Categoria: Conhecimento científico para entender pandemia

  • Microfluídica Digital e as gotas movidas por programação

    Microfluidica Digital é um dos ramos mais recentes para manipulação de líquidos que permitem o controle de gotas em superfícies planas através da condutividade do material que recobre as paredes do dispositivo possibilitando operações como mistura, separação, aquecimento e resfriamento.

    Existem basicamente dois tipos de dispositivos na microfluídica digital: os dispositivos abertos (uma camada) e os fechados (duas camadas), sendo esse segundo grupo o mais utilizado por restringir o contato do líquido com o ar ou outros contaminantes.

    Na figura abaixo vemos exemplos dos dois tipos de dispositivo.

    Dispositivos Microfluidicos Digitais. Na esquerda um dispositivo de modelo aberto e na direita um dispositivo de modelo fechado. Imagem: Wheeler lab, Universidade de Toronto

    Como funciona a Microfluídica Digital

    O princípio fundamental da microfluídica digital está no estudo da superfície de contato. Quanto mais hidrofóbica a superfície, menor é a permeabilidade do fluído.

    Essa hidrofobicidade, característica dos dispositivos, cria um campo elétrico em um processo chamado electrowetting on dielectric (EWOD).

    A aplicação desse campo elétrico cria uma camada hidrofílica polarizada na superfície do líquido que achata as gotas. A localização dessa polarização é controlada para produzir um gradiente de tensão que controle a movimentação das gotas na superfície da plataforma microfluídica.

    Os materiais utilizados para base na criação desses dispositivos precisam ser necessariamente materiais dielétricos, como o vidro, que é cercado por eletrodos que acumulam carga e gradientes de campo elétrico.

    A parte superior do dispositivo é tipicamente uma camada hidrofóbica para criar uma baixa energia superficial no ponto de contato entre as microgotas.

    Aplicações recentes da Microfluídica Digital

    Entre as principais aplicações da microfluídica digital está na conexão da área com a química e a biologia para detecção de componentes em fluidos como sangue, saliva ou urina.

    Um dos processos que é possível ser realizado nesse tipo de dispositivo é o PCR, devido a boa capacidade desse tipo de dispositivo de realizar manipulações e leituras de ácidos nucleicos.

    Um estudo recente publicado por Jain e Muralidhar (2020) no períodico Transactions of the Indian National Academy of Enginnering mostra o desenvolvimento de um sistema microfluídico capaz de realizar o exame PCR aliado ao processo EWOD (Electrowetting-on-dielectric).

    Nesse processo, o dispositivo recebe a amostra infectada e um reagente para extração de RNA. A amostra e o reagente passam por uma zona de mistura e por um tratamento térmico.

    Com o RNA extraído, o fluido se movimenta para outra câmara onde se mistura com outros reagentes para conversão do RNA em cDNA em uma nova região de tratamento térmico.

    Por fim, o fluido é transportado para uma terceira região para se misturar novamente com reagentes que amplificariam o DNA da amostra, passa por mais um tratamento térmico (região do PCR) e passa por um detector ótico para gerar a resposta. 

    Outro avanço recente na área é o dispositivo FINDER 1.5 da Baebies. O FINDER 1.5 é uma plataforma de diagnóstico baseada na tecnologia de Microfluídica Digital – realizando testes com baixo volume de amostra com um tempo de resposta rápido.

    Esta tecnologia opera com baixo volume de gotas, permitindo rápido aquecimento e resfriamento. Aquecedores e sensores estão localizados diretamente no cartucho descartável. A operação de teste é totalmente controlada por software.

    Abaixo um vídeo exemplificando melhor como funciona a tecnologia.

    https://www.youtube.com/watch?v=vY8EUMpdTGo&t=82s

    Perspectivas

    A microfluídica digital pode ter um forte impacto nos futuros dispositivos point-of-care e em outros monitoramentos de processos em tempo real.

    Em tempos de pandemia, esse tipo de dispositivo pode acelerar diagnósticos e condições inflamatórias de pacientes, auxiliando em tratamentos e na escolha do procedimento a ser tomado por médicos e enfermeiros.

    Dispositivos como os criados por Jain e Muralidhar, podem significar o futuro dos dispositivos biomédicos.

    Referências

    Jain, V.; Muralidhar, K. Electrowetting-on-Dielectric System for COVID-19 Testing. Transactions of the Indian National Academy of Enginnering, 2020.

    Coelho, B., Veigas, B., Fortunato, E., Martins, R., Águas, H., Igreja, R., & Baptista, P. V. Digital Microfluidics for Nucleic Acid Amplification. Sensors, 2017

    Jebrail, M.; Wheeler, A. Let’s get Digital: digitizing Chemical biology with microfluidic. Current Opinions in Chemical Biology, 2010.


    Texto escrito em parceria com Johmar Souza, @johmarsouza

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    Este texto foi escrito originalmente no Blog Microfluídica & Engenharia Química

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Genética das populações e sua relação com o desfecho relacionado à COVID-19

    Texto escrito por Marco Antônio Marques Pretti e Ana Arnt

    A evolução da pandemia de COVID-19 trouxe à tona diferenças marcantes na taxa de mortalidade entre os países (WHO, 2020). É de se esperar que países mais populosos tenham um maior número absoluto de casos e de desfechos letais. Contudo, quando comparamos estes dados analisando-os pelo total de habitantes de cada país (o que chamamos de “normalizar” os dados), os países mais populosos não possuem, necessariamente, uma taxa maior de mortalidade associada à COVID-19.

    Existem vários  fatores socioeconômicos e políticos conhecidos relacionados a estas diferenças de mortalidade. Todavia, há fatores genéticos que também poderiam estar envolvidos a isto. E nosso grupo de pesquisa buscou compreender exatamente estes aspectos!

    Sobre fatores genéticos, populações e COVID-19

    Nosso grupo de pesquisa, o Laboratório de Bioinformática e Biologia Computacional (LBBC), utiliza diversas ferramentas de bioinformática para o estudo do câncer e também das moléculas de HLA. Mas, o que vem a ser essas moléculas de HLA?

    As moléculas de HLA são proteínas localizadas na superfície da célula (Figura 1). Elas são responsáveis por apresentar ao sistema imune duas coisas:

    1. porções de proteínas da própria célula, 
    2. Porções de proteínas de patógenos que invadem nosso corpo, como é o caso do vírus causador da COVID-19, o SARS-CoV-2.

    Essas partes (ou porções) de proteínas – de nossas células ou dos vírus – são chamadas de peptídeos. Dessa forma, o sistema imune consegue realizar uma varredura no que está sendo expresso pela célula e identificar células infectadas por patógenos e que precisam ser eliminadas.

    Mas há mais uma informação muito importante sobre estas moléculas!

    Elas são muito diversas entre as populações. Isto é, existem milhares de “tipos” de HLA no mundo. No entanto, quando analisamos as HLAs nas pessoas de um mesmo país ou região, estas moléculas tendem a ser bem parecidas. As HLAs são proteínas e, portanto, definidas geneticamente. Cada indivíduo possui até 6 moléculas diferentes de HLA, definidas por alelos (versões dos genes) diferentes, três de origem materna e três de origem paterna (Figura 1). Estas diferenças entre as HLAs é o que possibilita às HLAs se ligarem a diferentes partes dos vírus. 

    Figura 1. Representação esquemática de uma célula com moléculas de HLA de classe I na superfície de membrana. Cada indivíduo pode possuir até seis versões diferentes (alelos) que produzem proteínas HLAs. Existem centenas de alelos de HLA no mundo. Na Figura 1 estão representadas 6 HLAs por cores diferentes (alelos no centro do núcleo da célula), correspondentes a 6 proteínas HLA na membrana da célula. (Imagem de autoria de Marco Pretti)

    Nosso trabalho utilizou ferramentas de predição (previsão) para identificar porções do vírus da COVID-19 com a capacidade de se ligar a mais de 100 alelos de HLA majoritários em 37 países (PRETTI et al., 2020). Assim, ao considerarmos a frequência das diferentes moléculas de HLA-I entre as populações analisadas, foi possível perceber semelhanças entre países com melhor e pior desfecho frente à COVID-19. O que encontramos foi:

    Alguns dos alelos de HLA estão associados a um efeito protetor enquanto outros não.

    Isso nos deu indícios que a participação das moléculas de HLA é importante na COVID-19!

    Para analisar e prever que partes das proteínas dos vírus – os peptídeos, lembra? – que se ligam às moléculas de HLA usamos ferramentas de bioinformática. Isso é importante no desenvolvimento de algumas vacinas e também no estudo da biologia da doença. Imagine que se fosse possível identificar um conjunto de 5 peptídeos virais apresentados por HLAs de todos os povos teríamos em mãos uma vacina universal! Infelizmente não é tão simples encontrar 5 peptídeos apresentados por diferentes HLAs ao mesmo tempo… Por que isso acontece?

    Sobre a Cobertura Antigênica

    Considere as letras do “LBBC” (a sigla do nosso laboratório). Agora vamos fazer um jogo de suposições. Imagine que 15% dos brasileiros têm no seu sobrenome a letra “L” (Ladeira ou Silva, por exemplo). Em uma segunda etapa, vamos analisar quantos brasileiros têm sobrenome com a letra “L”, mais a quantidade de brasileiros que possuem a letra “B” em seus sobrenomes e essa proporção subirá para 25%. Por fim, adicionando ainda a letra “C”, e chegamos na proporção total de 30%. Logo, podemos dizer que as letras “L”, “B” ou “C” cobrem 30% dos sobrenomes brasileiros (e os sobrenomes podem ter 1, 2 ou 3 dessas letras em diferentes combinações).

    Pois bem, é razoável imaginar que nas populações chinesa, estadunidense ou francesa, possa existir estas 3 letras nos sobrenomes das pessoas. Todavia, a  proporção de pessoas com essas letras em seus sobrenomes não será a mesma que na população brasileira, pois os sobrenomes tendem a ser característicos de um povo.

    Se pensarmos nestas letras como os peptídeos que falávamos antes fica mais fácil de compreender como é muito difícil encontrar 5 letras (ou 5 peptídeos) que contenham 100% dos sobrenomes de todo o mundo. Cada população tende a apresentar uma gama diferente de peptídeos, pois seus HLAs são diferentes entre si. Contudo, uma mesma população apresentará peptídeos (letras) parecidas entre si. Isso se chama cobertura antigênica, o conjunto de peptídeos que um indivíduo ou população é capaz de apresentar pelo HLA.

    O que nossa pesquisa fez?

    O que fizemos, em seguida, foi calcular a cobertura antigênica de cada país, a fim de investigar se existe alguma associação entre essa cobertura antigênica e a mortalidade associada à COVID-19. Pera! Que relação seria essa? Associar cobertura antigênica e mortalidade? Isso mesmo. Uma de nossas hipóteses foi de que populações que mostram mais peptídeos virais ao sistema imune (através da HLA) pudessem estar mais protegidos. Ou seja, se um país tem, em média, uma maior cobertura antigênica a mortalidade poderia ser menor. Contudo, não observamos nenhuma associação da cobertura antigênica do vírus como um todo e dados de mortalidade..

