da FACAMP.

    Como citar:  

    Young, Victor Augusto Ferraz. (2024). De onde vem a hegemonia do dolar? Revista Blogs Unicamp, Vol. 10, N.1. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/de-onde-vem-a-hegemonia-do-dolar/ Acesso em: DD/MM/AAAA 

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Moeda do fundo – reproduzida de coleção de moedas (original)

    Mapa-mundi de moedas – por Monstera Production no Pexels (original)

    Edição: clorofreela

  • Lei “Não é Não”: algumas ideias para pensar

    Autoria

    Ana de Medeiros Arnt

    Durante a primeira semana de janeiro de 2024, muitos veículos de comunicação noticiaram a nova Lei n. 14786/23, promulgada no dia 28 de dezembro de 2023. A lei cria o protocolo “Não é Não” e trata da prevenção ao constrangimento e à violência contra a mulher e proteção à vítima. 

    No entanto, houve questionamentos acerca da lei, alguns deles irei esclarecer abaixo, em 5 itens. Considerando que o texto é mais longo que o usual, em função de eu trazer trechos da lei e outros documentos, se teu interesse for de um assunto mais específico, podes ir direto ao tópico marcado! 

    (1) não é não, (2) protocolo e lei 14.786/23, (3) PL 03/2023 e Relatório do PL, (4) problematizações acerca da Lei e, por fim, (5) falar sobre cultura, misoginia e violência contra a mulher.

    Não é não

    “Não é não” é uma frase afirmativa que podemos chamar de clássica dentro de qualquer campanha de proteção à mulher nos últimos anos. Ela parte do pressuposto de, a partir de uma frase curta, comunicar um ato básico de respeito. “Quando se diz não, queremos dizer NÃO”, e a partir disso, é preciso que se respeite como uma decisão da pessoa. Parece simples, mas dentro de uma cultura extremamente machista, sabemos que nem sempre mulheres são compreendidas e respeitadas a partir de suas escolhas e decisões sobre seus próprios corpos.

    Uma lei que busca implementar um protocolo de ação, a partir desta frase emblemática, diz ao que veio de maneira simples e rápida: é uma lei cujo princípio é proteger a mulher e suas decisões.

    O que é um protocolo?

    Protocolo nada mais é do que um conjunto de prescrições a serem seguidas, com um passo a passo. Um exemplo bem banal do cotidiano que pode ser entendido como protocolo são receitas. Sim! Fazer comida seguindo uma receita ao pé da letra é um protocolo. Há ingredientes que precisam de uma medida correta e uma ordem para serem misturados. Se nós mudamos a ordem, ou mudamos as medidas, tudo pode dar errado.

    Pois bem, protocolo é um conjunto de regras, organizadas para serem seguidas como um passo a passo, para que um determinado resultado seja alcançado. Os protocolos são importantes, dentro do campo jurídico, tanto quanto científico, exatamente por serem passíveis de serem conferidos. Com isso, sabemos em que ponto algo pode ter falhado, pois podemos conferir cada etapa de execução das nossas ações.

    Dito isso, vamos entender agora qual a relação entre essa noção de protocolo, na Lei 14.786/23.

    Onde será implementado o protocolo, segundo a lei?

    No caso da Lei 14.786/23, o objetivo é implementar um protocolo, chamado “Não é não”, tal como consta no Artigo 2º:

    O protocolo “Não é Não” será implementado no ambiente de casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica, para promover a proteção das mulheres e para prevenir e enfrentar o constrangimento e a violência contra elas.

    Parágrafo único. O disposto nesta Lei não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa. (grifos nossos)

    O que caracteriza constrangimento e violência?

    Já no Artigo 3º, existe a definição de constrangimento e de violência, caracterizando o que é necessário para que o protocolo seja operacionalizado:

    I – constrangimento: qualquer insistência, física ou verbal, sofrida pela mulher depois de manifestada a sua discordância com a interação;

    II – violência: uso da força que tenha como resultado lesão, morte ou dano, entre outros, conforme legislação penal em vigor. (grifos nossos)

    Quais são os direitos da mulher e os princípios do protocolo?

    Ainda nesta lei, consta os princípios a serem seguidos para o Protocolo (artigo 4º) e os direitos da mulher (Artigo 5º). Vamos a eles:

    Art. 4º Na aplicação do protocolo “Não é Não”, devem ser observados os seguintes princípios:

    I – respeito ao relato da vítima acerca do constrangimento ou da violência sofrida;

    II – preservação da dignidade, da honra, da intimidade e da integridade física e psicológica da vítima;

    III – celeridade no cumprimento do disposto nesta Lei;

    IV – articulação de esforços públicos e privados para o enfrentamento do constrangimento e da violência contra a mulher.

    Art. 5º São direitos da mulher:

    I – ser prontamente protegida pela equipe do estabelecimento a fim de que possa relatar o constrangimento ou a violência sofridos;

    II – ser informada sobre os seus direitos;

    III – ser imediatamente afastada e protegida do agressor;

    IV – ter respeitadas as suas decisões em relação às medidas de apoio previstas nesta Lei;

    V – ter as providências previstas nesta Lei cumpridas com celeridade;

    VI – ser acompanhada por pessoa de sua escolha;

    VII – definir se sofreu constrangimento ou violência, para os efeitos das medidas previstas nesta Lei;

    VIII – ser acompanhada até o seu transporte, caso decida deixar o local.

    No caso, o artigo 4º diz respeito ao atendimento à vítima e sua proteção nos estabelecimentos e para relatos da violência para a produção de boletins de ocorrência, por exemplo. Já o artigo 5º aponta para ações e comportamentos que devem ser seguidos assim que for detectado ou relatado um constrangimento, ou violência. 

    Quem é responsável pela tomada de ações em caso de violência e assédio?

    Estas medidas, apontadas nos Artigos 4º e 5º devem ser tomadas pelo estabelecimento em que esta mulher se encontra, com pessoas treinadas para isto. Isto está descrito no Artigo 6º, que versa sobre os deveres dos estabelecimentos:

    I – assegurar que na sua equipe tenha pelo menos uma pessoa qualificada para atender ao protocolo “Não é Não”;

    II – manter, em locais visíveis, informação sobre a forma de acionar o protocolo “Não é Não” e os números de telefone de contato da Polícia Militar e da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180;

    III – certificar-se com a vítima, quando observada possível situação de constrangimento, da necessidade de assistência, facultada a aplicação das medidas previstas no art. 7º desta Lei para fazer cessar o constrangimento;

    IV – se houver indícios de violência:

    a) proteger a mulher e proceder às medidas de apoio previstas nesta Lei;
    b) afastar a vítima do agressor, inclusive do seu alcance visual, facultado a ela ter o acompanhamento de pessoa de sua escolha;
    c) colaborar para a identificação das possíveis testemunhas do fato;
    d) solicitar o comparecimento da Polícia Militar ou do agente público competente;
    e) isolar o local específico onde existam vestígios da violência, até a chegada da Polícia Militar ou do agente público competente;

    V – se o estabelecimento dispuser de sistema de câmeras de segurança:

    a) garantir o acesso às imagens à Polícia Civil, à perícia oficial e aos diretamente envolvidos;
    b) preservar, pelo período mínimo de 30 (trinta) dias, as imagens relacionadas com o ocorrido;

    VI – garantir todos os direitos da denunciante previstos no art. 5º desta Lei.

