Categoria: Conhecimento científico para entender pandemia

  • Covid-19: um exército invisível combatendo a doença!

    Em textos prévios, nós vimos vários conceitos relacionados à imunidade inata, adaptativa, humoral e celular. Nesse último, entendemos como as principais células trabalham para combater diferentes tipos de ameaças, desde vírus e bactérias, até fungos e vermes. Mas então surge a grande dúvida: e no caso do SARS-CoV-2, como combatemos ele? 

    Para responder essa pergunta, vamos olhar para várias pesquisas que estão sendo feitas ao redor do mundo. Pesquisas que estão tentando entender melhor a imunidade celular. Além disso, buscam compreender sua relação com o vírus causador da Covid-19, dando foco um pouco maior para os linfócitos T. Antes, vamos retomar a estrutura do SARS-CoV-2. Primeiramente, destacamos a Spike, que é a proteína responsável pela entrada dele nas células. Há, também, as proteínas do Nucleocapsídeo, que forma a capa que protege o material genético. O Envelope, que é a membrana de gordura que envolve o nucleocapsídeo. Por fim, as proteínas não estruturais, relacionadas principalmente à replicação viral). Caso tenha mais dúvidas, não deixe de conferir dois textos muito bons que já explicaram sobre elas aqui no blog 1, 2.

    Uma descoberta surpreendente

    A cada dia um número maior de artigos vêm sendo publicados e mostrando aquilo que muitos pesquisadores já imaginavam que poderia acontecer. Isto é, desde pessoas que tiveram a forma assintomática e leve da Covid-19 até as que tiveram a forma severa, desenvolvem linfócitos T de memória. Estes linfócitos são capazes de responder ao vírus de forma eficiente, caso sejam expostos ao vírus novamente. Apesar de vários estudos mostrarem que células de memória reagem contra partes diferentes do SARS-CoV-2 3-8, desde a Spike, até a proteína do envelope, nucleocapsídeo e NSPs.

    Sobre a Imunidade ou Reatividade Cruzada, de novo

    Contudo, o que mais tem chamado a atenção dos pesquisadores é o fenômeno chamado de Imunidade ou Reatividade Cruzada de linfócitos T de memória de outros coronavírus contra proteínas do SARS-CoV-2. Já explicado em outro texto aqui no Blogs . Um artigo publicado na Nature 3, mostrou que uma parte das pessoas infectadas com o vírus da SARS de 2002-2003 (SARS-CoV-1), isto é, há 17 anos atrás, ainda tinham células que conseguiam responder e se multiplicar ao reconhecerem a proteína N (de Nucleocapsídeo) do SARS-CoV-2.

    Esse mesmo artigo também viu que indivíduos que não haviam contraído a SARS e Covid-19, tinham linfócitos T de memória. Estes linfócitos T respondiam principalmente à duas NSPs do SARS-CoV-2, e a proteína N. Além disso, os linfócitos reconheciam um pedaço da proteína N que era muito parecido com pedaços da mesma proteína de outros coronavírus de humanos. No entanto, com os fragmentos das NSPs isso não acontecia, levantando a hipótese que essas células poderiam responder a fragmentos de proteínas de coronavírus animais.

    Um segundo artigo4, mostrou que uma parte dos pacientes saudáveis que não tinham sido expostos a Covid-19 também possuíam linfócitos T de memória funcionais. Estes respondiam há um fragmento da proteína S, assim como pacientes que haviam se infectado com o SARS-CoV-2. Além disso, esse fragmento da Spike (que as células respondiam) é bastante parecido com a Spike de outros coronavírus de humanos (os HCoVs).

    A partir de experimentos utilizando tanto a proteína Spike dos HCoVs, quanto os HCoVs inteiros, os pesquisadores viram que essas células de memória reagentes, presente em pacientes que nunca tinham se infectado com SARS ou Covid-19, respondiam muito bem e eram capazes de se multiplicar tanto na presença da proteína quanto do vírus completo.

    O que tudo isso significa?

    A essa altura do campeonato, vocês devem estar se perguntando o que toda essa quantidade absurda de siglas e dados tem a ver com vocês. O ponto todo desses estudos é indicar que existe uma certa quantidade de imunidade em pessoas não expostas ao causador da Covid-19. Além disso, as pesquisas buscam mostrar a imunidade celular que geramos contra o SARS-CoV-2. É claro que grandes dúvidas ainda ficam no ar, como por exemplo: da onde vêm essas células? Qual o grau de proteção que elas garantem? O que poderia ter levado a formação delas? 

    Como já comentado anteriormente, muitos pesquisadores especulam que essas células possam surgir a partir de eventos prévios de infecção pelos Coronavírus Endêmicos de Humanos (HCoVs)9. Estes coronavírus são causadores dos ciclos de resfriado comum nas estações secas e que circulam amplamente entre a população humana, assim como o vírus influenza. Dessa forma, acredita-se que as pessoas que já tivessem entrado em contato com esses vírus teriam uma maior chance de ter células de memória. As células de memória poderiam responder a alguma proteína ou fragmento de proteína que fosse compartilhado entre os HCoVs e o SARS-CoV-2.

    Mas qual a implicação disso?  

    A principal hipótese levantada é que a presença de linfócitos de memória em parte da população seja o porquê algumas pessoas desenvolvem a forma leve da doença. Ou, até mesmo, permanecem de forma assintomática – estes seriam os casos em que há a presença dessas células de memória. Enquanto isso, a Covid-19 poderia estar relacionada à presença de comorbidade (como já foi muito discutido) somada a falta dessas células de memória. Isso, claro, em sua forma mais severa. Aqui é necessário lembrar que as pessoas que teriam os linfócitos de memória poderiam gerar a forma leve ou assintomática. Isto em decorrência delas conseguirem montar uma resposta mais rápida e forte contra o SARS-CoV-2, dessa forma limitando a severidade da doença. 

    Um outro impacto que a existência de uma imunidade celular cruzada entre SARS-CoV-2 e HCoVs poderia ter é relacionada ao desenvolvimento de vacinas. A pré-existência de linfócitos T de memória, principalmente nas primeiras fases de testes, poderia gerar um fator de confusão durante a análise dos resultados. Assim, não seria possível saber se essas células que respondem à vacina seriam novos linfócitos gerados a partir dessa imunização, ou linfócitos de memória que foram reativados após a vacinação. Assim, esta informação, obviamente, não é banal dentro do que precisamos compreender sobre o coronavírus…

    Por fim…

    Apesar disso tudo, muitos estudos (principalmente com grupos maiores e mais diversos de humanos) ainda precisam ser realizados. Tais estudos necessitam verificar a pré-imunidade ao SARS-CoV-2 – decorrente dos HCoVs. Além disso, analisar o potencial de infecção e severidade da doença nesses casos, através da medição dessa pré-imunidade antes e após os testes. Como vocês podem ver, ainda há muito o que descobrir sobre esta doença e nosso sistema imune!

    Para saber mais

    1. A Joia da Coroa (2020) https://www.blogs.unicamp.br/covid-19/a-joia-da-coroa/
    2. Valentões dentro da célula, sensíveis fora dela: os vírus (2020) https://www.blogs.unicamp.br/covid-19/valentoes-dentro-da-celula-sensiveis-fora-dela-os-virus/
    3. Le Bert, N, Tan, AT, Kunasegaran, K, Tham, CY, Hafezi, M, Chia, A, & Chia, WN (2020) SARS-CoV-2-specific T cell immunity in cases of COVID-19 and SARS, and uninfected controls, Nature, 584(7821), 457-462. 
    4. Braun, J, Loyal, L, Frentsch, M, Wendisch, D, Georg, P, Kurth, F, & Baysal, E (2020) SARS-CoV-2-reactive T cells in healthy donors and patients with COVID-19 Nature, 10
    5. Ni, L, Ye, F, Cheng, M. L, Feng, Y, Deng, YQ, Zhao, H, … & Sun, L (2020) Detection of SARS-CoV-2-specific humoral and cellular immunity in COVID-19 convalescent individuals Immunity
    6. Sekine, T, Perez-Potti, A, Rivera-Ballesteros, O, Strålin, K, Gorin, JB, Olsson, A, … & Wullimann, DJ (2020) Robust T cell immunity in convalescent individuals with asymptomatic or mild COVID-19 Cell
    7. Meckiff, BJ, Ramírez-Suástegui, C, Fajardo, V, Chee, SJ, Kusnadi, A, Simon, H, … & Ay, F (2020) Single-cell transcriptomic analysis of SARS-CoV-2 reactive CD4+ T cells Available at SSRN 3641939.
    8. Grifoni, A, Weiskopf, D, Ramirez, SI, Mateus, J, Dan, JM, Moderbacher, CR, … & Marrama, D (2020) Targets of T cell responses to SARS-CoV-2 coronavirus in humans with COVID-19 disease and unexposed individuals Cell
    9. Sette, A, & Crotty, S (2020) Pre-existing immunity to SARS-CoV-2: the knowns and unknowns Nature Reviews Immunology, 20(8), 457-458. 

    Para mais informações:

    Chen, Z, & Wherry, E J (2020) T cell responses in patients with COVID-19 Nature Reviews Immunology, 1-8. 

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e que são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Deus, hidroxicloroquina e unicórnios: é impossível demonstrar um negativo?

    Texto escrito por Fábio Machado

    Quem está habituado à discussão teológica está familiarizado com a afirmação de que seria “impossível demonstrar uma negativa”. Ela é rotineiramente usada por crentes e apologetas para argumentar que, “segundo a lógica”, é impossível dizer que Deus não existe, mesmo na total ausência de evidências da sua existência. Logo se você crê em Deus por fé apenas (sem evidencia), você não estaria sendo irracional ou ilógico. Esse argumentos sempre me soou estranho, mas eu honestamente não havia pensado nele por anos até que me deparei com alguns debates recentes na internet envolvendo a hidroxicloroquina e sua eficácia. A discussão segue mais ou menos assim:

    Crítico da hidroxicloroquina – Foi demonstrada a ineficácia da hidroxicloroquina

    Defensor da hidroxicloroquina – Não foi demonstrada sua ineficácia, porque é impossível demonstrar uma negativa.

    O que para mim o curioso nessa história toda é que a frase de efeito, ou truísmo, usado para corroborar esse raciocínio, de que  “é impossível demonstrar uma negativa” é obviamente falso. É completamente lógico derivar um argumento formal no qual a conclusão é a inexistência de algo. Por exemplo, digamos que estejamos argumentando sobre a existência de unicórnios. Eu poderia montar o seguinte argumento

    • P1 – Se unicórnios existem, deveria haver alguma evidência deles no registro fóssil.
    • P2 – Não existe evidência de unicórnios no registro fóssil.
    • Conclusão- Unicórnios não existem.

    Esse é um argumento logicamente válido no qual a conclusão (uma negativa) é a consequência lógica das premissas. Proposições negativas são tão demonstráveis quanto proposições positivas.

    “Mas, calma lá”, você pode pensar “o registro fóssil é notoriamente incompleto. Espécies podem simplesmente não estar representadas sem que isso signifique que elas nunca existiram”.

    Esse argumento remete ao problema da indução, que diz basicamente que nenhuma generalização baseada em observações limitadas pode ser bem sucedida. O exemplo clássico é a ideia de que, não importa quantos cisnes brancos você encontre na natureza, você nunca vai poder dizer que todos os cisnes são brancos, visto que você ainda pode encontrar um cisne negro que refute essa generalização. É importante ressaltar que, enquanto isso não invalida a ideia que proposições negativas são demonstráveis, isso parece levantar um problema sério para premissas que sustentem supostas inexistências.

    Porém, nem todas proposições são iguais. Imagine que, ao invés de você estar buscando cisnes negros, você que saber se um gene X está associado com a cor das penas em cisnes negros. Uma prática em genética para entender o funcionamento de um dado gene é exatamente deletar esse gene de um embrião, ou “nocautear” o gene. Se o gene era associado com a cor das penas, você espera que o embrião com o gene nocauteado desenvolva penas brancas (ou não-negras). Se o embrião continua desenvolvendo penas negras, você pode afirmar que o gene X não tem efeito sob a coloração negra das penas. Em forma de argumento formal:

    • P1- Se o gene X determina a cor negra da pena, sua remoção produziria penas sem essa coloração
    • P2- A remoção do gene não afeta a cor da pena
    • Conclusão- O gene X não afeta a cor da pena.

