Categoria: Conhecimento científico para entender pandemia

  • SARS e Neo-Cov: sobre morcegos, pangolins e a família dos coronavírus

    Texto por Mellanie Fontes-Dutra, Lívia Okuda Santos e Ana de Medeiros Arnt

    Coronavírus: é uma família de vírus? De onde vêm? A quem infecta? Tem vírus novo? Os morcegos têm culpa no cartório? Pois bem, hoje vamos responder estas e mais algumas dúvidas no texto do Especial de hoje.

    O que é Coronavírus?

    O Coronavírus é uma família de diferentes vírus existentes na natureza. Alguns infectam humanos e outros não. Assim, nesta família viral, existem alguns vírus que causam resfriados e outros que podem causar síndromes respiratórias graves, como COVID-19. Mas temos um novo integrante, recém descoberto, nessa grande família e vamos falar mais dele neste texto!

    Olhando para nossa história, já tivemos pandemias ou risco de pandemias com os coronavírus: pelo SARS-CoV-1 (2002), MERS-CoV (2012) e SARS-CoV-2 (2019). Aliás, as pandemias, como sabemos agora, são eventos causados por patógenos (como vírus ou bactérias) que atingem o mundo inteiro, causando preocupação e danos à saúde da população de muitos países.

    Pode parecer novidade para muitas pessoas, mas existe monitoramento epidemiológico no mundo inteiro de possíveis patógenos pandêmicos, incluindo os diversos coronavírus que encontramos em espécies selvagens ou domésticas. Isto nos ajuda a saber se são ou estão se tornando perigosos para os humanos.

    Então, depois desse background, podemos falar sobre o nosso tema de hoje: Sars e os Neo-Cov. Sendo o primeiro o grupo do nosso conhecido e odiado COVID-19, e o segundo um tipo de coronavírus encontrado recentemente na África.

    Origem do SARS-COV-2: hipótese zoonótica.

    Análises filogenéticas recentes identificaram que os SARS-CoVs provavelmente divergiram de um coronavírus ancestral derivado de morcego entre 1948 e 1982. Filogenia é a área da biologia que estuda a “ancestralidade” dos vírus e seres vivos, a partir de análises genéticas e moleculares, traçando assim sua “história evolutiva”.

    Este estudo sugere que os vírus tipo os SARS-CoVs têm circulado em espécies selecionadas de morcegos há algum tempo. Existem trabalhos que mostraram uma grande semelhança de coronavírus que infectam morcegos com o SARS-CoV-2, apresentando até 96,1% semelhança no material genético, como no caso do estudo recente em Laos.

    Assim, é possível que a linhagem originária do SARS-CoV-2 tenha circulado despercebida em morcegos por décadas. 

    Em outro estudo constatou-se a ocorrência de uma frequente troca de coronavírus entre morcegos. Aliás, é sempre bom lembrar que eles são animais que podem viver aglomerados, podendo gerar uma grande diversidade genética e novas versões de vírus.

    Também é possível que um SARS-CoV tenha evoluído para SARS-CoV-2 em humanos após o chamado spillover de um animal (transbordamento, ou quando um vírus de uma espécie passa a infectar outra espécie diferente) seguido pela rápida transmissão desta cepa (tipo de vírus) adaptada a humanos. Portanto, é um desafio para a comunidade científica estimar a frequência do transbordamento zoonótico.

    Vamos entender melhor como uma pesquisa assim pode ser feita?

    Pesquisadores, em um estudo ainda em preprint, criaram um mapa detalhado de habitats de 23 espécies de morcegos conhecidas por abrigar coronavírus relacionados ao SARS. Nesta pesquisa, sobrepuseram dados sobre onde os humanos vivem para criar um mapa de potenciais pontos de infecção. Visto isso, cerca de 500 milhões de pessoas vivem em áreas onde podem ocorrer spillovers, incluindo o norte da Índia, Nepal, Mianmar e boa parte do Sudeste Asiático. Logo, esta informação pode nos dar pistas de locais em que essa vigilância precisa ser frequente e fortificada.

    Interessante, não? Uma pesquisa que vai não só analisar habitats de animais infectados, mas relacionar-se às populações humanas que podem ter contato frequente com estes animais. Este é um dos modos de realizarmos monitoramentos e termos dados mais precisos (e constantes) de riscos para nós.

    Quer dizer que o vírus não foi feito pelos laboratórios chineses comunistas?

    É isso mesmo, ao que tudo indica a origem do SARS-CoV-2 é natural, de morcegos ou outros animais. 

    Essa afirmação pode ser compreendida melhor com o artigo que relata um vírus muito relacionado ao SARS-CoV-2 já circulava desde 2010 em Camboja. Este artigo adiciona mais uma evidência da origem natural desse vírus. Além disso, mais recentemente, foi descoberto que no norte do Laos alguns vírus muito parecido com o SARS-CoV-2 circulam em morcegos, os quais apresentam particularidades que os relacionam muito proximamente ao vírus da COVID-19.

    E esse spillover não dá em nada?

    Segundo o preprint  já citado, e tendo cuidado com as limitações do dado obtido, cerca de 400.000 pessoas estão provavelmente infectadas com coronavírus relacionados à SARS todos os anos, em transbordamentos que nunca se transformam em surtos detectáveis. 

    “Mas por que, se temos todas essas infecções anualmente, não vemos muitos surtos?” 

    Porque a maioria das infecções ocultas têm vida curta e não levam à transmissão, em razão de os vírus não serem bem adaptados aos humanos. Em geral, alguns humanos podem se infectar diretamente do contato com animais, mas acabam não transmitindo a outros seres humanos, acabando ali mesmo com a infecção. O problema é se a frequência delas se tornar alta, o que pode propiciar a transmissão entre seres humanos.

    Ainda, existe outro risco! Muitas dessas infecções, exatamente por serem “novas”, podem gerar diagnósticos errados, exatamente por sintomas que se assemelham a outras doenças. No caso da COVID-19, por exemplo, os primeiros diagnósticos saíam como gripe ou pneumonia, até que se percebesse que existia um novo patógeno infectando ali! Isto também adiciona um viés ao dado. Soma-se a isso toda uma discussão sobre o acesso à saúde que pessoas de regiões rurais possuem, e isso é uma questão importante.

    Só morcego pode passar doença para humano?

    Na verdade não. Em geral, o monitoramento de vírus que podem fazer o spillover aponta que existem vários vírus – de Influenza por exemplo – que indicam outros animais, especialmente aves. A gente já ouviu falar da gripe aviária e gripe suína, que são vírus da família Influenza. Portanto, tanto espécies ditas como “domésticas”, quanto espécies que vivem em ambientes selvagens podem estar envolvidas em spillover

    Mas em se tratando de coronavírus, apesar de os morcegos serem fortíssimos candidatos a reservatórios desta família, não podemos afirmar com certeza se existem ou não outros animais possíveis. No caso do surto de SARS-CoV em 2002, as Civetas foram um provável candidato, por exemplo.

    E aquele bichinho da China, o pan… pe… pebolim?

    Ah, quer dizer o Pangolin? SIM! Existe a possibilidade de o pangolin ter entrado de bobo nessa história. Ou seja, ser um hospedeiro intermediário entre o possível reservatório do vírus (morcego) e nós. Mas ainda precisamos de mais análises para entender se sim, e como isso ocorreu. 

    Essa situação não seria algo improvável, já que algumas famílias de morcegos (como o Rhinolophidae) compartilham algumas dietas com os pangolins na natureza. E por fim, temos fatores ecológicos que propiciaram esses spillovers. Urbanização, deflorestamento, redução de habitats selvagens forçam uma proximidade dessas espécies conosco, favorecendo contatos e exposições.

    Entretanto, analisando os SARS-CoVs, nota-se uma semelhança de mais ou menos 85,5 -92,4% ao SARS-CoV-2 em seu material genético. Além disso, possuem semelhanças intrigantes com o vírus em regiões que são fundamentais para a interação com nossas células. Especificamente, existe uma região do vírus, conhecida como RBD (sigla para receptor-binding domain), que é exatamente onde o vírus se liga com o ACE2 de nossas células, para entrar nelas. Esta região de um SARS-CoV de pangolim tem 97,4% de semelhança com o do SARS-CoV-2, o que é muito intrigante e mostra que existe muito ainda para conhecermos e, também, que a identificação filogenética destes vírus não é tão simples, tendo em vista que pode haver troca de materiais virais em animais hospedeiros. Isto é, os diferentes tipos de coronavírus que infectam um animal, podem trocar materiais genômicos (que conhecemos como recombinações).

    Imagem retirada de: https://www.cell.com/trends/ecology-evolution/fulltext/S0169-5347(20)30348-7

    Mas o Mercado de Huanan tem alguma coisa a ver?

    Vamos falar disso agora! Vimos anteriormente que os morcegos eram o reservatório do ancestral do SARS-CoV-2, certo? Também sabemos que este mercado é conhecido por ter bancas que vendem animais vivos, como o cão-guaxinim, que já foi associado a emergência do SARS-CoV-1 e que é não só suscetível ao SARS-CoV-2, como capaz de transmiti-lo. 

    Aliás, por meio de análises espaciais, um artigo demonstrou que os primeiros casos relatados de COVID-19 em dezembro de 2019 foram distribuídos geograficamente próximos e centrados no mercado de Huanan, em Wuhan. Assim, os autores comentam que essa proximidade de casos ao mercado de Huanan foi, em Dezembro de 2019, maior que o esperado, dada a densidade populacional de Wuhan ou a distribuição espacial dos casos de COVID mais tarde na epidemia, sugerindo o epicentro no mercado.

    Todavia, o mais interessante é que, considerando o próprio mercado, os dados desse trabalho sugerem que um grande número de casos estava ligado ao setor oeste do mercado, onde a maioria das bancas que vendiam animais vivos se concentravam. Somando os dados, é plausível que várias espécies de mamíferos suscetíveis ao SARS-CoV-2 e que poderiam ser hospedeiros intermediários de seus “parentes ancestrais” foram vendidos vivos no mercado de Huanan em novembro de 2019 e podem ter contribuído para a transmissão.

    Pois é! Há indícios de que não foi “uma só infecção”!

    Deste modo, é provável que houvesse vários animais infectados no mercado de Huanan e pode ter havido pelo menos duas “entradas” do SARS-CoV-2 (linhagens A e B) em humanos, com a entrada da linhagem B e algumas semanas após, a linhagem A.

    A linhagem A do vírus, a qual não havia sido encontrada no mercado de Huanan, tem uma associação geográfica imensa com esse mercado, sugerindo que “as linhagens A e B surgiram nesse mercado e começaram a se espalhar para a comunidade residencial de Wuhan”. Dessa forma, os autores dizem que

    “Amostras positivas para SARS-CoV-2 estavam fortemente associadas à venda de mamíferos vivos, particularmente no canto sudoeste do mercado de Huanan, onde amostras ambientais positivas provavelmente foram derivadas de animais infectados”

    Outro artigo concluiu que a circulação de um vírus ancestral em morcegos, que passou a ser capaz de ligar em ACE2, “pulou” para hospedeiros intermediários (animais suscetíveis) que foram comercializados vivos no mercado de Huanan, surgindo as linhagens A e B pouco tempo depois e a infecção em humanos.

    A importância de monitoramentos ambientais e pesquisa básica!

    Sim, voltaremos a este tema, pois além de informações interessantes e fundamentais para compreendermos melhor o mundo que vivemos, também usamos estas informações para entender a importância da pesquisa científica! Recentemente, o vírus Neo-CoV foi encontrado entre morcegos na África do Sul. Cientistas chineses alertaram para esse vírus, no entanto, falta ainda um entendimento maior sobre seu potencial infeccioso. 

    Neo-Cov: quem é e o que sabemos dele?

    Primeiro, um spoiler: não é uma nova variante do vírus da COVID-19, e não é algo novo no geral!

    O Neo-CoV é um outro tipo de coronavírus que foi relatado pela primeira vez em 2012 e em 2015 durante o surto de MERS-CoV que pode usar receptores ACE2 de morcegos, mas não os receptores ACE2 de humanos. E, até o presente momento, não se observou infecção em humanos em sua forma atual, espalhando-se exclusivamente entre os morcegos.