    O estabelecimento tem, portanto, o dever de acolher e proteger a vítima, tanto quanto de denunciar e identificar o(s) agressor(es). Também deve manter informações visuais sobre como acionar o protocolo.

    Notas sobre o Não é Não

    Alguns estabelecimentos já possuem este tipo de ação. Eventualmente vemos nas portas e paredes de banheiros, indicativos de que podemos comunicar uma situação de constrangimento ou violência, realizando algum pedido específico (com nomes específicos, por exemplo), que sinalize o problema. Neste caso, o estabelecimento já possui um protocolo de atendimento e proteção, que agora se soma à lei.

    Todavia, também sabemos que nem sempre é simples acionar alguém do estabelecimento para pedir proteção. Estarmos em uma sociedade extremamente machista torna os pedidos de ajuda muito difíceis. Retomarei isto mais à frente, mas queria deixar aqui duas ressalvas antes.

    1. Sempre é importante haver um protocolo, com treinamento dos funcionários, mais do que aguardar uma mulher solicitar ajuda, apenas. Muitas vezes um treinamento para observar situações e oferecer ajuda, também é uma medida importante. Isto está previsto no Artigo 6º, inciso III “certificar-se com a vítima, quando observada possível situação de constrangimento, da necessidade de assistência”. Assim, não é obrigatório o pedido de proteção partir da vítima. O próprio estabelecimento pode se dispor a prestar acolhimento e proteção, caso suspeite ou perceba estar em uma situação de constrangimento ou violência.
    2. Além de sempre, como prevê o protocolo da Lei Não é Não, (Artigo 4º, Inciso I) “respeito ao relato da vítima acerca do constrangimento ou da violência sofrida”. Ou seja, ao ouvir um pedido de proteção, respeitar e agir, sem descredibilizar a vítima.

    Por fim, o poder público é o responsável por campanhas educativas e ações de formação periódica para implementar o protocolo nos estabelecimentos. Ainda estou vendo com mais detalhes como isto funciona para trazer à discussão.

    Como o Projeto de Lei (PL) Não é Não foi proposto e o quê mudou?

    Esta lei foi proposta pela deputada Maria do Rosário (PT) e tinha uma redação diferente da lei que foi aprovada. Isto é comum. De maneira geral, um PL, quando proposto, passa por discussões e análises em comissões temáticas, recebe sugestões de mudanças, passa por negociações, que modificam o seu “teor original” (a escrita original do PL). Também são analisados outros PLs que são “parecidos” ou versam sobre temas próximos. Neste caso, estes outros PLs viram “apensados”, ou seja, documentos que vão ser debatidos e analisados conjuntamente, pois fazem parte de ideias similares.

    Por fim, há uma relatoria do PL, que se propõe a indicar qual a justificativa desta lei e sua relevância, quais apensados se relacionam e indica uma redação final para o PL. As próprias comissões que analisaram podem aprovar o PL em sua redação final ou, se não houver concordância, acontece a votação na Câmara de Deputados, antes de ir ao Senado. Para entender melhor o detalhamento deste processo, eu sugiro assistir ao conteúdo “Entenda o Processo Legislativo

    No caso da Lei 14.786/23, a proposta inicial pode ser acessada no site da Câmara dos Deputados, que possui todo o histórico desde que ela foi apresentada, até sua versão final. Isso inclui a versão original do Projeto de Lei 03/2023. Lá já se percebe que o nome do protocolo, por exemplo, consta desde a primeira versão do PL.

    Redação Original do PL 03/2023

    No Artigo 1º esse protocolo se destinava ao atendimento de mulheres, vítimas de violência sexual ou assédio 

    em discotecas ou estabelecimentos noturnos, eventos festivos, bailes, espetáculos, shows, bares, restaurantes, ou qualquer outro estabelecimento de grande circulação de pessoas

    O PL incluía locais de realização de eventos esportivos. Na justificativa, a autora do PL indica que se inspirou em Lei semelhante, espanhola, nomeada “Solo si es si” (só o sim é sim, em espanhol). Além desta lei, o protocolo No Callem criado em Barcelona, 2018, fortalece e fundamenta as ações para a lei, e é baseado em 5 princípios

    O primeiro é que a atenção prioritária deve ser dada à pessoa atacada. Em caso de agressão, ela deve receber a devida atenção. Em casos graves, ela não pode ser deixada sozinha, a não ser que queira. 

    O segundo princípio orientador é o respeito às decisões da pessoa agredida. Ela deve receber as informações e conselhos corretos, e ela deve tomar a decisão final, mesmo que esta pareça incompreensível para os demais.

    Terceiro princípio: o foco não deve estar num processo criminal. Estes são complexos, difíceis também para quem foi agredido e muitas vezes terminam de uma forma não satisfatória para quem sofreu uma agressão. Isso pode gerar frustração, e por isso é importante informar e levar em conta que existem outras formas de tratar a situação e dar importância ao processo de recuperação da pessoa agredida.

    O quarto princípio é a atitude de rejeição ao agressor. Deve-se evitar sinais de cumplicidade com ele, mesmo que seja apenas para reduzir o clima de tensão. É importante mostrar que há uma clara rejeição à agressão e envolver o entorno do agressor nessa rejeição.

    O quinto e último princípio é o da informação rigorosa. Tanto a privacidade da pessoa agredida como a presunção de inocência da pessoa acusada devem ser respeitadas. Por isso, é aconselhável não repassar informações oriundas de fontes não confiáveis ou espalhar boatos.

    Outras iniciativas

    Ainda é citado, na justificativa do PL, outras leis e movimentos internacionais, como “Ask for Angela” (Inglaterra) e “Me Too” (inicialmente estadunidense). Além disso, cita campanhas nacionais, como “He for She” (Rio Grande do Sul) e acontecimentos como o julgamento de estupro, com descrédito da vítima, ocorrido com Mariana Ferrer, em Santa Catarina.

    Quais são as ressalvas que eu gostaria de demarcar neste texto? Não havia no PL, nem na justificativa da lei, quaisquer ressalvas sobre bebidas alcoólicas ou cultos e eventos religiosos. Onde isso apareceu e foi inserido na Lei aprovada então?