    Nesse caso não há ambiguidade alguma: uma vez que o mecanismo é proposto e testado, a ausência de um efeito implica que sua hipótese foi refutada: o mecanismo, como designado, não existe. A diferença é que, quanto mais específica é sua premissa inicial, mais certeza você pode conferir à sua conclusão.

    O caso de medicamentos tem mais a ver com o encontrar um mecanismo genético do que buscar unicórnios no registro fóssil: a ação de um remédio depende de que um mecanismo proposto seja verdadeiro, ou potencialmente verdadeiro. O que nos trás à hidroxicloroquina.

    Presidente Jair Bolsonaro no jardim do Palácio da Alvorada alimentando as emas e mostrando a caixa do remédio cloroquina para as emas, a mesma caixa que mostrou para os apoiadores no ultimo domingo 19/07. Sérgio Lima/Poder360. 23.07.2020

    Querida de três em cada três líderes com tendências autoritárias no continente americano (Trump, Bolsonaro e Maduro), a hidroxicloroquina foi alardeada com um possível tratamento ao COVID19 com base em um estudo feito em células in vitro (em placas de petri; aqui e aqui). Esse estudo demonstrou que a hidroxicloroquina em conjunto com azitromicina era capaz de prevenir a entrada do vírus em células vivas. Em investigações sobre a eficácia de medicamentos, a existência de algum tipo de efeito in vitro é considerado premissa básica para que mais estudos sejam realizados, para observar se um remédio pode ter efeito em seres vivos e, em última analise, humanos. De qualquer maneira, esse estudo deu o pontapé inicial à investigação sobre a eficiência da hidroxicloroquina contra o COVID19, resultando em diversos trabalhos que buscaram encontrar um efeito da droga em seres humanos infectados.

    Nada disso seria particularmente problemático se políticos não tivessem tomado para si o papel de decidir, com base em evidências problemáticas, quais são os tratamentos que devem ser seguidos. O que temos agora é a pior situação possível: enquanto a ciência demonstra a total ineficácia da hidroxicloroquina no tratamento de COVID19 (ver aqui e aqui, por exemplo), políticos e entusiastas destes mesmos governantes se veem na posição de ter que defender pseudociência por motivos meramente ideológicos. E é nesse momento que vemos as pessoas se agarrarem cada vez mais desesperadamente à argumentos falaciosos para defender sua posição. No caso da hidroxicloroquina, como coloquei anteriormente, surge essa ideia de que seu efeito positivo não pode ser negado, pois seria impossível demonstrar uma negativa. Como já argumentei, essa afirmação é falsa (é incrivelmente simples demonstrar um negativo). Mas seria esse o caso da hidroxicloroquina?

    Pra entender isso, precisamos entender um pouco como supostamente a hidroxicloroquina deveria funcionar. Para entrar nas células animais, o coronavírus pode se valer de dois mecanismos. O primeiro é se ligando a receptores de superfície das células do hospedeiro para introduzir o seu material genético diretamente no interior da célula. No segundo mecanismo, o vírus é absorvido por invaginações da membrana celular (endossomos) e invadem o citoplasma celular a partir daí. Esse segundo mecanismos, o realizado por endossomos, necessita de uma proteína funcional chamada catepsina L, que necessita de um meio ácido para funcionar. Nesse contexto, a hidroxicloroquina atua diminuindo a acidez do meio intracelular, impedindo a ação da catepsina L, impedindo a entrada do coronavírus na célula. Para voltar para nossas preposições, podemos descrever a atuação da hidroxicloroquina da seguinte forma:

    • P1- Para a hidroxicloroquina funcionar no combate a COVID19 ela necessita prevenir a entrada do coronavírus nas celulas pulmonares humanas.
    • P2- Hidroxicloroquina diminui a acidez intracelular, afetando o funcionamento da catepsina L.
    • P3- Catepsina L é usada pelo coronavírus para entrar na célula.

    Segundo essa lógica – e essa era a lógica que poderíamos aceitar no começo do ano – a hidroxicloroquina (potencialmente) funcionaria no combate a COVID19. Mas o diabo mora nos detalhes. As células usadas inicialmente para demostrar que a hidroxicloroquina funciona in vitro eram culturas de células de rins de macacos. Essas células normalmente apresentam resultados bons o suficiente para a maior parte dos fármacos, porém no caso do coronavírus a coisa parece ser mais complicada. Enquanto é verdade que em células de rim a Catepsina L é essencial para a ação de entrada do vírus, células pulmonares humanas não apresentam essa enzima em grandes quantidades.

    Ao invés, o mecanismo de entrada do coronavírus na célula é mediada por uma enzima chamada TMPRSS2. O problema é que, diferente da Catepsina L, o funcionamento da TMPRSS2 não é afetado pela alteração da acidez do meio celular. De fato, um estudo recente em células pulmonares humanas demonstrou que a hidroxicloriquina é incapaz de impedir a invasão das células pelo coronavirus. Assim, podemos atualizar a descrição da atuação da hidroxicloroquina da seguinte forma:

    • P1- Para a hidroxicloroquina funcionar no combate a COVID19 ela necessita prevenir a entrada do coronavírus nas celulas pulmonares humanas.
    • P2- Hidroxicloroquina diminui a acidez intracelular, afetando o funcionamento da catepsina L.
    • P3- Catepsina L é usada pelo coronavírus para entrar em células de rim.
    • P4- TMPRSS2, que é usada pelo coronavirus para entrar em células pulmonares, não é afetada pela hidroxicloroquina.

    E disso segue que

    • C- Hidroxicloroquina não funciona no combate a COVID19 através do mecanismo proposto.

    O que mostra que é plenamente lógico afirmar que a hidroxicloroquina não funciona.

    Óbvio que isso não vai satisfazer os defensores da droga, pois inúmeros outros mecanismos podem ser propostos, inclusive mecanismos sem o menor respaldo científico, como foi o caso da “pílula do câncer”, uma droga sem efeito também defendida pelo presidente da república.

    Eu acredito que a luta pela hidroxicloroquina vai durar muito mais tempo depois que sua discussão acadêmica estiver de fato encerrada. Estamos entrando em um caminho onde teorias conspiratórias, pseudociência e pseudofilosofia estarão intrinsecamente ligados com a política nacional. Vai ser um caminho tortuoso. Boa sorte a todos nós.

    *Para os nerds: sim, eu estou mais que ciente das problemáticas sobre o grau de confiabilidade em resultados experimentais e estatísticos. Você pode transformar todos esses argumentos em probabilísticos e chegar a conclusão que a hidroxicloroquina muito provavelmente não funciona (o que é basicamente a mesma, visto que a única “certeza” que podemos ter em termos científicos são aquelas referentes à altas probabilidades).

    Para saber mais

    Boulware DR, Pullen MF, Bangdiwala AS, et al. A Randomized Trial of Hydroxychloroquine as Postexposure Prophylaxis for Covid-19. N Engl J Med. 2020;383(6):517-525. doi:10.1056/NEJMoa2016638

    Cavalcanti, AB; Zampieri, FG; Rosa, RG et al (2020) Hydroxychloroquine with or without Azithromycin in Mild-to-Moderate Covid-19. The New England Journal of Medicine

    Liu, J., Cao, R., Xu, M. et al. Hydroxychloroquine, a less toxic derivative of chloroquine, is effective in inhibiting SARS-CoV-2 infection in vitro. Cell Discov 6, 16 (2020). https://doi.org/10.1038/s41421-020-0156-0

    Wang, M., Cao, R., Zhang, L. et al. Remdesivir and chloroquine effectively inhibit the recently emerged novel coronavirus (2019-nCoV) in vitro. Cell Res 30, 269–271 (2020). https://doi.org/10.1038/s41422-020-0282-0

    O autor

    Fabio Machado é Biologo Evolutivo, pesquisador e professor. Amante dos animais, defensor da natureza, amigo do vento.

    Este texto foi escrito originalmente no Blog Haeckeliano.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Imunidade Celular: um exército de soldados invisíveis

    Em textos anteriores, nós já vimos como minúsculos sinalizadores – os anticorpos – do nosso sistema imune trabalham para auxiliar nosso corpo a combater os patógenos que tentam nos fazer mal, na chamada Resposta Imune Humoral. Agora, vamos entender melhor como um exército de soldados pessoais combatem diariamente toda uma magnitude de inimigos que tentam invadir nosso organismo, na Resposta Imune Celular.

    O que é Imunidade Celular

    A resposta imune celular, ou imunidade celular, é aquela que reside (como o nome diz) nas nossas células do sistema imunológico. Ela pode ser passada de uma pessoa imunizada para um indivíduo que não teve contato com o patógeno através da transferência dessas células a partir da pessoa que já foi infectada. Este  fenômeno nós chamamos de Transferência Adotiva, pois a pessoa que recebe as células as “adota”. 

    Mas de que células estamos falando?

        Bem, aqui é uma pergunta complicada, pois o sistema imune é formado por uma infinidade de células com diversas, diferentes e muitas vezes redundantes funções, contudo aqui vamos abordar somente algumas delas. Primeiro precisamos lembrar de algo que já falamos sobre Anticorpos: a divisão e as principais características da imunidade inata e adaptativa. Começando pela Imunidade Inata, vamos citar as principais células responsáveis no combate dos três tipos de ameaças mais comuns: patógenos unicelulares (que vivem fora de nossas células), patógenos unicelulares (que vivem dentro de nossas células) e os vermes (representando a classe de patógenos multicelulares).

    Macrófagos

    Essas são as principais células responsáveis pelo combate aos patógenos extracelulares como bactérias, protozoários e fungos. Além disso, essas células tem um papel muito grande na limpeza dos tecidos durante e após uma infecção, eliminando restos de células mortas e auxiliando no processo de cicatrização. Dentre muitas habilidades, a principal arma dos macrófagos no combate a patógenos é a Fagocitose: o simples fenômeno de envolver uma partícula externa e/ou patógeno, trazê-la para dentro da célula (simbolizado no ato de comer) e digerir essa partícula ou patógeno. O interessante desse mecanismo é que alguns pesquisadores da evolução do sistema imune consideram ele o primeiro mecanismo imune a surgir 1. Isto porque mesmo os animais mais ancestrais (as esponjas) já possuem células com essa função de “comer”. Todavia, nesses animais tais células têm a função ligada à alimentação e não à defesa como em nós, mamíferos.

    Células Natural Killers

    Podemos dizer que essas células são a Polícia ou os Agentes Especiais do sistema imune inato. São as responsáveis por matar células modificadas. Isto é, aquelas células que sofreram alguma modificação dentro de si, seja pela infecção por um vírus ou outro patógeno intracelular, a transformação em uma célula cancerígena ou mesmo o envelhecimento celular. Essas células também estão envolvidas na rejeição de transplantes, por reconhecerem as células do doador como não pertencentes a nós.

    Diferentemente dos Macrófagos, essas células atuam não engolindo outras células. Mas liberando substâncias antivirais (os famosos Interferons) e citotóxicas. Com essas últimas sendo substâncias capazes de fazer com que as células cometam suicídio, (processo chamado Morte Celular Programada, ou Apoptose). Vocês podem pensar então “Ahh mas Maurílio, como elas sabem que as células estão saudáveis e são nossas?”. Eu respondo vocês: as Natural Killers matam somente a células que não apresentam uma molécula chamada MHC ou Complexo Principal de Histocompatibilidade. Um termo que é, sim, muito complicado até para nós que somos da área! Mas que quer dizer algo muito simples: essa molécula é o nosso crachá.

    Cada um de nós, humanos, temos um MHC diferente. Temos uma probabilidade próxima de zero de encontrarmos uma pessoa com um MHC igual ao nosso. Para se ter ideia, o grupo de genes responsáveis por essa molécula é aquele tem o maior número de variantes dentro da espécie humana. Assim, cada ser humano tem um MHC diferente, e todas as nossas células expressam ele. Como as Natural Killers fazem um “cara-crachá”, verificando se cada célula tem o nosso MHC, quando encontram alguma célula expressando um MHC diferente ou não expressam MHC qualquer, elas sabem que devem matar essa célula, ou por ela estar modificada (como no caso de câncer) ou por ela ser externa a nós.