    Apesar disso, não nos desanimamos! Continuamos investigando os dados gerados e conseguimos observar outras associações ainda mais interessantes. Antes disso, é importante dizer que o vírus da COVID-19 não é formado de uma só “peça” ou de uma única proteína. Ele possui algumas proteínas.. Algumas destas são responsáveis por manter a estrutura do vírus, outras por facilitar a invasão de células, dentre outras. Duas delas são particularmente importantes: 1) a proteína Nucleocapsídeo, responsável por revestir e proteger o genoma do vírus; e 2) a tão famosa proteína Spike que forma espículas na superfície do vírus.

    Figura 2. Representação de uma partícula do vírus da COVID-19, o SARS-CoV-2. A proteína Spike está representada em vermelho, na superfície do vírus. Fonte: (THE NEW YORK TIMES, 2020)

    Mas, e depois disso?

    Resolvemos então analisar a cobertura antigênica dos países não mais com o vírus inteiro, mas com cada proteína viral. Assim, observamos que a cobertura antigênica para a proteína viral Nucleocapsídeo possui uma correlação positiva com o número de mortes. Em outras palavras, quanto mais peptídeos virais derivados dessa proteína são apresentados ao sistema imune, maiores as chances de morte (em se tratando de população, nunca individualmente). Por outro lado, a cobertura da proteína viral Spike possui uma correlação negativa com o número de mortes. O que significa… que quanto maior a cobertura antigênica para essa proteína, menores as chances de morte!

    Ufa! Se você chegou até aqui, parabéns! Aprendemos bastante coisa, vamos resumir? O estudo sugere que uma maior cobertura para peptídeos derivados da proteína Spike, ao invés da proteína Nucleocapsídeo, pode ter efeitos benéficos. Ou seja, ter uma maior cobertura antigênica para Spike se vincula a um menor número de mortes associadas à COVID-19.

    Não é possível mudar nossas moléculas de HLA (nem queremos isso!), pois elas são uma herança genética. Por outro lado, poderíamos, um dia, determinar grupos que possuem HLAs de risco e que deveriam ser vacinados primeiro.

    Por fim

    De modo geral, o trabalho associou coberturas antigênicas do SARS-CoV-2 com dados de mortalidade de cada país. Nós observamos correlações entre número de mortes relacionadas à COVID-19 e coberturas antigênicas para proteínas do vírus até então não descritas no nível populacional. Além disso, selecionamos diversos peptídeos derivados de porções virais associadas a uma resposta predita como protetora para a COVID-19 e potencialmente apresentados por HLAs com maior frequência na população mundial.

    Em suma, onde esta pesquisa pode nos levar? A compreensão destas relações entre peptídeos e coberturas antigênicas nos possibilitam perceber melhor detalhes moleculares da doença, tanto sobre gravidade da doença e possibilidades de proteção. Estes resultados também podem nos trazer condições para o  desenvolvimento de vacinas de peptídeos seguras, mais eficientes e que abrangem uma maior parcela da população mundial!

    Referências

    PRETTI, MAM et al (2020) Class I HLA Allele Predicted Restricted Antigenic Coverages for Spike and Nucleocapsid Proteins Are Associated With Deaths Related to COVID-19. Frontiers in immunology, v11, p565730. 

    THE NEW YORK TIMES (2021) Bad News Wrapped in Protein: Inside the Coronavirus Genome – The New York Times.

    WHO, COVID-19 situation reports.

    O Autor

    Marco é graduado em Farmácia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em oncologia pelo Instituto Nacional de Câncer e aluno de doutorado pelo mesmo Instituto. Além da oncologia, possui interesse em imunologia, bioinformática e ciências da vida. Durante o confinamento teve que substituir a prática de voleibol por atividades físicas indoor.

    Ana Arnt, Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência! 😉

    Este texto foi escrito para o blog EMRC

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Tecnologia microfluídica da LumiraDx é aprovada pela ANVISA para teste de antígeno SARS-CoV-2

    Teste de antígeno COVID-19 da LumiraDx. Fonte: LumiraDx.

    Prezado leitor, eu realmente espero que esteja tudo bem com você e sua família. Diante de tantas notícias ruins que tivemos no ano de 2020, a aprovação pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) das primeiras vacinas no Brasil é um alento para todos nós. E temos outra boa notícia para nós que estamos na luta contra o COVID-19 e que nos dedicamos ao estudo da Microfluídica.

    No dia 18 de janeiro, a ANVISA concedeu aprovação para o teste de antígeno LumiraDx SARS-CoV-2. A LumiraDx foi fundada em 2014 e desde então a empresa desenvolve, fabrica e comercializa plataformas de diagnóstico em pontos de atendimento. A plataforma LumiraDx oferece resultados de diagnóstico em alguns minutos, sendo de baixo custo e acessível aos profissionais de saúde.

    O teste LumiraDx SARS-CoV-2 Ag é um ensaio de imunofluorescência* microfluídica para detecção direta e qualitativa de proteínas do nucleocapsídeo** em amostras nasais ou nasofaríngeas de pacientes com suspeita de COVID-19. Usado com o instrumento LumiraDx, o teste fornece resultados rápidos no ponto de atendimento. Os resultados de elevada sensibilidade são obtidos em 12 minutos a partir do início da análise.

    Segundo estudos clínicos realizados, o teste LumiraDx SARS-CoV-2 Ag nos instrumentos LumiraDx permitirá um desempenho clínico de 97,6% de concordância percentual positivo e 96,6% de concordância percentual negativo, com um limite de detecção de 32 TCID50/mL***.

    Como usar o teste de antígeno da LumiraDX?

    Segundo a empresa, a plataforma LumiraDx deve ser operada em temperatura ambiente entre 15 °C e 30 °C e umidade relativa de 10% a 90%. A amostra extraída do paciente deve ser usada dentro de 5 horas de preparação quando armazenado à temperatura ambiente. As amostras nasais extraídas podem ser congeladas a -80 °C e usadas até 5 dias após o congelamento. As amostras e o tampão de extração devem estar em temperatura ambiente antes do teste.

    O processo de forma geral funciona em quatro etapas: preparação da amostra (Prep sample); inserção da tira de teste (Insert Test Strip); execução do teste (Apply & Run) e análise dos resultados (Report results).

    O teste começa com uma coleta de uma amostra de zaragatoa do paciente, i.e., colheita de amostras a partir da parte detrás do nariz e garganta. Em seguida, o cotonete do paciente é colocado em um frasco com solução Tampão de extração por 10 segundos. O cotonete é removido do frasco, sendo esse então selado.

    O próximo passo é a inserção da tira de teste. Após a inicialização da plataforma LumiraDx e quando solicitado, a porta do equipamento é aberta e a tira de teste é inserida cuidadosamente. Essa tira vem junto com os materiais do teste.

    Em seguida deve-se selecionar o tipo de amostra apropriado (SARS-CoV-2 Ag) e confirmar o tipo de teste (Nasal Swab). Em seguida ocorre a aplicação da amostra do frasco na tira de teste. A empresa recomenda a aplicação de uma gota inteira da amostra na área de aplicação da amostra da tira de teste quando solicitado pelo instrumento. Após o fechamento da porta do equipamento, a análise se inicia. Os resultados são exibidos em até 12 minutos após a aplicação da amostra, sendo os resultados do teste lidos no próprio instrumento da LumiraDx.

    Mais informações são disponibilizados no site da empresa: https://www.lumiradx.com/uk-en/

    O registro na ANVISA pode ser visualizado neste link: https://www.smerp.com.br/anvisa/?ac=prodDetail&anvisaId=81327670118



    * Imunofluorescência é uma técnica que permite a visualização de antígenos nos tecidos ou em suspensões celulares utilizando corantes fluorescentes, que absorvem luz e a emitem num determinado comprimento de onda (c. d. o.). Quando o corante está ligado ou conjugado com um anticorpo, os locais de reação entre o antígeno e o anticorpo conjugado podem facilmente ser visualizados. Os fluorocromos mais utilizados em técnicas de imunofluorescência são a fluoresceína isocianetada (FITC) e rodamina.

    Fonte: Wikipédia

    ** Nucleocapsídeo é uma estrutura viral formada pela associação do capsídeo com o ácido nucléico do vírus.

    Fonte: Wikipédia

    *** TCID50 – Dose infecciosa para 50% da cultura de tecidos.

    Este texto foi escritp originalmente no blog Microfluídica e Engenharia Química

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Dados da Covid: como pesquisadores e imprensa toureiam o Quinto Risco

    Texto produzido por Marcelo Soares

    Há um ano, comecei a observar com lupa as informações disponíveis sobre o espalhamento da doença. Isto às vésperas daquele breve momento em que São Paulo parou quase completamente para evitar o espalhamento do então novo coronavírus. Queria ter uma ideia do que se sabia sobre o vírus. A resposta era simples: muito pouco. 

    O Ministério da Saúde tinha um painel atualizado diariamente, mas apenas com o estado conhecido do vírus naquele dia. Os dados eram granulares apenas por Estado, o que não permitia muita sofisticação de análise.

    Uma das principais peculiaridades de um país do porte do Brasil é ter cidades mais populosas que países inteiros. Antes do distanciamento social, consegui ir duas vezes de uma cidade tão populosa quanto a Bolívia (São Paulo) para outra tão populosa quanto o Chipre (Campinas). A razão das viagens eram minhas primeiras aulas no mestrado do Labjor. Ao sair de casa às seis da manhã, usava um moletom. Todavia, ao chegar à Unicamp, estava suando em bicas mesmo com o moletom na mochila. A área de São Paulo é semelhante à do Reino Unido inteiro. E o vírus se espalha de maneiras diferentes conforme as diferentes populações mudam de comportamento. Nesse contexto, dados agregados por Estado não são tão úteis para entender a dinâmica da pandemia.

    Os dados de Coronavírus no Brasil

    Inicialmente, o painel federal trazia três categorias de números. Primeiramente, o número de casos suspeitos (ou seja, pessoas que buscaram atendimento e foram testadas). Também tinha os casos descartados (ou seja, testes negativos) e, por fim, confirmados – até ali, ainda não havia mortes. Em seguida, passaram a ser publicados apenas os casos confirmados. Em 9 de março, tornei meus gráficos públicos pela primeira vez, no site da minha empresa, Lagom Data

    A fonte era o Ministério da Saúde, que por qualquer lógica seria a única fonte legítima de informações sobre saúde no país. Entra governo, sai governo, o corpo técnico do Sistema Único de Saúde é altamente qualificado e estaria preparado para qualquer parada. 

    O Quinto Risco

    Estaria preparado, exceto uma situação… Se estiver mais vulnerável do que de costume ao que Michael Lewis chamou de “O Quinto Risco”. Ou seja, “o risco que a sociedade corre quando adota o hábito de sanar riscos de longo prazo com soluções de curto prazo”. O livro trata do governo Trump, mas aplica-se bem aos governos que tentam imitá-lo. Por lá, como mostra o livro, o que por diversas vezes salvou a sociedade dos ímpetos de um político populista, foi o espírito público do funcionalismo estável e qualificado. 