    Relatório do PL 03/2023

    Buscando mais informações, encontrei o Relatório do PL 03/2023, que analisa também os PLs apensados (indicados logo após o título lá no início). Ao final do Relatório, consta o texto Substitutivo ao Projeto de Lei nº 03, de 2023 (página 13), que falarei mais adiante. Eu fui buscando cada um dos apensados, abrindo e realizando a leitura. Após a leitura do relatório também, um detalhe me chamou a atenção: não há, em nenhum PL apensado nenhuma ressalva a cultos e eventos religiosos. Tampouco há, nestes PLs, indicação de vínculo com bebidas alcoólicas a necessidade da proteção de mulheres vítimas de violência e constrangimento em estabelecimentos e eventos.

    No relatório aparece, na página 8, ao se falar do mérito da proposta, que apesar de “não existirem estatísticas sobre isso [episódios de constrangimentos], temos a percepção de que são condutas mais frequentes e também são precursoras de atos de mais intensa violência”. Para exemplificar, é falada a relação com o álcool. Conforme o documento:

    “Este é o caso, por exemplo, das insistentes tentativas de aproximação realizadas por alguns homens nos ambientes de diversão, principalmente aqueles que funcionam durante a noite e onde existe consumo de bebidas alcoólicas” (p.8).

    Em relação aos apensados, essa relação aparece somente em uma justificação, no PL 2614/2023, em que consta, na página 2

    O assédio em casas noturnas é um problema que, dentre outras ocorrências, se dá em casas noturnas e está associado ao consumo de bebidas alcoólicas. Nesse sentido, a proteção das mulheres é essencial em casas noturnas que oferecem consumo de bebidas alcoólicas.

    Apesar disso constar na justificação, não há a presença da obrigatoriedade do combate ao assédio sexual (que é a proposta do PL) se vincular a espaços com venda de bebidas alcoólicas.

    Texto do Substitutivo ao Projeto de Lei n.03 de 2023

    Para encerrar esta seção, antes de falar sobre as duas ressalvas, vamos retomar a redação final, que consta no texto Substitutivo do PL 03/2023, do relatório (páginas 13 a 17). Esta versão que está no relatório foi aprovada na Câmara e, sem qualquer modificação, é a que vale neste momento.

    Art. 2º O protocolo “Não é Não” será implementado no ambiente de casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica, para promover a proteção das mulheres e para prevenir e enfrentar o constrangimento e a violência contra elas.

    Parágrafo único. O disposto nesta Lei não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa.

    Como podemos perceber, a lei faz duas ressalvas que não estavam na escrita original do PL. A primeira sobre o protocolo relaciona-se apenas a “casas noturnas e boates” com consumo de bebidas alcoólicas e a segunda ao retirar cultos e eventos religiosos a obrigatoriedade com a implementação do protocolo.

    Uma demarcação importante, neste caso, é que saíram da lei estabelecimentos como bares, restaurantes, eventos festivos e eventos com grande circulação de pessoas, como constava no PL original. Este ponto é relevante, uma vez que existem associações específicas para estabelecimentos diferentes, que irão aderir ou não à lei. No entanto, sem obrigações legais de cumprir o protocolo, por exemplo.

    A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (ABRASEL), por exemplo, aponta que esta lei não diz respeito aos estabelecimentos que a organização representa. Ao buscar me informar sobre como a entidade vê a Lei 14.786/2023, fui informada que a Abrasel entende que a lei que institui o protocolo “Não é Não”, sancionada pelo presidente Lula no dia 29 de dezembro, é bem-vinda e ressalta que o esforço para combater a violência de gênero deve ser coletivo e não pode se restringir somente às boates e casas de show. Para isso, acredita que a educação é fundamental.

    A entidade defende que é importante que o Poder Público forneça ferramentas e metodologias para treinamento dos funcionários, de forma que consigam agir de maneira adequada diante de uma situação de constrangimento ou violência sexual. 

    A missão de combater essas situações de abuso não deve estar restrita somente às boates e casas de show, considerando que essa violência pode acontecer em diversos lugares, como no trabalho e no transporte público, por exemplo. “O protocolo é positivo porque nos coloca enquanto sociedade na posição de trabalhar o enfrentamento a esse problema e, evidentemente, punir os que cometerem abusos. Devemos fortalecer uma resposta coletiva para evitar que esse tipo de situação continue a acontecer em qualquer ambiente”, afirma o presidente-executivo da Abrasel, Paulo Solmucci.

    As modificações em relação a este artigo da lei, portanto, trazem diferentes nuances e problemáticas que devem ser questionadas e pensadas de forma mais ampla. Uma vez que tais modificações excluíram espaços sociais e culturais, é preciso que se compreenda que a aplicação do protocolo não está assegurado – e portanto não necessariamente temos uma ação rápida e que poderia gerar segurança de mulheres.

    No estado de São Paulo, a Lei nº 17.635 de 2023, dispõe sobre “a capacitação de funcionários de bares, restaurantes, boates, clubes noturnos, casas de espetáculos e congêneres, de modo a habilitá-los a identificar e combater o assédio sexual e a cultura do estupro praticados contra as mulheres”. Neste caso, a formação de funcionários é obrigação dos estabelecimentos. Além disso, é obrigatória a fixação de cartazes ou avisos sobre o atendimento e proteção à mulher em uma situação de risco.

    Neste caso em específico, em âmbito federal as campanhas e a formação são obrigação do poder público (Artigo 8º), enquanto no âmbito estadual são de obrigação dos estabelecimentos. E na lei estadual de São Paulo, não há protocolo estabelecido para socorrer e proteger as vítimas. São leis que versam sobre um tema próximo, mas com procedimentos (e, possivelmente, resultados) diferentes.

    Problematizações necessárias: vulnerabilidades e restrições

    Desde que a lei foi promulgada, alguns eventos importantes aconteceram e, além disso, outras questões anteriores já se faziam importantes (e se relacionam aos eventos recentes…). Falarei primeiramente do caso do ex-jogador de futebol Daniel Alves e, posteriormente, da cultura de estupro.

    Lei Solo Si es Si e protocolo No Callen, no caso de Daniel Alves

    O caso do ex-jogador de futebol Daniel Alves por estupro em um bar, em Barcelona, foi decorrência da aplicação do protocolo No Callem e da lei Solo Si es Si, comentada anteriormente. A vítima, ao final do julgamento, falando “acreditaram em mim” é a demarcação de um protocolo seguido – de não duvidar da vítima em relação à violência. Seguir o protocolo é, neste sentido, suporte e proteção imediata da vítima. Junto a isto, uma condição para apuração e investigação da violência.

    A presunção de inocência e a dúvida da existência da violência

    Grande parte dos casos de violência sexual – incluindo abusos e assédios – tem um entrave inicial para denúncias e investigações que é a palavra da vítima sendo colocada em questão. Estes atos intimidam, invalidam e fragilizam a vítima denunciante. Além disso, podem atrasar e dificultar a apuração dos fatos e investigação do caso, uma vez que há, antes de tudo, a dúvida se a denúncia de fato é pertinente.