    Eosinófilos

    Essas são as principais células responsáveis no combate a helmintos, ou comumente conhecidos: os vermes. Por esse tipo de patógeno ser muito grande, nossas células não conseguem “comer” ele, como os macrófagos fazem com bactérias e protozoários. Por causa disso, os eosinófilos carregam enzimas que liberam para destruir a parede das células do patógeno, ajudando no combate destes parasitas, mas também machucando os tecidos do hospedeiro – nós, no caso! Além disso, essas células são uma das principais responsáveis pelas alergias.

    Agora, falando sobre a resposta imune celular adaptativa, nós nos focaremos nos Linfócitos T, visto que os linfócitos B já foram comentados anteriormente em outro texto. Aqui é preciso lembrar que diferentes das células da imunidade inata que reconhecem somente alguns padrões moleculares que são comuns em vários patógenos, os linfócitos conseguem reconhecer muito mais especificamente os patógenos, ao ponto de que muitas vezes eles acabam “confundindo” fragmentos de proteínas nossas com o de algum patógeno, e é assim que começa uma doença autoimune. Mas isso é assunto para um outro texto.

    Além disso, é importante lembrar aqui também que são os linfócitos os responsáveis por gerar a memória imunológica, aquele fenômeno já comentado anteriormente em que após um primeiro contato com um patógeno, o sistema imune consegue responder de forma mais rápida, forte e eficiente contra esse mesmo patógeno em um segundo contato. Agora, falando dos linfócitos T, eles são divididos em duas classes de acordo com a sua função:

    Linfócito T Auxiliar

    Também conhecido como T Helper. Essa célula é responsável por liberar citocinas – proteínas que regulam a resposta celular – que vão dar todo o auxílio necessário para a resposta imune que já esteja atuando, seja ela antiviral, antibacteriana ou antiparasitária, por exemplo. Isso é feito de vários modos. Pode ser aumentando a eficiência de macrófagos em fagocitar e digerir e aumentando a produção de enzimas pelos eosinófilos. Também atuam ajudando os linfócitos B a se ativarem mais eficientemente e produzirem anticorpos mais específicos. Bem como aumentando a expressão de citocinas antivirais e substâncias citotóxicas pelas Natural Killers.

    Linfócito T Citotóxico

    Chamadas comumente de CTL. Assim como as Natural Killers, essas células são responsáveis por matar células modificadas (infectadas por vírus e cancerígenas). No final do processo, elas vão atuar da mesma forma que as Natural Killers. Para tanto, se utilizando de substâncias citotóxicas que levam as células afetadas a cometerem suicídio (apoptose), ao invés de fagocitarem como os macrófagos fazem. Contudo, a diferença é que essas células conseguem reconhecer especificamente quais células estão infectadas com qual patógeno, dessa forma, sua eliminação é muito mais eficiente.

    Visto tudo isso…

    Falou, falou… e a Covid-19?

    Vocês viram que ficou longo né? Estamos recém começando! Fica ligado aí, porque no próximo texto vamos abordar um pouco das pesquisas referente ao estudo da Imunidade Celular contra o Covid-19. Intrigantemente, essa é uma área em que poucas pesquisas estão sendo feitas no atual momento. Apesar de alguns grupos (inclusive daqui da UNICAMP) estarem trabalhando fervorosamente para descobrir como os linfócitos T funcionam no combate o SARS-CoV-2.

    Referências

    1. Buchmann, K (2014) Evolution of innate immunity: clues from invertebrates via fish to mammals; Frontiers in immunology, 5, 459.

    Para mais informações:

    Kaech, SM, Wherry, EJ, & Ahmed, R (2002) Effector and memory T-cell differentiation: implications for vaccine development; Nature Reviews Immunology, 2(4), 251-262. 

    Koch, U, & Radtke, F (2011) Mechanisms of T cell development and transformation, Annual review of cell and developmental biology, 27, 539-562. 

    Este texto foi publicado com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • “Só dá aulas”: o que fazemos na universidade pública? (parte 2 – a pandemia)

    Texto escrito por Lavínia Schwantes e Ana Arnt

    No outro texto, falamos um pouco sobre rotina de trabalho de professores universitários a partir daquela pergunta que escutamos desde que começamos a ser professoras: “mas você só dá aulas?”. E agora? O que fazemos nesse período peculiar de 2020? As universidades estão sem estudantes?

    Para retomar, você que tem de lembrar das três funções de um professor universitário: ensino, pesquisa e extensão. E ainda aquela quarta: a gestão. Como tudo isso funciona na quarentena?

    Nós somos professoras em duas universidades públicas distintas – a Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nesta série de textos sobre o trabalho universitário durante a pandemia, vamos apresentar um pouco sobre como nosso trabalho não é só dar aulas, mas também como temos organizações diferentes para trabalhar neste momento.

    Bom, com o início da pandemia da COVID-19, o distanciamento foi decretado como uma das melhores – e até agora mais efetiva – formas de evitar contágio. A universidade é um local de grande circulação de pessoas e, também, de aglomeração de estudantes dentro de laboratório ou espaços de pesquisa e nas salas de aula. É por isso que foi decretada quarentena nas atividades de ENSINO – e atividades presenciais como extensão e pesquisa também foram afetadas em várias universidades. A Unicamp decretou o fechamento das atividades presenciais no dia 14 de março, a FURG dia 16 de março.

    O que as universidades estão fazendo?

    Há várias atividades que citamos no primeiro texto que continuam acontecendo. De que forma? Principalmente via trabalho remoto, com auxílio da rede de internet. Dessa forma, continuamos orientando alunos, preparando aulas, estudando e escrevendo artigos sobre nossas temáticas de pesquisa, escrevendo e avaliando projetos e pensando alternativas para o trabalho de extensão e outras atividades que, como citamos, podemos fazer com o uso das redes de internet.

    Ah, então quer dizer que vocês ficam o dia inteiro na internet?

    Vamos falar de uma parte da pesquisa

    Neste contexto, o que mais temos feito nesse tempo são trabalhos desenvolvidos em reuniões on line! Parece meio estranho, mas nosso trabalho envolve, além de estudar e analisar o que temos pesquisado, conversar sobre isso com outros pesquisadores, para compartilhar resultados e conclusões de pesquisas.

    Isto atualmente é feito, por exemplo, com reuniões de orientação com os pós-graduandos e com discussão entre colegas. Na pesquisa, podemos ressaltar ainda que existem inúmeros trabalhos que podem ser desenvolvidos “sem trabalho de campo e/ou laboratório”. Há uma grande etapa da pesquisa, de análise, estudo de publicações científicas, discussões teóricas e escrita de artigos, que vêm sendo desenvolvidas através destas reuniões, cada um em sua casa. A pesquisa envolve, sim, uma parte de “campo” (no nosso caso, muitas vezes dentro de escolas, por exemplo). Mas neste momento, temos revisitado pesquisas que estavam com muitos dados coletados e não vínhamos tendo tempo para analisar. 

    Os alunos de pós-graduação (que são pesquisadores em formação) seguem fazendo suas pesquisas e nós, professoras, orientamos seus trabalhos (e pesquisamos junto). Este trabalho não parou, em momento algum, nestes tempos de isolamento social.

    E as aulas? Como ficam?

    Além disso, as aulas aconteceram em tempos diferentes em cada universidade. Na Unicamp, por exemplo, as atividades on line reiniciaram alguns dias após pararem as atividades presenciais – e percebemos que havia várias dificuldades que seriam difíceis de contornar se retomássemos tudo ao mesmo tempo, virtualmente. Paramos, reorganizamos enquanto estávamos em atividades. Já na FURG, que preferiu verificar o acesso dos estudantes e estudar a melhor forma de trabalho remoto previamente, estabeleceu-se que seria melhor espaçar o retorno das aulas virtualmente e apenas as atividades de ensino na pós-graduação retornaram dia 10 de agosto.

    Assim, há várias reuniões on line em que planejamos não apenas sobre como voltar às aulas, mas que estruturas têm nossos alunos para acessar as aulas e como podemos disponibilizar recursos a quem está faltando (computador e internet, especialmente). Algumas vezes, parece que, a cada semana, uma reunião “brota” na nossa agenda!!! Como tudo isto é novo para todos nós, parte das tarefas atuais é organizarmos ações da universidade, sem oferecer riscos a ninguém (ou minimizando os riscos ao máximo possível). 

    Por incrível que possa parecer para alguns, nem todos estudantes universitários têm acesso a internet. Cerca de 70% dos estudantes de universidades públicas vêm de famílias com renda de até 1,5 salários mínimos per capita. Neste sentido, são alunos que necessitam de auxílios diversos para se   manter estudando. Outros tantos que têm acesso, o fazem apenas de aparelhos celulares móveis. Então, este retorno tem de ser bem pensado para incluir o maior número possível de estudantes no processo de reinício de ensino de uma universidade que, lembramos a vocês, é pública!

    Tem ainda a gestão universitária em tempos pandêmicos, calma lá que ainda não acabou…

    De uma maneira geral, essas reuniões são principalmente relacionadas às atividades de gestão. Isto é,  como poderemos gerenciar as atividades da universidade sem prejudicar os estudantes, professores e toda a comunidade. Na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), há um grande grupo de colegas e de técnicos que estão no que chamamos a linha de frente do trabalho universitário na pandemia. Eles estão constantemente em reuniões de organização de como faremos para o retorno das aulas da graduação, da pós-graduação e atividades de extensão e de pesquisa. Na Unicamp, também existem grupos específicos para este debate. A Unicamp também montou a Força Tarefa da Unicamp, um grupo de pesquisa específico só para questões da Covid-19, além dos diagnósticos da doença. 

    Dessa forma, estes grupos de docentes, funcionários e, também, estudantes, buscam analisar e estipular prazos e protocolos para retornos – ou atividades remotas. Como isto acontece? Principalmente através de questionários aos estudantes e professores, para ver suas condições de acesso à internet, possibilidades de executar etapas da pesquisa à distância, existência de grupos de risco, dentre outras questões.

    Todos estes dados vêm sendo analisados – cada um em sua unidade universitária – para reorganizar normativas da universidade que regem a graduação e a pós-graduação para a nova realidade que estamos enfrentando. E agora, estão encaminhando novos calendários formulados a partir dos dados dos questionários para em um momento posterior, iniciar a retomada das atividades de ENSINO. Pode parecer enrolado – e nem sempre todas as medidas são simples – mas como dissemos, tudo é novo e tem sido feito às pressas, buscando impactar o menos possível a continuidade das atividades, nem colocar em risco à vida das pessoas.

    Por fim…

    Ainda há bastante a ser dito sobre esta reorganização da universidade, hoje trouxemos uma pequena pincelada do que temos feito. Cada universidade, por ter autonomia e por ter realidades diferentes, vem montando seus grupos de trabalho de forma diferenciada também. Nós vamos abordar um pouco mais sobre isto nos próximos textos, especialmente acerca dos serviços à comunidade que as universidades públicas tem feito agora na pandemia e sobre as aulas na modalidade remota…

    Nós duas temos pensado em escrever esta série há tempos, mas acabou demorando um pouco para ser escrito. Por quê? Isso mesmo! Como vocês podem ver, trabalho, pesquisa, aulas e reuniões, não faltam! Aguardem que logo logo traremos um pouco dos bastidores desse trabalho feito por aqui!

    Para saber mais:

    Rede pública do RS alcança primeiro lugar no ranking do Enem

    Dados INEP: Sinopse Estatística da Educação Superior 2018.

    MOITAL, F, Maria GSC; ANDRADE, FCB (2009) Ensino-pesquisa-extensão: um exercício de indissociabilidade na pós-graduação, Revista Brasileira de Educação, vol14, nº41, Rio de Janeiro, maio/ago.  

    KUENZER, AZ, MORAES, MCM (2005) Temas e tramas na pós-graduação em educação, Revista Educação e Sociedade, v26, nº93, Campinas, set/dez/2005

    Dados da Academia brasileira de ciências sobre produção científica no Brasil

    As autoras

    Lavínia Schwantes – Biológa, formada no século passado na UFRGS; atua como professora na área há mais de 20 anos. Encantada pela educação em ciências, trabalha formando professores de Ciências e Biologia. Pesquisa a ciência, sua produção e sua filosofia, e como pode ser ensinada, tendo aí concentrado seus estudos, projetos, publicações científicas, leituras e orientações de graduação e pós-graduação junto ao Grupo PEmCie no CEAMECIM na Universidade Federal do Rio Grande-FURG.

    Ana Arnt – Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB), do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM) e do Programa de Pós-Graduação em Genética e Evolução. Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência!