    Nas semanas seguintes, veríamos dois ministros serem “fritados” e, mesmo não sendo ministros dos sonhos, serem substituídos por um pesadello. Dessa forma, toureando com uma das mãos uma emergência global de saúde e com a outra o Quinto Risco, fornecer dados da melhor maneira possível acabou se encaixando nas prioridades do ministério primeiro como uma filigrana e depois como um campo de batalha. 

    Quando esse gráfico acima foi publicado, eu já tinha percebido um padrão curioso. Por exemplo, a Bahia permaneceu por uns três dias com apenas três casos confirmados da doença. Por curiosidade – principal ferramenta de trabalho de um jornalista -, chequei o site da Secretaria da Saúde da Bahia. Estavam lá nove casos. A forma de coleta de dados do Ministério da Saúde consistia em aguardar o telefonema das secretarias estaduais para atualizar os dados. Isto segundo explicou uma reportagem do “El País”. Isso mesmo que vocês leram. Temos um Sistema Único de Saúde, presente em todos os municípios brasileiros e, bem ou mal, equipado para centralizar alertas sobre doenças de notificação compulsória. Mas o Ministério aguardava telefonemas com dados.

    Garimpando dados “na unha”

    Então, comecei a visitar diariamente os sites das 27 secretarias estaduais de saúde do Brasil para coletar os novos dados. Para quem cobriu eleições nos anos 90, nos primórdios da internet e do voto eletrônico, quando a apuração durava dias e dias, não era nada de outro mundo. 

    A lógica era simples: assim como o governo federal detalhava por Estados, os estaduais detalhariam por município. E foi o que fizeram. Só que, sem orientação central sobre como fazê-lo, cada secretaria fez isso do jeito que achou melhor. Umas publicavam releases: “Ontem, foram identificados X casos na cidade Y”. Outras publicavam cards em redes sociais. Algumas outras, em PDF – um formato que permite fazer de conta que se abre dados mesmo dificultando a vida de quem quer analisá-los. Outras ainda, em tabelas no site. Entretanto, uma minoria publicava em planilhas. Assim, em poucos dias, um levantamento que me tomava 15 minutos já estava tomando uma hora. E depois aumentou.

    Essa bagunça de formatos só mudou quando a ONG Open Knowledge Brasil criou um ranking de transparência dos Estados com os dados da Covid-19. Para subir no ranking, cada Estado pôs pressão em suas equipes para melhorar o formato de divulgação dos dados. Em dois meses, os maiores fiascos de março eram modelos de transparência. 

    Apenas em maio, às vésperas da saída do segundo ministro da Saúde da pandemia, o ministério passou a publicar os dados por município. Até aquele ponto, as únicas fontes de dados que compilavam informações de todos os municípios do Brasil, eram o monitoramento da Lagom Data e uns dois ou três outros que surgiram depois com a mesma lógica.

    Por algumas vezes, jornalistas e pesquisadores diziam que esses monitoramentos eram a fonte mais confiável de informações sobre a doença. Sempre achei isso perigoso.

    Seguro ou completo? Para que serve um monitoramento de dados?

    Mais completos, com certeza os bancos de dados independentes eram – a finalidade de um monitoramento assim é justamente mostrar ao poder público, que gera as informações, que esses dados são cruciais para monitorar a emergência e que eles podem ser organizados de maneira mais útil. A confiabilidade, porém, sempre esteve longe das nossas mãos.

    É um erro achar que dados obtidos de segunda mão possam ser mais confiáveis do que dados de primeira mão. Por melhor organizados que estejam, eles dependem dos dados de primeira mão para existir. E a primeira mão é necessariamente a de quem define e executa as políticas de enfrentamento da doença nos municípios, Estados e governo federal. É a mão de quem pode frear o Quinto Risco. Lá na ponta, costumo dizer, os dados são profundamente humanos. No caso dos dados da Covid, eles são anotados em fichas de papel pelos mesmos profissionais da saúde exaustos que atendem a pacientes em casos emergenciais com escassez de equipamentos de proteção individual e outros recursos. 

    Para haver um número de casos confirmados, precisaríamos de mais testes aplicados.

    O Brasil sempre testou muito menos do que outros países, em parte pelo gigantesco tamanho da sua população. Mais ainda: o Brasil no agregado é uma ficção; as extremas desigualdades do país apareceram com força no combate à Covid. Nos testes, cada Estado aplicou do jeito que pôde ou achou mais conveniente. Em Minas Gerais, por exemplo, o secretário da Saúde dizia em março que até tinha testes para aplicar, mas testava pouco porque estava guardando esses preciosos recursos para quando se fizessem realmente necessários. Sabe-se lá quando seria esse dia, não sei se ele já chegou. Mas, com critérios diferentes de testagem em toda parte, era temerário comparar os dados róseos de Minas Gerais com os dados assombrosos que vinham de Pernambuco, um dos primeiros Estados cujo sistema de saúde entrou em colapso. 

    Para haver um número de mortes confirmadas, era preciso que o paciente estivesse ao menos com suspeita de Covid.

    Os primeiros pacientes a morrer de Covid no Brasil sequer eram considerados casos suspeitos da doença. Pela orientação original do Ministério da Saúde, deviam ser testados apenas os pacientes que tivessem viajado ao exterior ou soubessem ter tido contato com alguém que viajou. Enquanto o primeiro a ter a doença confirmada, em São Paulo, era um empresário que voltou de viagem à Lombardia, a primeira senhora que morreu, no Rio, era a diarista cuja patroa havia voltado de viagem. O primeiro morto em São Paulo era um porteiro. Nenhum dos dois estava sendo tratado como um caso de Covid antes da morte.

    Enquanto isso, os hospitais iam lotando numa medida que não refletia exatamente os dados oficiais da Covid. Ao final de março, os pesquisadores do Infogripe, da Fiocruz, alertaram para uma alta nos casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave de causa não identificada, uma classificação genérica criada quando não se tem como confirmar o que causou a internação. Em Belo Horizonte, capital daquele Estado que guardou os testes para quando fossem necessários, em junho havia 9 mortes de SRAG para cada uma confirmada como sendo de Covid. Já em 2021, a Fiocruz cravou que 70% dos casos de SRAG não identificada no Brasil eram Covid mesmo. 

    O fato é que a pressão da sociedade civil, especialmente da imprensa e de pesquisadores independentes, fez com que se tivesse muito mais dados disponíveis no país. Desde maio, é possível baixar os microdados de SRAG, com informações sobre cada paciente. O governo que não me ouça, mas os dados do painel do Ministério da Saúde melhoraram muito em disponibilidade e qualidade depois da pressão exercida de fora. 

    Uma pausa? [lógico que não]

    No início de junho, parecia que o monitoramento da Lagom Data não tinha mais razão para existir. Ao menos em termos de informação fornecida oficialmente, estava tudo mais tranquilo. Não precisávamos mais ser caçadores e coletores, poderíamos trabalhar mais no processamento dos dados, na análise de suas lacunas. Lógico que eu estava errado. 

    Dia após dia, naquela fase em que o servidor batia seu cartão pela manhã sem saber quem seria seu chefe à tarde, o Ministério da Saúde foi jogando para mais tarde a divulgação dos dados federais. Em 5 de junho, eles divulgaram o dado depois das 21h30, e nas palavras do próprio inquilino do Alvorada isso ocorreu para que o número de 1.005 mortes confirmadas em um só dia não fosse notícia no Jornal Nacional. 

    O Quinto Risco “estava on” com todas as barrinhas acesas.

    Inclusive nos dias seguintes, o governo ativamente buscou sabotar o fornecimento de dados, inclusive tirando seu painel do ar por alguns dias. (Mesmo nesse período, os dados continuavam sendo atualizados diariamente no site no formato que o inquilino do Alvorada queria extirpar. O funcionalismo estável com espírito público continuou cumprindo sua missão, apesar da bateção de cabeça no topo.)

    Esse breve apagão não teve impacto no trabalho que a Lagom Data fazia, nem mesmo afetou o que as outras iniciativas coletavam. Pois, desde o começo, elas se organizaram a fim de suprir a falta de informações centralizadas no governo federal. Pelo contrário, isso emprestou ainda mais relevância ao nosso trabalho de caçadores e coletores. Tanto que rapidamente surgiu um novo caçador e coletor na área: um consórcio que reunia os principais meios de comunicação brasileiros. Montou-se uma parceria historicamente inédita. Ou seja: fazer exatamente a mesma coisa que meia dúzia de iniciativas independentes e mal financiadas já vinham fazendo havia três meses. Dessa forma, vendo que não adiantava esconder o dado, e pressionado por decisões judiciais, o governo voltou imediatamente a publicar o que tentou esconder. E nunca mais voltou atrás. 

    Nos meses seguintes, o campo de batalha mudou por diversas vezes.

    A questão do número diário de casos e mortes conhecidas foi pacificada a partir dali. Isto é, há pouco questionamento no debate público sobre o tamanho da subnotificação (que continua existindo). A transparência de outros dados passou a se tornar importante. 

    Um dos motivos pelos quais milhões de testes apodreceram num depósito foi justamente a baixa transparência sobre a disponibilidade e aplicação destes. Assim, agora em março de 2021, meses depois da descoberta dos testes vencendo, o governo tentou generosamente doá-los ao Haiti, que os recusou por estarem vencidos. Dias depois do começo da vacinação, o Ministério da Saúde começou a publicar diariamente microdados detalhados sobre as vacinas aplicadas no país. Todavia, isso aconteceu após o questionamento de casos de “vacinas de vento”. Esses microdados tinham muitas inconsistências, mas quando a mesma ONG Open Knowledge os tornou públicos, eles começaram a sanadá-las em poucos dias. 

    Se os dados básicos de certa maneira já estão resolvidos, hoje não podemos falar em apagão na disponibilidade dos dados. A grande questão agora centralizava-se na qualidade dos dados e das decisões de política pública que os governos tomam a partir deles. As idas e vindas das medidas de supressão da circulação do vírus em São Paulo, por exemplo, seguem mais pesquisas de popularidade do que pesquisas epidemiológicas. Dessa forma, há meses existem dados suficientes para ajudar a dar foco a um plano de contenção. Todavia, mesmo assim as medidas e exceções parecem decidir-se na base de quem grita mais alto. Poucos têm os pulmões dos cartolas das igrejas e dos times de futebol, por exemplo. 

    Ou seja, o Quinto Risco não é apenas federal. E ele não deve acabar tão cedo.

    Pesquisadores e jornalistas estão exaustos após doze meses aparentemente gritando ao vento. Mas sempre que pusemos nossos neurônios e análises nessa tarefa, fazendo uma divulgação científica competente, conseguimos fazer as políticas públicas avançarem alguns passos. Isso mesmo que pequenos. Por mais que um governo possa despriorizar a voz da ciência, o que o último ano mostrou é que o corpo técnico estável ouve essa voz. E eles são quem mais consegue defender a sociedade do Quinto Risco.