    Perceba que a presunção de inocência do acusado não é colocada à prova ao se acatar uma denúncia. Mais que duvidar se a vítima foi mesmo vítima torna a denúncia frágil, por não se acreditar que a violência ocorreu. E são estas situações que o protocolo visa diminuir (e eventualmente acabar). Ao implementar um procedimento em que a vítima deve ser escutada e levada em consideração, a ideia é exatamente não duvidar de que uma violência ocorreu e criar a condição para que uma investigação aconteça.

    Dessa forma, nem tudo são flores e, como diz Fhoutine Marie, não… Nós não dormimos em um mundo de opressão e, quando acordamos, o feminismo finalmente venceu. Bem pelo contrário, como ficou muito evidente posteriomente, não basta que uma vítima seja escutada e a justiça condene. A precificação da liberdade – em especial quando se trata de uma violência sexual – traz à tona o quanto nossa sociedade ainda entende este tipo de violência como algo menor. E se vincula (e fortalece) o que conhecemos como cultura do estupro – temática que já abordamos em outros momentos por aqui…

    Cultura do estupro, perigos do bar e o mito da destruição da vida do acusado

    Quando vemos o debate acerca de estupro, violência sexual, assédio sexual ou abuso sexual, a horda que pergunta às vítimas “o que roupa estava vestindo”, “o que estava fazendo lá”, “por que não se defendeu” sempre se faz presente.

    Aparentemente, o mundo segue não sendo possível de se viver, sem que vítimas sejam postas em questão e mulheres possam existir sem riscos. Recentemente, quando eu vejo estes debates, não consigo pensar em nada mais além do vídeo de Jana Viscardi sobre “o álcool ser muito perigoso”.

    Tudo é muito perigoso, menos o agressor em si.

    Quando falamos de cultura de estupro, não estamos falando de casos isolados – e muitas vezes não estamos nem falando do ato do estupro em si. Mas dos inúmeros acontecimentos cotidianos de nossa cultura e sociedade, de culpabilização de vítimas da violência (em geral mulheres) e apoio a pessoas violentas (em geral homens).

    Falar em cultura é falar de tudo o que envolve a produção de sentidos, significados e identidades de uma sociedade. E cultura do estupro diz respeito ao quanto nossa sociedade normaliza a violência sexual.

    E a nossa sociedade normaliza a violência sexual todos os dias

    E o que tudo isto tem a ver com a Lei Não é Não? 

    Uma das surpresas da lei promulgada foi a retirada de alguns estabelecimentos da lei e, além disso, a centralidade (e necessidade) da venda de bebidas alcoólicas para validar a violência, no texto final da lei. Algumas questões ressoam continuamente para mim, citadas a seguir:

    • Ao acaso é apenas nestes casos que a violência acontece?
    • E nos cultos e festas religiosas, não existe violência sexual nunca?
    • De onde veio esta demarcação no texto final da lei?
    • Quais os efeitos sociais, na prática, da retirada de bares e restaurantes da lei?

    Ao que tudo indica, só é possível ocorrer violência sexual em espaços fechados, escuros e lotados, além de regados a bebidas alcóolicas. Tal como o imaginário social parece ainda imperar, tais violências não estariam presentes em espaços públicos amplos – incluindo cultos – em que todos têm intenções puras e não há lugar para algo tão grave impetrado contra mulheres. Será mesmo? Conforme apurado pela Agência Pública em 2019, a denúncia mais comum contra lideranças religiosas é de violência sexual. 

    A limitação de outros estabelecimentos também é uma questão. Faz sentido retirar estabelecimentos comerciais da adoção deste tipo de protocolo que protege vítimas de violência sexual? O texto do PL original trazia uma grande quantidade de espaços em que os protocolos deveriam ser adotados, não condicionando à venda de bebidas alcóolicas. 

    em discotecas ou estabelecimentos noturnos, eventos festivos, bailes, espetáculos, shows, bares, restaurantes, ou qualquer outro estabelecimento de grande circulação de pessoas”

    Dizia o texto original. Precisamos assumir que as vulnerabilidades à violência sexual estão em nossa sociedade. Não se restringem a atos isolados e lugares específicos, não são vinculados às ruas escuras. A violência se faz na rotina, no descrédito às vítimas, na necessidade da boa vontade de quem atende a denúncia, na compreensão de que a violência desdenha dos limites e fronteiras de estabelecimentos em que a versão final da lei descreveu.

    O que poderia ser uma importante etapa para debatermos uma mudança social acerca da cultura do estupro, parece ter-se tornado a delimitação de onde a violência ocorre, com disputa de poderes entre bancadas eleitas.

    Após a publicação do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e o Relatório Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, em 2023, em que a violência contra mulheres é notificada como a maior de todos os tempos, vemos se esvair o debate sobre a segurança em espaços públicos.

    Mais uma vez somos tomadas pelo sentimento de que não é (e nunca foi) sobre as vítimas que sofrem violência

    Para Saber Mais

    ABREU, R (2023) Relatório Projeto de Lei nº 3 de 2023, Apresentação: 01/08/2023 18:29:03.437 – PLEN PRLP 1 => PL 3/2023, PRLP n.1 Câmara de Deputados

    ARNT, AM (2018) Sobre a Cultura do estupro: senta aqui, vamos conversar, Blog PEmCie

    ___ (2020) Nós, Mulheres, como a cigarra: uma nota sobre a cultura do estupro, Revista Blogs Unicamp, V6, N11

    ___ (2022) Cultura do estupro, rotina e nossa existência cotidiana, Revista Blogs Unicamp, V8, N10. 

    BBC NEWS MUNDO (2022) “Solo sí es sí”: en qué consiste la nueva y polémica ley de consentimiento sexual en España, BBC NEWS MUNDO, 26 de Agosto de 2022.

    BRASIL (2023) Lei n. 14786/2023.

    ___ (2023) PL 2/2023, Propostas Legislativas, Câmara dos Deputados

    BUENO, S, MARTINS, J, LAGRECA, A, SOBRAL, I, BARROS, B, BRANDÃO, J (2023) O crescimento de todas as formas de violência contra a mulher em 2022, In: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, p136-145.

    BUENO, S, MARTINS, J, BRANDÃO, J, SOBRAL, I, LAGRECA, A (2023) Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil, In: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

    CANAL UOL (2024) Vítima de Daniel Alves chora ao ouvir sentença ‘eles acreditaram em mim’ UOL, 22 de Fevereiro de 2024

    FONSECA, B (2019) Governo registrou 167 denúncias de violação sexual por líderes religiosos em três anos, Agência Pública, 25 de Junho de 2019.