    De acordo com especialistas, as descobertas feitas pelos cientistas de Wuhan não representam um risco para a humanidade no momento atual. Apenas apontam para a necessidade de se acompanhar mais um tipo de coronavírus e sua evolução.

    O Neo-CoV ganhou a atenção da mídia pelo fato de os cientistas chineses disponibilizarem esses dados recentes (e importantes) em um preprint. Assim, este vírus é na verdade um vírus intimamente relacionado ao MERS-CoV que entra nas células através dos receptores DPP4 e pode usar o ACE2

    Finalizando

    Por fim, imagino que não seja possível negar a importância do monitoramento epidemiológico e do investimento nesta ciência, não é? É muito provável que, para praticamente qualquer patógeno zoonótico da vida selvagem, o transbordamento é mais frequente do que anteriormente reconhecido. E precisamos de mais investimento em ciência e vigilância genômica para monitorá-los de maneira pública para que possamos controlar epidemias e evitar que novas pandemias, como COVID-19, apareçam.

    Além disso, também é sempre bom lembrar que não é culpa dos animais estas infecções. Portanto, não deveríamos interferir ainda mais nos habitats deles e causar danos e diminuição das populações silvestres. Os monitoramentos devem ser no sentido de compreendermos quais são os vírus presentes nestes animais e, também, estabelecermos formas de preservação e diminuição de interações que sejam prejudiciais para nós, enquanto espécie, e para estas espécies silvestres.

    Parte das infecções ocorre (e pode ocorrer) especialmente pela invasão de habitats destes animais, aumentando o contato entre seres humanos e espécies de ambientes naturais.

    Para saber mais: 

    LAM, Tommy Tsan-Yuk; JIA, Na; ZHANG, Ya-Wei; et al (2020) Identifying SARS-CoV-2-related coronaviruses in Malayan pangolins Nature, v 583, n 7815, p 282–285, 2020. 

    ‌XIAO, Kangpeng; ZHAI, Junqiong; FENG, Yaoyu; et al (2020) Isolation of SARS-CoV-2-related coronavirus from Malayan pangolins Nature, v583, n7815, p 286–289. ‌

    ZHANG, Yong-Zhen ; HOLMES, Edward C (2020) A Genomic Perspective on the Origin and Emergence of SARS-CoV-2 Cell, v 181, n 2, p 223–227.

    BONI, Maciej F.; LEMEY, Philippe; JIANG, Xiaowei; et al (2020) Evolutionary origins of the SARS-CoV-2 sarbecovirus lineage responsible for the COVID-19 pandemic Nature Microbiology, v5, n11, p 1408–1417. 

    BANERJEE, Arinjay; DOXEY, Andrew C.; MOSSMAN, Karen; et al (2021) Unraveling the Zoonotic Origin and Transmission of SARS-CoV-2 Trends in Ecology & Evolution, v 36, n 3, p 180–184. 

    KUPFERSCHMIDT, ‌SARS-like viruses may jump from animals to people hundreds of thousands of times a year. Science.org. 

    SÁNCHEZ, Cecilia A; LI, Hongying; PHELPS, Kendra L; et al (2021) A strategy to assess spillover risk of bat SARS-related coronaviruses in Southeast Asia. ‌

    FORATO, Fidel (2021) NeoCoV: tipo diferente de coronavírus chama atenção, mas não chegou em humanos Canaltech.

    KUMAR, Ajeet (2021) NeoCov: What is WHO saying about newly discovered coronavirus found in bats? Republic World. 

    WOROBEY, Michael; LEVY, Joshua I; MALPICA, Lorena M; et al (2022) The Huanan market was the epicenter of SARS-CoV-2 emergence, Zenodo, 2022. 

    PEKAR, Jonathan E; MAGEE, Andrew; PARKER, Edyth; et al (2022) SARS-CoV-2 emergence very likely resulted from at least two zoonotic events Zenodo, 2022. 

    Observação 1:

    Este texto foi organizado com informações complementares às publicações de Mellanie Fontes-Dutra

    1. E se eventos zoonóticos como o que provavelmente gerou o SARS-CoV-2 estiverem acontecendo centenas de milhares de vezes por ano?
    2. Sobre o Neo-CoV
    3. Origem do SARS-CoV-2

    Observação 2

    Há trechos desta postagem que são traduções livres de artigos, com adequações de linguagem para melhor compreensão do tema.

    As Autoras

    Ana Arnt é licenciada em biologia, doutora em educação, professora do Instituto de Biologia da Unicamp, coordena os projetos Blogs de Ciência da Unicamp e o Especial COVID-19.

    Livia Okuda é estudante de Farmácia na Unicamp e divulgadora científica do Especial Covid-19 do Blogs Unicamp.

    Mellanie Fontes-Dutra é biomédica, doutora em neurociência e pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Divulgadora Científica na Rede Análise COVID-19. Autora convidada no Especial COVID-19 e parte do projeto Todos Pelas Vacinas.

    Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • COVID-19: faz sentido calcular um único Rt para o Brasil?

    Sempre que era noticiado no jornal que “O Imperial College de Londres recalculou a taxa R para o Brasil” eu me perguntava: mas isso faz sentido? E isso me incomodava porque parecia que cada canto do Brasil estava num momento diferente da pandemia. Moro em Belo Horizonte e, quando Manaus estava colapsando, por aqui estávamos em um momento mais tranquilo. Para mim não fazia sentido… Para responder a essa questão vamos analisar como ocorreu a disseminação da COVID-19 pelo nosso país e fazer uma reflexão sobre a taxa de transmissão do coronavírus no Brasil – o agora famoso R0 (ou seria Rt?). Vem com a gente pra entender isso aí!

    COMO A COVID-19 SE ESPALHOU PELO BRASIL?

    Marcia Castro é uma demógrafa brasileira, professora em Harvard, e publicou um artigo sobre a disseminação da COVID-19 no Brasil. Para a pesquisadora, ao falarmos em número total de casos e de mortes acabamos por esconder as grandes diferenças entre os estados

    Os gráficos abaixo, elaborados por pesquisadores da Fiocruz-MG, cobrem o período de abril a julho de 2020, conseguimos comparar a razão de transmissão (Rt) do vírus SARS-Cov-2 em diferentes cidades do Brasil.

    Vamos falar sobre essa a taxa daqui a pouco, mas aqui conseguimos observar como esse padrão é diferente entre cada um desses locais.
    Texto: número efetivo de reprodução (Re ou Rt) de acordo com a data de notificação, para 12 municípios brasileiros em 2020.
12 gráficos com o eixo vertical contendo valores de Rt (entre 0 e 3), e o eixo horizontal as datas entre 8 de abril e 17 de julho. Os gráficos representam as cidades de Belém, Curitiba, Manaus, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegra, Salvador, Brasília, Goiânia, Recife e São Paulo. O objetivo não são os valores em si, apenas a diversidade do comportamento do Rt.

    O que poderia explicar essas diferenças no padrão de espalhamento da COVID-19? Para Marcia Castro, a falta de uma ação coordenada pelo governo federal, somada a problemas de notificação e a ações locais descoordenadas (como o fechamento de cidades), podem ter contribuído para isso. O que a professora observou em seu trabalho é que, ao longo do tempo, houve um processo de interiorização da doença. Esse processo se deu tanto nos estados quanto no país como um todo – e, também, é o esperado em uma situação de epidemia.

    Explico: A pandemia começa em São Paulo, uma capital com grande movimentação de pessoas que vêm de fora do país, mas também acaba sendo um polo de dispersão para outros estados. Assim a pandemia que chega numa metrópole como SP, inicia seu movimento da capital para o interior do próprio estado, mas também para os demais estados brasileiros. Da capital, a COVID-19 se espalha para as regiões metropolitanas e vai cada vez chegando mais ao interior. Com isso, o que se observa é que, ao longo do tempo, o número de casos e mortes caem nas capitais à medida que sobem no interior do país.

    E é isso que o gráfico abaixo mostra pra gente.
    Texto: Percentual de casos e mortes por covid nas capitais dos estados e demais municípios por semanas epidemiológicas.
Gráfico com eixo vertical contendo percentual de casos ou mortes e o eixo horizontal contendo as semanas epidemiológicas (9 a 41) de 2020. Observa-se a linha de casos e mortes nas capitais saindo de 100% e caindo gradualmente até se estabilizar por volta de 25%. A linha de casos e mortes no interior segue oposta, saindo de 0% e se estabilizando por volta de 75%. As linhas se cruzam por volta da semana epidemiológica 19.

    Observe que a inversão ocorreu a partir da semana epidemiológica 19 (entre os 03-09/05/20) e que, devido ao processo de interiorização, as cidades do interior tiveram mais tempo para se preparar para a chegada da pandemia do que as capitais – assim como, por exemplo, o Brasil teve mais tempo do que países Europeus.

     Vale ressaltar ainda, que essa não é a única forma de dispersão do vírus, ele não chega uma única vez e se espalha. A entrada do vírus numa população pode ocorrer em vários momentos. No Amazonas, por exemplo, a variante Gama do novo coronavírus circulou por um bom tempo no interior do estado e foi constantemente reintroduzida em Manaus. A capital do AM, por sua vez, foi responsável pelo movimento contrário.  

    R0: COMO A GENTE MEDE O QUE ESTÁ ACONTECENDO COM A PANDEMIA? 

    Tendo entendido que a disseminação se deu de forma diferente entre cidades e estados, podemos falar no R0.

    número médio de pessoas que uma pessoa contaminada infecta é chamado de R0 (lemos R-zero) ou de razão básica de reprodução de um vírus. 

    De uma forma mais técnica, essa definição poderia ser “o número de casos que se espera que ocorra em média em uma população homogênea como resultado da infecção por um único indivíduo, quando a população é suscetível no início de uma epidemia, antes que a imunidade generalizada comece a se desenvolver e antes que qualquer tentativa de imunização tenha sido feita”. Um ponto central, importante de ser ressaltado aqui, é a necessidade de que haja contato entre as pessoas dessa população.

    Por exemplo, se uma pessoa contaminada transmite, em média, a infecção para outras 3 pessoas (e assim por diante), temos um R0 com valor de 3. 
    Texto: Em uma situação de R0=3, uma pessoa com o vírus contamina outras 3, que por sua vez transmitem, cada uma, para outras 3.
Esquema representando uma pessoa transmitindo para outras 3. E cada uma para novas 3. Num esquema 1 -> 3 -> 9.

Texto: Ebola, Gripe (2009). R0 = 1,7
Texto: Poliomielite, Difteria, Caxumba, Rubéola, Varíola. R0 = 7
Texto: Sarampo: R0=18; Coqueluxe: R0 = 18
Para cada um dos textos, um esquema mostrando uma pessoa transmitindo vírus para 2 ou 7 ou 18 pessoas.

    É importante conhecermos o R0 de diferentes infecções virais para estabelecermos as estratégias de combate à infecção. Na imagem acima, observamos os valores estimados de R0 para diferentes doenças causadas por vírus. Ah! Veja bem, quando falamos do R0, nos referimos ao potencial de disseminação do vírus; e isso não está diretamente ligado à letalidade ou à gravidade da doença causada! Estima-se que o SARS-CoV-2 tenha um R0 de aproximadamente 2,6. 

    E quais fatores influenciam nesse valor? 

    – O tamanho da população e o contato entre os indivíduos

    – Quantos indivíduos são susceptíveis à contaminação pelo vírus

    – Capacidade de infecção do microrganismo 

    – Tempo durante o qual um indivíduo permanece transmitindo a doença

    – Taxa de remoção da infecção (por cura ou morte de indivíduos infectados)

    É importante ressaltar que o valor calculado depende da acurácia dos dados e do modelo epidemiológico utilizados. Dados ruins ou modelos pouco acurados podem distorcer muito os resultados. Desde o início de dezembro (10/12/20), quando o Ministério da Saúde foi hackeado, estamos sofrendo com um apagão de dados que está influenciando análises e estimativas sobre a pandemia no Brasil. O Observatório COVID-19 BR, por exemplo, deixa avisado no site: “Devido ao apagão de dados do Ministério da Saúde, estamos impossibilitados de atualizar nossas estimativas. Esperamos que o Ministério da Saúde reestabeleça os sistemas de informações afetados e assim possa manter a divulgação e transparência de dados em Saúde no país.

    Devemos sempre nos lembrar que: modelos não são exatos, eles são estimativas que nos orientam e devemos ter cuidado para que eles não sejam grosseiramente errados.