    Para Saber Mais:

    LEWIS, Michael (2019) “O Quinto Risco” Intrínseca, 2019

    www.lagomdata.com.br/coronavirus

    O autor

    Marcelo Soares é jornalista, diretor do estúdio de inteligência de dados Lagom Data, membro do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) e mestrando no Labjor/Unicamp.

    Este texto é original e exclusivo do Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Como a percepção do risco afeta nosso comportamento na pandemia?

    Texto escrito por Marco Antonio Coelho Bortoleto*

    Viver com a iminência do risco 

    O risco representa um elemento da vida, uma ameaça, um impulsionador, uma razão para pensá-la. Da filosofia clássica à ciência moderna o risco vem sendo objeto de inúmeras reflexões. E, algumas situações acabam ampliando nossa atenção sobre o risco, como vem sendo o caso do atual período da pandemia Covid-19.

    Como vemos cotidianamente, podemos analisar o risco nas suas mais variadas dimensões (econômica, reconhecimento social, saúde, êxito profissional, etc)1. Nos interessa aqui, tratar do risco à integridade/manutenção do estado de bem estar e da própria vida. Uma conversa que perpassa, portanto, a noção de segurança, de prevenção, controle e mitigação do risco, que em conjunto compõem um sub-campo denominado gestão do risco.

    Sociologia do risco

    Nesse ainda efervescente contexto pandêmico, a sociologia do risco emerge como uma possibilidade2. Mais ainda, a noção de PERCEPÇÃO DO RISCO tão relevante para essa área do conhecimento, pode ajudar a melhor entender o modo individual (cada um de nós) e coletivo (grupos sociais) com que as pessoas vivem a ameaça viral e como constroem e reconstroem seu enfrentamento.

    De entrada vemos polarizações semelhantes àquelas já encontradas nas posições políticas, mostrando algumas pessoas/grupos despreocupadas (ao menos discursivamente), outras atentas e buscando atender às medidas de contenção/prevenção e, por fim, outras oscilando entre um lado ou outro. Assim, discursos e comportamentos refletem desde a percepção de uma gripezinha até mesmo a hipertrofia do medo com crises de pânico e depressão. Um problema de saúde pública, como poucos que já vivemos. Eis a razão que explicaria que tantos profissionais e veículos de comunicação têm abordado o fato!

    Um olhar atento à complexidade do risco, pode revelar o que está nas entrelinhas do reconhecimento e o trato do risco. A análise dos múltiplos indicadores (objetivos e subjetivos) faz-se necessária e, como temos visto, pode variar muito entre profissionais (especialistas) e também entre a população em geral. Aliás, opinar é importante, ao revelar o grau de liberdade e de existência numa sociedade democrática, contudo, eleva o grau de risco uma vez que proliferam todos os tipos de análises, criando, com frequência, um estado de confusão ainda maior.

    Logo, quer seja utilizando ferramentas estatísticas, métodos de prospecção probabilísticos, ou mesmo, opiniões fundadas em preceitos religiosos e de sentido comum, o que observamos é um sem fim de comportamentos reforçando ou criticando/negando o risco da pandemia. Enganam-se aqueles que acham que somente os “leigos” erram, ou que os especialistas sempre acertam. Há muito risco – explicado pela epidemiologia dos acidentes – no ambiente doméstico, na condução de veículos por vias próximas e conhecidas, na conduta  do trabalhador experiente. E, certamente há muito ainda que aperfeiçoar nos modelos e algoritmos que utilizamos para predizer a dinâmica de um fenômeno tão complexo quanto essa pandemia, como todos vimos acontecer ao longo de décadas com os dispositivos utilizados para previsão meteorológica, por exemplo.

    Percebendo o risco – estamos diante de um dilema

    É precisamente, a Percepção do Risco, que nos ajuda a refletir em como, entre outras coisas, alguns pesquisadores e profissionais da saúde – que se enquadram na categoria de especialistas – seguem negando a pandemia, sua amplitude bem como alguns ou todos os mecanismos preventivos adotados pelas autoridades. Ou, também, como amigos, pessoas próximas e familiares divergem tanto um dos outros nesse tema. Esse dilema, nos apresentou mais uma CRISE, que já tinha sido notada no campo da política-eleitoral recentemente.

    Assim, a negação ou a minimização do risco pode converter-se num comportamento de risco: ou seja, em condutas que podem ampliar o risco já elevado e, suas consequências. Pior, ainda que eu queira ser esperançoso, muitas vezes, a tentativa de esconder ou infra valorizar o risco representa uma estratégia que visa redirecionar a atenção para outras dimensões da vida individual ou social (econômica, política, ética, laboral, afetiva, …). o referido comportamento de ignorar e/ou minimizar o risco já foi amplamente observado – no campo da sociologia – quando um conjunto de pessoas experienciaram o estado de guerra por um tempo prolongado, ou quando enfrentam uma pandemia, como a do vírus HIV. Temos, então, mais um indicador que contribui para entender o que temos visto Brasil afora, após um ano de pandemia. 

    Cabe relembrar que não é uma novidade a proliferação de frases de efeito, para combater o risco, como, por exemplo: “precisamos viver”, “abram tudo”, “apenas alguns vão morrer”, “é melhor enfrentar o vírus de peito aberto do que fugir dele”, “essa doença é para os fracos”, …  um discurso forte, repetido e maquiado por agumentos supostamente válidos, pode assumir o controle do comportamento de algumas pessoas e, algumas vezes, das massas.

    Em poucas palavras, notamos que a percepção do risco – como construção subjetiva – pode variar significativamente, considerando o quão distante estamos do problema (o imaginamos estar), quais informações temos sobre os riscos, quanto temos a perder, entre outros aspectos. Com efeito, a opinião de uma pessoa, pode, quando reverberada nos meios e com a força adequada, tornar-se uma percepção coletiva. Por isso, o poder conferido às autoridades e, de certa forma tod@s @s internautas das redes e dos apps, representam, na atualidade, um poderoso mediador dessas percepções. Por conseguinte, relevantes indicadores para a sociologia do risco.

    Controlar o risco – mais que uma opção, uma necessidade

    A mesma sociologia do risco indica que, a observação dos fatos (acidentes, epidemias, lesões, …) e dos comportamentos, constituem uma boa metodologia para o controle do risco. Aprendemos, pois, que a busca por mecanismos redundantes de verificação (medir a temperatura, testagem em massa, …). Possuir uma “cópia de segurança”, solicitar uma segunda opinião no diagnóstico, verificar a informação em outra fonte, exigir um segundo laudo pericial, utilizar outra ferramenta/algoritmo para os cálculos, são alguns dos mecanismos de redundância empregados em distintas áreas. Deixar de realizar essas operações, como usar outro amigo do mesmo grupo do whatsapp pode, pelo contrário, promover a confirmação de um diagnóstico equivocado.

    Por isso, a instauração de um olhar complexo incluindo variáveis biológicas/genéticas, psicológicas, afetivas, econômica e sociais, são fundantes para a constituição de uma “cultura de segurança” que, mesmo incapaz de extinguir o risco pode ajudar na instauração de um controle amplo e tolerável, oferecendo condições para a normalização da vida.

    Desse modo, os protocolos sanitários (uso de EPI, verificação constante dos avanços farmacológicos e procedimentais, emprego amplo da vacinação, …) são empregados como modelos a serem seguidos. Isto é, são necessários para enfrentar o caos que temos observado nos discursos e nas práticas de governantes, gestores, especialistas e da comunidade em geral. 

    O controle do risco, por meio de mecanismos preventivos e sua consequente ampliação do estado de segurança, é apontado pela sociologia e com forte apoio das pesquisas em Saúde Pública e Economia, como uma ação mais efetiva. O tratamento, uma vez instaurado o problema (o contágio pelo vírus nesse caso), é mais oneroso, lento e exigente, ampliando os sacrifícios pessoais e institucionais. 

    Isso posto, mesmo não existindo uma solução simples, pragmática e rápida, apesar da urgência e gravidade da situação, fomentar os procedimentos de controle do risco representa uma missão de todos, principalmente das autoridades.

    Comportamento de risco – ponderando sobre nossas decisões

    Devemos entender que nossas decisões e, por consequência, nosso comportamento na esfera íntima e, especialmente, na pública, não deveria balizar-se numa conduta de risco deliberado como numa APOSTA3. Perder, quando a integridade da vida é o que se está apostando, pode representar o fim, uma tragédia para nós e/ou para muitos que convivem conosco. Sendo assim, “apostar” no não uso da máscara em meio a tantas evidências de sua eficácia no controle (diminuição) do contágio, representa um bom exemplo de comportamento de risco. Uma clara sinalização de estarmos subestimando o risco real por razões que carecem de comprovação factual, como já mencionamos.

    Esse e outros comportamentos que negam a magnitude da atual pandemia mundial, vêm construindo uma percepção turva dos riscos4, um cenário confuso que entorpece as decisões (individuais e coletivas), ao ponto de ignorar muitas das estratégias preventivas, como o isolamento social, a higienização recorrente das mãos, entre outras5. Constitui-se, dessa forma, um cenário favorável para a emergência de diferentes condutas de risco 2, muitas vezes inadvertidas e que ignoram o risco e suas consequências para a vida. 

    O controle do risco é, com frequência, mais eficiente quando realizado com múltiplos agentes, estando ainda baseado em distintas perspectivas teórico-metodológicas. A prevenção, como estratégia, costuma ser mais barata e eficiente, do que a remediação, como já dissemos. Consequentemente, a implementação de procedimentos avaliativos e preventivos que contribuam para minimizar os riscos e aumentar o controle de segurança, torna-se um empreendimento de co-responsabilidade (individual-coletivo). Em suma, um dever de tod@s!

    Em oposição, condutas temerárias, como a de publicar ou reverberar informações dúbias, fake news ou mesmo narrativas representam um ato de construção de uma percepção negacionista do risco, ampliam nossa dificuldade de afrontar a pandemia. O mesmo se aplicaria à condutas como dirigir embriagado, não utilizar EPI em trabalhos que os exijam, indicar medicação sem o devido diploma para tal, dentre tantas outras.

    Vale lembrar que o risco não deve ser encarado como um aspecto negativo, como algo RUIM, mas como uma dimensão da vida que pode ajudar na sua manutenção. Reconhecendo sua natureza ambivalente6. Por isso, numa sociedade superprotetora parece-me ainda mais urgente, rever o processo de educação do RISCO, nem subestimando-o, nem promovendo a hipertrofia do medo. 

    Fica patente que a gestão do risco deve integrar todos, mostrando que somos CO-RESPONSÁVEIS, individual e coletivamente. A busca e a difusão dos protocolos e dos comportamentos devem compor a agenda universal. Evidentemente, a gestão do risco pode e deve ser debatida considerando diferentes perspectivas (das teorias psicológicas à matemática da Teoria dos Jogos). Mas esse será tema para uma outra conversa.