    Este texto foi escrito exclusivamente para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • “Só dá aulas”: o que fazemos na universidade pública? (parte 1)

    Texto escrito por Lavínia Schwantes e Ana Arnt

    Somos duas professoras, biólogas, com mestrado e doutorado na área de Educação/Ensino. E vamos contar um pouco da trajetória de trabalho nossa, para exemplificar um pouco do que é e como trabalha a universidade – e como isso vem acontecendo na pandemia.

    Mas antes de falarmos da pandemia, vamos falar sobre o nosso trabalho “no antigo normal”.

    “Só dá aulas”

    Já trabalhei com o Ensino Médio – eu amava “dar aulas” para essa galera no meu querido Sarmento Leite e me orgulho demais dos colegas que, mesmo com a desvalorização salarial imposta na última década, mantém bons índices de desempenho com os estudantes[1]. E, atualmente, estou como professora universitária há 13 anos, na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), já dei aula também na Universidade Federal do Tocantins (UFT). Essa pergunta que está no título deste post eu escuto desde o início de minha carreira profissional como professora há 20 anos! (Lavínia Schwantes).

    Eu fui professora de cursinho popular por 6 anos. Um tempo em que aprendi a compreender a docência, os conteúdos curriculares, como imersos em questões sociais que jamais poderiam ser segmentados. Também foi onde aprendi que entrar na universidade é, para muitas pessoas, um grande sonho. Sou professora universitária há 15 anos, já fui professora na Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT) e, desde 2016, dou aula na Unicamp. Esta pergunta que está no título do post eu escuto desde o início da minha carreira profissional, que completou 18 anos… (Ana Arnt)

    Mas ainda hoje? Sério?

    Ainda mais em tempos pandêmicos, com as universidades “paradas” (muitas aspas aqui), essa pergunta volta a ressoar por todos os lados e resolvemos explicar o que fazem docentes de universidade pública.

    Não fazem nada?

    Para começar, segundo a lei que rege o funcionalismo público civil (lei 8112/1990), este professor é um funcionário público. Na sua origem, portanto, deve atender ao serviço público. Ou seja, seu trabalho serve a toda a comunidade e à sociedade. Para ser servidor, precisa ser aprovado em um concurso público, aberto a todos que se encaixam nos requisitos da vaga.

    Assim, neste concurso, o candidato deve mostrar que sabe o conteúdo da vaga à qual está concorrendo. Isto é, deve mostrar que sabe “dar uma aula” e, mais do que isso, organizar um plano de trabalho no qual constem projetos de pesquisa, de extensão e, de ensino, claro. Daí, já tiramos as três funções que, tanto o professor quanto a universidade pública têm, que são: ensino, pesquisa e extensão!

    Aqui cabe um esclarecimento importante em relação a carreira de professores no Ensino Superior. Segundo a lei que rege o magistério público federal (Lei 12772/2012) a carreira de professor tem classes conforme o nível estudo (graduado, Mestre ou Doutor) e pode ser D.E. (Dedicação Exclusiva) ou não. Alguns tem regime parcial de 40h ou 20h semanais.

    A maioria dos professores de Ensino Superior são doutores (58% nas universidades brasileiras em 2018)[2] e tem D.E. (71% nas universidades brasileiras em 2018)[3]. Isso quer dizer que eles se dedicam somente à universidade, ao trabalho que nela desenvolvem, considerando o tripé de ensino, pesquisa e extensão conforme previsto no artigo 207 da Constituição Federal (CF) de 1988. Não podem ter outra renda, nem trabalhar em outros lugares, não podem ter empresa ou receber remuneração para outra atividade fora da universidade de forma fixa (apenas para trabalhos pontuais – como consultorias ou cursos – e há um limite anual para isso).

    Afinal, o que compõe esse tripé?[4]

    ENSINO

    Uma das funções da universidade é a formação de profissionais em áreas específicas. Isso é ENSINO. Aí está, agora sim! É o “dar aulas”. Assim, todo semestre, o professor universitário público, não importa o regime de trabalho que tem (D.E., 40 ou 20h) atende turmas de alunos nos cursos de graduação que atuam.

    O tempo que ocupa para essa função é determinado pela universidade e pode variar dentro de seus órgãos internos. Isso chama-se autonomia universitária e é amparado no artigo 207 da CF e na Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional (lei 9394/96).

    Mas o “dar aulas” não é somente estar em sala de aula. Vejam que o conhecimento aumenta e se modifica muito ao longo do tempo e com isso, a necessidade do professor ter aulas atualizadas. Não adianta o professor dar a mesma aula desde o ano 2000 quando entrou na universidade, porque, com certeza, o conhecimento científico sobre sua temática de aula e as metodologias existentes para ENSINÁ-la se modificaram ao longo desse período.

    Para manter a atualização do que ensina aos seus graduandos, e assim, formar bons profissionais, o professor estuda e prepara aulas toda semana. Ainda tem a tarefa semanal de avaliar a aprendizagem dos estudantes, isto é, elaborar, disponibilizar, ler, corrigir trabalhos e provas, estabelecendo notas para cada uma das turmas das disciplinas. Vamos dizer então, se ele “dá aulas” duas tardes por semana na graduação, outros dois turnos ele usa para preparar as aulas, estudar para elas e avaliar trabalhos dos estudantes. Aí se vão quatro turnos de trabalho no ENSINO.

    PESQUISA

    A segunda função do professor universitário público D.E. é a PESQUISA! E aqui, entra outro tanto de atividades. O que é fazer pesquisa hoje? [5]É atualização de saber da área específica que o professor trabalha, isto é, produção de conhecimento. As universidades públicas são responsáveis por 95% do conhecimento produzido no país[6]. Como ele faz isso? O professor, geralmente, se vincula a um curso de pós-graduação de sua áre, cada universidade tem muitos destes cursos em todas áreas nas quais formam profissionais na graduação.

    Inserido na pós-graduação, o professor desenvolve pesquisas em diferentes espaços na universidade – um laboratório, uma sala multidisciplinar ou outro. Ali, o professor orienta os estudantes em pesquisas próprias, mas quase sempre vinculadas à temática e pesquisa central do professor. Existem professores que orientam cinco, sete ou 15 estudantes simultaneamente, que, depois de formados na graduação, se dedicam a desenvolver projetos para receber os títulos de Especialista, Mestrado e/ou Doutorado. Esses orientandos e o professor formam o que chamamos de grupos de pesquisa.

    Fazer pesquisa, atualmente, também implica compartilhar o conhecimento para a comunidade científica de cada área, o que significa escrever artigos científicos. E também implica buscar auxílio financeiro para que seus projetos sejam desenvolvidos, pois para fazer pesquisa, precisamos de livros, acesso bom à internet, equipamentos, materiais diversos, reagentes e outros recursos. E todos eles precisam de verba!

    Fazer pesquisa envolve todo um trabalho burocrático, além da “pesquisa em si”

    Na busca desses recursos, o professor precisa escrever projetos e submetê-los para avaliação de agências de fomento que abrem editais específicos para tal, sejam essas agências governamentais ou privadas. A pesquisa ainda inclui participar de comissões de avaliação de artigos científicos, de artigos para eventos, de comitês de avaliação de projetos de editais.

    Ou seja, o trabalho com PESQUISA na universidade pública requer tempo para: reuniões do grupo de pesquisa e orientação dos alunos (um turno); trabalho no laboratório ou espaço de pesquisa (um turno); escrita de artigos científicos, de projetos e de relatórios de pesquisa (um turno); leitura e avaliação de artigos dos orientandos, bem como, de revistas científicas (mais outro turno)…

    Ah, e claro que, na pós-graduação, o professor “dá aulas” também, nos cursos de Especialização, Mestrado e/ou Doutorado para os estudantes pós-graduandos. E para tal, como na graduação, ele também deve preparar e estudar, atualizando seu tema da aula. Portanto, aí temos, aproximadamente, mais quatro turnos de PESQUISA e mais um de ENSINO de novo!

    EXTENSÃO

    Por fim, a última função, mas não menos importante, de um professor docente universitário público é a EXTENSÃO!! Antes, comentei que a maior parte de produção do conhecimento se faz dentro das universidades públicas e que uma função da pesquisa é divulgar este conhecimento para comunidade científica. E quem não é desse grupinho da comunidade científica? Como fica sabendo do saber, ou dos produtos, ou das tecnologias que são produzidas na universidade?

    Pelo trabalho de extensão, cujo nome revela sua função: é uma extensão da produção da universidade para a comunidade no entorno dela. Assim, mais uma vez, o professor, tem de escrever projetos de extensão e executá-lo com a ajuda de uma equipe – outros colegas ou estudantes. Esse trabalho pode ser de divulgação científica, de trabalho com as comunidades periféricas, com determinada porção da população, com uma determinada instituição que não a universidade, com prefeituras ou associações de bairro, em hospitais ou museus, por exemplo.

    Há inúmeras possibilidades de extensão que envolvem, além da já citada divulgação de conhecimento, o retorno do investimento social na universidade para a população como um todo! Você sabia, por exemplo, que muitos dos museus, jardins botânicos ou espaços de cultura que você frequenta são mantidos pelas universidades públicas? Muitas delas mantêm também hospitais universitários públicos com recursos físicos, estruturais, de capital e humanos. Isto é, todos estes são espaços de extensão universitária com foco no atendimento direto ao público já mais consolidados historicamente!

    Lembra dos movimentos “Ciência na Rua”?

    Também lembramos a vocês, aqueles movimentos de maio de 2019 do tipo “ciência na rua”, em prol de uma educação de qualidade. Pois é, o objetivo desses eventos era mostrar todo o trabalho/pesquisa/conhecimento desenvolvido nas universidades para a comunidade, como um grande evento de EXTENSÃO!! Foi importante para muitos professores entenderem também qual sua função com essa atividade do tripé da universidade! Todavia, infelizmente, a extensão ainda é a “prima pobre” da universidade pública, há, mesmo com um crescente, pouco investimento e poucos projetos de extensão. Mas é função do docente universitário. Digamos que aí vai outro turno de trabalho na EXTENSÃO!

    No total…

    Por fim, voltamos a contagem: são dois turnos, mais dois, mais um no ENSINO; quatro turnos semanais na PESQUISA e um turno na EXTENSÃO, somando 10 turnos de trabalho! É possível para o professor “jogar” estes turnos a cada semana conforme a necessidade. Isto é, estes dez turnos aqui variam de semana a semana conforme as demandas vão surgindo no trabalho! Exceto o tempo de dedicação às aulas na graduação, que é mais fixo, o professor pode se envolver mais na pesquisa ou na extensão de acordo com a característica individual ou de sua área. Mas todo tripé é sua função!!!

    Um exemplo real

    Vejamos nosso exemplo (somos professoras com Doutorado e somos D.E.): duas tardes de aulas na graduação na Biologia; dois turnos de preparo das aulas sobre Educação em Biologia. Mas, calma, também temos aulas na pós-graduação (um turno de aula, um turno preparando material).

    Ainda, reunião com grupo de pesquisa PEmCie, estudos sobre nosso tema de pesquisa “História e Filosofia da Ciência”, reuniões com cada um dos orientandos do grupo. Na FURG, são um total de doutorando, duas mestrandas, dois bolsistas de iniciação científica, duas professoras. Na Unicamp, dois doutorandos, sete mestrandos, cinco alunos de iniciação científica e alunos que estão estudando para entrar nas próxima seleções de pósgraduação. Além disso, temos leitura dos artigos deles e organização de trabalhos dos orientandos e escrita de artigos e projeto de pesquisa (vai aí uns, sei lá, uns quantos turnos de trabalho, hehe).

    Estamos revitalizando meu projeto de extensão que incluía divulgação científica nas escolas e agora estamos focando nas tecnologias digitais para tal. Além disso, o grupo também tem atuado na Divulgação Científica – aqui no blogs e no nosso podcast, nesta empreitada são alguns turnos (que variam dependendo da semana…).

    Será que ficou um pouco mais claro?

    Quanto deu aí? Muitos turnos, não é? Deu para “encher” uma semana de trabalho? Dá pra incluir até o sábado, muitas vezes! Ah, sim… E, a Lavínia ainda trabalha com os estágios docentes nas escolas, então visitas periódicas a essas instituições parceiras estão, também, na minha rotina. Mas enfim, acho que conseguimos apresentar um panorama breve que indica que nosso trabalho é mais do que “dar aulas”. Não acha?