    FONSECA, PAA, ALVES, VL,  LIMA, LM (2017) Cultura do Estupro: uma análise de conteúdo sobre a percepção dos usuários via Twitter, Revista Idealogando, v1, n1, p75-84.

    LEOCADIO, B (2023) Projeto de Lei 2614/2023, Brasil, Congresso Nacional.

    MARIA, V (2023) Daniel Alves precisa aprender que “solo si es si”, EBC Radios, 25 de Janeiro de 2023.

    MARIE, FHOUTINE (2023) O feminismo publicitário venceu, agora ele precisa acabar, Interesse Nacional, 26 de Abril de 2023.

    ___ (2024) ‘Eles acreditaram em mim’ – o caso Daniel Alves e o Brasil, Interesse Nacional, 6 de março de 2024.

    ROSÁRIO, M (2023) Projeto de Lei n3 de 2023, Brasil, Congresso Nacional.

    SCHOSSLER, A (2023) O que é o protocolo No Callem, aplicado no caso Daniel Alves, DW em destaque,  25 de Janeiro de 2023.

    SOUZA, RF (2017) Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres, Revista Estudos Feministas, 25(1), 9-29

    TV CAMARA (s/d) Entenda o Processo Legislativo, Brasil TV Câmara

    VISCARDI, J (2023) O ÁLCOOL É MUITO PERIGOSO? | JANA VISCARDI

    Sobre quem escreveu

    Ana de Medeiros Arnt é Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência! 😉

    Como citar:  

    ARNT, Ana de Medeiros. (2024). Lei “Não é Não”: algumas ideias para pensar. Revista Blogs Unicamp, Vol.10, N.1, Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/lei-nao-e-nao-algumas-ideias-para-pensar/. Acesso em: DD/MM/AAAA

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Freepik [original]

    Letras e edição: clorofreela

  • Raça, classe e fascismo no Brasil

    Raça, Classe e fascismo no Brasil

    Autor

    Gustavo Zullo

    De início, é importante destacar que este texto foi elaborado inicialmente como uma sequência de alguns ensaios, que para a edição final da revista foram reorganizados em um só texto. Neste ensaio, verso sobre os eixos de um projeto de pesquisa que articula raça, classe e fascismo.

    O texto está dividido em três partes. Nesta primeira parte, apresento alguns determinantes sociais, socioeconômicos e psicossociais importantes para entender a estrutura da segregação social no Brasil, do que destaco a formação do trabalho informal e suas relações raciais. Na segunda parte, determinantes econômicos nacionais e internacionais, me detenho no período mais recente, em que articulo a estrutura social apresentada aqui a alguns aspectos da economia contemporânea nacional e internacional. Já na terceira parte, violência e autoritarismo no Brasil, organizo o texto a partir da estrutura socioeconômica brasileira apresentada nos dois primeiros textos para estabelecer alguns nexos importantes do fascismo brasileiro contemporâneo.

    Determinantes sociais, socioeconômicos e psicossociais

    O padrão de exploração do trabalho no Brasil se consolidou como uma adaptação das formas de proscrever e marginalizar o negro forjadas na colonização e adaptadas ao regime de classes sociais (Fernandes, 1965, vol I). A extrema intolerância ao conflito, típico da sociedade moderna que conviveu por mais tempo com a escravidão, desaguou em um padrão de exploração do trabalho assalariado que não generalizou o trabalho como elemento de classificação social. O trabalhador de baixa escolaridade e que não possuía maior especialização foi obrigado a buscar estratégias de sobrevivência, o que hoje é identificado à informalidade e ao emprego informal (Fernandes, 1968; Portugal Júnior, 2012). Ao contrário das economias capitalistas desenvolvidas, essa sempre foi a norma da economia brasileira, acostumada a conviver e articular estas duas dimensões da existência social, o que muitas vezes foi confundido com dualidade.

    Essas formas de atrofiar o elemento do trabalho no Brasil não apenas se baseou na exploração do trabalho escravo, que consolidou um nível tradicional de vida muito baixo, como preservou o negro na parte de baixo da pirâmide social. Em outras palavras, o nível de exploração da escravidão no Brasil e o nível tradicional de vida do escravo se constituíram no parâmetro histórico da constituição e consolidação do padrão de exploração do trabalho assalariado. Ao mesmo tempo, na medida em que as hierarquias raciais foram preservadas, o trabalhador negro teve de se contentar com as posições sociais que na maioria das, sob o regime de classes, não classificava nem valorizava socialmente o indivíduo. Nos primeiros 50 anos após a abolição praticamente não havia indivíduos negros que trabalhavam como médico, dentista, jornalista, proprietário de pequeno comércio, etc. E os pouco que superaram a barreira imposto pelo preconceito e discriminação o fizeram sob grande terror psicológico em meio às formas adaptadas de proscrever o negro.

    O movimento negro que se consolidou nos anos 1930, embora de orientação varguista, foi importante para impulsionar mudanças neste padrão (Fernandes, 1972). Embora este movimento tenha alcançado uma parcela relativamente reduzida da população negra naquele momento, ele foi o gérmen de movimentos importantes, como o Teatro Experimental do Negro, o TEN, liderado por Abdias Nascimento. Essas e outras expressões do movimento negro no Brasil foram importantes para educar a população negra a navegar no regime de classes, inclusive no que se refere a ocupar melhores postos de trabalho, e a criar redes de proteção e amparo social e psicológico (Fernandes, 1965, vol. II). Mais que isso, esse movimento educou também o branco que, em alguma medida, teve que aprender a conviver com o negro no trabalho, no sindicato e em outros lugares sociais novos para o negro – o que não significa que esta convivência estivesse livre de formas de proscrever o negro. Se o golpe militar de 1964 e outros processos autoritários não tivessem concorrido para a sua interrupção e articulação com outros movimentos mais amplos de luta pela democracia no Brasil, talvez hoje vivêssemos uma sociedade mais livre e afastada do fascismo. Além de possíveis benefícios sociais, econômicos e políticos, a consolidação de formas mais tolerantes e construtivas de vida seguramente teria conformado indivíduos psiquicamente mais inteiros, isto é, menos cindidos pelas frustrações que estruturam a psique autoritária (Reich, 1933).

    Pintura de uma senhora, branca, sentada em um sofá, com uma criança. Ao seu redor há três pessoas negras, e dois bebês. As pessoas estão trabalhando (costurando e servindo). Os bebês estão no chão, brincando, sem roupa.
    Uma Senhora Brasileira em seu Lar. 1823, Jean-Baptiste Debret. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023.

    De todo modo, a história não levou a uma modificação significativa do padrão de exploração do trabalho nem da convivência social. Pelo contrário, as formas violentas de impor padrões, além da própria violência desses padrões em si mesmos viabilizaram a continuação de estruturas senhoriais e escravistas em meio à democracia formal no Brasil.[1] A estrutura da segregação social no Brasil, inclusive no que se refere a sua fundamentação racial, não foi modificada (Fernandes, 1975).