    Para saber mais

    1. COLLARD, L., « Le risque calculé dans le défisportif », L’Année sociologique, n° 2, vol. 52,2002.

    2a. LE BRETON, David. La sociologie du risque. Paris: PUF , 2016.

    2b. Le Breton D (2017) Conduites à risque. Des jeux de mort au jeu de vivre. Paris: PUF.

    3. COHEN, J (1956) Risk and gambling, New York: Longmans, Green and Co Inc.

    4. BRETON, David Le (2019) Ambivalences du risque. Sociologias,  Porto Alegre ,  v21, n52, p34-48.

    5. Percepção do risco e prevenção na pandemia (2020)

    Saber mais 

    Aplicabilidade no campo da segurança do trabalho (Risco e Segurança no Circo) – Reportagem Revista CIPA

    Lupton Deborah (ed.). Risk and Sociocultural Theory: New Directions and Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press,  1999.

    O que é risco 

    O autor

    Marco Antonio Coelho Bortoleto Professor Associado do Departamento de Educação Física e Humanidades (DEFH) da FEF/UNICAMP Suas pesquisas no campo da Sociologia e particularmente da Sociologia do Risco tiveram início devido ao interesse na noção de risco (e algumas derivadas: segurança, prevenção, …) no campo das práticas acrobáticas – principalmente da Ginástica Artística e do Circo.  Há mais de 15 anos estabeleceu a “cultura de segurança” como uma linha de pesquisa, com diversas publicações, com destaque para a co-organização de um livro “Segurança no Circo: questão de prioridade”; e um recente capítulo publicado na França sobre a percepção do risco entre artistas circenses brasileiros.

    BORTOLETO, MAC. Perception du risque et causes d’accidents, un challenge permanent dans l’éducation des artistes brésiliens. IN: GOUDARD, Philippe; BARRAULT, Denys. (ed.). 

    Médicine et Cirque, Sauramps Medical, Montpelier, 2020.

    FERREIRA, D.; BORTOLETO, MAC.; SILVA, E. Segurança no Circo: questão de prioridade. Várzea Paulista, Ed. Fontoura, 2015. 

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Conheça a Dra. Katalin Karikó, a cientista que desenvolveu a técnica da vacina de RNAm para a COVID-19

    Katalin Karikó durante o doutorado em 1980 no Laboratório de RNA do Centro de Pesquisa Biológica na Academia de Ciências Húngara. Imagem retirada de https://www.telegraph.co.uk/global-health/science-and-disease/redemption-one-scientists-unwavering-belief-mrna-gave-world/

    Texto escrito em colaboração por Carolina Francelin e Gabriela Mendes, com contribuições de Juliana Lobo.

    No final do ano passado, em meio às notícias de que as primeiras vacinas para a COVID-19 haviam sido aprovadas ao redor do mundo, começamos a pesquisar sobre a Dra. Katalin Karikó, pioneira no uso da tecnologia de RNAm, que prontamente foi escolhida para ser o tema do primeiro texto da categoria “Colírios Científicos” no Ciência Pelos Olhos Delas em 2021.

    Diante da pandemia causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), a ciência provou sua magnitude no século XXI e vários laboratórios pelo planeta lançaram, em tempo recorde, diferentes tipos de vacina com eficácia comprovada. Em meio a uma verdadeira corrida contra o relógio para frear o avanço pandêmico, não há como não destacar o trabalho inovador da Dra. Katalin Karikó na criação da vacina de RNA mensageiro (RNAm), a molécula responsável por produzir as proteínas codificadas pelo DNA dentro das células.

    A tecnologia desenvolvida pela Dra. Karikó está nas vacinas aplicadas pelas empresas de biotecnologia Moderna (EUA) e BioNTech (Alemanha), sendo que essa última atua em acordo de produção e distribuição da vacina com a farmacêutica Pfizer. Por causa da extensa pesquisa feita por Katalin e por seus colegas nas últimas décadas, e também devido à tecnologia disponível atualmente, a produção da vacina de RNAm específica para o novo coronavírus foi feita num curtíssimo espaço de tempo (de dezembro de 2020 a janeiro de 2021) e doses dela já foram distribuídas e aplicadas em vários países, como Estados Unidos e Inglaterra. 

    Com esse texto sobre a Dra. Katalin Karikó, queremos ressaltar o quão importante foram a perseverança e a resiliência dessa cientista que, durante décadas, trabalhou incansavelmente em um tema de pesquisa que ela acreditava ter um grande potencial terapêutico. Além disso, compartilhamos também um pouco da sua vida pessoal e trajetória como imigrante nos Estados Unidos.

    A vida e o início da carreira da Dra. Katalin Karikó

    Katalin Karikó nasceu na Hungria em 1955, logo após a reinstalação do regime comunista no país. Assim que concluiu seu doutorado pela University of Szeged, ela se viu limitada a continuar a pesquisa em seu país por dois motivos: a Hungria passava por uma recessão financeira que restringia o incentivo à pesquisa, e seu tema de estudo, já então sobre o RNA¹, era menosprezado e até mal visto frente às novidades acerca do DNA². Dessa forma, em 1985 ela migrou com seu esposo e sua filha de dois anos para os Estados Unidos para assumir um cargo de pós-doutorado na Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia. 

    Mesmo enquanto cientista nos EUA, a insistência e o interesse de Katalin na pesquisa envolvendo terapias com base no RNAm fizeram com que ela fosse desprezada muitas vezes durante a sua carreira. Na vida científica – e principalmente no meio acadêmico – isso significa ter pedidos de financiamento para desenvolver a pesquisa negados diversas vezes, tanto por agências federais quanto privadas. 

    Essas negativas prejudicaram a produção de artigos da Dra. Karikó, e também resultaram em  descrédito pelos colegas da área. Durante o seu trajeto para alcançar uma posição como professora da Universidade da Pensilvânia, a pilha de pedidos de financiamento negados aumentava e a instituição recusou a promoção de Katalin. Mas ela foi persistente e o sonho de salvar vidas por meio da terapia com RNAm sintético a fez insistir e seguir adiante a cada crítica negativa recebida.

    Katalin trabalhando em um laboratório. Image retirada de https://nypost.com/2020/12/05/this-scientists-decades-of-mrna-research-led-to-covid-vaccines/

    Os 40 anos de pesquisa sobre RNAm 

    Em uma época em que o DNA tinha acabado de ser sequenciado, por volta de 1962, a descoberta do RNAm abriu novas oportunidades para terapias pontuais. Naquele tempo, Katalin já acreditava que para tratar algumas doenças não era necessário mudar os genes, no DNA,  e sim somente produzir, ou deixar de produzir, a proteína de interesse por um determinado momento, durante um tratamento terapêutico, por exemplo. 

    Para isso, ela desenvolveu a terapia de RNAm, que consiste em injetar uma sequência de RNAm no paciente através de uma injeção intramuscular. O RNAm consegue entrar nas células e, uma vez dentro delas, induzirá a produção da proteína de interesse. Contudo, os experimentos de Katalin não traziam resultados satisfatórios, principalmente porque após o RNAm ser injetado, as células do sistema imune do paciente reconheciam a molécula como estranha, e tentavam combatê-la e eliminá-la antes mesmo dela conseguir desempenhar sua função de produzir a proteína específica dentro de uma célula. 

    A mudança de trajetória e o sucesso da vacina de RNAm para a COVID-19

    Durante esses anos difíceis, sem resultados concretos e sem financiamento, a Dra. Karikó foi rebaixada de cargo na Universidade da Pensilvânia e somente ao se encontrar com o Dr. Drew Weissman, em 1997, que ela ganhou novos ânimos. O trabalho de 7 anos da dupla culminou na descoberta do método para prevenir a resposta do sistema imune do organismo ao RNAm sintético. Eles descobriram que ao mudar apenas uma letra do código genético do RNA, as células do sistema imune do paciente não reconheciam mais a molécula como estranha, permitindo sua ação dentro da célula. 

    Essa descoberta ocorreu em 2004 e gerou para a Universidade da Pensilvânia a venda de patentes da metodologia para criar o RNAm modificado e, com isso, a reputação da Dra. Katalin se transformou. Com a venda das patentes, um grupo de cientistas estadunidenses fundou a Moderna, em 2010, e comprou os direitos sobre as patentes de Karikó e Weissman. O rumo da carreira de Katalin mudou de direção e além do cargo de professora e pesquisadora da Universidade da Pensilvânia, em 2013 ela começou a trabalhar na empresa BioNTech, que também adquiriu as patentes da biotecnologia de RNAm sintético, e onde atualmente é vice-presidente

     A inovação da vacina de RNAm é que não há partícula viral ativando o sistema imunológico para produzir anticorpos e células de memória para combater uma possível infecção. Essa partícula de RNAm sintética é o código para a produção de proteína viral, que sozinha não é capaz de causar doença, mas que ativa células do sistema imune a ficarem de prontidão para a eventual contaminação com agente infeccioso. Ou seja, o RNAm induz nosso sistema imune a produzir anticorpos contra o patógeno em questão – nesse caso, o novo coronavírus. 

    O primeiro RNAm sintético foi criado em 1961 e o objetivo dos cientistas era utilizar as células tratadas com ele para produzirem substâncias de interesse terapêutico. Somente em 2020, quase sessenta anos depois, essa tecnologia foi efetivamente aplicada como a vacina para combater a COVID-19.

    Foto recente de Katalin trabalhando em home office durante a atual pandemia. Imagem retirada de https://www.statnews.com/2020/11/10/the-story-of-mrna-how-a-once-dismissed-idea-became-a-leading-technology-in-the-covid-vaccine-race/

    Sem dúvidas, a história da Dra. Karikó é um verdadeiro exemplo de resiliência de uma cientista que, em meio a tantas dificuldades, persistiu com a pesquisa do RNA mensageiro, cuja importância ela sempre acreditou. Em entrevista recente para o The New York Post, ela afirmou que “ninguém deveria ter medo de tomar a vacina”, frase que pode soar simples, mas que é extremamente simbólica ao considerarmos não só o trajeto de Katalin, como também a necessidade de ressaltar o valor da ciência e de combater desinformações a respeito da vacinação. Tanto ela quanto o Dr. Weissman foram as primeiras pessoas a receber a vacina produzida pela BioNTech. 

    Começamos 2021 com mais esperança de que a pandemia chegará ao fim com a imunização das pessoas ao redor do mundo, conquista possibilitada pela pesquisa fundamental da Dra. Katalin Karikó. Depois de uma trajetória com altos e baixos, hoje vários cientistas, incluindo os fundadores da Moderna, opinam que a Katalin deve receber o Prêmio Nobel de Química por sua contribuição à ciência. 

    Notas:

    ¹ RNA: Molécula complementar ao DNA que, ao ser decodificada, produz as proteínas necessárias para o funcionamento do nosso organismo.

    ² DNA: Conhecido também como código genético, a molécula de ácido desoxirribonucléico fica dentro do núcleo da célula e é responsável por codificar todas as informações sobre as células do nosso corpo. 