    Todavia, não esqueçamos que muitos professores, exercem cargos de gestão (seria uma quarta função nesse tripé), assumindo, temporariamente, coordenações de curso de graduação, de pós-graduação, diretoria de seções nas pró-reitorias ou em departamentos e institutos; ou mesmo, gerenciando pró-reitorias e reitorias. Como são temporários, não coloquei esse trabalho administrativo na conta, mas posso afirmar, por experiência própria como coordenadora por 2,5 anos, que é um baita trabalho, cansativo e, muitas vezes, burocrático!

    E tem mais, um professor D.E. participa de atividades temporárias na universidade como: comissão de graduação, de pós-graduação, de seleção de mestrado/de doutorado, bancas de avaliação de teses e dissertações, orientador de trabalho de conclusão de curso, comissões eleitorais, comissões de curso. Pode assumir gestão sindical ou comissão de organização de eventos. Por fim, ainda tem participação em eventos científicos e apresentação de trabalhos em congressos, participação em reuniões de todo e qualquer tipo, etc.

    “Ah, mas eu conheço um professor que só vai à universidade pra dar aulas”

    “Eu conheço o fulano, que foi meu professor, e não faz tudo isso não”. É, infelizmente, conhecemos professores universitários assim! Como em qualquer profissão, há quem não possa ser tomado de exemplo e, definitivamente não são a maioria. No entanto, apostamos nos meus colegas que trabalham bastante para um bom desenvolvimento na/da universidade para/com a sociedade!

    E o que podemos dizer para você? Espelhe-se naqueles que levam seu trabalho a sério e o conduzem de forma a promover melhorias para a nossa sociedade. E se aqueles que não o fazem ainda te incomodarem muito: “dê um toque” para eles, comente sobre a necessidade de fazermos nosso papel e mostrarmos toda a potência de uma universidade pública!

    Nosso foco eram os tempos pandêmicos né? Mas tivemos que nos estender um pouco na explicação para vocês entenderem melhor. E como tudo isso funciona na quarentena fica para um próximo post!


    Para saber mais:

    [1] Rede pública do RS alcança primeiro lugar no ranking do Enem

    [2] [3] Dados INEP: Sinopse Estatística da Educação Superior 2018.

    [4] MOITAL, F, Maria GSC; ANDRADE, FCB (2009) Ensino-pesquisa-extensão: um exercício de indissociabilidade na pós-graduação, Revista Brasileira de Educação, vol14, nº41, Rio de Janeiro, maio/ago.  

    [5] KUENZER, AZ, MORAES, MCM (2005) Temas e tramas na pós-graduação em educação, Revista Educação e Sociedade, v26, nº93, Campinas, set/dez/2005

    [6] Dados da Academia brasileira de ciências sobre produção científica no Brasil

    As autoras

    Lavínia Schwantes – Biológa, formada no século passado na UFRGS; atua como professora na área há mais de 20 anos. Encantada pela educação em ciências, trabalha formando professores de Ciências e Biologia. Pesquisa a ciência, sua produção e sua filosofia, e como pode ser ensinada, tendo aí concentrado seus estudos, projetos, publicações científicas, leituras e orientações de graduação e pós-graduação junto ao Grupo PEmCie no CEAMECIM na Universidade Federal do Rio Grande-FURG.

    Ana Arnt – Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB), do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM) e do Programa de Pós-Graduação em Genética e Evolução. Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência!

    Este texto foi escrito originalmente no para o Blog Pemcie

    Texto 2 da série

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Vacinas: de onde vêm e para onde vão

    Recentemente temos ouvido falar muito sobre todas as pesquisas que têm sido realizadas para se descobrir uma vacina contra a Covid-19: Inglaterra, China, Rússia, todos estão correndo para ser o primeiro país a ter uma vacina aprovada para uso humano e que seja realmente eficiente em gerar uma imunidade em nós. Mas como que realmente funciona uma vacina e porque – em geral – demora-se tanto para desenvolver uma?

    Imunidade ativa e passiva

    Antes de falarmos sobre vacina, precisamos ter dois conceitos muito bem claros em nossa cabeça: Imunidade Ativa e Passiva. A Imunidade Ativa é aquela em que o nosso próprio corpo desenvolve a resposta imune contra o patógeno, um processo demorado, mas que nos garante uma proteção que pode durar décadas, a chamada memória imunológica (explicada no texto sobre anticorpos). Já a Imunidade Passiva, ocorre quando adquirimos anticorpos já prontos a partir de um outro organismo que os produziu. Esse processo garante uma imunidade rápida e eficiente, porém ela é temporária. A Imunização Passiva acontece, por exemplo, quando a mãe está amamentando o filho ou quando utilizamos de soros antiofídicos e antiaracnídicos, após picadas de cobras e aranhas.

    O processo de imunidade ativa pode ser desencadeado tanto de forma natural quanto de forma artificial. O primeiro acontece quando entramos em contato com o patógeno no próprio ambiente, como quando pegamos uma gripe. Já o segundo processo acontece quando somos expostos de forma intencional ao patógeno – que muitas vezes está enfraquecido ou destruído – ou a partes dele, como ocorre no processo de vacinação. 

    Histórico da vacina e o que é vacina

    O conceito de vacina foi descoberto no século XVIII por Edward Jenner, considerado o pai da imunologia, que observou que fazendeiros que contraiam a varíola da vaca, ficavam protegidos contra a varíola humana. A partir dessas observações, Jenner infectou pessoas com a varíola da vaca e após algum tempo, infectou essas mesmas pessoas com a varíola humana, observando que estas não ficavam doentes como as pessoas que não eram infectadas pela varíola da vaca anteriormente. Com isso, ele comprovou sua hipótese e criou a primeira vacina. Décadas mais tarde, no ano de 1980, a OMS declarou oficialmente a erradicação da varíola no mundo 1.

    Mas afinal, o que é a vacina?

    Vacinas nada mais são do que os patógenos – causadores de doenças que conhecemos – enfraquecidos, mortos ou fragmentos deles, que são injetados nos organismos para simular uma infecção natural (no processo dito acima de Imunização Ativa Artificial). Foi a partir desse processo que muitas doenças desapareceram de vários países, como a varíola, poliomielite, tuberculose e outras. Mas também é por causa da negligência e do crescente movimento Anti-vax que muitas doenças estão voltando a circular em países que anteriormente não a tinham mais, como é o caso do sarampo aqui nas Américas. 

    Leva-se anos para desenvolver uma vacina (a média de tempo é de 10 anos 2), e durante todos esses anos ela é testadas de inúmeras formas para ser segura para podermos tomarmos. Muito se fala sobre febre e a dor local após tomar uma vacina, mas isso nada mais é do que uma reação do corpo comum para qualquer infecção. A febre é até uma forma do nosso sistema imune combater alguns patógenos e, desde que não seja alta, está tudo bem.

    A única contra-indicação de vacinas são para pessoas alérgicas à algum componente dela. Contudo, essas pessoas são minorias na população e para elas estarem seguras contra o patógeno todos a sua volta precisam estar vacinados. Neste ponto é importante lembrar que a vacina é um pacto social. Isto é, quando a maioria da população toma a vacina, protege também quem não pode tomar, pois diminui a circulação dos vírus patógenos. Assim, todos nós precisamos nos vacinar para gerar a chamada Imunidade de Rebanho.

    Tipos de Vacina

    Mas voltando às vacinas propriamente ditas, não existe somente um tipo delas, mas sim vários. Aqui vamos explicar somente os principais 3, 4:

    – Vacinas de Patógenos Vivos:

    calma, não entremos em pânico por causa do nome! Apesar desse tipo de vacina ter sim o patógeno causador da doença vivo ele está sempre atenuado, ou em outras palavras, enfraquecido. Nesse tipo de vacina, o patógeno (seja um vírus, bactéria ou outro microorganismo), passa por um processo que compromete sua habilidade de causar a doença em nós, apesar dele ainda conseguir infectar nossas células. Em casos de vírus, muitas vezes o vírus que infecta humanos é cultivado em células de macacos ou outros animais por várias gerações, até que ele adquira mutações que fazem com que ele infecte muito bem células de macaco, ao mesmo tempo que perde a capacidade de infectar muito bem as nossas células, e então ele está atenuado.

    Normalmente, esse tipo de vacina é o melhor, pois em geral é necessário somente uma dose, a resposta e memória imunológica é de longa duração, gerando uma resposta imune celular e humoral (também comentada no texto de anticorpos). Contudo, há uma pequena chance de reversão do vírus, em que ele readquire a capacidade de infectar nossas células com força total e causar a doença que estamos tentando prevenir. É por esse fato que tal vacina é tão difícil de produzir, pois os pesquisadores muitas vezes não conseguem diminuir esse risco e o projeto da vacina não segue em frente.

    – Vacinas de Patógenos Inativado (morto)

    como o próprio nome diz, esse tipo de vacina nos dá o patógeno inteiro também, mas ele está morto. E com isso já temos uma vantagem logo de cara: não há o risco de reversão, como nos casos de patógenos atenuados. Contudo, também há alguns problemas. Pelo patógeno estar morto, ele não consegue se replicar dentro de nossas células, o que prejudica a formação de uma resposta imune celular. Assim, o tipo de resposta imune que vamos desenvolver é principalmente do tipo Humoral (focando nos anticorpos). Além disso, esse tipo de vacina, em geral, requer diversas doses de reforço e muitas vezes o uso de Adjuvantes: substâncias capazes de aumentar a eficiência da resposta imune contra o patógeno que estamos injetando junto.

    – Vacinas de Subunidades:

    Graças a biotecnologia que temos hoje em dia, caso um patógeno seja muito perigoso e não possamos usar ele inteiro, podemos trabalhar com partes dele, como com alguma proteína dele ou outro fragmento. Dessa forma nós tiramos todo o risco de patogenicidade da vacina, além de ser facilmente produzido em larga escala. Contudo, novamente temos problemas: o uso de adjuvantes, o maior número de doses de reforço e somente a resposta imune humoral participando. Além disso, ainda há um segundo fator problemático: algumas pessoas podem não responder a esse fragmento que está sendo utilizado na vacina. 

    O caso mais emblemático é o da vacina de Hepatite B. É relativamente comum encontrarmos pessoas que tomaram diversas doses da vacina para Hepatite B e constaram como “não-reagentes”, isto é, não desenvolveram anticorpos contra o vírus. Por questões genéticas da própria pessoa, mesmo que ela tome 1000 doses dessa vacina, ela jamais vai responder a esse fragmento. Isso quer dizer que ela é mais suscetível ao vírus da Hepatite B do que eu (que hipoteticamente sou reagente) e vai morrer caso contraia a doença? Não, de forma alguma! Isso só quer dizer que para esse pedaço específico do vírus, usado para fazer a vacina, ela não é capaz de responder, contudo, caso ela entre em contato com o vírus inteiro, ela responderá normalmente à ele, como qualquer outra pessoa.

    Vacinas contra Covid-19

    Atualmente as duas principais concorrentes para ser a primeira vacina contra Covid-19 são as vacinas da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e a vacina da Sinovac Biotech, uma empresa chinesa com base em Pequim. Enquanto a vacina da Sinovac Biotech se baseia no modelo de vacina com o vírus morto 4, 5, a vacina da universidade de Oxford, se baseia em um novo modelo nunca utilizado antes em vacinas, em que se usa um vetor viral 4, 6, 7. Mas o que é isso? Um vetor viral nada é do que um vírus, criado geneticamente para carregar e produzir o material genético de outro organismo. No caso da vacina, esse vírus “caminhão” é responsável por causar um resfriado em macacos, mas foi inativado e engenhado geneticamente para ter as informações e ser capaz de produzir a proteína Spike, a principal proteína do SARS-CoV-2. 

    Atualmente, ambas as vacinas já estão na fase 3 de testes onde milhares de seres humanos estão sendo testados com elas para se descobrir se a resposta imune que elas causam em nós é realmente protetora. Até agora, as informações que temos é que ambas as vacinas não são perigosas para nós e conseguem desenvolver anticorpos, mas a dúvida que fica é: será que essa proteção é realmente eficiente em nos proteger? E principalmente: quanto tempo essa proteção durará?