    MAS E O TAL Rt? NÃO É A MESMA COISA? 

    O número zero em R0 significa que o valor é calculado considerando que há imunidade zero na população – o que foi o caso do SARS-Cov-2 no início da pandemia. Mas esse valor não é adequado, quando queremos analisar a taxa de disseminação do vírus ao longo do tempo. 

    Apesar de parecido, para esses casos utilizamos o Rt ou Re (número efetivo de reprodução; R0 no tempo; velocidade de contágio no tempo), que varia ao longo do tempo e depende dos valores do momento em que foi medido, sendo, também, impactado pelo aumento da imunidade após infecção ou vacinação, bem como pelo comportamento das pessoas (distanciamento social, uso de máscaras, por exemplo).

    Assim, a variação do Rt ao longo do tempo nos ajuda a tomar decisões sobre políticas públicas durante a pandemia em curso. Isso acontece porque se o Rt é maior do que 1 (Rt>1) isso indica que a pandemia está em expansão; e se o Rt é menor do que 1 (Rt<1), a pandemia está em um momento de regressão, ou seja, a quantidade de pessoas contaminadas está diminuindo, podendo levar ao controle da doença.

    COMPARANDO OS VALORES DO Rt DE MANAUS E BELO HORIZONTE 

    Tendo estabelecido as definições dos conceitos, procurei duas cidades que imaginei terem um perfil diferente de transmissão do SARS-Cov-2. Escolhi Belo Horizonte (MG) por ser onde moro e Manaus (AM) devido ao colapso que aconteceu na cidade no final de 2020/início de 2021; além do fato de as duas cidades ficarem muito distantes entre si, havendo um baixo fluxo entre os seus habitantes. Lembrando que o objetivo aqui não é analisar as causas da melhora ou piora de indicadores.Aqui vemos os gráficos com valores de Rt das duas cidades de março de 2020 a dezembro de 2021, destacando no quadro em amarelo o período entre novembro de 2020 e janeiro de 2021. Apesar de a escala do gráfico não ser a mesma e dificultar a comparação, conseguimos observar que as curvas mostram comportamentos diferentes da pandemia nas duas cidades.

    Texto: Número reprodutivo efetivo (Rt ou Re) para covid-19 nas cidades de Belo Horizonte e Manaus.
São dois gráficos cada um para uma das cidades englobam o período de março/2020 a dezembro/2021. Novamente o objetivo não são os valores, mas o perfil do gráfico. Em Manaus o gráfico começa num Rt maior do que dois, caindo para abaixo de 0, e então apresenta picos nos meses de agosto, setembro, dezembro/20 e outubro e novembro/21. Em Belo Horizonte, o gráfico inicia com Rt próximo a 1, caindo para apresentar 3 picos de Rt aproximadamente igual 1,2 (abril a junho/20; novembro-dezembro/20 e fevereiro/21)
    Vamos agora, colocar os gráficos sobrepostos (mas apenas o recorte do período em destaque). Observe que enquanto a cidade de Belo Horizonte (azul) apresenta uma queda quase contínua dos valores de Rt, em Manaus observamos uma curva que aumenta antes de diminuir.
    Texto: Número reprodutivo efetivo (Re ou Rt) para covid-19 nas cidades de Belo Horizonte (MG) e Manaus (AM), entre os dias 01 de novembro de 2020 e 31 de janeiro de 2021.
Gráfico único plotado com os valores de Rt das duas cidades. Observa-se que Belo Horizonte tem uma queda gradual do Rt de 1,2 a 0,83. Já em Manaus, os valores flutuam em torno de 1 no mês de novembro para, então, a partir de 29/11 aumentarem. O Rt sai de 0,98 e atinge 1,38 em 20/dez. O valor permanece próximo até o dia 10 de janeiro/21, quando, então, cai rapidamente atingindo 0,84 no final do mês.

    E ENFIM, FAZ SENTIDO CALCULAR UM Rt ÚNICO PARA O BRASIL?

    Conseguimos ver que em cidades diferentes a propagação da pandemia se dá de formas também diferentes. Com isso entendemos que quanto mais ampliamos o foco da análise, mais estamos agrupando cidades com comportamentos distintos nos valores de Rt. Assim, análises de cidades são mais precisas que análises que comparam estados; e quando consideramos um país grande como o Brasil vemos valores que não retratam os detalhes e as divergências.

    Quando comentei no Twitter sobre este tema, recebi o contato do Rafael Lopes – que faz doutorado em física, é pesquisador na área de dinâmica epidemiológica e, também, membro do Observatório COVID-19 BR.

    Lopes ressalta que “calcular valores de Rt para um país grande como o Brasil é errado por definição, uma vez que o Rt é uma razão entre os casos de hoje e os casos anteriores numa dada comunidade, supondo-se, assim, que todos os indivíduos da comunidade estão em contato uns com os outros. Pessoas em Manaus não estão em contato com pessoas de Porto Alegre, por exemplo. Logo, calcular um R único para o Brasil coloca essa suposição [pessoas de diferentes cidades em contato] como verdadeira, mas ela é claramente falsa”.

    Como vemos abaixo, o Rt da COVID-19 no Brasil vem sendo calculado ao longo de toda a pandemia pelo Imperial College de Londres. Mas por qual motivo isso vem sendo feito? 
    Texto: Variação da estimativa do número efetivo de reprodução (Re ou Rt) da covid-19 ao longo do tempo no Brasil. 
Novamente o objetivo não são os valores, mas o perfil do gráfico que cobre todo o período da pandemia, destacando-se o período de 01/11/20 a 31/01/21. São dois picos nos meses de fevereiro e março/20, com Rt próximo a 4. Em seguida há uma queda entre março e maio com Rt próximo a 1,5. Os valores permanecem próximos a 1 quase todo o período, com um pico quase atingindo 1,5 em novembro/21. No período em destaque observa-se uma estabilidade do valor em torno de 1,3 com uma leve queda por quase todo o período, não se assemelhando com os gráficos de Manaus, que tem uma queda anterior, nem com Belo Horizonte que apresenta uma queda contínua no período.

    Calcular o Rt agregado pode útil pois nos permite fazer uma análise geral da situação do país e uma comparação a nível global. Mas essa abordagem, apesar de funcionar bem para países pequenos (como os da Europa, por exemplo) é, também, criticada para países grandes (como o Brasil e os Estados Unidos) pelos motivos que já levantamos no texto.

    Por fim, é importante lembrar que ao fazermos isso acabamos perdendo detalhes da pandemia e, portanto, esse valor não deve ser utilizado como única base para políticas públicas nacionais. Para essas situações, porém, devem ser consideradas as especificidades locais antes de tudo!

    REFERÊNCIAS

    Esse post foi escrito originalmente no blog Meio de Cultura

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • O “fim” da história e o Homem Final

    Texto escrito por Rafael Lopes Paixão

    Francis Fukuyama, um filósofo e economista estadunidense, escreveu em 1992 um livro intitulado “O Fim da História e o Último Homem”. Neste livro, ele advogou que com o fim da União Soviética entrávamos  em um novo momento histórico em que o modelo de democracia ocidental teria prevalecido. Logo, a história humana estaria estagnada para sempre numa única forma de governo bem como um sucessivo caminhar em direção a um bem-estar generalizado.

    A segunda parte do título, “e o Último Homem”, evoca essa ideia, que bem antes de Fukuyama já era cultivada em diversas outras disciplinas científicas. Por exemplo, para mim o mais próximo que consigo pensar é a epidemiologia. A epidemiologia é o estudo das doenças e das epidemias que nos afligem no contexto da sociedade. Ou seja, é o estudo de doenças como fenômeno populacional e social.

    A epidemiologia se funda como ciência, ou seja, com método investigativo e de teste de hipóteses, a partir da descoberta feita por Sir John Snow. O cientista foi o responsável por analisar o surto de cólera, que afligia a população do bairro de Soho em Londres em 1854. Dessa forma, ele percebeu que a doença era causada, primariamente, pelo uso comum de uma fonte de água contaminada. Para tanto, Snow mapeou os casos de cólera no Soho.

    Com o mapeamento viu que a maior incidência se dava para famílias que localizavam-se mais próximas a uma fonte de água específica.

    E a solução? Snow manda selar a fonte e em algumas semanas o surto cessa.


    Figura 1: Mapeamento de casos realizados por John Snow em sua investigação do surto de cólera de 1854 no bairro do Soho, em Londres.

    A investigação de Snow obteve sucesso ao provar que a Cólera se dava pela contaminação de uma fonte de água de uso comum por um microorganismo. Assim, o debate à época, sobre qual seria a origem das doenças infecciosas, se vira para a comprovação de que a teoria microbiana das doenças infecciosas era a teoria mais plausível e explicativa da epidemias da época.

    Concorrente a essa teoria, tinha-se a teoria do miasma. Nesta teoria as doenças infecciosas se transmitiam por ares contaminados. Embora a teoria microbiana tenha sido aceita, acertadamente, há um revés nesta história. Infelizmente, com esse debate se constrói durante dois séculos a ideia que doenças infecciosas que se transmitem pelo ar são só um mito. Ou, ainda, uma teoria falha do passado para a epidemiologia. Todavia, a pandemia de Covid-19 nos desafia para outro lado. Apesar de ter identificado incorretamente o modo como certas doenças podem transmitir-se, a teoria do Miasma, ainda que ingênua, apoiava-se em algum fundo de verdade. Mas essa é uma discussão para outro texto.

    A teoria microbiana talvez tenha difundido-se tão fortemente difundida no nosso pensamento social exatamente por por sua capacidade de provar que a grande maioria das doenças infecciosas, que nos afligiram durante tantos séculos, facilmente resolvem-se com condições básicas de higiene e vida. Uma consequência disso, que pôde ser vista, principalmente na epidemiologia (mas não só), é que o pensamento epidemiológico do século XX caminhou na direção complementar do pensamento capitalista liberal de fim da história. Pensamento este fundado por Hegel e que deságua em Fukuyama e seu livro anteriormente citado.

    Até meados dos anos 1980, era corrente na epidemiologia a noção de que caminhávamos para a eliminação das doenças infecciosas. Assim, basicamente a epidemiologia se tornaria no estudo das doenças crônicas. Por trás disso, temos a ideia de fim da história e do “Homo Novissimus”. Ou seja, o homem que não mais padecerá por doenças infecciosas. Parece bom, não? Dessa forma, somente faleceríamos por doenças crônicas que aparecem, em uma ideia radicalmente reducionista, porque estamos vivendo demais. Tal ideia se traduz claramente no cartum abaixo:




    Figura 2. Cartum sobre a história médica atualizando lentamente o livro de doenças erradicadas.

    Homo Novissimus e os modos de produção

    Com o sucesso das vacinas e, no caso do cartum, da vacina da poliomielite, adentramos uma sociedade que se via cada vez mais os benefícios de um capitalismo capaz de inovar rapidamente. Bem como garantir que essa inovação chegasse a todos em um tempo razoável.

    O problema, dizem os defensores do fim da história e do Homo Novissimus, era somente distributivo. Assim, se a saúde fosse, como ainda é em muitos países, visualizada como bem público, logo esse problema de alocação de vacinas para cada nova doença infecciosa, estaria resolvido. Ou seja, segundo a “teoria” do Homo Novissimus, em alguns anos, no máximo em décadas, erradicaríamos as doenças infecciosas. Só não combinamos com o planeta essa ideia também.

    Vale ressaltar aqui que eu não sou um adepto da teoria de Gaia. Esta teoria diz que o planeta Terra é um ser vivo como um todo. Portanto, segundo esta teoria, quando desequilibramos esse organismo, ele reagiria para combater isso. Para mim, esse tipo de teoria é só uma desculpa com fundo místico, para se pedir o básico da nossa relação com o planeta.

    O ponto todo é: nosso modo de produção e de sociedade, atomizado no conceito de Homo Novissimus não é verdadeiro.

    Ou seja, aquele homem que após ter resolvido suas disputas políticas vive quase que indefinidamente em confluência com seu habitat, não funciona na prática (nem na teoria…)! Durante os anos subsequentes à segunda guerra mundial, e algumas décadas após a pandemia da gripe “espanhola”, vimos anos de alguma tranquilidade. Aliás, foi um tempo de sucessiva erradicação de doenças infecciosas, ora por simples aumento da qualidade de vida, vez advinda do modelo de produção comunista, vez advinda do modelo de produção capitalista liberal, ora por inovação e acesso às vacinas.