    Referências:

    https://nypost.com/2020/12/05/this-scientists-decades-of-mrna-research-led-to-covid-vaccines/

    https://www.telegraph.co.uk/global-health/science-and-disease/redemption-one-scientists-unwavering-belief-mrna-gave-world/

    https://edition.cnn.com/2020/12/16/us/katalin-kariko-covid-19-vaccine-scientist-trnd/index.html

    https://www.theguardian.com/science/2020/nov/21/covid-vaccine-technology-pioneer-i-never-doubted-it-would-work

    https://www.timesofisrael.com/the-hungarian-immigrant-behind-messenger-rna-key-to-covid-19-vaccines/

    Este texto foi escrito originalmente no blog Ciência Pelos Olhos Delas

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • O código genético

    Atualmente, temos ouvido/lido muito sobre os termos código genético do vírus, DNA e RNA mensageiro. Mas o que esses termos significam?

    Nós não estamos sozinhos na Terra. Ela é a casa de mais de 8.7 milhões de espécies, isso contando apenas os eucariontes – daqui a pouco conto o que eles/nós temos de especial – e não inclui as bactérias e vírus. Já parou para pensar em como essas espécies garantem que a sua prole tenha as mesmas características da espécie?  

    A ideia de como as informações sobre como os organismos fazem cópias de si mesmos, assim como a instrução para a construção de estruturas e funcionamento de um novo organismo, foi um mistério por um longo tempo. As primeiras peças do quebra-cabeça para enterdemos como as informações estão organizadas nos organismos começou a ser encontrada há muitos anos atrás. 

    Para se ter uma ideia, a célula, a estrutura mínima que compõe os seres vivos, foi descoberta por volta de 1660 graças a invenção do microscópio. Quando Robert Hooke olhou para as fatias finas de cortiça através do microscópio, viu que elas eram compostas por pequenas estruturas, que lembravam buraquinhos de um favo de mel a que ele deu o nome de célula (pequena cela). 

    Esse foi só o início. Com o desenvolvimento da ciência e o aparecimento de novos  instrumentos e técnicas continuamos a descobrir cada vez mais sobre essa pequena unidade que nos compõe.

    O núcleo de tudo isso

    A unidade morfológica em que se baseia a vida, a célula, pode ser classificada em dois grupos principais, as eucarióticas, que possuem núcleo envolto por uma membrana e que contém o material genético – dos quais fazemos parte –  e os procariotos que não possuem núcleo e o material genético fica disperso no citoplasma, como é o caso das bactérias. 

    Apesar da diferença quanto a presença de núcleo, tanto as células eucarióticas quanto as procarióticas possuem membrana plasmática que separa o interior da célula do seu ambiente. Ela tem um papel extremamente importante e acaba selecionando o que entra no interior da célula por meio de diferentes processos. 

    Representação simplificada de uma célula eucariótica.  A imagem foi criada com  BioRender.com.

    Além disso, as células são compostas pelo citosol, ou seja, o interior da célula. Ele é repleto de espécies químicas e organelas, o citoplamas. As organelas são estruturas celulares com funções específicas e separadas do citoplasma por meio de uma membrana. 

    A maior organela da célula  eucariótica é o núcleo. Ele abriga o DNA (ácido desoxirribonucleico), que contém a informação genética para todas as funções  da célula/organismo. 

    Mas essa informação não está escrita de maneira como lemos esse texto, seria muito texto para tantos comandos que nosso organismo executa. Ao invés disso, a informação está codificada, ou escrita por meio de códigos moleculares. Como uma sequência de blocos menores, as bases nitrogenadas constituem a molécula de DNA. 

    O DNA 

    O DNA é composto de quatro tipos diferentes de bases nitrogenadas, representadas pelas letras A,T, C, G (de adenina, timina, citosina e guanina). 

    As bases nitrogenadas estão em sequência na molécula de DNA, cuja estrutura é em dupla hélice, em que as duas fitas compõem o DNA que interagem e dão forma à molécula. A interação entre as fitas do DNA ocorre graças a complementaridade entre as bases nitrogenadas, em que A (adenina) se liga com T (timina) e a C (citosina) com a G (guanina).

    A complementaridade entre as bases nitrogenadas no DNA. A imagem foi criada com  BioRender.com.

    Essa complementaridade entre as fitas é importante, pois torna possível a replicação (duplicação) da molécula de DNA. Quando ocorre a duplicação do DNA, as duas fitas se separam e a partir do molde são formadas as fitas-filhas complementares.

    Em células eucarióticas, como as dos seres humanos, tanto a replicação quanto a transcrição do DNA acontecem no núcleo. A imagem foi criada com  BioRender.com.

    A descoberta da estrutura em hélice do DNA

    A informação chave para a estrutura do DNA foi obtida por Rosalind Franklin que conseguiu uma fotografia do DNA por uma técnica chamada de difração de raio X. A partir desse achado de Rosalind, dois pesquisadores, Watson e Crick, determinaram a estrutura do DNA – nunca mencionaram a pesquisadora – e anos mais tarde foram laureados com o prêmio Nobel.

    Para saber mais sobre Rosalind Franklin leia o texto Celebrando Rosalind Franklin – a mulher que ajudou a desvendar a estrutura do DNA no Ciência pelos Olhos dela do Blogs Unicamp. 

    O sistema de tradução da informação do DNA em proteínas é regulado por uma série de interações e reações químicas. Além disso, a informação necessária não é entregue de forma direta para a preparação de proteínas pelos ribossomos, uma organela presente no citoplasma das células. 

    DNA como molde para o ácido ribonucleico, RNA

    Além de se replicar no procesos de duplicação, o DNA também serve de molde para a preparação de uma outra molécula importante na síntese de proteínas, o RNA mensageiro, mRNA, em um processo chamado de transcrição. A partir dessa última molécula é que ocorre a tradução com a síntese de proteínas. 

    Então, o DNA tem a informação transmitida ao mRNA. A partir do mRNA é que há a tradução – daquela informação codificada – em proteínas. Essa tradução ocorre fora do núcleo em uma outra organela da célula, no ribossomo. 

    Não é sopa de letrinha

    A sequência desses bloquinhos de base nitrogenada no DNA não é aleatória. A combinação de cada três bloquinhos é traduzida pela célula em um aminoácido – a menor parte da estrutura de uma proteína. O conjunto de aminoácidos ligados é que dá origem a uma proteínas. Quantidade e sequências diferentes de aminoácidos estão associados a proteínas diferentes. E é nelas que está a beleza da vida. Entre outras coisas, as proteínas fazem parte de estruturas das células, transportam o oxigênio necessário para a nossa respiração, conseguem deixar as reações químicas mais rápidas nos organismos. Enfim são fundamentais para a manutenção e funcionamento dos organismos.

    Combinando as sequências

    O interessante sobre o código genético é que a sequência das bases nitrogenadas presentes em um códon (sequência de três bases nitrogenadas) específica corresponde a um aminoácido específico e isso é praticamente universal entre todas as formas de vida na Terra. 

    Um pouco de matemática

    Podemos inferir a quantidade de combinações possíveis de bases nitrogenadas para a formação de códons por meio de uma fórmula matemática chamada de Arranjo com Repetição:

    A(n, r)  = nr, em que

    n é o número de elementos do conjunto, no caso são quatro (A, T, C, G)

    r é a quantidade de elementos por agrupamento, no códon são 3. 

    Dessa forma, 

    A  = 43

    A = 64

    Existem 4 pares de base nitrogenadas diferentes (A, T, C e G). A combinação entre elas em uma das três posições em um códon nos dá a possibilidade de 64 códons diferentes. Desses 64 códons, 61 são traduzidos em aminoácidos e 3 estão associados a uma espécie de sinalização para a parada de tradução da sequência do DNA, os códons de Parada (Stop codons). 

    Mas alguns códons diferentes sinalizam para a produção de um mesmo aminoácido. Os 61 códons produzem apenas 20 aminoácidos diferentes. Por esse motivo, o código genético é considerado redundante ou degenerado,

    A sequência de aminoácidos que compõem uma determinada proteína é codificada por um gene específico. Dessa forma, o DNA contém o genoma da célula que é a totalidade da informação genética que além de dar origem a milhares de proteínas, também regula quando e onde elas serão feitas.

    A replicação refere-se ao processo de duplicação do DNA e em células eucarióticas acontece no núcleo. A transcrição, o processo de produção de RNA a partir do DNA também acontece no núcleo. A tradução é um processo de produção de proteínas a partir do mRNA (RNA mensageiro). Ela acontece nos ribossomos, organelas presentes no citosol da célula. As células não conseguem produzir DNA a partir do RNA, mas alguns vírus possuem em sua maquinária uma enzima, um tipo de proteína, capaz de fazer esse processo, a transcriptase reversa.

    Material genético materno

    Na reprodução sexuada, a composição do DNA presente no núcleo das células eucarióticas é uma contribuição de 50% de cada um dos sexos. 

    Além disso, a célula eucariótica abriga outra organela com material genético próprio, a mitocôndria. Como regra, o material genético presente na mitocôndria é de origem apenas materna. Se compararmos com o DNA do núcleo, a quantidade de informação genética presente na mitocondria é bem menor, mas ambas informações são muito importantes. 

    Mas e os vírus?

    Os vírus não têm a maquinaria para fazer cópias de si mesmos, nem mesmo para a transcrição e tradução em proteínas, mas contém a informação genética para a sua produção, o mesmo acontece com o SARS-CoV-2, o vírus que causa a COVID-19. 

    Para saber um pouco mais sobre a necessidade dos vírus por um hospedeiro leia Valentões dentro da célula, sensíveis fora dela: os vírus

    Dica

    Em comemoração aos 20 anos de existência, o Instituto Suiço de Bioinformática (Swiss Institute of Bioinformatics) lançou o jogo Gene Jumper. O jogo é gratuito e está disponível em 3 idiomas, inglês, francês e alemão. Apesar de não ter disponível a versão em português, é bem divertido jogar e se tem uma idéia do processo de tradução do DNA. 

    Para saber mais

    Alberts, B.; Johnson, A. Lewis, J.; Morgan, D.; Raff, M.; Roberts, K. Walter, P.; Molecular Biology of the Cell. Sixth Edition. 2015

    Mora C, Tittensor DP, Adl S, Simpson AGB, Worm B (2011) How Many Species Are There on Earth and in the Ocean? PLoS Biol 9(8): e1001127. doi:10.1371/journal.pbio.1001127 

    Voet, D. e Voet, JG. Bioquímica. 4 Edição. Editora Artmed. 2011. 

    Este texto foi escrito originalmente no blog Ciência de Fato

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Como é que um vírus que ataca o sistema respiratório, causa danos no cérebro?

    Texto escrito por Fernanda Crunfli* e Ana Arnt

    Quando a pandemia pelo novo coronavírus começou, foi um caos mundial para todos, principalmente para os profissionais da área da saúde. Assim, ninguém sabia nada sobre o novo coronavírus, e nem como realizar a melhor conduta médica para essa nova doença. Desde o início da pandemia, as evidências já demonstravam que o SARS-CoV-2 não era apenas uma gripe comum. Isto é, ela logo foi compreendida como uma nova doença com características incomuns e singulares. Um dos aspectos mais intrigantes do novo coronavírus é o número de sistemas do corpo que o vírus pode afetar.