    Não apenas a expansão da riqueza preservou uma enorme concentração de renda, riqueza e poder, como estes continuaram a ser processos fortemente racializados. Embora as possibilidades de ascensão social tenham sido aproveitadas senão por alguns poucos indivíduos brancos e negros, a escala em que estes o fizeram foi enormemente inferior, evidenciando o racismo das estruturas de poder que controlam e estabilizam a hierarquia social no Brasil. Não por outra razão a informalidade no país possui uma cor, que é a cor negra de milhões estigmatizados pela cor de sua pele e por toda e qualquer expressão cultural de matriz africana, que é um dos gatilhos do que Florestan Fernandes denominava como medo-pânico. Desta maneira, não só as possibilidades racializadas de ascensão social evidenciam a natureza da segregação no Brasil, como a articulação destes processos segregacionistas, de raça e classe, aproximam o país de uma divisão que autoriza gestões sociais autoritárias.

    Determinantes econômicos nacionais e internacionais

    A partir de agora, exploro alguns determinantes econômicos mais recentes, nacionais e internacionais, que concorrem para fazer do negro o principal alvo da precarização do trabalho, do que enfoco as formas de trabalho em plataformas de aplicativo. De outro modo, o racismo foi preservado como fator estruturante das relações de classe no Brasil, o que contribuiu para a modernização de um nível tradicional de vida que não só é muito baixo como, ao longo do tempo, vem se mostrando profundamente rígido.

    Embora a industrialização tenha viabilizado alguma ascensão social para parte do proletariado, ela tendeu a beneficiar trabalhadores brancos. Em sua maioria, a população negra ficou de fora deste movimento ascensional que, não bastasse os seus problemas, foi interrompido pela ditadura militar. Segundo Furtado (1972)[2], a repressão social, cultural e política inviabilizou qualquer aumento da participação do proletariado na renda nacional durante o Milagre, que associou crescimento extraordinário do produto com arrocho salarial. Em outros termos, o regime militar limitou severamente o trabalho como instrumento de valorização e prestígio social para o proletariado, o que foi espacialmente danoso para o negro, cercado por obstáculos econômicos, sociais, culturais e psicológicos ainda piores que os que cercam a população em geral.

    Imagem em que no primeiro plano aparecem vários rostos de trabalhadores, ocupando o canto esquerdo, em uma diagonal. Os trabalhadores estão de máscara, capacetes e mochilas semelhantes às de entregadores de refeição por aplicativo. Atrás, em segundo plano, prédios.
    Arte: crisvector. Fonte: https://ctb.org.br/trabalho/precarizacao-do-trabalho-um-campo-fertil-para-a-extrema-direita/ Acessado em: 11/04/2023.

    A industrialização liderada pelo capital internacional e pela autocracia burguesa, portanto, pioraram uma situação que ainda viria a se degenerar com a Crise da Dívida e outros elementos que crescentemente obsoletizaram o parque industrial brasileiro e facilitaram a ladeira abaixo que seria a desindustrialização iniciada nos anos 1990 (Suzigan, 1992; Espósito, 2016).

    Já sob o neoliberalismo, precarizaram-se as condições socioeconômicas da classe trabalhadora brasileira, cada vez mais distante do trabalho formal. A perda de elos da cadeia produtiva e de graus de autonomia da política econômica, aprofundadas no Plano Real, aumentaram a participação do desemprego e do trabalho informal (Pochmann, 2001). Pior, conforme a população crescia num contexto de baixo crescimento, o estoque de desempregados e informais cresceu assustadoramente durante a Década Perdida e os anos posteriores de estagnação econômica. Esses processos fragilizaram os movimentos sindicais e gerou novas formas de estranhamento do trabalho no Brasil e no mundo (Zullo e Duarte, 2012).

    Nem mesmo as gestões dos governos do PT reverteram substantivamente esta tendência. Embora a formalidade tenha crescido, forçando uma redução da taxa de informalidade e do desemprego, os seus estoques não foram reduzidos a contento, o que evidencia a fragilidade deste processo. Não só os salários dos empregados formais que se abriram se concentraram na faixa de até 2 salários mínimos como ocorreu sob um contexto de aprofundamento da desindustrialização (Zullo, León, 2020). A economia não ofereceu meios para se sustentar uma melhora da estrutura de ocupações, particularmente danosa à população negra (Almeida, 2021).

    Não obstante estes desafios, as relações de trabalho pioraram sensivelmente. Alguns dos processos mais assustadores foram (i) o aumento de contratos de curto prazo, inclusive de trabalhadores formais, e (ii) o aumento das formas flexíveis de contratação. Além disso, destaco aqui a reforma trabalhista de 2003, que agravou o futuro de toda a classe que vive do trabalho. Assim como em outras partes do mundo, também duramente golpeadas pela ofensiva neoliberal, desde os anos 1990 vem se obrigando a classe trabalhadora a tolerar a incerteza e a assumir e defender a gerência individual dos riscos de sua própria existência (Dardot, Laval, 2016). Isto é, o neoliberalismo tem aflorado posturas autoritárias de trabalhadores frustrados e amedrontados pela ameaça do desemprego e, de modo geral, pela aproximação de um futuro desbotado.

    Para além da EC 95/2016, que aprofundou a tendência estrutural de estagnação das condições socioeconômicas da classe trabalhadora, levando milhões ao desemprego e à informalidade, revertendo os já frágeis avanços dos governos do PT, essa situação se agravou com o alargamento da indústria 4.0. Sobretudo as plataformas digitais, atualmente as maiores empregadoras do país, aproveitaram da miséria da classe trabalhadora brasileira, tributária de um padrão de vida em que a herança da escravidão ainda é muito importante, e oferecem condições de trabalho e remuneração inadequadas a uma vida digna. Embora existam diferentes situações, um dos piores cenários conduziu à formação de uma enorme massa de entregadores de plataformas digitais sem direitos.

    Segundo relatório recente da CUT/OIT/IOS, 68% destes trabalhadores são homens negros, evidenciando muito bem quem são os principais impactados pela regressão das forças produtivas no país. As estratégias mais precárias de sobrevivência são “aproveitadas” precisamente pelos trabalhadores que balizaram um nível de vida extremamente baixo, o qual procurei associar à marginalidade social e ao trabalho informal. Ou seja, os negros continuam ocupar esta posição social mesmo depois de passados quase 135 da Abolição.