    Tal fato parecia ser tão verdadeiro que o número de artigos científicos sobre doenças infecciosas em revistas de epidemiologia pareciam estar simplesmente sumindo dos registros destas revistas. Quase como um esgotamento do assunto, o gráfico abaixo traduz isso:


    Figura 3. Porcentagem de papers sobre doenças infecciosas apresentados para a AES, American Epidemiological Society (Sociedade Americana de Epidemiologia), e para a AJE, American Journal of Epidemiology (Revista Americana de Epidemiologia).

    Parcimônias nas análises

    Novamente, aqui precisamos analisar a evidência com parcimônia, ainda que tanto AES e AJE sejam revistas internacionalmente conhecidas e que versam sobre temas internacionais, há um viés de mais estudos voltados à realidade estadunidense. Ou seja, ainda que seja verdade que doenças infecciosas estavam deixando de ser assunto nos meios de estudo de doenças em geral, isso só seria verdade para a realidade que esses estudos cobrem, que provavelmente é a realidade da sociedade estadounidense. A partir da década de 1980, esse paraíso é abalado, com a pandemia de HIV e AIDS, uma doença tropical que circulava em populações da África central desde os anos 1920. Essa doença provavelmente espalhou-se para o mundo a partir da década de 1960 (Figura 5). Concomitantemente com isso tem-se a exploração imperialista europeia no continente desde o século XIX.  Posteriormente, com os movimentos de independência, a industrialização passada na região no pós segunda guerra.




    Figura 5. Localização de amostras de HIV-1, grupo M, e suas introduções a partir de Kinshasa ao longo das ferrovias e hidrovias tanto da República Democrática do Congo e da República do Congo. Anos mais recentes tons azuis, anos mais antigos tons vermelhos.

    E a COVID-19?

    Desde dezembro de 2019, o mundo se pergunta como e porquê há pessoas padecendo de uma pneumonia viral que parece se transmitir pelo ar. A resposta para origem do Covid-19, ainda hoje, dezembro de 2021, é incerta. Mas muito provavelmente ela surge de infecções em trabalhadores que têm contato com morcegos no interior do sul da China, mais especificamente na província de WuHan (武汉). Desde dezembro de 2019, aprendemos muito sobre o vírus e sobre como combatê-lo. Foram desenvolvidas vacinas que têm se mostrado efetivas em mitigar a severidade da doença. Assim como evitar grande parte dos óbitos por infecção.

    Em menos de 2 anos, fomos capazes de identificar o patógeno que nos afligia e criar uma vacina que impede que padecemos da infecção sem qualquer esperança de sobrevivência. Talvez existam dois paradigmas centrais da pandemia de SARS-CoV-2. O primeiro de que há vírus que se transmite pelo ar. Uma vez que o SARS-CoV-2 é capaz de permanecer apto a infectar uma pessoa ao permanecer em suspensão com micro gotículas de água exaladas pelo simples fato de respirarmos, os aerossóis. O segundo paradigma é que é muito mais usual do que o senso comum nos dizia o evento de um vírus pular de uma espécie para outra. Isso precisa ser aprendido devidamente para que seja possível desenvolver meios de identificar e barrar tais eventos que chamamos de spillover.

    Porém há um paradigma que pouco se comenta, que ainda não é devidamente aprendido por todos. Aliás, leva-se em consideração somente por algumas poucas pessoas. O Homo Novissimus, com o perdão do trocadilho, encontra-se ultrapassado.

    Isto é, o nosso futuro prometido, em que padeceríamos somente dos efeitos do tempo em nosso corpo, simplesmente não existe.

    Vivemos num mundo cada vez mais quente, mais desigual e mais segregado. Um planeta mais quente com certeza é um lugar favorável ao surgimento cada vez mais frequente de novos patógenos que com certeza vão nos trazer consequências como a pandemia de Covid-19.

    Além disso, uma sociedade mais desigual é incapaz de sanar os problemas existentes e, muito menos ainda, de sanar os problemas que vão existir. A falta de equidade vacinal, por exemplo, atualmente impede que saiamos da pandemia, ou que tenhamos um breve momento de alívio antes da próxima pandemia. E um mundo cada vez mais segregado é a volta ao ponto na história que nos moveu para chegar a um vida em sociedade. Como já falamos aqui no Especial sobre o “retorno ao nosso normal”. Vamos supor que cada indivíduo só precisa se importar e cuidar no máximo daqueles para com quem tem-se alguma dívida, seja ela qual for. Assim, neste caso, estaremos fadados a morrermos de qualquer doença surgida por uma planeta cada vez mais inabitável. Além disso ser agravado por uma sociedade cada vez mais desigual e individualista.

    Por fim

    A epidemiologia, talvez como toda e qualquer outra área da ciência, é nada mais que um reflexo do momento histórico que se vive. Se há 60 anos o fim das doenças infecciosas era declarado, há 40 ele era postergado, talvez hoje tenhamos consciência de que não haverá mundo sem doenças infecciosas. Caso persistâmos em não estudarmos suas causas e mitigar os meios, como sociedade, pelos quais elas se perpetuam no ápice da inteligência humana padecemos por suas consequências.

    É preciso entendermos que mais que fatos que vão acontecer. Isto é, as doenças infecciosas são consequências de atos passados e da forma como produzimos sob o solo que pisamos. Em suma, sem qualquer pretensão bucólica, precisamos parar de destruir o planeta por simplesmente acharmos que não haverá consequência ou porquê esse é o único modo como podemos viver.

    É preciso não aceitar nosso antigo e atual normal.

    Para Saber Mais

    Castro MC, Baeza A, Codeço CT, Cucunubá ZM, Dal’Asta AP, De Leo GA, et al. (2019) Development, environmental degradation, and disease spread in the Brazilian Amazon, PLoS Biol 17(11): e3000526.

    Faria, NR, Rambaut, A, Suchard, MA, (…) Lemey, Philippe (2014) The early spread and epidemic ignition of HIV-1 in human populations, Science, Vol 346, Issue 6205 • pp. 56-61

    Reingold, AL (2000) Infectious Disease Epidemiology in the 21st Century: Will It Be Eradicated or Will It Reemerge?, Epidemiologic Reviews, Volume 22, Issue 1.

    Figura 1 retirada de: Retirado de: https://en.wikipedia.org/wiki/1854_Broad_Street_cholera_outbreak, que por sua vez foi retirado do livro em domínio público, “On the Mode of Communication of Cholera” by John Snow, originally published in 1854 by C.F. Cheffins, Lith, Southhampton Buildings, London, England.

    Figuras 2 e 3 retiradas de: Reingold, AL (2000) Infectious Disease Epidemiology in the 21st Century: Will It Be Eradicated or Will It Reemerge?, Epidemiologic Reviews, Volume 22, Issue 1.

    O autor

    Rafael Lopes Paixão da Silva é doutorando em física. Ele estuda dados de saúde pública e sua dinâmica e relações com o clima é Físico. Pesquisador no Observatório Covid-19 Brasil e convidado pelo editorial para escrever no Especial COVID-19.

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial COVID-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Como doenças de transmissão aérea como a COVID se espalham?

    Você sabe o que são aerossóis, fômites, gotículas e o que isto tem a ver com a COVID-19?

    Homem branco ruivo de óculos e barba, virado de perfil na área esquerda da imagem. Ele está espirrando e as gotículas do espirro aparecem em contraste com o fundo preto da imagem
    Uma pessoa espirrando com gotículas produzidas em evidência. Fonte: Public Health Image Library – Center for Disease Control and Prevention

     A pandemia ainda não acabou. Estamos cada vez mais perto do fim, visto que agora temos vacinas que estão sendo aplicadas na população. Mas isto não significa que possamos baixar nossa guarda! Dessa forma, continuar os cuidados de prevenção é fundamental para conter a doença. Como aprendemos melhor o comportamento do vírus e os mecanismos de transmissão, estamos preparados para combatê-la de forma eficiente! Veja o que sabemos sobre o espalhamento do coronavírus e o que podemos fazer para diminuir as chances de contágio!

    O Sars-CoV-2, vírus responsável pela Covid é transmitido por via aérea e em geral existem três tipos de fontes de contaminação: fômites, gotículas e aerossóis

    Fômites

    São superfícies contaminadas que podem levar a doença ao nosso corpo através de contato com olhos, boca e nariz. No caso do coronavírus, são fontes secundárias de contaminação, sendo menos relevantes. Uma forma eficaz de combater vírus nos fômites é usar sabão e água pois inativa o vírus ao dissolver sua camada protéica.

    Gotículas

    São pequenas porções de líquido, geralmente esféricas e com tamanhos maiores que 20 µm. Podem carregar os vírus a curtas distâncias, visto que a gravidade as leva ao chão rapidamente. Assim, a forma mais eficaz de evitar gotículas é o distanciamento social superior a 2 metros.

    Aerossóis

    São porções de sólidos ou líquidos suspensos no ar, em geral têm tamanho inferior a 10 µm. Permanecem longos tempos em suspensão no ar, pois seu pequeno tamanho permite espalhamento por difusão. Consequentemente, pode levar o vírus de uma pessoa infectada por longas distâncias. Podemos diminuir os riscos ao aumentar a ventilação dos ambientes, pois isto faz com que os aerossóis se dispersem mais rapidamente.

    Mas não é tão simples assim…

    Estas são classificações da comunidade médica, porém para a Física, aerossóis englobam as gotículas, pois estas também estão em suspensão no ar. A formação de aerossóis acontece quando fornecemos energia para um corpo, o quebrando em pequenos pedaços e os arremessando no ar. Assim, no caso de aerossóis respiratórios, quando respiramos, falamos ou espirramos.

    Aerossóis respiratórios são polidispersos, isto é, têm uma grande variedade de tamanhos em suas partículas. Normalmente a variação é entre 1 µm e alguns décimos de milímetros.

    Assim suas partículas não apresentam comportamento único.

    Veja esta simulação de um espirro usando dinâmica de fluídos computacional:
    Simulação computacional de um espirro e como ele se espalha em distância, com o tempo. Fonte:  Busco, Giacomo, et al. "Sneezing and asymptomatic virus transmission." Physics of Fluids 32.7 (2020): 073309.
    Simulação computacional de um espirro. Fonte:  Busco, Giacomo, et al. “Sneezing and asymptomatic virus transmission.” Physics of Fluids 32.7 (2020): 073309.

    Estes comportamentos são ditados pelo tamanho da partícula. Partículas com tamanho superior a 100 µm sofrem baixa interação com outras partículas no ar. Assim, a principal influência é a gravidade e o movimento é próximo ao de um lançamento oblíquo. Isto é, aquele que vemos na escola quando descrevemos a trajetória de uma bala de canhão. Em média, caem no chão em segundos e não se afastam mais de 2 metros da fonte.

    Gráfico mostrando a trajetória de diferentes lançamentos oblíquos para diferentes ângulos iniciais.
    Gráfico mostrando a trajetória de diferentes lançamentos oblíquos para diferentes ângulos iniciais.

    Para partículas com tamanho próximo a 10 µm, a gravidade ainda é um efeito importante, mas estas também colidem com moléculas no ar de forma considerável aumentando seu tempo de voo. Assim, estas partículas ficam suspensas cerca de 10 minutos e podem percorrer distâncias maiores.

    Já as partículas pequenas, menores que 1 µm, têm uma influência muito maior da colisão com as moléculas no ar de forma a realizar um movimento praticamente aleatório. Dessa forma, elas podem viajar devido a este movimento de difusão por longas distâncias, sendo altamente influenciados pelo fluxo de ar no ambiente. Com isto podem ficar longuíssimos períodos em suspensão, até mesmo por cerca de 12 horas!

    Tamanho (µm)Tempo de voo
    > 100~1 segundo
    10~10 minutos
    < 1até 12 horas
    Fonte: How COVID-19 Spreads – METPHAST Program
    Assim percebemos que o maior risco é estar próximo a uma pessoa infectada durante o espirro.
        Partículas em um aerossol respiratório logo após um espirro. A pessoa B recebe diretamente um jato do aerossol tendo grande possibilidade de contágio. A pessoa C não recebe o aerossol. Fonte: COMMENTARY: Ebola virus transmission via contact and aerosol — a new paradigm. Rachael M Jones, PhD, and Lisa M Brosseau, ScD
        Partículas em um aerossol respiratório logo após um espirro. A pessoa B recebe diretamente um jato do aerossol tendo grande possibilidade de contágio. A pessoa C não recebe o aerossol. Fonte: COMMENTARY: Ebola virus transmission via contact and aerosol — a new paradigm. Rachael M Jones, PhD, and Lisa M Brosseau, ScD 

    E os aerossóis?