    Hoje em dia, com toda a comunidade científica se voltando para o vírus, já temos mais informações e conseguimos traçar melhor qual é o caminho desse vírus e seus efeitos no corpo humano. 

    O início dos sintomas neurológicos na infecção pelo coronavírus

    Voltando para o início da pandemia, a comunidade médica começou a observar que um dos principais sintomas dos pacientes com a Covid-19 era a perda de olfato e paladar, funções comandadas pelo cérebro. Além disso, os problemas desses pacientes não eram apenas os problemas respiratórios. Por exemplo, aproximadamente 30% dos pacientes com Covid-19 apresentavam sintomas neurológicos, como dor de cabeça, confusão mental, fadiga, depressão e até convulsões. À medida que o número de casos aumentou, tornou-se mais evidente que a Covid-19 não apresentava apenas as manifestações comuns da doença, mas também as incomuns, como os problemas neurológicos graves.

    Diante disso, os neurologistas e neurocientistas do mundo inteiro começaram a questionar:
    – o que o coronavírus fazia no cérebro?
    – como esse vírus chegava até o cérebro? 
    – quais seriam os possíveis danos neurológicos ocasionados pelo vírus?

    Foi aí que nós, cientistas brasileiros da Unicamp, junto com cientistas da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) unimos esforços para investigar o que o vírus faz no cérebro!

    Nossa primeira pergunta foi se o coronavírus era capaz de chegar até o cérebro e se ele conseguiria infectar as células do cérebro. Dessa forma, nós observamos que: sim o vírus chega até o cérebro e ele é capaz de infectar e se replicar nos astrócitos.

    Calma que a gente explica…

    Astrócitos são as células mais abundantes do sistema nervoso central. E elas são responsáveis por apoiar os neurônios nos processos metabólicos. Pois nas autópsias de vítimas da Covid-19, percebeu-se que estas células eram muito afetadas.

    Os astrócitos são encarregados de manter o bom funcionamento dos neurônios, possuem um papel dinâmico na regulação da função neuronal. Mas, como isto ocorre? Digamos que os astrócitos percebem tudo o que está ocorrendo nas comunicações entre os neurônios e são responsáveis por manter esta comunicação eficiente e ativa, conforme a necessidade – isto se dá regulando neurotransmissores e outras substâncias que podem interferir no funcionamento dos neurônios. 

    Os astrócitos também são responsáveis pela nutrição dos neurônios, atuando como “sensores metabólicos do cérebro”, mantendo um bom funcionamento neuronal. Além disso, os astrócitos também participam da resposta neuroinflamatória. Isto é, quando ocorre uma lesão ou um dano no cérebro, os astrócitos respondem a esse estímulo. 

    A infecção dos astrócitos pelo coronavírus

    Parece bem evidente a ideia de que se os astrócitos são infectados e funcionam mal, uma verdadeira bagunça pode ocorrer no cérebro, correto? Então, basicamente é isto: os astrócitos são as células mais abundantes no cérebro. Elas são verdadeiras “faz tudo” dos neurônios. Assim, se elas forem infectadas pelo coronavírus, atrapalhando suas atividades básicas como consequência, prejudicam o funcionamento dos neurônios e de todo o equilíbrio cerebral. 

    É como uma reação em cadeia. Ou seja, o coronavírus ataca os astrócitos e, quando infectados, eles morrem ou deixam de executar seu papel de manter o bom funcionamento dos neurônios. Dessa forma, o resultado pode ser a morte do tecido cerebral, e consequentemente sintomas como perda de memória, ansiedade, depressão e dificuldade de raciocínio.

    Astrócito infectado pelo SARS-CoV-2 (o vírus são os pontos vermelhos na imagem). Foto de: Flávio Protásio Veras

    Ainda na análise das autópsias do cérebro de vítimas da Covid-19, o coronavírus foi capaz de alterar proteínas associadas às doenças neurodegenerativas, como Parkinson e Alzheimer. Em suma, agora precisamos compreender se o coronavírus desencadeia ou não doenças neurodegenerativas em quem tem algum potencial genético para isso.

    E agora?

    O próximo passo foi analisar os sintomas e efeitos neurológicos de 81 pacientes com sintomas leves da Covid-19. Para isso, um estudo avaliou o cérebro desses pacientes através de uma ferramenta chamada Ressonância Magnética Funcional. Sabe aquelas imagens de cérebro que sempre aparecem quando falamos de pesquisa deste órgão? Pois é, é gerada com esta ferramenta.

    Bom, o  resultado foi: o coronavírus promoveu alterações significativas na estrutura do córtex, a região do cérebro mais rica em neurônios e responsável por funções complexas como linguagem, memória e atenção. Além disso, esses pacientes apresentaram sintomas graves de ansiedade e depressão, e até mesmo déficits cognitivos. Com o atual cenário do Brasil, com mais gente adoecendo, mais pessoas sofrerão esses problemas, e isso é alarmante. 

    Todavia, resta ainda saber a gravidade destas lesões, e entender se lesões neurológicas são passageiras ou irreversíveis. Por isso, o grupo da Dra Clarissa irá acompanhar esses pacientes pelos próximos 3 anos para saber se o vírus desencadeia doenças neurodegenerativas, e se essas lesões serão reversíveis. Esperamos que sim!

    Já está bem claro que a Covid-19 pode afetar o nosso cérebro.  No entanto, a ciência ainda busca elucidar os mecanismos pelos quais o sistema nervoso central torna-se alvo do vírus. Entretanto, fica a pergunta:

    Como é que um vírus que ataca o sistema respiratório pode causar danos no cérebro? 

    O novo coronavírus é capaz de atacar todas as células que possuem a porta de entrada dos vírus. Essas portas são diferentes receptores acoplados à membrana da célula, explicados aqui e aqui . Assim, a ciência continua investigando a possibilidade do coronavírus usar outros receptores como porta de entrada também. Da mesma forma, esses receptores estão presentes no cérebro, em menor quantidade quando comparado com o sistema respiratório, mas ainda estão lá. Então, o vírus consegue infectar as células do cérebro.

     Agora a maior dúvida é como o coronavírus chega até o cérebro?

    A primeira hipótese, é que o coronavírus consiga passar a barreira hematoencefálica. Mas, vamos por partes: esta barreira do nosso organismo protege a entrada de substâncias tóxicas, medicamentos e infecções bacterianas e virais no Sistema Nervoso Central.

    O primeiro indício que o coronavírus é capaz de atravessar a barreira foi demonstrado em animais. Isto é, as proteínas do coronavírus conseguiram passar a barreira hematoencefálica, exemplificando o que poderia acontecer no cérebro humano. Como a perda do olfato é sintoma comum, uma outra possibilidade seria a entrada do vírus no cérebro via nervo olfatório.

    A segunda hipótese, seria que os danos cerebrais observados poderiam ser sintomas secundários da doença. Ou seja, um resultado indireto da Síndrome Respiratória causada pelo vírus. Assim, os danos neurológicos podem ocorrer pelo efeito indireto da falta de oxigênio e da infecção grave (“tempestade de citocinas”) da Síndrome Respiratória. Até agora, há mais evidências de que os sintomas neurológicos possam ser primários e não secundários à Síndrome Respiratória. Entretanto, determinar a relação de causa e efeito dos danos neurológicos ainda é um desafio que precisa ser investigado. 

    Por Fim

    Todos esses estudos mostram-se essenciais para compreender o mecanismo de ação do novo coronavírus, e ajudar a encontrar alvos para o tratamento da doença. Assim, se nós sabemos quem é o nosso inimigo e qual é o seu plano de ataque, fica mais fácil combatê-lo. Isso aumenta as nossas chances de combate à doença. Uma das perguntas que precisam ser respondidas é como o vírus chega ao cérebro. A comunidade científica ainda tem um grande desafio pela frente. Porém, devemos seguir atentos na batalha contra a Covid-19, pois essa doença é como um sorteio de loteria, não sabemos quem será contemplado com quais sintomas graves ou não.

    A autora

    Fernanda Crunfli Possui graduação em Biomedicina (2011) e mestrado em Neurociências e Comportamento pelo programa de Biociências aplicada à Saúde pela Universidade Federal de Alfenas (2013). Doutora em Ciências (Fisiologia Humana) pela Universidade de São Paulo (2013-2017) com período sanduíche na Universidad Francisco de Vitoria em Madrid, Espanha (2017) no laboratório de Endocanabinoides e Neuroinflamação. Atua nos temas: modulação do sistema canabinoide, doenças neurodegenerativas e psiquiátricas, metabolismo neuronal e processos neuroinflamatórios. Atualmente, trabalha no Laboratório de Neuroproteômica (Unicamp) no estudo das bases moleculares da esquizofrenia. Com a pandemia da COVID-19 passou a estudar o efeito do SARS-CoV-2 no Sistema Nervoso Central, especialmente nos astrócitos.

    Este post foi escrito por Fernanda Crunfli, primeira autora do artigo

    Crunfli, FC et al (2020) SARS-CoV-2 infects brain astrocytes of COVID-19 patients and impairs neuronal viability

    Este artigo fez parte da pesquisa do Laboratório de Neuroproteômica da Unicamp e faz parte do trabalho desenvolvido pela Força Tarefa da Unicamp contra a Covid-19 junto com o Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID) da USP de Ribeirão Preto. Este artigo foi coordenado pela Fernanda Crunfli, Victor Corasolla Carregari, Flavio Protásio Veras, Clarissa Lin Yasuda, Marcelo A. Mori, Thiago Mattar Cunha e Daniel Martins-de-Souza.

    Nossos sites institucionais:

    Força Tarefa da Unicamp

    Unicamp – Coronavírus

    O projeto vinculado a esse artigo está registrado pelo nº Processo FAPESP: 2020/04746-0
    Fundo de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (FAEPEX) Unicamp – 2274/20

    Mais textos sobre o tema, neste blog

    Diversidade viral e surgimento de novas variantes do SARS-CoV-2

    Para Saber mais

    ANDREWS, MG et al (2021) Tropism of SARS-CoV-2 for Developing Human Cortical Astrocytes

    Bélanger, M, Allaman, I & Magistretti, PJ Brain energy metabolism: focus on astrocyte-neuron metabolic cooperation Cell Metab 14, 724–738 (2011)

    De Felice, FG, Tovar-Moll, F, Moll, J, Munoz, DP & Ferreira, ST (2020) Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2) and the Central Nervous System Trends Neurosci 43, 355–357.

    Lau, K-K et al (2004) Possible Central Nervous System Infection by SARS Coronavirus Emerging Infectious Diseases vol 10 342–344.

    MERGENTHALER, P et al (2013) Sugar for the brain: The role of glucose in physiological and pathological brain function Trends in Neurosciences, v 36, n 10, p 587–597.

