Categoria: coronavírus

  • A infecção por SARS-CoV-2 em células de gordura

    Texto escrito por Ana de Medeiros Arnt e Marcelo Mori

    A Covid-19 é uma doença que, em suas formas severas, ataca o sistema respiratório, causando Síndrome Respiratória Aguda Grave. Todavia, as células pulmonares não são as únicas que são infectadas pelo vírus SARS-CoV-2. Tampouco são as únicas que se relacionam à severidade da doença. Isto porque nosso corpo não possui sistemas funcionais isolados. Nós sabemos, por exemplo, que pessoas com obesidade possuem risco de agravamento do quadro de Covid-19. Mas qual o papel das células de gordura nisto?

    Estudar a complexidade da infecção de uma doença como a Covid-19 implica em compreender de que modo o vírus infecta diferentes células e tecidos do nosso corpo. Além disso, implica em estudar de que forma diferentes células de um mesmo tipo de tecido também se infectam de modo variado e podem contribuir para o agravamento da doença. 

    Aqui na Unicamp, um estudo foi desenvolvido para compreender essa complexidade em relação à células de gordura, presentes em tecidos adiposos. Ademais, como estas contribuem para a infecção e replicação de SARS-CoV-2. Vamos entender melhor o que a pesquisa encontrou?

    O que sabíamos sobre tecidos adiposos e Covid-19?

    Atualmente, nós sabemos que células de gordura expressam a molécula ACE2 e os tecidos adiposos (tecidos que possuem, majoritariamente, células de gordura) podem servir de reservatório do vírus SARS-CoV-2. Também conhecemos a relação entre a resposta inflamatória e a quantidade de gordura, o que pode contribuir para um agravo da Covid-19 em alguns casos.

    Desde muito cedo, quando iniciou-se a pandemia de Covid-19 no mundo, percebemos que pessoas com obesidade possuem um risco maior de desenvolver a doença em sua forma severa. No entanto, não é claro de que forma as células de gordura e os tecidos adiposos contribuem para o agravamento da doença. Isto porquê existem diferentes formas de os tecidos adiposos se distribuírem no corpo humano, dependendo da idade e sexo, por exemplo.

    E os que encontramos de dados sobre células de gordura e SARS-CoV-2?

    Analisando a presença do SARS-CoV-2 no tecido adiposo humano

    Não é novidade que o tecido adiposo é um dos locais, fora de tecidos pulmonares, onde o RNA viral pode ser detectado dentro das células. Sendo assim, a primeira análise que esta pesquisa fez foi com amostras de tecido adiposo subcutâneo da região torácica de pessoas que faleceram de Covid-19. No total foram 47 amostras e detectou-se RNA de SARS-CoV-2 em 23 amostras, o que representa 49%.

    Dentre os resultados, foi possível ver que houve variação (em relação à quantidade) de carga viral dentro do tecido adiposo entre as amostras de diferentes indivíduos. Isto indica uma variação na capacidade da gordura em armazenar o vírus SARS-CoV-2. Ainda sobre estes resultados, encontrou-se que a variação da carga viral nas células de gordura não apresentou relação estatística com o sexo, peso corporal, IMC ou idade da pessoa. Todavia, a falta de relação pode ser devido ao tamanho da amostra. Além disso, os resultados não excluem a possibilidade de que o aumento da massa gorda sirva como maior reservatório potencial para o SARS-CoV-2.

    As células de gordura visceral são mais suscetíveis à infecção pelo SARS-CoV-2 do que as células de gordura subcutânea

    A partir destes primeiros resultados, foi proposta uma segunda etapa, com experimentos in vitro. Isto é, com células retiradas de pacientes e cultivadas em laboratório. Foram usadas células de tecidos adiposos subcutâneos (abaixo da pele) e viscerais (próximo às visceras) de 3 pessoas diferentes. Assim, testou-se o quanto o vírus SARS-CoV-2 consegue entrar e replicar em células adiposas oriundas de diferentes partes do corpo. 