    Para saber mais

    1. Organização Panamericana de Saúde (2020) Erradicação da varíola: um legado de esperança para COVID-19 e outras doenças 
    2. Pronker, ES, Weenen, T. C, Commandeur, H, Claassen, EH, & Osterhaus, AD (2013) Risk in vaccine research and development quantified. PloS one, 8(3), e57755. 
    3. Rauch, S, Jasny, E, Schmidt, KE, & Petsch, B (2018) New vaccine technologies to combat outbreak situations. Frontiers in immunology, 9, 1963.
    4. Callaway, E (2020a) The race for coronavirus vaccines: a graphical guide; Nature, 28 April.
    5. Gao, Q, Bao, L, Mao, H, Wang, L, Xu, K, Yang, M,& Gao, H (2020) Development of an inactivated vaccine candidate for SARS-CoV-2; Science.
    6. van Doremalen, N, Lambe, T, Spencer, A, Belij-Rammerstorfer, S, Purushotham, J N, Port, J. R, & Feldmann, F (2020) ChAdOx1 nCoV-19 vaccination prevents SARS-CoV-2 pneumonia in rhesus macaques. bioRxiv. 
    7. Mullard, Asher (2020) COVID-19 vaccines start moving into advanced trials. Nature

    Outras Leituras:

    Outros textos sobre Vacinas no Especial

    Sobre Vacinas, método científico e transparência na ciência (parte 1)

    Sobre Vacinas, método científico e transparência na ciência (parte 2)

    MODERNizAndo a vacina contra a COVID-19

    Vacina COVID-19 – Por que demora?

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Blog Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Sobre Vacinas, método científico e transparência na ciência (parte 2)

    [Diálogos semi-imaginados, não aleatórios]
    https://giphy.com/gifs/du2gFIxNEM8n6e3Hrr
    Já pode lamber corrimão?

    A ciência na vida mundana

    A ciência virou notícia cotidiana – já não consta apenas em partes específicas dos noticiários e jornais, em programas televisivos que se passam nos primeiros horários da manhã durante o final de semana. Desde meados de março, quando o SARS-CoV-2 desembarcou de vez no Brasil, temos visto curvas epidemiológicas, debates sobre eficácia de medicamentos, aprendido sobre proteína Spike, sobre diagnóstico por PCR e sorológico. Temos lido sobre pulmão com aspecto de vidro fosco, compreendido sobre a relação de algumas comorbidades e a infecção pelo novo coronavírus, lido mais e mais sobre transmissão comunitária, imunidade cruzada, diferentes tipos de anticorpos, dentre outros temas.

    Também há todo um montante de informações que nos confunde, muitas vezes. Medicamentos como Cloroquina e Ivermectina – que já eram usados para outras doenças ou enfermidades, tornaram-se “drogas candidatas” e embora tenham sido descartadas, seguem sendo pauta no Brasil e no Mundo. 

    Semana passada a Ozonioterapia foi anunciada como tratamento em uma transmissão ao vivo, por um prefeito no Sul do país e pronto… Uma corrida por informações, memes, artigos publicados, declarações das sociedades relacionadas a isso.

    A Vacina Russa, esta semana também têm causado furor em redes sociais. E muitos se perguntam se tomariam mesmo sem ela ter apresentado os resultados das fases 1 e 2, afinal “é melhor que nada, né?”

    Um pouco é melhor que nada?

    É aí que reside um grande perigo… Percebam que não temos nenhum interesse em acordar todas as manhãs e ver que não há cura, tratamento ou vacina eficaz anunciada. Não é pessimismo olhar para como as etapas da vacina precisam de tempo para serem analisadas. Sagan, em 1996, comentou que vivemos em um mundo em que precisamos da ciência e seus produtos em cada detalhe da sociedade. No entanto, não sabemos como a ciência funciona – e isso é uma receita para o desastre, afirmou um dos maiores nomes da divulgação científica de todos os tempos.

    Pois bem, aqui temos uma série de questões fundamentais que precisamos entender (e talvez isso demore mais tempo do que a vacina, mas cá estamos aprendendo junto com vocês…). A ciência precisa de tempo. Ela é feita a partir de uma série de etapas, que expliquei na postagem que é a parte 1 deste texto. De maneira muito sucinta, o método científico é feito a partir das etapas desta imagem:

    Cada uma destas etapas é feita de maneira colaborativa, com diálogo, debates em grupos de pesquisa, aprovações em comitês de ética nacionais e/ou internacionais (que precisam ser avaliados quanto ao risco aos seres vivos envolvidos). Enquanto estas etapas acontecem, elas também vão gerando outras perguntas e hipóteses (não são etapas estanques e lineares), realizamos análises enquanto estamos realizando experimentos, apresentamos dados parciais em eventos e publicações, etc.

    Porque estou batendo nesta tecla com vocês?

    Ora! Para dizer que na ciência o método científico INTEIRO é permeado de diálogos, debates, conversas. Compartilhar resultados em periódicos ou congressos é uma parte de tudo isso – uma parte importante, pois não é apenas uma exposição, mas é uma avaliação pública do nosso trabalho. Todavia, é também parte de uma prática de expor conhecimento para que outros grupos de pesquisa, outros cientistas, consigam acessar isto e fazer novas perguntas, hipóteses, propor novos experimentos – aumentando ainda mais nosso conhecimento sobre um fenômeno.

    Isto leva tempo, demanda esforço, recursos financeiros, formação de cientistas ao longo de muito tempo, equipes inteiras que se debrucem sobre os problemas que aparecem no mundo. Não que cientistas sejam pessoas extraordinárias e mais inteligentes (o suprassumo de nossa espécie diriam algumas pessoas). Não é nada disso… É apenas demarcar que é uma atividade de médio e longo prazo – UM PROJETO DE UM PAÍS, para além de partidos e governantes.

    Dizer que terapias sem comprovação científica é melhor que nada não é dar esperança às pessoas: é tapar o sol com a peneira e dizer que qualquer coisa vale para a vida do outro. E isso inclui possíveis prejuízos (como a piora do quadro de saúde, o abandono das terapias paliativas, o falecimento sem assistência adequada, o contágio de familiares…)!

    Sobre terapias alternativas e seus resultados não publicados 

    (ou publicados para outras doenças que não aquela que estamos falando)

    Veja que nem é afirmar que não existem estudos vinculados a estas terapias e indicações de tratamentos que vou falar a partir de agora. Mas é sobre como resultados específicos não foram obtidos para esta doença.

    • “A ozonioterapia é usada há 100 anos já!”
    • “A ozonioterapia têm tido ótimos resultados em tratamentos cutâneos e outras enfermidades”
    • “A cloroquina é usada há décadas para Lupus e malária! Como assim é tóxica?”
    • “Os resultados in vitro deram positivo, qual o problema então se eu tomar?”
    • “A ivermectina não têm comprovação, nem contraindicação, deixa as pessoas tomarem ué!”
    • “Se a vacina russa sair, eu vou tomar, mesmo sem comprovação!”

    Estas são algumas das frases que vemos espalhadas nas redes sociais e expressam a opinião das pessoas. 

    Agora vamos lá…

    Para afirmar que a ozonioterapia é eficiente como tratamento, não basta o ozônio ser um bom composto químico que reage com o vírus fora do nosso corpo. Também não basta a ozonioterapia ser eficiente há 50-100 anos contra doenças diversas. Além disso, uma terapia eficiente contra uma doença não a torna automaticamente eficiente contra qualquer outra.

    Tratamentos para doenças muitas vezes necessitam de reagentes específicos (isto é: que quimicamente tenham ação contra o agente patógeno – vírus, bactérias, vermes, fungos…).

    Em suma, para ozônio ou qualquer componente experimental, componentes químicos reagem de modo diferente dentro e fora do nosso corpo. Além disso, os componentes reagem de maneiras diferentes dependendo de como entram em nosso corpo (com introdução anal, intramuscular, intravenosa, pelo trato digestivo).

    Ah, sim: o mesmo vale para a cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e outras drogas candidatas (que já foram descartadas…). Ou seja: drogas candidatas e terapias em fase de pesquisa estão ainda cumprindo a sequência do método científico – não podem nem ser chamadas de tratamento. Assim, estes medicamentos em fase de pesquisa não poderiam ser administradas para as pessoas como tratamento sem que as pessoas fossem informadas sobre isso e consentissem formalmente!

    E a vacina russa?

    Sem transparência, não há segurança! Sem transparência no processo todo, não sabemos se houve ética no desenvolvimento desta vacina! E é por debatermos cada etapa da ciência que temos avançado não apenas em resultados mais precisos contra doenças, mas temos buscado meios de fazer isto de modos cada vez mais seguros, levando-se em conta questões étnicas, de gênero, de faixa etária, de classe social. Ou seja, levando-se em conta a diversidade humana em todos os seus aspectos – e isso é uma luta antiga e importantíssima dentro do meio científico. Que foi (e têm sido – pois ainda temos muito o que conquistar na igualdade e equidade das populações) pauta do que é ciência, como a fazemos e aplicamos o método científico e, mais importante do que isso, para quem fazemos isso – a sociedade.

    Compreendem a diferença? Não é ser negativo. Não é nos negarmos a querer que todos vocês – e nós – tenhamos novamente uma vida de idas ao supermercado sem neuras, abraços sem restrições e uma vida sem medo.

    É exatamente o oposto disso. E não é, também, deixar de olhar para tudo o que ainda temos a fazer e conhecer para que a transparência e a ética sejam alcançadas em cada etapa de nosso trabalho. É exatamente para isto que estamos aqui e trabalhamos com divulgação científica! Por uma maior transparência, diálogo, inclusão no (e pelo) conhecimento para debate socialmente éticos.

    Em suma, para fechar:

    Com ou sem coronavírus, lamber corrimão não parece ser uma boa ideia, ok? ERA MEME GENTE. Mas o diálogo é real.

    Para saber mais

    Divulgadores Científicos Brasileiros

    Dutra, Mellanie (2020) Rússia: a vacina que ninguém viu ou sabe o que faz Rede Análise Covid

    Galhardo, JA A hierarquia das evidências científicas: por que não devemos acreditar em qualquer coisa? Rede Análise Covid

    Iamarino, Atila (2020a) Vacina Russa

    Iamarino, Atila (2020b) Vacinas contra a COVID-19

    Instituto Butantã (2020) Ensaios Clínicos

    Artigos e Livros

    Caceres, RÁ (1996) El método científico en las ciencias de la salud: las bases de la investigación biomédica, Madrid: Ediciones Díaz de Santos.

    Callaway, E (2020a) Russia’s fast-track coronavirus vaccine draws outrage over safety Nature

    Callaway, E (2020b) Coronavirus vaccines leap through safety trials — but which will work is anybody’s guess Nature.

    Galetto, M e Romano, A (2012) Experimentar: aplicación del método científico a la construcción del conocimento. Madrid: Narcea, SA de Ediciones. 

    Moghaddam, A; Olszewska, W; Wang, B; et al (2006) A potential molecular mechanism for hypersensitivity caused by formalin-inactivated vaccines; Nat Med 12, 905–907 

    Mullard, A (2008) Vaccine failure explained; Nature.

    Peeples, L (2020) News Feature: Avoiding pitfalls in the pursuit of a COVID-19 vaccine; PNAS April 14, 2020 117 (15) 8218-8221; first published March 30, 2020

    WHO (2020) More than 150 countries engaged in COVID-19 vaccine global access facility

    WHO (2020b) DRAFT landscape of COVID-19 candidate vaccines – August 10th 

    Wechsler, J (2020) COVID Vaccine Clinical Trials Require Fast Decisions, But No Shortcuts Applied Clinical Trials

    Outros textos do blogs

    Sobre Vacinas, método científico e transparência na ciência (parte 1)

    Ozônio na COVID dos outros é refresco

    COVID-19 e impactos na pesquisa

    De água sanitária à radiação: você já ouviu falar em sanitização?

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Blog Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Sobre Vacinas, método científico e transparência na ciência (parte 1)

    Dia 11 de agosto, pela manhã, mais uma notícia: a vacina russa vai chegar em outubro! O presidente Putin informou que a fase de testes de eficácia já iniciou (o que seria a fase 3 de testes clínicos da vacina). Segundo a OMS, no registro consta que esta vacina ainda está na fase 1  (que testa a segurança da vacina).

    vacinação em massa, em outubro?

    Tal afirmação surpreendeu parte da comunidade científica.

    Mas por quê?