    Esta, portanto, não é uma questão de conjuntura nem é “meramente” identitária. Esta é uma questão estrutural do trabalho no Brasil. Elevar as condições de trabalho e remuneração do negro é elevar as condições de trabalho e remuneração de todos os trabalhadores no Brasil. Isto é, além de políticas econômicas que mirem o crescimento, é preciso não só regular o trabalho de modo a reduzir drasticamente a quantidade de contratos flexíveis e outros problemas, como também é urgente se reforçar ações afirmativas e estimular a conscientização sobre a questão racial como peça chave para se elevar o nível de vida da população como um todo. Ou seja, não se trata “apenas” de civilizar o mercado de trabalho, mas, sim, de democratizar o Brasil.

    Violência e autoritarismo no Brasil

    A terceira e derradeira parte desta sequência avança mais diretamente sobre a questão do fascismo no Brasil a partir de uma apresentação da formação histórica do país e sua estrutura autoritária e violenta, o que se confunde com a escravidão e a exploração do trabalho que nos é peculiar. Em suma, apresento um brevíssimo ensaio que articula a história do trabalho no Brasil à forma que o fascismo assume neste espaço e neste tempo. Para tanto, avanço sobre a forma, a morfologia e a estrutura da exploração do trabalho que funda a colônia, o que dialoga sobretudo com o primeiro artigo desta sequência. Em seguida, num salto histórico, discuto algumas razões macro-estruturais que nos ajudam a entender a ascensão do fascismo brasileiro e seus nexos com o mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo.

    Dentro desta perspectiva, é fundamental destacar que a colonização brasileira impôs a escravidão mercantil de africanos e indígenas como padrão de exploração do trabalho e como fundamento do controle militar do território e da restrição do prestígio e da valorização social aos colonos e seus herdeiros (Fernandes, 1976). De certo modo, a formação do Estado brasileiro obedece à análise de Engels, para quem a orientação étnica e racializadora determina quais serão os grupos no poder, assim como as suas adjacências e os grupos que serão, racializados, inferiorizados e explorados. Mais que isso, observa-se que, do ponto de vista individual e social, constituem-se hierarquizações absolutamente afastadas de formas democráticas de existência (Fernandes, 1965). No lugar de passos convergentes à homogeneidade e respeito pela diversidade, acentuaram-se o medo, a violência e a perseguição paranoica (o medo-pânico) de tudo que pode desestabilizar um castelo de cartas forjado e preservado por castas e estamentos que foram absorvidos pelo regime de classes (Fernandes, 1975). Isso evidencia a articulação entre elementos políticos e psicossociais, como denominava Florestan Fernandes.

    No Brasil moderno, essa estrutura de poder adaptada da colônia integrou o negro na sociedade de classes sem descongelar a descolonização, evidenciando seu vigor e capacidade coletiva para desenvolver a cultura de forma acumulativa e segura. Esta estrutura se desenvolveu sem se desligar socialmente do passado, que é renovado e reafirmado por novos agentes sociais que emergem na história como adaptações dos colonizadores. De tal modo, o poder político e econômico no regime de classes foi preservado como uma estrutura burguesa ainda ligada a princípios e técnicas de segregação estamental e de casta.

    O fim da escravidão não foi seguido por nenhuma forma de reparação, deixando o negro livre para viver em uma sociedade absolutamente hostil a ele. Esse processo se constituiu como a adoção de uma determinada maneira de deixar negros morrerem sem que se abdicasse por completo de exercícios organizados de extermínio da população negra mesmo sob o regime de classes. Aqui, biopolítica e necropolítica se combinam e se complementam e, sempre que se entende ser necessário, a burguesia suspende direitos, o que se expressa no famigerado AI-5 e nas incursões frequentes da PM às favelas e espaços racializados e miseráveis. Não por acaso, os efeitos particularmente perversos destes processos acometem lideranças ideológicas e a população negra ou, de outro modo, os inimigos internos reais, potenciais e fantasmagoricamente preventivos do poder instituído no Brasil. Nesse sentido, Florestan Fernandes expõe a tendência da autocracia burguesa no Brasil conduzir à fascistização do Estado nacional e seus mecanismos de controle social, cultural, econômico e político (Fernandes, 1981), ao que acrescentaria a tendência em gérmen, porém sempre presente, deste processo ganhar contornos de massa.

    Em momentos de crise, como o que vivemos hoje, com aumento da concorrência no mercado de trabalho, estas tendências emergem com força ainda maior. Estes processos tendem a sublevar com mais força as tensões estruturais, como são o preconceito e discriminação raciais no Brasil, mas também outras que são denominadas de forma um tanto pejorativa como pautas identitárias e que tendem a ser desarticuladas de temas como trabalho e valor. Isto é, questões socioeconômicas tendem a acirrar conflitos da psique de ordem individual e coletiva, sobretudo quando uma determinada conjuntura, como a atual, já vinha sendo marcada pelo aprofundamento de tensões identitárias (Haider, 2017; Almeida, 2018) antes mesmo do acirramento da disputa no mercado de trabalho. As dificuldades próprias da garantia pela sobrevivência, sobretudo em um mundo que impôs a concorrência como eixo organizador da vida, fazem com que a atual conjuntura do Brasil, considerados os seus problemas estruturais, se assemelhem a uma tragédia anunciada.

    Foto com uma estrutura de metal, formando um palanque, com pessoas falando ao microfone e, abaixo, de costas, várias pessoas escutando. Todas elas vestidas com as cores da bandeira brasileira. Há placas escrito "s.o.s. forças armadas" e "intervenção militar já"
    Foto fonte: https://intersindicalcentral.com.br/

    Parece não haver outro horizonte que não o de uma catástrofe social, econômica, política e cultural – para não entrar nas questões ambientais que hoje se mostram mais do que urgentes. Esse conjunto de coisas favoreceu que a rápida deterioração do horizonte social de amplas e heterogêneas frações da classe trabalhadora insuflasse afetos avessos à coesão social dentro de uma conjuntura complexa. Isto é, o esgotamento do breve ciclo de expansão econômica no início do século XXI, contraditoriamente acompanhado pelo aprofundamento da desindustrialização, acirrou tensões sociais que silenciosamente ganhavam uma massa de trabalhadores precários e sem perspectiva. Não que pessoas conservadoras bem remuneradas e com emprego estável não venham a aderir ao fascismo no Brasil. Pelo contrário, aderem também em grande número. Mas a questão para aqui é que sem essa dimensão de precarização socioeconômica, dificilmente o fascismo teria ganhado proporções de massa no Brasil e em outros lugares do mundo.

    Ressentimentos relacionados a novas dinâmicas normativas dos “corpos, desejos, sexualidade e identificações” (Safatle, 2023), do que a luta antirracista é um capítulo especial no Brasil, se somam à regressão das forças produtivas e à reafirmação da autocracia burguesa. Juntos, produzem um movimento de massas que exige de forma violenta a retomada de uma ordem mítica, configurando o fascismo brasileiro no século XXI.

    Para Saber Mais

    AGAMBEN, Giorgio (2004) Estado de exceção, São Paulo: Boitempo.