    O que foi encontrado? O vírus SARS-CoV-2 consegue entrar e replicar-se nos dois tipos de células analisadas. No entanto, esta pesquisa conseguiu mostrar que há diferença na replicação do vírus, dependendo da origem da célula. Ou seja, se ela veio de um tecido adiposo subcutâneo ou se veio de um tecido adiposo visceral.

    Os resultados encontrados foram de que ambos os tipos de célula se infectam e morrem com tempos semelhantes. Todavia, existe diferença entre a quantidade de RNA viral encontrado dentro das células e de partículas virais infectantes no meio externo a estas células. Como assim?

    Nas células adiposas viscerais encontrou-se 240 vezes mais RNA viral do que nas células adiposas subcutâneas. Isto é, estamos falando de RNA do SARS-CoV-2 dentro das células adiposas. Já no meio extracelular, encontramos 770 vezes mais partículas virais infectantes entre as células adiposas viscerais, comparado com as células adiposas subcutâneas.

    Ao que tudo indica, portanto, as células de gordura visceral, quando infectadas, são mais susceptíveis à replicação do vírus SARS-CoV-2, do que as células de gordura subcutânea. Assim, têm um potencial muito maior de infectar outras células, pois dessas células saem muito mais vírus que podem infectar novas células.

    As células de gordura visceral e as moléculas ACE2

    As células de gordura provenientes de diferentes tecidos – subcutâneo e visceral – apresentam em quantidades diferentes a proteína ACE2. Ao que tudo indica, é esta diferença que possibilita uma maior infecção das células de gordura visceral.

    Apenas retomando, para quem não se localizou ainda, o ACE2 é uma proteína receptora, que fica na membrana das nossas células. Esta proteína é produzida em muitas células do nosso corpo – como células epiteliais do nosso sistema respiratório, e células de gordura dos nossos tecidos adiposos. A questão é que a proteína Spike do vírus SARS-CoV-2 tem afinidade com este receptor que fica nas membranas, e ao se ligar no receptor, entra dentro da célula, infectando-a.

    Mas e aí? Entrou na célula, replicou e saiu. A infecção viral é sobre isso?

    Não! Existem outras modificações que acontecem dentro das células, que são muito importantes no processo de infecção e replicação. Os mecanismos metabólicos das nossas células, ou seja, suas sínteses e seus processos de funcionamento regulares, que mantêm as células vivas, são bastante alterados.

    Rotas de quebra de moléculas de gordura

    Um exemplo é que o vírus SARS-CoV-2, ao entrar nas células de gordura subcutânea, altera a síntese de algumas proteínas destas células. Em um dos casos analisados nesta pesquisa, a infecção pelo vírus desencadeia uma resposta celular de inibição da lipólise, que é o processo químico de quebra de moléculas de lipídio em dois tipos de moléculas menores: ácidos graxos e glicerol. A inibição dessa reação química (e manutenção das moléculas de lipídio dentro das células, portanto), interfere na replicação do SARS-CoV-2. Isto é, ao ser infectada, a célula de gordura – em especial a gordura subcutânea – responde inibindo uma via, desfavorecendo a replicação viral. Os autores concluem que essa inibição da lipólise pode ser uma forma de resposta antiviral que a célula adiposa apresenta.

    Rotas de sinalização de interferons e a infecção de SARS-CoV-2 em células de gordura visceral.

    Interferon é um tipo de proteínas produzidas pelas células do nosso corpo e que interferem diretamente na replicação de patógenos virais. No caso do SARS-CoV-2, nosso corpo responde à infecção de células de gordura visceral de forma diferente no caso da linhagem original – ou seja, o vírus que chegou ao Brasil em 2020  – e na linhagem que conhecemos como P.1, ou variante Gama.

    A linhagem Gama tem uma infecção atenuada, o que está associado a um aumento da resposta interferon. Isto é, aumenta a resposta celular a essas proteínas quando a célula adiposa é infectada com a variante Gama, enquanto os vírus SARS-CoV-2 da linhagem original levam a uma diminuição da resposta interferon. E o que isto quer dizer?