    Após um tempo, o aerossol começa a se dispersar. Partículas maiores caem e menores se afastam da fonte. A pessoa B ainda tem chances de contágio, mas a pessoa C está relativamente segura. Fonte: COMMENTARY: Ebola virus transmission via contact and aerosol — a new paradigm. Rachael M Jones, PhD, and Lisa M Brosseau, ScD
    Após um tempo, o aerossol começa a se dispersar. Partículas maiores caem e menores se afastam da fonte. A pessoa B ainda tem chances de contágio, mas a pessoa C está relativamente segura. Fonte: COMMENTARY: Ebola virus transmission via contact and aerosol — a new paradigm. Rachael M Jones, PhD, and Lisa M Brosseau, ScD 

    Aerossóis, distância e ambientes fechados…

    Em um terceiro período, a maioria das partículas já está no chão, porém as menores continuam em suspensão e agora contaminam distâncias maiores. Tanto a pessoa B, quanto a C tem perigo de contágio, Por isto, em ambientes fechados, mesmo com distanciamento, o uso de respiradores PFF2 são essenciais. Ventilação dos ambientes ajuda a mitigar este efeito sendo uma boa prática sanitária. Fonte: COMMENTARY: Ebola virus transmission via contact and aerosol — a new paradigm. Rachael M Jones, PhD, and Lisa M Brosseau, ScD
    Em um terceiro período, a maioria das partículas já está no chão, porém as menores continuam em suspensão e agora contaminam distâncias maiores. Tanto a pessoa B, quanto a C tem perigo de contágio, Por isto, em ambientes fechados, mesmo com distanciamento, o uso de respiradores PFF2 são essenciais. Ventilação dos ambientes ajuda a mitigar este efeito sendo uma boa prática sanitária. Fonte: COMMENTARY: Ebola virus transmission via contact and aerosol — a new paradigm. Rachael M Jones, PhD, and Lisa M Brosseau, ScD 

    Outro aspecto importante em relação ao tamanho das partículas é que estas ditam em que parte do sistema respiratório estas gotículas chegaram, podendo ter influência na gravidade da infecção.

    Porcentagem das partículas depositadas por região. As três áreas destacadas são: região da cabeça, região traqueobrônquica e região alveolar. Fonte: COMMENTARY: Ebola virus transmission via contact and aerosol — a new paradigm. Rachael M Jones, PhD, and Lisa M Brosseau, ScD
    Porcentagem das partículas depositadas por região. As três áreas destacadas são: região da cabeça, região traqueobrônquica e região alveolar. Fonte: COMMENTARY: Ebola virus transmission via contact and aerosol — a new paradigm. Rachael M Jones, PhD, and Lisa M Brosseau, ScD 

    Outro detalhe importante, apesar de as fômites serem fonte de contágio secundárias, devemos ter cuidado ao manusear material contaminado. Por quê?

    Para não gerar novos aerossóis!!!

    Por exemplo, um artigo (Aerodynamic analysis of SARS-CoV-2 in two Wuhan hospitals) identificou que em hospitais, além das áreas de internação e banheiro dos pacientes, um lugar com maior concentração do vírus no ar eram as salas para troca de roupas dos profissionais de saúde, que pode ter sido gerados devido ao manuseamento dos equipamentos de proteção que acumularam vírus durante o expediente dos médicos e enfermeiros.

    Vamos continuar mantendo esses cuidados básicos para garantir a segurança de todos e controlar a pandemia, somente assim poderemos começar o retorno de atividades presenciais sem novos picos da pandemia, que podem levar até mesmo a novas variantes do vírus que sejam mais resistentes às vacinas atuais.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os produziram-se textos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, os textos passaram por revisão revisado por pares da mesma área técnica-científica na Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Manual de Comunicação das Vacinas Contra a Covid-19

    Postagem por Dayane Machado (@DayftMachado) e Minéya Fantim (@mifantim)

    Há mais de um ano, as vacinas deixaram de ser uma simples rotina na vida da população. Elas se tornaram alvo de ataques, influenciaram o desenvolvimento de redes de colaboração, atraíram o engajamento de dezenas de milhares de voluntários, viraram meme, inspiraram loterias e se tornaram um dos assuntos mais frequentes no cotidiano dos brasileiros. Apesar disso, falar sobre as vacinas de forma eficaz pode ser uma tarefa desafiadora diante do volume de desinformação circulando todos os dias.

    Numa tentativa de contribuir para o enfrentamento desse problema, a equipe brasileira de tradutores do Skeptical Science acaba de lançar a versão em português para o Manual de Comunicação das Vacinas Contra a Covid-19 – Um guia prático para melhorar a comunicação sobre as vacinas e combater a desinformação.

    Para baixar o Manual:

    Ele foi produzido por uma rede multidisciplinar de cientistas e de voluntários e tem como público todas as pessoas que desejam saber mais:

    • 1) sobre as vacinas contra a Covid-19
    • 2) sobre como elas podem se comunicar melhor em relação a esse assunto
    • 3) sobre como reagir adequadamente à desinformação sobre as vacinas.
    O acrônimo FFEST, que representa as cinco principais técnicas de negação da ciência
    F – Falsos Especialistas / F – Falácias Lógicas / E – Expectativas Impossíveis / S – Supressão de Evidências / T – teorias da Conspiração

    Nele, você vai encontrar dicas práticas de comunicação; conhecer os fatores que podem influenciar na adesão e na hesitação a vacinas; aprender a identificar as táticas de manipulação mais comuns quando o assunto é vacinação e conhecer estratégias para desmistificar os boatos e se proteger em relação à desinformação.

    E embora o manual seja autossuficiente, ele fornece o acesso a uma página colaborativa que contém exemplos de afirmações enganosas no formato FFEST, assim como oferece contra-argumentos e informações aprofundadas que serão atualizadas sempre que novos conhecimentos sobre o tema estiverem disponíveis.

    Além de materiais mais detalhados como o Manual da Desmistificação e o Manual das Teorias da Conspiração, o Skeptical Science oferece recursos rápidos como folhetos e listas que resumem, por exemplo, os mitos mais usados para negar a ciência. Em breve, também teremos a versão em português para o Cranky Uncle, um jogo que permite a “inoculação” do usuário, ou seja, expõe o jogador a doses seguras de desinformação para que ele aprenda a identificar os boatos e as técnicas de manipulação com maior facilidade — e se divertindo. 

    Saiba mais:

    Para baixar:

    Este texto foi escrito e publicado originalmente no blog Mindflow

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os produziram-se textos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, os textos passaram por revisão revisado por pares da mesma área técnica-científica na Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Ciência, o que é e como utilizar: receitas práticas para uma pandemia moderna

    Texto de Rafael Lopes Paixão da Silva

    Como disse um famoso pensador alemão do século XIX, “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Essa frase não se refere à ciência propriamente dita, mas refere-se às nossas certezas sobre como se dão as relações políticas e clamando por materialidade em nossas análises sobre a realidade.

    Com a pandemia do vírus SARS-Cov-2, algo no reino da ciência foi abalado também. Primeiro que muito do que se produziu e se sabia sobre epidemias, se desmanchou no ar. Assim que este novo vírus emergiu, nos colocou frente a contradições de como nos relacionamos com o planeta. Mas isso é um ponto para outro texto, o ponto aqui é: a ciência foi chamada a desenhar e entender políticas públicas, para que pudéssemos fazer frente a essa crise global que é a pandemia de COVID-19.

    Já aviso que o título é chamativo e impositivo, na linguagem moderna clickbait, como forma de ironia, ciência não é algo único e imutável e não há um modo correto de utilizar-se das ciências. 

    Esse pensamento é a forma como a moderna epistemologia compreende a ciência. Epistemologia é a tentativa científica de se entender e estudar como se dá e se deu o conhecimento humano. Ou seja, a própria ciência. Logo, de forma corolária, isto é, estritamente consequente a essa constatação, é lugar comum que deva haver uma epistemologia para cada ciência. Como assim?  Ora, assim como há diferentes ciências e formas de se construir esse conhecimento, há diferentes formas de se entender e construir esses processos.

    Mais uma agora, Epistemologia?

    Tá mas de onde vem todas essas afirmações? Bom da epistemologia mesmo. Vamos começar por quando ela surgiu. Formalmente a palavra epistemologia é cunhada nos fins do século XV, com John Locke inserindo pela primeira vez a palavra para algo próximo do uso moderno. Nessa mesma época, a filosofia se dividia entre duas escolas de pensamento que disputavam o que seria o entendimento do que é o conhecimento humano e como ele se deu. A disputa se dava entre os racionalista de um lado, representados por Descartes, Spinoza e Leibniz, e os empiristas, Locke já citado, Hume e Berkeley

    É notável como  todos contribuíram com o pensamento matemático, assim como em áreas ditas hoje em dia de “humanas”.  Naquela época não havia divisão das ciências por áreas de interesse ou qualquer coisa do tipo. Isto é, todos estudavam diversos aspectos da natureza e com diferentes ferramentas e métodos.

    Porém a epistemologia só se torna um corpo sintetizado e organizado, seja lá o que isso for, ou uma ciência formal, perto do fim do século XIX. E isto vai acontecer com as postulações e investigações das consequências da lógica para dentro da matemática. 

    Bertrand Russel, Ludwig Wittgenstein e Alfred Whitehead, desenvolvem noções mais estritas da lógica moderna. A partir dessas visões começam a comandar uma tentativa, que se mostrou falha, de compilar e sistematizar a forma pela qual se daria o conhecimento científico. Isto é, algo como, se sabemos como se deu o conhecimento científico e suas revoluções, podemos tentar fomentar isso deliberadamente. Ou pelo menos saber quais são os furos e as tentativas as quais deram errado. 

    Incompletudes do saber

    Esse esforço, principalmente de Russel, que tentou resumir a matemática e a lógica em aspectos axiomáticos. Ou seja, aspectos mínimos dos quais tudo poderia derivar, falharam. Russel falha nessa tentativa porque basicamente se constata que qualquer corpo lógico, linguagem, como a matemática, é incompleto e inconsistente. No sentido que, apesar de ser constituído por e formalizado através de lógica formal, ainda há possibilidades de que haja paradoxos, furos, inconsistências, etc.

    Tá mas então nada mais é válido, nada mais é objetivo, assertivo?

    De modo algum, basicamente o que conseguimos com isso tudo é uma compreensão que a ciência é uma expressão e uma construção humana. Ao ser tomada como construção humana está sujeita a diversas falhas, contextos e vieses, que vão desde fatores implícitos, como momento histórico, até fatores explícitos, política de investimento em ciência, exaltação de algumas áreas e desmerecimento de outras, para citar alguns elementos desta construção.

    Thomas Kuhn, físico e epistemologista, escreve exatamente sobre isso! A ciência significa nada mais que uma sucessão, não necessariamente deliberada e organizada, de paradigmas. Estes paradigmas são subscritos por fatores sociais, históricos e culturais. Ciência é a quebra do paradigma passado e sua substituição pelo novo, essa ideia se contrapõe fortemente à ideia de Karl Popper, de que a ciência seria uma busca sucessiva da verdade.

    A principal subversão que Kuhn propõe é que se quisermos medir o que é uma verdade de modo racional, é pouco producente pensar a ciência como neutra e implicitamente verdadeira. Por quê? Exatamente porque ela não advém do mundos das ideias (aqui resvalamos num neoplatonismo). A ciência não está no mundo das ideias: ela é produzida e compreendida pela materialidade humana e pelos atores humanos. Quem seriam estes atores? Sejam eles cientistas, políticos, ou até o cidadão comum, que usufruem dos avanços científicos no seu dia a dia, mesmo que quase sempre sem sequer notar isso.

    Quando nos apegamos a essa ideia de ciência como neutra, ou a medida do que é certo e errado, ou ainda o que é necessário e importante pra sociedade, estamos legando à ciência um papel que não é dela.