    Moriguchi, T et al (2020) A first case of meningitis/encephalitis associated with SARS-Coronavirus-2 Int J Infect Dis 94, 55–58.

    Turner, DA & Adamson, DC (2011) Neuronal-astrocyte metabolic interactions: understanding the transition into abnormal astrocytoma metabolism J Neuropathol Exp Neurol 70, 167– 176.

    Varatharaj, A et al (2020) Neurological and neuropsychiatric complications of COVID-19 in 153 patients: a UK-wide surveillance study Lancet Psychiatry 7, 875–882.

    ZHANG, X et al (2021) Role of Astrocytes in Major Neuropsychiatric Disorders Neurochemical Research.

    Este texto foi escrito originalmente no blog EMRC

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Ciência para crianças! O que são os vírus

    Muitas doenças podem ser causadas por diferentes agentes biológicos, como bactérias, fungos, protozoários ou vírus. Estes últimos recentemente estão sendo muito comentados por conta da pandemia de Covid-19. Essa doença é causada pelo SARS-CoV-2, um vírus da família dos coronavírus, e já infectou quase 100 milhões de pessoas no mundo até agora (de acordo com relatórios da OMS de janeiro de 2021). 

    Para aprender a combater os vírus, precisamos entender melhor sobre eles! Aproveitem nosso novo quadrinho e mostrem para as crianças como o Dragonino e seu pai entendem os vírus e como eles se protegem deles!

    Quadrinho da série "Ciência para Crianças!" com o tema "o que são os vírus".

    Vamos agora aprender um pouco mais sobre os vírus, suas formas de ação e como podemos combatê-los?

    Vírus são seres vivos?

    Para simplificar, podemos dizer que para ser considerado vivo, um ser deve ter uma ou mais células, possuir um metabolismo e ser capaz de realizar sua reprodução. Sendo assim, os vírus não são considerados seres vivos pela grande maioria da comunidade científica, pois para poderem se multiplicar, precisam obrigatoriamente conseguir entrar dentro de uma célula viva e usar as ferramentas dessa célula. Em outras palavras, os vírus não têm ferramentas suficientes para serem uma célula independente, ou um ser vivo.

    Mas então do que os vírus são formados?

    Os vírus são formados basicamente por um componente genético (DNA ou RNA) envolvido por proteínas e, em alguns casos, também uma camada de gordura, que os cientistas chamam de envelope. No caso dos vírus envelopados, ou seja, que têm essa camada de gordura, a forma mais eficiente de desinfecção é a limpeza com água e sabão, álcool 70% ou hipoclorito de sódio, que são produtos que conseguem destruir esse envelope e “matar” os vírus. 

    Como os vírus infectam nossas células?

    O processo de infecção ocorre quando proteínas presentes no envelope dos vírus se ligam a receptores presentes na célula do hospedeiro. Chamamos esse processo simplificadamente de “mecanismo chave-fechadura”. É como se os vírus encontrassem uma “porta” para poder enviar seu material genético para dentro de uma célula viva. E assim os vírus conseguem se aproveitar dos mecanismos de replicação do material genético e tradução de proteínas dessa célula infectada para produzir novos vírus. Esses novos vírus, quando liberados, muitas vezes matam a célula hospedeira no processo, e ficam livres para infectar ainda mais células e continuar esse ciclo.

    Por que algumas pessoas ficam doentes e outras não?

    Em algumas pessoas, as células do sistema de defesa logo identificam os invasores e conseguem combatê-los, evitando o aparecimento de sintomas. Porém, quando as células infectadas morrem ou usam suas ferramentas internas apenas para produzir mais vírus, elas deixam de fazer suas funções normais. Assim, quando os vírus se espalham mais rapidamente do que o sistema de defesa consegue agir, podem aparecer sintomas mais graves da doença. Os sintomas podem se agravar ainda mais se a pessoa infectada já apresentar outros problemas de saúde e o organismo estiver mais fraco.

    Em algumas pessoas pode acontecer também de as células de defesa reagirem de forma muito exagerada, o que também pode ser ruim. Nesse caso, as células de defesa acabam prejudicando as próprias células do organismo enquanto tentam combater os vírus. Além disso, há outros fatores que os cientistas ainda estão estudando para entender melhor como essa doença afeta diferentes pessoas.

    Como ocorre a transmissão dos vírus?

    Vírus como o novo coronavírus são capazes de entrar principalmente em células das vias aéreas dos seres humanos (células no nariz, boca, garganta e pulmões). Assim, quando uma pessoa saudável fica perto de uma pessoa infectada, pode acabar tendo contato com gotículas de saliva contaminadas que podem transmitir a doença. Ao tocar em utensílios e superfícies contaminadas com o vírus e encostar a mão próximo a boca ou nariz, a pessoa também pode acabar se contaminando, assim como se respirar alguma gotícula contaminada.

    Como combater os vírus?

    Enquanto a maior parte da população não é vacinada, devemos continuar evitando ao máximo a transmissão desse vírus entre as pessoas. Para isso, é muito importante realizar o isolamento ou o distanciamento social, para evitar um “efeito dominó”. Temos também que nos lembrar de limpar bem as mãos e os utensílios e superfícies que costumamos tocar, para destruir a camada de gordura dos vírus e impedir que eles consigam entrar nas nossas células. Além disso, quando for necessário sair, é preciso que todos utilizem máscaras para se protegerem e também ajudarem a proteger outras pessoas.

    Fontes:

    https://www.bbc.com/portuguese/vert-earth-38800106

    https://www.nationalgeographicbrasil.com/ciencia/2020/04/virus-doencas-saude-patogenos-covids-19-sars-pandemia-coronavirus-hospedeiro

    Equipe: 

    • Design: Giovanna S. Veiga
    • Pesquisas e roteiro: Edilaine C. Guimarães e Carla R. de Souza
    • Supervisão: Vinicius Saragiotto, Verônica Dos S. Sales, Bianca B. De M. Fonseca
    • Orientação e revisão: Carolina S. Mantovani e Lúcia E. Alvares.

    English version

    Translation: Allan Cavalcante and Giovanna S. Veiga
    Quadrinho da série "Ciência para Crianças!" com o tema "o que são os vírus", traduzido para o inglês.

    Este texto foi escrito originalmente no blog Nas Asas do Dragão

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Curas milagrosas e aviões

    Há uma história da matemática bem curiosa e contraintuitiva. Ela envolve uma equipe de estatísticos, que durante a Segunda Guerra Mundial eram responsáveis por analisar os aviões que voltavam das batalhas, para decidir onde valeria a pena aumentar a blindagem do avião (dado que isso envolve colocar mais peso para voar, que exige mais combustível, o que deveria ser evitado a menos das regiões tidas como essenciais de se proteger).

    Aviões que analisamos (Imagem adaptada de talha khalil por Pixabay)

    Facilmente analisando os aviões que retornaram das batalhas, podiam identificar os locais mais atingidos por balas. A princípio podemos pensar em aumentar o revestimento dessas regiões, afinal, de todos os aviões que retornaram, essas foram as regiões mais atingidas.

    Sugestão de blindagem reforçada (Imagem adaptada de talha khalil por Pixabay)

    Porém, o mais coerente a se pensar seria aumentar o revestimento das regiões que não tem marcas de balas no conjunto de aviões que retornaram da batalha. Mas por que? Se não temos nenhuma marca de bala nessas regiões, elas então não seriam as menos prováveis de serem atingidas?

    Melhor sugestão de blindagem reforçada (Imagem adaptada de talha khalil por Pixabay)

    O contraponto que justifica esse argumento está no nosso conjunto de amostras, dado que todos os aviões que analisamos tem como característica comum “conseguirem voltar da batalha”.

    E os aviões que não analisamos são aqueles que “sucumbiram na batalha”. Logo, se pensarmos assim, dos aviões que analisamos, nenhum deles tinha marcas de bala atingindo diretamente o piloto, ou o motor, pois se isso ocorresse, o avião simplesmente não conseguiria retornar.

    Aviões que nunca retornaram (Imagem adaptada de talha khalil por Pixabay)

    Assim como o cenário dos aviões da Segunda Guerra Mundial, em diversas situações temos no nosso conjunto de informações a analisar, apenas aqueles que “conseguiram retornar da batalha”, enquanto que o mais coerente seria pensar no que aconteceu com aqueles que “não conseguiram retornar da batalha”?

    Sugestão de blindagem reforçada com base na hipótese de regiões críticas (Imagem adaptada de talha khalil por Pixabay)

    De maneira ingênua, acabamos assumindo que isso represente um padrão, como a história de um rapaz que começou a vender panelas de porta em porta, e 20 anos depois controla a principal empresa do ramo de utensílios de cozinha. Essas histórias são como os aviões que retornaram da batalha, analisamos o que aconteceu com essas pessoas, vemos as “regiões em que elas foram atingidas” como por exemplo “pobreza”, “falta de estudo”, “família pouco estruturada”. Porém nesse contexto, esquecemos de nos preocupar com as regiões que essas pessoas “não foram atingidas”, como por exemplo “saúde debilitada”, “redução do poder de consumo da população”, “concorrentes de negócio”, dados estes que podem representar justamente a razão de outros “aviões” não conseguirem retornar destas batalhas.

    De forma semelhante, vejo com certa frequência histórias de pessoas que encontravam-se doentes, enfrentando uma grande adversidade em questões de saúde, e que relatam terem sido curadas a partir da sua fé em uma entidade sobrenatural.

    Não duvido que isso tenha de fato ocorrido, porém levanto o questionamento, será que ao focarmos nesses relatos não acabamos nos concentrando apenas nas “marcas nos aviões que retornaram da batalha”, nos esquecendo das regiões nas quais eles “não foram atingidos” e que podem ter influenciado diretamente o seu retorno? Como por exemplo:

    • se houve a extinção de um hábito não declarado aos médicos (como fumar, beber ou usar drogas) que afetava os exames ou o tratamento;
    • se o tratamento após meses/anos finalmente surtia efeito;
    • se algum diagnóstico inicial estava errado, levando o paciente a um tratamento para outra doença, o qual agravava mais sua saúde;
    • se havia algum fator psicológico que interferia nos sintomas e foi sanado com a convicção de cura pela fé;
    • se algum fator genético incomum nesse paciente possibilitou que seu organismo conseguisse se curar;
    • se parte da sua rotina, alimentação ou trabalho era responsável por alguns dos sintomas.

    Essas possibilidades levantadas, são equivalentes às regiões não atingidas nos aviões que retornaram da batalha. Elas representam assim aspectos que permitiram ao piloto conduzir seu avião até o retorno seguro à base. Ou no caso dos pacientes, aqueles que conseguiram se curar a partir da fé. Mas se consideramos apenas esse lado da história, estamos ignorando as hipóteses que levaram os aviões a “não retornarem da batalha”, ou sendo mais direto nesse contexto, as “histórias das pessoas que não se curaram a partir da fé”.

    Créditos da imagem de capa adaptada de talha khalil por Pixabay)

    Este texto foi publicado originalmente no Blog Zero

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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