    Primeiramente, é interessante ressaltar que as variantes possuem pequenas variações no material genético, em relação ao vírus original. Estas variações produzem proteínas ligeiramente diferentes. E estas proteínas podem gerar efeitos diferentes dentro das células que são infectadas pelos vírus e suas variantes.

    Como assim?

    Quando vemos que uma variante infecta mais ou é mais transmissível, isto quer dizer que a interação entre esta nova variante e nossas células se modifica em algum grau. Estamos explicando neste post as interações entre o vírus (e as proteínas dos vírus) e algumas rotas metabólicas, ou a interação da Spike com o ACE2, correto?

    Pois é, as variantes não interagem somente com “mais” ou “menos” afinidade com a ACE2, elas podem induzir ou inibir outras reações químicas dentro das células. No caso do tecido adiposo visceral, a linhagem original reduz a resposta ao interferon, o que pode explicar porque a infecção neste tecido específico é agravada. Já a variante Gama, aumenta a resposta ao interferon, condizente com uma infecção atenuada em células adiposas.

    Finalizando

    Pesquisas como a que apresentamos hoje nos ajudam a inferir e propor novos estudos para compreender o quanto o agravamento da doença no nosso corpo pode ser gerado, em infecções por diferentes variantes, exatamente por diferenças nas interações moleculares dentro das células. Células diferentes, embora do mesmo tipo, podem responder de forma diferente ao vírus, ao passo que linhagens diferentes do vírus também podem resultar em respostas celulares distintas. 

    Os dados obtidos, neste sentido, apontam para os tecidos adiposos, especialmente o visceral, como um local em que o vírus replica-se favoravelmente e que, dependendo da variante analisada, as respostas de defesa são diferentes, podendo ter agravamentos diferentes nestes tecidos. Isto é, eles podem ser tecidos responsáveis por replicar e liberar partículas infectantes ou moléculas inflamatórias em maior quantidade, dependendo da variante viral analisada.

    Uma vez que um dos fatores de risco para agravamento da Covid-19 é a obesidade, compreender de que maneira as células dos tecidos adiposos interagem com o vírus é parte fundamental para desvendar os processos que contribuem para a doença desenvolver sintomas graves nos pacientes.

    Mesmo tendo vacinas e estas sendo nossa principal ferramenta para combate à doença, segue sendo fundamental compreender os mecanismos de interação do vírus e suas variantes em nosso corpo, tanto para a produção futura de antivirais, quanto para compreender tratamentos, agravamentos e possíveis efeitos a longo prazo da infecção do tecido adiposo.

    Para Saber Mais

    Saccon, TD, Mousovich-Neto, F, Ludwig, RG et al (2022) SARS-CoV-2 infects adipose tissue in a fat depot- and viral lineage-dependent manner, Nat Commun 13, 5722 (2022).

    Microbiologando. O que o receptor ACE2 pode nos dizer acerca da capacidade eficiente de transmissão do SARS-CoV-2 entre os seres humanos?

    Especial Covid-19

    Amorim, M, Arnt, AM, Mori, M, Farias, A e Proença-Modena, JL Anticorpos neutralizantes e a variante P.1 Gamma

    Borin, A (2021) Como o SARS-CoV-2 infecta nossas células?

    Codo, A, Arnt, A (2020) Qual a relação entre diabetes e Covid-19?

    Este texto foi escrito originalmente no blog do EMRC

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Bem como, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • SARS e Neo-Cov: sobre morcegos, pangolins e a família dos coronavírus

    Texto por Mellanie Fontes-Dutra, Lívia Okuda Santos e Ana de Medeiros Arnt

    Coronavírus: é uma família de vírus? De onde vêm? A quem infecta? Tem vírus novo? Os morcegos têm culpa no cartório? Pois bem, hoje vamos responder estas e mais algumas dúvidas no texto do Especial de hoje.

    O que é Coronavírus?

    O Coronavírus é uma família de diferentes vírus existentes na natureza. Alguns infectam humanos e outros não. Assim, nesta família viral, existem alguns vírus que causam resfriados e outros que podem causar síndromes respiratórias graves, como COVID-19. Mas temos um novo integrante, recém descoberto, nessa grande família e vamos falar mais dele neste texto!