    Ciência é ferramenta, e não é validador de nada.

    Assim como dizer que é só um exercício inocente de curiosidade é simplório e ingênuo. Assim, por ser fruto de nossas relações, principalmente políticas, a ciência está sujeita a toda sorte de idiossincrasias dessas atividades humanas. Idiossincrasias é: um comportamento (ou tipo de comportamentos) que é próprio de uma pessoa ou de um grupo social específico.

    Sobre a relevância de compreender a ciência, para mim, cientista…

    Eu sou físico e trabalho com modelagem de epidemias e análise dos dados de saúde pública. E saber sobre epistemologia e filosofia da ciência, tais como alguns dos aspectos que apresentei neste texto, , ao menos pra mim, é libertador. Mas é igualmente exigente também. Quando pesquiso e escrevo, sinto-me sempre atento a essas questões. Por exemplo: para quê e por quem a minha ciência poderá e será usada, apesar das minhas ânsias e idealizações sobre ela?

    O cientista, hoje mais que nunca, precisa se ver pelo menos potencialmente como um ator político, mesmo que não ativamente. Ciência, nesses tempos de pandemia, pode servir de respaldo e fonte de credibilidade para que atores políticos tomem decisões, às vezes impopulares e necessárias. Porém também pode servir de respaldo para que o ator político tome ações em seu interesse. 

    Ciência: Que tipo de ações e decisões?

    Ao passo que a ciência nos fornece dados – que podem ser desde dados quantitativos, como estatísticas populacionais, até dados qualitativos, como estruturas sociais – temos em nossas mãos ferramentas que servem para governantes tomarem decisões e conduzir populações para um ou outro caminho no combate à doença.

    A COVID-19 é letal, mas existem estratégias de governo que nos possibilitam como impedir que pessoas morram. Por isto chamamos de “mortes evitáveis”. Não é que ninguém morrerá, mas é evitável por ações simples e que demandam ações coordenadas e coletivas por parte da sociedade. Essas ações podem ser somente uma pactuação da política com a sociedade para que se possa caminhar numa direção desejada.

    Porém, outras vezes essas ações de política pública são mais de interesse do político, que pode também estar se aproveitando do respaldo e da credibilidade que a ciência tem com a sociedade, para simplesmente impor seus interesses particulares através da estrutura pública que ele comanda.

    Por fim…

    Estamos atentos a isso, tanto como cientistas, quanto como cidadãos. Pois isto nos faz menos suscetíveis ao tipo de sequestro de parte da ordem pública por interesse particulares. Isto é, sequestro de pautas para valer e se cobrir de toda sorte de artifícios, às vezes a própria ciência, para impor-nos esse tipo de ação. Isso não é uma defesa de como a política é uma dádiva. Mas um chamado à realidade e à materialidade que é necessária ao estarmos sujeitos a ações políticas e seus atores.

    Para saber mais

    DESCARTES, René (2001) Discurso sobre o método São Paulo: Martins Fontes.

    KUHN, Thomas S (1987) A estrutura das revoluções científicas, São Paulo:  Perspectiva. 

    POPPER, K (1972) A lógica  da pesquisa científica, São Paulo: Editora Pensamento.

    Outras leituras no Especial

    Como se produz um resultado científico e o que isto tem a ver com a Covid-19?

    Sobre Vacinas, método científico e transparência na ciência (parte 1)

    Sobre Vacinas, método científico e transparência na ciência (parte 2)

    O autor

    Rafael Lopes Paixão da Silva é doutorando em física, estuda dados de saúde pública e sua dinâmica e relações com o clima é Físico, é pesquisador do Observatório Covid-19 Brasil e foi convidado pelo editorial para escrever no Especial COVID-19.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • A Guerra e a Peste: A Epidemia de Tifo no Gueto de Varsóvia

    Texto escrito por Amanda Tognoli da Silva

    Guerra, Peste e Fome andam sempre juntas. O Tifo, uma doença infecciosa com altas taxas de transmissão, sendo facilmente contraída pela população por meio de pulgas e piolhos infectados, também gosta desta companhia. Não por acaso, o Gueto de Varsóvia, local precário onde milhares de judeus foram presos pelo governo alemão durante a Segunda Guerra Mundial, sofreu uma grande epidemia de tifo. Porém, com a ajuda de toda a comunidade, a epidemia foi debelada. Conhecendo um pouco mais sobre esse triste episódio da história e das medidas sanitárias e políticas que os moradores do Gueto de Varsóvia tomaram, o que podemos aprender?

    Tifo: uma doença fatal

    O Tifo é o nome genérico de várias doenças causadas pelas bactérias do gênero Rickettsias. Grande parte dessas bactérias se desenvolve num reservatório animal, e é transmitida ao homem pela picada ou contaminação com fezes de insetos infectados, como piolhos e pulgas. Desta forma, a contaminação com as fezes infectadas ocorre através de cortes na pele ou membranas mucosas dos olhos ou da boca.

    Rickettsias vista em microscópio

    Imagem de Rickettsias ao microscópio. As Rickettsias, bactérias microscópicas que causam o tifo epidêmico. Em geral, estas bactérias são carregadas em pulgas, carrapatos e piolhos.

    As bactérias se proliferam nas células endoteliais dos vasos sanguíneos e podem provocar lesões graves. Os sintomas começam cerca de 7 a 14 dias após a bactéria entrar no organismo. Dentre os sintomas identificados estão febre, dor de cabeça intensa, cansaço e erupções cutâneas que geralmente começam no peito e se espalham para os braços e pernas. Se a infecção for grave, a pressão arterial pode baixar, os rins podem apresentar mau funcionamento e pode haver o desenvolvimento de gangrena e pneumonia.

    Charles Nicolle encontra as Ricketsias

    Se não tratado, o tifo pode ser fatal. Atualmente, o tratamento do tifo se faz por meio da administração do antibiótico doxiciclina por via oral. O paciente toma o antibiótico até melhorar e não apresentar febre por 24 a 48 horas. Entretanto, é necessário tomar o antibiótico por pelo menos 7 dias.

    Em 1928, Charles Nicolle recebeu o Prêmio Nobel por ter descoberto o papel do piolho na transmissão do tifo em 1909. Nicolle fez observações e concluiu que os pacientes não eram mais contagiosos após receber tratamento hospitalar, tomar banho e trocar de roupas. Desta forma, ele colocou piolhos sem a bactéria em macacos infectados e depois transferiu os piolhos, agora infectados, para macacos saudáveis, que acabaram desenvolvendo tifo.

    Charles Nicolle

    Charles Nicole, infectologista francês (1866-1936), em seu ambiente de trabalho. ele descobriu o papel do piolho na transmissão do tifo, o que lhe rendeu o Nobel em 1928.

    Os diferentes tipos de Tifo

    Os tipos mais comuns de tifo são o epidêmico e o endêmico. O tifo epidêmico é causado pela bactéria Rickettsia prowazekii e transmitida pelas fezes do piolho do corpo humano, Pediculus humanus. Por outro lado, o tifo endêmico tem como vetores Rickettsia typhi ou Rickettsia mooseri, transmitidas pelas pulgas do rato, Xenopsylla cheopis. Os sintomas do tifo endêmico são menos intensos que os do epidêmico.

    A infecção ocorre principalmente em áreas com más condições sanitárias e de higiene e com grande aglomeração de pessoas. Desta forma, campos de refugiados, prisões, áreas de guerras civis e de extrema pobreza são áreas preferenciais para os surtos de tifo. como se pode ver, há focos dessa doença espalhados pelo mundo todo.

    Epidemias de Tifo na história

    O registro mais antigo de uma epidemia de tifo é a praga de Atenas, do século 15 a.C. Este surto supostamente começou na Etiópia e passou pelo Egito, chegando ao porto de Piraeus. Foi observado tosse, vômitos, diarréia e erupções cutâneas. Contudo, tal descrição do surto está aberta a interpretações e muitas doenças podem ser responsáveis por ele como tifo, catapora e peste bubônica.

    Apesar deste registro, muitos autores acreditam que a primeira epidemia autêntica de tifo ocorreu durante a conquista de Granada, na Espanha, em 1492. A doença que abateu a população foi descrita como uma febre maculosa e se parece muito com a descrição moderna de tifo.

    O tifo reapareceu como epidemia durante a Primeira Guerra Mundial. Nesta época, a doença começou na Sérvia e se espalhou para o Centro e Leste Europeu. Da mesma forma, a Rússia teve surtos recorrentes durante a revolução Bolchevique. por fim, segundo as estimativas, 25 milhões de pessoas contraíram tifo entre 1917 e 1925. O saldo da doença foi de 3 milhões de mortes.

    Posteriormente, já durante a Segunda Guerra Mundial, pesquisadores nazistas infectaram 600 prisioneiros de campos de concentração com sangue de pacientes infectados por tifo para testar a eficácia do fenol como tratamento ou vacinação.

    Bactérias e Piolhos

    No século XX, o tifo está relacionado às guerras, aos movimento populacional em massa, na má higiene e na fome. As epidemias de tifo que ocorreram após a Segunda Guerra Mundial intensificaram as pesquisas biomédicas. Algumas dessas pesquisas incluíam o uso de pesticidas como o DDT para controlar os piolhos em Nápoles entre 1943 e 1944, e também o uso de antibióticos recém descobertos, como o cloranfenicol. Após muito estudo da vida intracelular da Rickettsia prowazekii e seus efeitos na célula hospedeira, seu genoma foi sequenciado por Andersson et al em 1998.

    O Tifo no Gueto de Varsóvia

    O discurso alemão sobre higiene influenciou a ideia de que os judeus carregavam doenças. Assim, na ideologia nazista, isso reforçou o discurso de que os judeus seriam a própria doença. Portanto, seria esperado lidar com epidemias, o que no final das contas significou aniquilá-los.

    Na Alemanha, havia um grande medo do tifo se espalhar para a população e para o exército por causa de seu impacto depois da Primeira Guerra Mundial, matando 5 milhões de pessoas. Com essa desculpa, os alemães realocaram muitos judeus para os guetos e campos de concentração. Posteriormente, os nazistas criaram uma área chamada Seuchensperrgebiet que era, literalmente, uma área restrita para doenças. Esta área se tornaria o Gueto de Varsóvia, na Polônia.

    Crianças famintas e com frio no gueto de Varsóvia

    A crianças foram as que mais sofreram durante a ocupação do Gueto de Varsóvia; 

    Em 5 de Outubro de 1940, os nazistas proibiram os judeus de deixar o território do Gueto. Em 15 de novembro deste mesmo ano, uma parede com arame farpado foi construída em volta desta área. Alguns ainda conseguiram escapar por pequenos buracos ou pelo esgoto.

    O tifo se alastra no Gueto

    O Gueto possuía uma área de 3,4 km², onde foram presos mais de 450 mil judeus.  Um inverno rigoroso e num ambiente de guerra e privações de todo o tipo facilitaram a propagação do tifo epidêmico. No entanto, cerca de 120 mil prisioneiros do gueto infectaram-se pela bactéria, com 30 mil morrendo diretamente por causa da doença e muitos morrendo pela associação da doença com a fome. Assim, a fome no gueto aumentou a epidemia, o que provou aos alemães que os judeus eram portadores de doenças. Para eles, judeus famintos significavam mais comida para o povo alemão. Desse modo, os judeus deveriam ser eliminados, o que pouparia ainda mais comida.

    Contudo , até abril de 1941, o foco dos administradores nazistas do gueto era deixar morrer de fome todo residente que não conseguisse comprar comida. a partir de maio deste ano, os novos administradores planejaram construir uma economia auto sustentável no gueto, para não desperdiçar a força de trabalho. Para estes administradores, alguns residentes deveriam receber o mínimo de alimento e nutrição para que pudessem trabalhar. Assim, até setembro, o gueto começou a trabalhar economicamente aos olhos dos alemães. um programa de cozinhas comunitárias, administradas por voluntários, foram responsáveis por prover nutrição básica para ¼  da população.

    No entanto, em outubro de 1941, Jost Walbaum, o Diretor de Saúde do Governo Geral, disse que  “Os Judeus são, em sua maioria, os portadores e disseminadores do tifo. Há apenas duas maneiras de resolver isso. Nós sentenciamos os Judeus dos guetos à morte ou atiramos neles…Nós temos uma e apenas uma responsabilidade, que o povo alemão não seja infectado e ameaçado por esses parasitas. Para isso, qualquer meio deve ser correto.”