    Cada vez que anunciamos – aqui no blogs ou em qualquer canal de divulgação científica – uma pesquisa em andamento ou medicamentos e tratamentos em fase de pesquisa, temos tido o cuidado de verificar as informações e tentar compreendê-las para divulgar. 

    Uma das questões que rondam toda esta divulgação é a falta de transparência de cada etapa. Não vou me alongar aqui neste texto sobre as etapas em si, pormenorizadamente. Pois elas estão bem explicadas pelo Instituto Butantã e já foram pauta de uma longa live do Atila Iamarino. Também não detalharei questões específicas de questionamentos sobre a vacina, pois a Mellanie Dutra, da Rede Análise Covid-19, abordou muito bem. Mas vou falar do quê então? 

    Sobre a transparência nas pesquisas científicas em tempos de pandemia.

    Pode parecer exagero. Mas as críticas têm sido razoavelmente constantes. Não é que não queiramos acordar e ver estampado nas notícias e notificações que a vacina é um sucesso, que terapias alternativas funcionam, que medicamentos baratos e disponíveis a todos curam! Não temos divulgado milagres apenas porque a ciência não funciona deste modo…

    Antes de falar de transparência na pesquisa, vamos entender um pouco sobre pesquisa, a partir de vacinas?

    As vacinas precisam destas etapas mencionadas anteriormente – e elas levam tempo sim – pois cada uma destas etapas responde a uma série perguntas. Por exemplo: ela têm efeitos colaterais? Quais efeitos são estes? Quantas pessoas (em média) apresentam efeitos colaterais e o que isto representa em uma grande população?

    Em princípio, uma vacina é um modo preventivo em que nós inoculamos um vírus – ou fragmentos de vírus – para que nosso corpo gere uma resposta imunológica. Isto é: nós “enganamos” nosso sistema imune. Assim, quando entramos em contato com o vírus “mesmo” já temos uma resposta imunológica pronta.

    Porém na prática há vários detalhes que tornam as vacinas algo que não é tão simples assim de ser implementada. Isto não quer dizer que vacinas não são seguras… É exatamente o contrário, na verdade.

    As vacinas são cada vez mais seguras. Por quê? Ora, por termos implementado protocolos de segurança que se baseiam em um aprimoramento de nosso próprio conhecimento sobre as doenças, suas reações com anticorpos produzidos, suas ações dentro do corpo, tempo de ação e desenvolvimento de anticorpos, sintomas, etc.

    Também temos compreendido melhor os efeitos adversos (quando existem) e o limite de imunização em uma sociedade, ou como ela ocorre na sociedade. Isto é, nem todo mundo será imunizado pela vacina, algumas vacinas precisam de várias doses para provocarem a imunização, algumas são alergênicas (causam alergia) em pessoas e temos que ter estas informações antes de sairmos vacinando 7 bilhões de pessoas.

    A eficácia das vacinas hoje diz respeito a um conjunto de conhecimentos acumulados sobre nosso organismo, as doenças, junto com testes, experimentos, análises – que geram ainda mais conhecimento sobre as doenças e o funcionamento do nosso corpo.

    Tudo isto é feito baseando-se no método científico.

    Método científico?

    As inovações, invenções e compreensões advindas da ciência não são uma busca cega e desordenada. Muito menos fruto de ideias criativas que estavam à toa por aí, sem atentar-se a questões, debates e pensamentos que abordavam fenômenos naturais e sociais. A frase clássica de Newton “se enxerguei mais longe foi porque me apoiei em ombros de gigantes” é, exatamente, sobre isso. Para falar sobre objetos e fenômenos naturais e sociais, também nos apoiamos em quem estuda objetos e fenômenos naturais e sociais.

    É o quê, afinal de contas o método científico? O que ele têm a ver com tudo isso? De forma ampla, costuma-se falar em etapas ou sequências do método científico. O que seria isto?

    método científico e suas idas e vindas

    Observação de um fenômeno, elaboração de perguntas, elaboração de hipóteses (respostas possíveis para as perguntas pensadas previamente), resolução das hipóteses (aqui acontecem os planejamentos, organização e execução das etapas experimentais, observacionais, de campo, etc.), análise dos dados obtidos e conclusões. Isto é, esta sequência descrita são procedimentos que formam e consolidam os conhecimentos científicos.

    Embora pareça linear, ao longo de uma pesquisa, outras perguntas e hipóteses vão se somando, sendo pensadas, descartadas – gerando novas pesquisas, ou agregando novos elementos que, também, serão testados experimentalmente. 

    Tá bom, mas e o que isto tem a ver com o anúncio da vacina russa? 

    Em meio a uma pandemia tão grave como a COVID-19, temos sim uma corrida para ver quem consegue os melhores tratamentos – isto inclui vacinas. No entanto, as vacinas necessitam respeitar este conjunto de etapas a que chamamos comumente de método científico.

    Parte do “pôr à prova” os resultados e conclusões relaciona-se a apresentá-los à comunidade científica. Debater cada parte dos procedimentos do método científico – desde as perguntas, passando pelas hipóteses, protocolos experimentais, obtenção dos dados e, por fim, como analisamos os resultados!

    Grande parte dos debates sobre o método científico (que não se limita às etapas experimentais e de campo, como muitos acreditam) é sobre a transparência do seu desenvolvimento e execução. 

    Vocês podem estar pensando que tudo isso atrasa ainda mais a implementação da vacina e de tratamentos viáveis. Mas apesar de parecer “muita coisa” estamos falando de estabelecer, historicamente, critérios éticos e de segurança para a pesquisa não causar prejuízos em populações vulneráveis, não ter efeitos adversos e incontroláveis na população, não testar experimentos sem que as pessoas saibam que estão sendo cobaias – concordem com isto de maneira livre e esclarecida, dentre outros fatores. 

    É exatamente a partir da divulgação de resultados, compartilhando as etapas da pesquisa, protocolando em comitês de ética, apresentando publicamente o que estamos fazendo, que nosso trabalho cotidiano de pesquisa ganha transparência, pode ser não apenas compreendido pelos colegas, mas replicado se for necessário. Isto é, podemos repetir os experimentos, aferir resultados, inserir novas variáveis e levantar questões que não tinham sido feitas anteriormente.

    O que inúmeros veículos oficiais, científicos e jornalísticos apontaram ontem, dia 11 de agosto, é exatamente neste quesito: transparência.

    Ah, finalmente chegaste nisso! A transparência na ciência!!!

    As principais perguntas levantadas por cientistas, divulgadores científicos, instituições oficiais (como a OMS) foram: Onde estão os dados sobre a vacina? Quantas pessoas participaram como cobaia? De que forma aconteceram estes testes? Quem eram os sujeitos testados? Quais foram os efeitos colaterais? Se a vacina formou anticorpos, em quanto tempo foram feitos os testes? O tempo em que tudo isto ocorre é uma das grandes questões, por exemplo.

    Na Revista Nature foi apontado que a vacina Russa (Vacina Gamaleya) declarou ter 76 voluntários para as etapas 1 e 2 listadas no ClinicalTrials.gov, mas sem qualquer divulgação dos resultados ou quaisquer estudos pré-clínicos anteriores. E há preocupação acerca destes protocolos de segurança, protocolos éticos e, também, receio de tudo isso gerar medo da população quando uma vacina eficaz esteja pronta para ser aplicada na população.

    Veja que não queremos questionar a veracidade da vacina em si: mas se estão anunciando que em Outubro teremos vacinas disponíveis em algum lugar do mundo, queremos saber se elas são seguras e de que modo podemos confiar nisto que estão nos dizendo!

    Enfim, a próxima parte

    Este texto ficou razoavelmente longo, então juntamente com ele, outros questionamentos foram sendo levantados. Especialmente sobre como lidamos com informações científicas e os cuidados que devemos ter ao receber estas informações – sem cairmos no pessimismo, mas também sem nos animarmos achando que tudo se resolverá em um passe de mágica!

    A segunda parte do texto fala sobre isso, corre lá para ler também!

    Para saber mais

    Divulgadores Científicos Brasileiros

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    Iamarino, Atila (2020a) Vacina Russa

    Iamarino, Atila (2020b) Vacinas contra a COVID-19

    Instituto Butantã (2020) Ensaios Clínicos

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    Caceres, RÁ (1996) El método científico en las ciencias de la salud: las bases de la investigación biomédica, Madrid: Ediciones Díaz de Santos.

    Callaway, E (2020a) Russia’s fast-track coronavirus vaccine draws outrage over safety Nature

    Callaway, E (2020b) Coronavirus vaccines leap through safety trials — but which will work is anybody’s guess Nature.

    Galetto, M e Romano, A (2012) Experimentar: aplicación del método científico a la construcción del conocimento. Madrid: Narcea, SA de Ediciones. 

    Moghaddam, A; Olszewska, W; Wang, B; et al (2006) A potential molecular mechanism for hypersensitivity caused by formalin-inactivated vaccines; Nat Med 12, 905–907 

    Mullard, A (2008) Vaccine failure explained; Nature.

    Peeples, L (2020) News Feature: Avoiding pitfalls in the pursuit of a COVID-19 vaccine; PNAS April 14, 2020 117 (15) 8218-8221; first published March 30, 2020

    WHO (2020) More than 150 countries engaged in COVID-19 vaccine global access facility

    WHO (2020b) DRAFT landscape of COVID-19 candidate vaccines – August 10th 

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    Modernizando a vacina contra a COVID-19

    Vacina COVID-19 – Por que demora?

    Pandemia Covid-19: 150 dias

    Glossário da Covid-19

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Blog Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • COVID-19 e impactos na pesquisa

    Sem dúvidas, todos nós fomos pegos de surpresa com essa pandemia e com os impactos dela em nossa rotina diária. E qual foi o impacto de todas essas mudanças na sua pesquisa e na sua forma de fazer ciência?

    Um grupo de pesquisadores, em sua maioria de Harvard, resolveram investigar como os pesquisadores estavam respondendo às mudanças ocasionadas pela pandemia e, para isso, distribuíram um questionário para diversos pesquisadores e professores universitários no dia 13 de Abril. A ideia deles foi espalhar esse questionário para cientistas de diversas áreas nos Estados Unidos e na Europa um mês após a declaração de pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Eles tinham o intuito de comparar o desempenho desses profissionais pré e pós pandemia, e identificar quais características estavam afetando mais o desempenho desses pesquisadores.

    Com 4.535 respostas, durante a análise dos resultados eles identificaram um grande impacto na quantidade de horas trabalhadas, que foi reduzida de 61h para 54h semanais. Mas é preciso considerar que 55% dos participantes indicaram uma redução, e que uma parcela relativamente significante (18%) apresentou um aumento nas horas trabalhadas.  

    Com isso em mente podemos nos perguntar em seguida se as pessoas que estão nesses grupos têm alguma característica em comum. Quais foram as áreas mais afetadas? Qual foi o gênero mais impactado pela pandemia quando falamos em horas de pesquisa? Em qual desses grupos você se identifica?

    Eles observaram nesse trabalho que as pessoas que mais tiveram redução no tempo dedicado à pesquisa (30% e 40%) foram cientistas que precisam estar em laboratório físico, englobando principalmente áreas de ciências biológicas, bioquímica, química e engenharia química. Enquanto áreas de economia, matemática e ciências da computação apresentaram uma redução menor. 

    Mas a parte mais interessante, na minha opinião, é que analisando esses dados eles identificaram que o trabalho de pesquisadores com dependentes jovens em casa (pelo menos um dependente de até 5 anos de idade) foi muito mais afetado pela pandemia, com uma redução de 17% de horas dedicadas a pesquisa quando comparados com outros grupos. E ao levarmos isso para a discussão de gêneros, as mulheres apresentaram um redução maior (~5%) nas horas dedicadas a pesquisa quando comparadas aos homens. 

    O trabalho apresenta diversos pontos fracos a serem considerados, que impedem a sua utilização para conclusões mais gerais acerca de quais grupos realmente tiveram sua pesquisa mais impactada, mas ao mesmo tempo, ele abre caminho para diversos outros questionamentos, inclusive sociais.

    Nessa pesquisa, só foi considerado o impacto em pesquisadores e professores, mas qual o impacto que atingem os estudantes? Quantos moram longe da família e foram mantidos afastados totalmente de um convívio social? Quantos arriscam suas vidas todos os dias para desenvolverem pesquisas em COVID-19 nas bancadas? Quantos estão em desespero por terem prazos a cumprir ou por não saberem se terão bolsas no próximo ano? Como medir o real impacto causado pelo estresse e pela ansiedade da situação na pesquisa? 