    ALMEIDA, Pedro (2021) Capitalismo dependente e o negro na sociedade de classes Elementos para uma análise histórico-estrutural da raça, emprego e salário no Brasil (1980-2010). Campinas: IE-Unicamp (dissertação de mestrado).

    ALMEIDA, Sílvio (2018) O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento.

    CUT; IOS (2022) Condições de trabalho, direitos e diálogo social para trabalhadoras e trabalhadores do setor de entrega por aplicativo em Brasília e Recife, São Paulo: Central Única dos Trabalhadores.

    DARDOT, Pierre, LAVAL, Christian (2016) A nova razão do mundo, São Paulo: Boitempo.

    ENGELS, Friedrich (1884) As origens da família, da propriedade privada e do Estado, São Paulo: Centauro, 2004.

    ESPÓSITO, Maurício (2016) A importância do capital internacional nas transformações da estrutura produtiva brasileira. Da industrialização à desindustrialização, Campinas: IE-Unicamp (dissertação de mestrado).

    FANON, Frantz (1952) Pele negra, máscaras brancas, Salvador: EDUFBA, 2008.

    __________ (1961) Os condenados da terra, Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

    FERNANDES, Florestan (1946) Introdução, In: MARX, Karl Contribuição à crítica da economia política, São Paulo: FLAMA, pp 7-28.

    __________ (1972) O negro no mundo dos brancos, São Paulo: Global, 2007.

    __________ (1965) A integração do negro na sociedade de classes – vols I e II, São Paulo: Editora Globo, 2008a.

    __________ (1975) A revolução burguesa no Brasil Ensaio de interpretação sociológica, São Paulo: Editora Globo, 2005.

    __________ (1976) Circuito fechado Quatro ensaios sobre o poder institucional, São Paulo: Global, 2010.

    __________ (1968) Sociedade de classes e subdesenvolvimento, São Paulo: Global, 2008b.

    FOUCAULT, Michel (1976) Em defesa da sociedade Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp 75-98.

    FURTADO, Celso (1972) Análise do ‘modelo’ brasileiro, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

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    MBEMBE, Achile (2018) Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte, São Paulo: n-1 edições, 2018.

    POCHMANN, Marcio (2001) A década dos mitos, São Paulo: Contexto, 2001.

    PORTUGAL JÚNIOR, José Geraldo (2012) Padrões de heterogeneidade estrutural no Brasil, Campinas: IE-Unicamp (tese de doutorado), 2012.

    REICH, Wilhelm (1933) Análise do caráter, São Paulo: Martins Fontes, 2001.

    SAFATLE, Vladimir (2023) Violências e libido. Fascismo, crise política e contrarrevolução molecular, Revista Estilhaço, nº 1, 2023.

    SUZIGAN, Wilson (1992) A indústria brasileira após uma década de estagnação: questões para política industrial, Economia e Sociedade, Campinas, vol1, pp 89-109, agosto.

    TAVARES, Maria da Conceição e SERRA, José (1971) Más allá del estancamento: Una discusión sobre el estilo de desarrollo reciente, El Trimestre económico, México, vol 38, n 152, pp 905-950, outubro/dezembro.

    ZULLO, Gustavo e DUARTE, Pedro (2012) Crise do capital, desemprego estrutural e novas formas de estranhamento do trabalho, CEMARX, Campinas.

    ZULLO, Gustavo e LEÓN, Jaime (2020) As determinações da desindustrialização sobre o mercado de trabalho na fase terminal da Nova República, In: PERRUSO, Marco, SANTOS, Fábio, OLIVEIRA, Marinalva, O pânico como política: O Brasil no imaginário do lulismo em crise, Rio de Janeiro: Mauad X, 2020, pp 167-180.


    [1] Para uma inspiração mais geral desse processo, que não se restringe ao Brasil, ver Fanon (1952, 1961).

     [2] Esta é uma peça central do debate de Furtado (1972) com Maria da Conceição Tavares e José Serra (1971).

    Sobre o autor

    Gustavo Zullo é economista, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp.

    Como citar:  

    ZULLO, Gustavo. (2023). Raça, classe e fascismo no Brasil. Revista Blogs Unicamp, Vol. 9, n.2, 2023. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/11/29/raca-classe-e-fascismo-no-brasil/. Acesso em: dd/mm/aaaa.

    Sobre a imagem destacada:

    Imagem de Freepik. Arte por Juliana Luiza.

  • Mundialização do capital

    Adicione o texto do seu título aqui

    Autores

    Texto publicado por Leonardo Dias Nunes

    Como citar:  

    Dias Nunes,Leonardo (2023) Mundialização do capital. Revista Blogs Unicamp, V.09, N.01, 2023. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/08/04/mundializacao-do-capital/
    Acesso em dd/mm/aaaa
    Sobre a imagem destacada:

    Sobreposição de imagens: à direita pessoa segurando dólares americanos e no fundo há dólares espalhados uniformemente na imagem.

    Atribuição:

    Arte por Juliana Luiza e Clorofreela.

  • Media Training: O que é e como se utilizar desse recurso?

    Adicione o texto do seu título aqui

    Autores

    Texto escrito por Roberta Campos

    Como citar:  

    Campos, Roberta (2023) Media Training: O que é e como se utilizar desse recurso?. Revista Blogs Unicamp, V.09, N.01, 2023. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/08/02/media-training-o-que-e-e-como-se-utilizar-desse-recurso/ 
    Acesso em dd/mm/aaaa
    Sobre a imagem destacada:

    Fotografia de repórteres de diversas idades apontando câmeras e microfones para o interlocutor

    Atribuição:

    Foto disponível em Pexels, arte por Juliana Luiza e Clorofreela.

  • Mais segurança e infraestrutura para aumentar usuários de ciclovias

     As ciclovias crescem no país como forma alternativa e saudável para a locomoção nas grandes cidades, cujo trânsito entope as principais vias de acesso deixando a vida mais estressante, poluída e demorada. De acordo com dados do Mobilize, portal da Orcip Associação Abaporu para questões de mobilidade, as dez cidades com mais ciclovias no Brasil somam mais de 2 mil quilômetros de extensão. Em Curitiba, reconhecida pelo investimento em sustentabilidade e mobilidade urbana, desde 2013 há 190 km de ciclovias para os cerca de 1,9 milhão de habitantes.

  • O santo padroeiro dos cientistas

    Por mais frio, racional e calculista que um ser humano possa pensar ser, na hora que a coisa fica preta, como quando a FAPESP rejeita a sua prestação de contas ou quando a revista rejeita seu artigo na reta final para a defesa do Doutorado, vale tudo! Até apelar para a ajuda dos santos católicos. Por isso não se desespere jovem cientista. Você tem sim a quem recorrer: São Alberto Magno, o padroeiro dos cientistas.

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