    A epidemia é contida…por quem?

    Neste mesmo mês, contudo, começou um rigoroso inverno e era esperado que as taxas da doença aumentassem. Ao contrário, a curva epidêmica caiu inesperadamente.

    Desta forma, Emanuel Ringelblum, o cronista do gueto, escreveu em Novembro de 1941: “A epidemia de tifo diminuiu apenas no inverno, quando geralmente piora. A taxa epidêmica caiu cerca de 40%. Ouvi isso dos boticários, médicos e do hospital.

    Inicialmente, por meio de análises de documentos históricos e modelos matemáticos, um grupo de pesquisadores descobriu que a comunidade agiu ativamente para erradicar a doença, poupando cerca de 100 mil vidas. Nesta analise, constatou-se que programas de saúde e práticas de distanciamento social por parte da comunidade foram responsáveis pelo colapso da doença. Por outro lado, verificou-se que o gueto possuía muitos médicos e especialistas que ministraram cursos muito bem organizados sobre higiene pública e doenças infecciosas, assim como centenas de palestras sobre o combate ao tifo.

    Fila da refeição no gueto de Varsovia

    Fila para comida no Gueto de Varsóvia

    Da mesma forma, houve também relatos de universidades secretas, onde jovens estudantes de medicina receberam treinamento sobre como lidar com doenças epidêmicas. Além disso, encorajou-se a higiene geral e limpeza das casas, às vezes usando a força. Ademais, o distanciamento social era considerado um senso comum básico e as quarentenas eram comuns. O Departamento de Saúde, do Conselho Judeu, criou neste período vários e complexos programas de Saúde Publica.

    Em síntese, o Gueto de Varsóvia teve inúmeras instituições internas civis, médicas e sociais trabalhando intensamente durante meses para parar a epidemia de tifo. Não obstante o constante esforço da comunidade e de organizações para acabar com a epidemia contribuiu para diminuir a transmissibilidade abaixo do limite crítico, levando a epidemia a uma parada repentina e precoce.

    A “Solução Final” e o fim do Gueto

    Entretanto, em 1942, os nazistas enviaram muitos moradores do gueto para os campos de concentração que estavam construindo.  Posteriormente, em 1943, o Governador Geral Hans Frank alegou que “razões de saúde publica” eram a causa do “inevitável” assassinato de 3 milhões de judeus na Polônia “. Este foi somente um mais caso óbvio de uma doença usada como arma de guerra e pretexto para um genocídio.

    De acordo com Ludwik Hirszfeld, um bacteriologista indicado ao Prêmio Nobel e que viveu no gueto, não tem dúvidas: “No caso da Segunda Guerra Mundial, o tifo foi criado pelos alemães. Iniciado pela falta de comida, sabonete e água, então alguém concentra 400.000 pessoas em um distrito, tira tudo deles e não dá nada, é assim que se cria o tifo. Nessa guerra, o tifo foi trabalho dos alemães.”

    O que a epidemia de tifo no Gueto de Varsóvia pode nos ensinar

    Um povo que não conhece a sua História está fadado a repeti-la”, já dizia o filósofo irlandês Edmund Burke. Uma frase dita há mais de 200 anos nunca foi tão atual.

    Visto dessa forma, a epidemia de tifo no Gueto de Varsóvia e a pandemia mundial de covid-19 possuem muitas similaridades. Contudo, ambas doenças relacionam-se a microrganismos invisíveis, que se espalham rapidamente e podem matar milhões. Além disso, ainda não há remédio efetivo para nenhum deles. Portanto, é possível dizer que estudar a epidemia no Gueto seria um ótimo modo de ver como uma doença altamente transmissível pode ser erradicada se toda a população se comprometer para tal. Ao estudá-la, notaríamos que políticas públicas de contenção, uma boa comunicação com a comunidade e a cooperação geral foram, e são, essenciais para o fim da epidemia. Além disso, perceberíamos que a contenção é possível até mesmo nas piores condições sanitárias e no pior cenário político possível, um regime desumano e assassino.

    Contudo, o que nos impede de nos unirmos para vencer este vírus que já tirou tantas vidas? Uma doença que é propagada pelas pessoas, só pode ser detida pelas pessoas. A contenção de uma doença como o tifo depende, sobretudo, do comportamento humano.

    SOBRE A AUTORA

    Amanda Tognoli da Silva, 24 anos, nascida e criada em Conchal-SP. Estudante de Ciências Biológicas na UNICAMP, apaixonada por astrobiologia e livros de investigação. Grande objetivo como bióloga: a divulgação da ciência.

    Para saber mais:

    New study explains 'miracle' of how the Warsaw Ghetto beat Typhus. in:https://www.eurekalert.org/pub_releases/2020-07/ru-nse072020.php
    (este texto foi elaborado durante a disciplina Historia das Ciências Naturais, no Instituto de Geociências da Unicamp, no 2º semestre/2020.  Os trabalhos elaborados tinham como tema "As Epidemias e a História da Ciência")

    Este texto foi elaborado originalmente no Blog PaleoMundo

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

    Editorial

  • A ciência pelos olhos da doutoranda Dayane Machado

    A doutoranda Dayane Machado. Arquivo pessoal. Todos os direitos reservados.

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    Nos últimos anos temos vivenciado uma onda de desinformação nas redes sociais que se acentuou ainda mais durante a pandemia de COVID-19. Diversos grupos de pesquisa no Brasil e no mundo têm estudado movimentos e pessoas que espalham notícias falsas sobre vacinas e COVID-19 nas redes sociais. Para trazer à luz a discussão sobre os desafios da comunicação científica perante a desinformação na área da saúde, hoje o Ciência Pelos Olhos Delas entrevista a doutoranda Dayane Machado, especialista no assunto. 

    A Dayane é mestre em Divulgação Científica e Cultural pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente, ela é doutoranda em Política Científica e Tecnológica, também na Unicamp, e o foco da sua pesquisa envolve desinformação sobre vacinas no contexto da pandemia de COVID-19. Confira abaixo a entrevista na íntegra, onde a Dayane nos conta sobre sua trajetória acadêmica, sua experiência como mulher na ciência e os desafios para combater os movimentos negacionistas e de desinformação nos meios de comunicação, com ênfase no YouTube.

    ***

    Cientista – era isso que você queria ser quando crescesse? 

    Não, de jeito nenhum. Quando criança, eu nem sabia o que era um cientista ou que existiam cientistas no Brasil. Imagino que isso aconteceu principalmente por falta de referências. Foi só durante a graduação que eu tive contato com a prática da pesquisa e com o jornalismo científico e só a partir daí, eu comecei a me interessar pelo tema.  

    ***

    Como sua trajetória acadêmica a levou ao doutorado em Política Científica e Tecnológica na UNICAMP?

    No mestrado, a minha proposta era analisar o imaginário de ciência e de cientista em materiais de divulgação científica. Eu resolvi trabalhar com canais do YouTube. Na época, o YouTube e os serviços de streaming em geral não eram muito estudados dentro da minha área. O ScienceVlogs Brasil era uma proposta recente, que criava uma comunidade de canais organizada em torno de alguns critérios. Esse modelo me chamou atenção e eu comecei a pesquisa com os canais que faziam parte da iniciativa. 

    No meio do caminho, porém, eu comecei a ter contato com canais de fora dessa comunidade. Pra minha surpresa, muitos canais se identificavam como divulgadores de ciência naquela época, mas quando eu parava pra assistir o conteúdo, eu encontrava discurso antivacinação, negacionismo climático, terraplanismo. Muitos deles argumentavam que era ali que o público ia encontrar a ciência “de verdade”.

    Depois de um tempo de análise, esses canais que alimentavam teorias da conspiração foram ganhando um espaço enorme no meu trabalho. Quando eu terminei o mestrado, então, a minha vontade era continuar pesquisando esse assunto.

    No Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) e principalmente no LABTTS, que é o meu laboratório, eu encontrei uma estrutura que me permitiu aprofundar a pesquisa nessa frente de desinformação. Eu resolvi focar especificamente nos movimentos antivacinação e depois de um ano mais ou menos veio a pandemia de COVID-19 e a gente viu esse tema explodir. Ficou praticamente impossível continuar pesquisando rejeição a vacinas sem considerar a pandemia. Então eu acabei adaptando o projeto e passei a analisar esses dois temas ao mesmo tempo.

    ***

    Algum(a) profissional ou ação a inspirou na escolha dessa carreira?

    Eu comecei a considerar a ciência como carreira há relativamente pouco tempo. No começo do mestrado, eu via o trabalho gigantesco que cientistas como a Suzana Herculano-Houzel conseguiam realizar apesar do contexto de sucateamento pelo qual as instituições de pesquisa brasileiras já vinham passando. Eu lembro dos relatos dela sobre a falta de insumos, sobre a necessidade de improvisar tudo, sobre a dificuldade de fazer pesquisa competitiva com tantos fatores atrapalhando. E eu ficava fascinada com o que o grupo dela conseguia fazer. A pesquisa dela foi uma grande inspiração.

    ***

    Conte-nos mais sobre a pesquisa que está realizando sobre desinformação no contexto da pandemia da COVID-19.

    No doutorado, eu analiso especialmente conteúdos do YouTube. Mais uma vez, os vídeos (e os áudios) acabam não recebendo muita atenção nessa área de pesquisa. Analisar áudio e vídeo dá muito trabalho porque ainda não existem boas ferramentas que permitam análises mais automatizadas como acontece no caso de textos escritos, então a gente tem que fazer o processo manualmente.

    Ano passado, nós publicamos os primeiros resultados da pesquisa. A gente identificou canais em português que lucram com as desinformações sobre vacinas. Além de aproveitarem o sistema de monetização do YouTube — exibição de anúncios ao longo dos vídeos, venda de produtos na prateleira da plataforma, recursos para receber doações durante as lives etc. —, esses produtores de conteúdo colaboram e criam táticas para aumentar a audiência e garantir os lucros, mesmo que a plataforma identifique o conteúdo como perigoso e desmonetize algum vídeo.

    Recentemente, nós expandimos a amostra. Estamos analisando os vídeos produzidos por 50 canais ao longo dos 6 primeiros meses de pandemia no Brasil, uma amostra de mais de 3 mil vídeos. A minha sorte é que eu tenho uma parceira de pesquisa incrível, a Natiely Rallo Shimizu, que também é mestre em Divulgação Científica e pesquisa movimentos antivacinação há um bom tempo. Nós começamos a primeira etapa de análise em outubro do ano passado e vamos terminar a última etapa nos próximos meses.  

    ***

    Quais são os principais desafios que as iniciativas de divulgação científica enfrentam no combate a essa “onda” de desinformação?

    Acho que hoje o principal desafio é ser ouvido no meio de tanto ruído. Essa é uma característica, aliás, do momento que a gente está vivendo. Tem informação demais circulando ao mesmo tempo e fica muito complicado para o público distinguir o que é confiável do que não é. 

    Hoje, os falsos especialistas conseguem seduzir a audiência e atrair a atenção da mídia com muito mais facilidade. Fora isso, a gente tem que lembrar que conteúdo apelativo, sensacionalista e desinformativo pode gerar mais engajamento, então as plataformas acabam beneficiando esse tipo de material. Competir com esse cenário fica cada vez mais difícil para quem divulga ciência. 

    ***

    Dayane com parte da equipe do Projeto Matemática no Ar e alguns entrevistados durante a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (2017). Arquivo pessoal. Todos os direitos reservados.

    ***

    Ao longo da sua carreira, você já enfrentou alguma dificuldade enquanto cientista por ser mulher?

    Depende do que a gente estiver considerando como dificuldade. Conheço pessoas que já passaram por situações muito mais sérias, como assédio sexual, perseguição e coisas do tipo. Eu nunca passei por isso, mas me sinto muito menos respeitada do que os meus colegas. 

    Um fator que acho que faz bastante diferença no meu caso é a minha área de pesquisa. Vejo que as ciências sociais e humanas ainda são tratadas por muita gente como se fossem questão de opinião. Já ouvi muita piadinha questionando a seriedade e a relevância de pesquisas qualitativas, além das piadinhas rotineiras sobre a presença de cientistas mulheres só servir pra “embelezar” o ambiente. É desagradável e, infelizmente, esse tipo de coisa não acontece só dentro da universidade. 