    As perguntas são sempre muitas, e pra mim, a única que realmente devemos considerar nesse momento, é “Como reduzir os danos da pandemia na nossa saúde mental e na nossa rotina de trabalho dentro da pesquisa?”. 

    É preciso aprender a definir as nossas prioridades (de trabalho e pessoal) e a distribuir o nosso tempo de acordo com elas. É preciso nos olharmos com mais ternura e compaixão e entendermos que nós também somos humanos. É preciso buscar ajuda quando não damos conta. É preciso dizer não quando não nos fará bem. E é preciso decidir sempre, com consciência e com sabedoria, afinal, a única pessoa a arcar com a consequência das suas escolhas, será você mesmo. O lado maravilhoso disso? Ao decidirmos o que fazer com a nossa vida, nós podemos escolher o que nos faz feliz e o que nos faz bem, e ninguém NUNCA saberá mais o que você precisa, do que você mesmo. 

    E se eu puder dar algum conselho: Agarre essa oportunidade com unhas e dentes, decida tudo que você puder decidir, descubra quem está com você independente de quem você seja ou de que decisões você tome, divirta-se fazendo a sua pesquisa, agradeça sempre, ame muito e seja feliz, só por hoje.

    Referências:

    Myers, K.R., Tham, W.Y., Yin, Y. et al. Unequal effects of the COVID-19 pandemic on scientists. Nat Hum Behav (2020). https://doi.org/10.1038/s41562-020-0921-y

    Este Texto foi produzido originalmente no Blog Terabytes of Life

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Uma pandemia impulsionando outra – Parte 2: Resistência bacteriana a antimicrobianos: por que se preocupar?

    Esse texto é continuação do post: Uma pandemia impulsionando outra – Parte 1: O uso de antimicrobianos durante a pandemia da covid-19

    A resistência a antimicrobianos (RAM) é conhecida como um problema que não tem fronteiras e é um problema global. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a OMS, uma pandemia é caracterizada por sua disseminação e não necessariamente pela gravidade da doença. Indiscutivelmente, a RAM também pode ser considerada uma pandemia que embora seja mais insidiosa e com menos efeitos imediatos na vida cotidiana, possui impactos negativos potencialmente mais amplos. Vamos entender por que isso acontece nesse post. Vem com a gente!

    Como falamos anteriormente, o uso de antimicrobianos está aumentado pelo uso dessas drogas no tratamento e na “prevenção “ da covid-19 tanto no ambiente hospitalar quanto na comunidade. Curiosamente, a resistência das bactérias aos antimicrobianos, que é sempre uma preocupação no meio hospitalar, parece não estar recebendo a devida atenção nesse momento. É por isso que muitos cientistas da área estão tentando chamar a atenção para a importância de um potencial agravamento da pandemia global de RAM.

    As UTIs, locais onde concentram os pacientes mais graves da covid-19, são epicentros comuns para o desenvolvimento da RAM. O uso exacerbado de antimicrobianos pode, portanto ter grandes consequências em hospitais que já apresentam elevada prevalência de bactérias resistentes a múltiplas drogas, levando a um aumento de mortalidade devido ao reduzido arsenal de antibióticos para tratar as infecções ou coinfecções adquiridas. Portanto, há comprometimento também de pacientes pós-cirúrgicos, transplantados ou quimioterápicos, por exemplo. Como terminamos falando no post anterior, não estamos falando que não se deve usar antimicrobianos nem que as coinfecções devam ser subestimadas. Mas os profissionais de saúde devem considerá-las num plano integrado para limitar o fardo da morbimortalidade durante a pandemia da covid-19 e, ao mesmo tempo, evitar um possível agravamento da RAM.

    Uma medida muito disseminada de proteção contra o novo coronavírus (SARS-CoV-2) é a higienização das mãos… medida excelente, funcional e simples! Porém, muitas vezes realizada com o uso de sanitizantes ou sabões antibacterianos, que contém agentes químicos que, apesar de não adicionar muita coisa em termos de proteção, podem dar gatilho para a resistência antimicrobiana. E isso acontece porque um dos mecanismos de resistência das bactérias são bombas de efluxo que literalmente jogam os antimicrobianos para fora da célula. Muitas vezes, as bombas que conferem resistência a esses sanitizantes são as mesmas daquelas necessárias para conferir a RAM.

    Esses agentes biocidas caem na rede de esgoto e chegam ao ambiente, onde acabam elevando as concentrações dessas drogas. Claro que no caminho essas drogas são diluídas, mas temos que considerar a concentração final desses agentes… Se muito elevadas, muitas bactérias vão morrer, isso pode impactar negativamente os ecossistemas e, ao mesmo tempo, evitar o desenvolvimento da RAM. Porém concentrações baixas (sub-inibitórias) podem aumentar a pressão seletiva e promover oportunidades para o surgimento e a seleção da RAM. De forma muito simplificada, concentrações sub-inibitórias dessas drogas ativam vias de respostas ao estresse que, por sua vez, aumentam a ocorrência de mutação nas bactérias. Isso está relacionado a uma maior taxa de variabilidade entre entre as células bacterianas e, portanto,  a maiores possibilidades do surgimento e seleção de indivíduos resistentes daquela população. O fenômeno da seleção sub-inibitória é muito bem estudado para antibióticos, mas pouco para biocidas. Não podemos, portanto, desconsiderar os efeitos ambientais, uma vez que níveis aumentados de antimicrobianos são liberados no ambiente aumentando os níveis de resistência em animais (selvagens e de corte), na agricultura e nos ambientes naturais.

    [atualização 27/07]: É importante ressaltar que resíduos dos antimicrobianos que tomamos são eliminados pelas fezes e pela urina, caindo na rede de esgoto e, consequentemente, no ambiente. É tudo um ciclo, uma grande bola de neve! É algo que, realmente, deve nos preocupar!

    Falamos brevemente da ocorrência da RAM em hospitais e no meio ambiente. Mas por que devemos nos preocupar tanto!?

    Nos últimos anos a RAM já é citada com a maior ameaça global à saúde pública e à economia global, mas agora está não só eclipsada pela covid-19, como também corre risco de ser agravada por essa nova pandemia. Ou seja: muitos especialistas agora temem que o esforço global para manter a RAM sob controle possa enfrentar um revés durante a pandemia

    Vamos falar com números:

    A RAM já mata cerca de 700.000 pessoas por ano. Numa estimativa grosseira, e considerando-se que a covid-19 mantenha as taxas de mortalidade pelo restante do ano, estima-se que a RAM resultará em 130.000 morte a mais neste ano. As mortes por COVID podem superar as mortes por RAM neste ano de 2020 e o uso de antimicrobianos em pacientes com COVID também pode até reduzir o aumento na mortalidade por COVID em curto prazo mas, por outro lado, a consequência é um provável aumento na mortalidade por RAM a longo prazo. Estima-se que até 2050, a mortalidade associada a RAM será aumentada para 10 milhões de mortes por ano!  Tudo indica que que a covid-19 será controlada em um tempo consideravelmente menor.

    A movimentação dos pesquisadores é para que os princípios da administração de antibióticos não sejam relaxados mesmo nesses tempos de pandemia. A necessidade do tratamento com antibiótico deve ser avaliada rapidamente e interrompida se não for necessária. Observe que não estamos advogando em favor do uso profilático (preventivo) desses medicamentos! Além disso, quem deveria informar o antibiótico de escolha é o laboratório de microbiologia e baseado no micro-organismo e no padrão de resistência observado.

    Falamos anteriormente que a OMS já se manifestou contra o uso de antibióticos durante o tratamento inicial de covid-19. Essa cautela deve-se principalmente em relação a dois pontos: 1) o uso inapropriado e exacerbado de antimicrobianos pode contribuir para a emergência da RAM, daí a necessidade de se reduzir o uso inapropriado e exacerbado de antimicrobianos (sim, a repetição aqui foi intencional!) e; 2) o uso de antimicrobianos no tratamento da covid-19 pode levar à população a assumir que todos os antibióticos são elegíveis para o tratamento de infecções virais.

    A ocorrência de infecções por patógenos resistentes pode ser significantemente mitigada pela administração de antimicrobianos baseada em evidência em todos os setores (agricultura e medicina veterinária e humana). Embora tenhamos tempo, a RAM não será contida sem o desenvolvimento de novas vacinas, medicamentos e testes rápidos (assim como na COVID!).

    Curiosamente, as estratégias de utilizadas para reduzir a transmissão da covid-19 (distanciamento social, lock-down, fechamento de fronteiras, lavar as mãos com água e sabão) podem, também, reduzir o espalhamento da RAM! Detalhe que a redução das viagens (fechamento de fronteiras) diminui a movimentação de genes de RAM entre países!  Seria muito interessante ver estudos que comparem dados de prevalência de infecções causadas por bactérias RAM antes e depois da pandemia de covid-19, bem como dos perfis de resistência que estão surgindo…

    Essa tabela aqui (modificada de Nieuwlaat et al., 2020) ajuda a comparar as duas pandemias:

    Finalizando:

    • A resistência a antimicrobianos é uma pandemia que já preocupa cientistas e profissionais da saúde há um tempo, tem impactos relevantes e estima-se que nos próximos anos será ainda mais preocupante.
    • Ainda não sabemos o real impacto da pandemia da covid na pandemia da RAM, mas estamos preocupados e alerta para seu provável agravamento e suas possíveis consequências.
    • É importante uma estratégia multifacetada contra os organismos RAM que envolva: a) estudos prospectivos sobre coinfecções na covid-19 para orientar o tratamento com antimicrobianos; b) monitoramento e relato transparente dos padrões de RAM nas UTIS para guiar o uso adequado de antimicrobianos; c) esforço global coordenado para estabelecer uma estrutura de governança, vigilância e relatos de RAM, tanto agora como depois da pandemia da covid-19.
    • É comum pessoas acreditarem que antibióticos podem ser utilizados para infecções virais (gripe). Usar termos como antivirais pode ajudar a entender que existem diferentes tipos de medicamentos para diferentes tipos de infecção.

    Referências:

    • Antimicrobial resistance in the age of COVID-19. Nat Microbiol. 2020;5(6):779. doi:10.1038/s41564-020-0739-4
    • Bengoechea JA, Bamford CG. SARS-CoV-2, bacterial co-infections, and AMR: the deadly trio in COVID-19?. EMBO Mol Med. 2020;12(7):e12560. doi:10.15252/emmm.202012560
    • Hsu J. How covid-19 is accelerating the threat of antimicrobial resistance. BMJ. 2020;369:m1983. Published 2020 May 18. doi:10.1136/bmj.m1983
    • Murray AK. The Novel Coronavirus COVID-19 Outbreak: Global Implications for Antimicrobial Resistance. Front Microbiol. 2020;11:1020. Published 2020 May 13. doi:10.3389/fmicb.2020.01020
    • Nieuwlaat R, Mbuagbaw L, Mertz D, et al. COVID-19 and Antimicrobial Resistance: Parallel and Interacting Health Emergencies [published online ahead of print, 2020 Jun 16]. Clin Infect Dis. 2020;ciaa773. doi:10.1093/cid/ciaa773
    • Rawson TM, Ming D, Ahmad R, Moore LSP, Holmes AH. Antimicrobial use, drug-resistant infections and COVID-19 [published online ahead of print, 2020 Jun 2]. Nat Rev Microbiol. 2020;1-2. doi:10.1038/s41579-020-0395-y
    • Rawson TM, Moore LSP, Castro-Sanchez E, et al. COVID-19 and the potential long-term impact on antimicrobial resistance. J Antimicrob Chemother. 2020;75(7):1681-1684. doi:10.1093/jac/dkaa194
    • Rossato L, Negrão FJ, Simionatto S. Could the COVID-19 pandemic aggravate antimicrobial resistance? [published online ahead of print, 2020 Jun 27]. Am J Infect Control. 2020;S0196-6553(20)30573-3. doi:10.1016/j.ajic.2020.06.192
    • Yam ELY. COVID-19 will further exacerbate global antimicrobial resistance [published online ahead of print, 2020 Jun 13]. J Travel Med. 2020;taaa098. doi:10.1093/jtm/taaa098

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    Este post foi publicado originalmente no blog Meio de Cultura

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

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