    ***

    Descreva a ciência pelos olhos da doutoranda Dayane Machado.

    O processo científico é algo que me fascina. Nunca dá pra ter certeza do que vamos encontrar ao longo da pesquisa e o trabalho costuma ser lento, cheio de complicações, a gente leva muita paulada na cabeça e, com o passar do tempo, se acostuma com essa sensação constante de estupidez, mas existe um momento que nos faz esquecer esses problemas: é aquele instante em que a gente descobre algo que ninguém percebeu ainda. E o mais fascinante é que esse processo não acaba, a gente sempre vai ter coisas incríveis pra descobrir.

    ***

    Nós, do Ciência Pelos Olhos Delas, agradecemos a generosidade e a disponibilidade da Dayane em responder nossas perguntas e contar um pouco mais sobre a pesquisa essencial que ela desenvolve no combate à desinformação. Sigam a Dayane no Twitter para saber mais sobre o trabalho dela: @DayftMachado!

    Este texto foi originalmente no blog Ciência pelos olhos delas

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Microfluídica: a pequena e bela tecnologia escondida ao nosso redor

    Quando você pensa em micro ou nanotecnologia, provavelmente pensa em pequenos componentes eletrônicos como o seu telefone, um pequeno robô ou um microchip.

    Mas os testes COVID-19 – que provaram ser fundamentais para controlar a pandemia – também são uma forma de tecnologia miniaturizada. Muitos testes de COVID-19 podem dar resultados em horas sem a necessidade de enviar uma amostra a um laboratório, e a maioria desses testes usa a tecnologia Microfluídica, como você pode ver aqui.

    Diversos produtos já no mercado, desde testes de gravidez a tiras medidores de glicose, impressoras a jato de tinta e testes genéticos, depende da microfluídica.

    Essa tecnologia, sem o conhecimento de muitas pessoas, está em toda parte e é crítica para muitas das coisas que fazem o mundo moderno girar.

    Revisando o conceito de Microfluídica?

    Os sistemas microfluídicos são qualquer dispositivo que processe quantidades reduzidas de líquidos. Os fluidos viajam através de canais mais finos do que um fio de cabelo, e válvulas minúsculas podem ligar e desligar o fluxo. Esses canais são feitos de materiais como vidro, polímeros, papel ou géis.

    Uma maneira de mover os fluidos é com uma bomba mecânica; outra maneira é usar as cargas superficiais de certos materiais; e ainda outra é usar a chamada ação capilar – mais comumente conhecida como absorção.

    A absorção é o processo pelo qual a energia armazenada dentro do líquido o impulsiona através de espaços estreitos.

    Chip Microfluidico – Crédito: Spanky Speed

    Em pequenas escalas, os fluidos se comportam de maneiras não intuitivas.

    Não imagine o fluxo turbulento e caótico saindo de uma mangueira de jardim ou de seu chuveiro. Em vez disso, nos volumes reduzidos de um microcanal, os fluxos são extremamente estáveis. Os fluidos descem pelo canal em fluxos paralelos organizados – chamados de fluxo laminar.

    O fluxo laminar é uma das grandes maravilhas dos sistemas microfluídicos. Os fluidos e partículas no fluxo laminar seguem caminhos que são matematicamente previsíveis – uma necessidade para engenharia de precisão e design de dispositivos médicos.

    Natureza, o grande exemplo de uso da Microfluídica

    Esses processos – inspiradores para pesquisadores – existem na natureza há eras. As plantas transportam nutrientes de suas raízes até os ramos mais altos usando a capilaridade, a inspiração para circuitos microfluídicos que são alimentados de forma autônoma.

    Sistema capilar. Fonte: Wikimedia Commons

    Imitando as propriedades físicas das gotas de chuva, os químicos desenvolveram dispositivos que quebram uma amostra em milhões de gotas e as analisam em velocidades vertiginosas.

    Cada gota é essencialmente um minúsculo laboratório químico que permite aos químicos estudar a evolução das biomoléculas e realizar análises genéticas ultrarrápidas, entre outras coisas.

    E, finalmente, todos os cantos do corpo humano são microfluídicos. Não poderíamos nascer ou funcionar sem intrincados capilares sanguíneos que levam alimentos, oxigênio e moléculas de sinalização para todas as células.

    Os benefícios da tecnologia Microfluídica

    Assim como a microeletrônica, o tamanho é fundamental na microfluídica.

    À medida que os componentes ficam menores, os dispositivos podem contar com as propriedades estranhas de líquidos em escalas micrométrica, e operar com mais rapidez e eficiência e são mais baratos de fabricar. A revolução da microfluídica foi silenciosamente pegando carona em sua contraparte eletrônica.

    Outro grande benefício dos dispositivos microfluídicos é que eles requerem apenas pequenas quantidades de líquido e, portanto, podem ter um tamanho minúsculo. A NASA vem considerando analisadores microfluídicos para seus rovers de Marte há muito tempo.

    A análise de fluidos preciosos – como sangue humano – também se beneficia da capacidade de usar pequenas quantidades de amostras. Por exemplo, medidores de glicose são instrumentos microfluídicos que requerem apenas uma gota de sangue para medir o açúcar no sangue de um diabético.

    Microfluídica em tecnologia, biologia e medicina

    Provavelmente, você usa microfluídica com bastante frequência em sua vida. Por exemplo:

    • As impressoras a jato de tinta emitem pequenas gotas de tinta.
    • As impressoras 3D espremem o polímero fundido através de um bico microfluídico.
    • A tinta em canetas-tinteiro e canetas esferográficas flui através de princípios microfluídicos.
    • Nebulizadores para pacientes asmáticos borrifam uma névoa de gotículas microscópicas de drogas.
    • Um teste de gravidez depende do fluxo de urina dentro de uma tira de papel microfluídica.

    Na pesquisa científica, a microfluídica pode direcionar drogas, nutrientes ou qualquer fluido para partes muito específicas dos organismos para simular com mais precisão os processos biológicos.

    Por exemplo, pesquisadores prenderam vermes em canais e os estimularam com odores para aprender sobre os circuitos neurais. Outra equipe direcionou nutrientes para áreas específicas da raiz de uma planta para observar diferentes reações aos produtos químicos de crescimento.

    Outros grupos criaram armadilhas microfluídicas que capturam fisicamente células tumorais raras do sangue. Sistemas de chips genéticos microfluídicos fornecem o poder de sequenciar rapidamente o genoma humano e tornar realidade os testes de DNA personalizados, como a 23andMe.

    Nada disso teria sido possível sem a Microfluídica.

    Microrreator de 3 entradas.

    O futuro da Microfluídica

    A microfluídica será crítica para conduzir a medicina a uma nova era de ritmo acelerado e acessível. Dispositivos vestíveis que medem as substâncias no suor para monitoramento de exercícios e dispositivos implantáveis ​​que administram medicamentos contra o câncer localmente ao tumor de um paciente são algumas das próximas fronteiras da microfluídica biomédica.

    Os pesquisadores estão desenvolvendo sistemas microfluídicos complexos e fascinantes, chamados de órgãos-em-chip, que têm como objetivo simular vários aspectos da fisiologia humana.

    Se você quer saber mais sobre órgãos-em-chip acesse o nosso artigo que explica um pouco mais do assunto aqui

    Diversos laboratórios em todo o mundo estão desenvolvendo plataformas tumor-on-a-chip para testar medicamentos contra o câncer com mais eficiência.

    Esses “avatares” de pacientes permitirão aos cientistas testar novos tratamentos de uma forma que não acarrete custos, sofrimento e questões éticas associadas aos testes em animais ou humanos.

    Imagine ir ao médico, extrair uma biópsia e, em menos de uma semana, usando um dispositivo microfluídico, o médico pode descobrir qual coquetel de drogas funciona melhor para remover o tumor.

    Isso ainda está no futuro, mas o que sabemos é que o futuro será microfluídico.

    Por Albert Folch, via The Conversation 

    Este texto foi escrito originalmente no blog Microfluídica

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Nova técnica de impressão 3D pode levar a diagnósticos rápidos e econômicos

    Usando a técnica de impressão 3D, pesquisadores da Universidade Católica de Lovaina ou KU Leuven, na Bélgica, fabricaram uma versão 3D de um teste de fluxo lateral. A base é um pequeno bloco de polímero poroso, no qual “tintas” com propriedades específicas são impressas em locais precisos

    Esses testes são amplamente utilizados na forma de testes COVID-19 e de gravidez tradicional. Com esse método de impressão, os pesquisadores esperam ser possível o desenvolvimento de testes de diagnóstico de última geração, rápidos, econômicos e fáceis de usar.

    Devido à pandemia de COVID-19 em andamento, todos estão cientes da importância de um diagnóstico rápido. Diversos testes estão disponível e utilizam a técnica conhecida como teste de fluxo lateral.

    Aqui nesse blog, você pode ter acesso a vários textos sobre testes e pesquisas de diagnósticos de COVID19.

    Se você tiver interesse, eu recomendo os textos disponível aquiaqui e também aqui.

    Resumidamente, esse teste começa com uma coleta da amostra pelo nariz e posteriormente dissolvida em um solvente e usada no kit de teste. O kit contém um material absorvente que desloca a amostra e permite que ela entre em contato com um anticorpo.

    Dessa maneira, caso um vírus esteja presente, uma linha colorida aparecerá. A vantagem desses testes é que eles são econômicos e não precisam de nenhum dispositivo dedicado.

    Os testes de fluxo lateral são úteis para realizar testes simples que levam a uma resposta sim e não, no entanto, eles não são adequados para testes que precisam de um procedimento de várias etapas.

    Assim, esta é a razão pela qual os pesquisadores da KU Leuven decidiram projetar uma nova forma de teste de fluxo lateral com recursos adicionais.

    Manufatura aditiva precisa

    Os pesquisadores usaram uma impressora 3D e criaram um modelo 3D de um teste de fluxo lateral. A base deste modelo é um pequeno bloco de polímero poroso, onde “tintas” com propriedades particulares são impressas em locais precisos.

    Dessa forma, é impressa uma teia de canais e minúsculas “travas” que permitem o escoamento ou impedem onde e quando necessário, sem a necessidade de peças móveis.

    No momento do teste, a amostra é automaticamente direcionada para as várias etapas do teste. Este método ajuda a seguir até procedimentos complexos.

    Os pesquisadores avaliaram seu método, recriando um teste de Enzyme-Linked Immunosorbent Assay (ELISA), usado para detectar a imunoglobulina E (IgE). Você pode saber mais sobre isso aqui.

    Ig E é quantificada para diagnosticar alergias. Isto é, em ambientes de laboratório, esse tipo de teste envolve uma série de etapas, com variação da acidez e diferentes enxágues.

    Os pesquisadores executaram com sucesso todo o processo usando um kit de teste impresso semelhante a um cartão de crédito.

    A complexidade não é um custo

    A grande vantagem da impressão 3D é que você pode adaptar rapidamente o design de um teste para acomodar outro protocolo, por exemplo, para detectar um biomarcador de câncer. Assim, para a impressora 3D, não importa o quão complexa seja a rede de canais.

    O novo método de impressão 3D também é escalonável e econômico. Segundo os pesquisadores, a produção do teste de protótipo Ig E custa cerca de US$ 1,50, mas poderia ser menos de US$ 1.

    O novo método não só oferece oportunidades para diagnósticos mais rápidos e baratos em países desenvolvidos, mas também em países onde há uma maior necessidade de testes diagnósticos de baixo custo e onde a infraestrutura médica não é altamente acessível.

    Dessa forma, atualmente, os pesquisadores estão desenvolvendo sua própria impressora 3D, que será mais flexível se comparada à versão comercial empregada na nova análise.

    Uma impressora otimizada é como uma mini fábrica móvel que pode produzir diagnósticos rapidamente. Você pode então criar diferentes tipos de testes simplesmente carregando um arquivo de design e tinta diferentes. 

    Fonte: AZoM

    Referência bibliográfica 

    Achille, C, et al (2021) 3D Printing of Monolithic Capillarity‐Driven Microfluidic Devices for Diagnostics Advanced Materials

    Este texto foi escrito originalmente para o blog Microfluídica e Engenharia Química

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, pares da mesma área técnica-científica da Unicamp revisaram o texto. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

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