    Olhando para nossa história, já tivemos pandemias ou risco de pandemias com os coronavírus: pelo SARS-CoV-1 (2002), MERS-CoV (2012) e SARS-CoV-2 (2019). Aliás, as pandemias, como sabemos agora, são eventos causados por patógenos (como vírus ou bactérias) que atingem o mundo inteiro, causando preocupação e danos à saúde da população de muitos países.

    Pode parecer novidade para muitas pessoas, mas existe monitoramento epidemiológico no mundo inteiro de possíveis patógenos pandêmicos, incluindo os diversos coronavírus que encontramos em espécies selvagens ou domésticas. Isto nos ajuda a saber se são ou estão se tornando perigosos para os humanos.

    Então, depois desse background, podemos falar sobre o nosso tema de hoje: Sars e os Neo-Cov. Sendo o primeiro o grupo do nosso conhecido e odiado COVID-19, e o segundo um tipo de coronavírus encontrado recentemente na África.

    Origem do SARS-COV-2: hipótese zoonótica.

    Análises filogenéticas recentes identificaram que os SARS-CoVs provavelmente divergiram de um coronavírus ancestral derivado de morcego entre 1948 e 1982. Filogenia é a área da biologia que estuda a “ancestralidade” dos vírus e seres vivos, a partir de análises genéticas e moleculares, traçando assim sua “história evolutiva”.

    Este estudo sugere que os vírus tipo os SARS-CoVs têm circulado em espécies selecionadas de morcegos há algum tempo. Existem trabalhos que mostraram uma grande semelhança de coronavírus que infectam morcegos com o SARS-CoV-2, apresentando até 96,1% semelhança no material genético, como no caso do estudo recente em Laos.

    Assim, é possível que a linhagem originária do SARS-CoV-2 tenha circulado despercebida em morcegos por décadas. 

    Em outro estudo constatou-se a ocorrência de uma frequente troca de coronavírus entre morcegos. Aliás, é sempre bom lembrar que eles são animais que podem viver aglomerados, podendo gerar uma grande diversidade genética e novas versões de vírus.

    Também é possível que um SARS-CoV tenha evoluído para SARS-CoV-2 em humanos após o chamado spillover de um animal (transbordamento, ou quando um vírus de uma espécie passa a infectar outra espécie diferente) seguido pela rápida transmissão desta cepa (tipo de vírus) adaptada a humanos. Portanto, é um desafio para a comunidade científica estimar a frequência do transbordamento zoonótico.

    Vamos entender melhor como uma pesquisa assim pode ser feita?

    Pesquisadores, em um estudo ainda em preprint, criaram um mapa detalhado de habitats de 23 espécies de morcegos conhecidas por abrigar coronavírus relacionados ao SARS. Nesta pesquisa, sobrepuseram dados sobre onde os humanos vivem para criar um mapa de potenciais pontos de infecção. Visto isso, cerca de 500 milhões de pessoas vivem em áreas onde podem ocorrer spillovers, incluindo o norte da Índia, Nepal, Mianmar e boa parte do Sudeste Asiático. Logo, esta informação pode nos dar pistas de locais em que essa vigilância precisa ser frequente e fortificada.

    Interessante, não? Uma pesquisa que vai não só analisar habitats de animais infectados, mas relacionar-se às populações humanas que podem ter contato frequente com estes animais. Este é um dos modos de realizarmos monitoramentos e termos dados mais precisos (e constantes) de riscos para nós.

    Quer dizer que o vírus não foi feito pelos laboratórios chineses comunistas?

    É isso mesmo, ao que tudo indica a origem do SARS-CoV-2 é natural, de morcegos ou outros animais. 

    Essa afirmação pode ser compreendida melhor com o artigo que relata um vírus muito relacionado ao SARS-CoV-2 já circulava desde 2010 em Camboja. Este artigo adiciona mais uma evidência da origem natural desse vírus. Além disso, mais recentemente, foi descoberto que no norte do Laos alguns vírus muito parecido com o SARS-CoV-2 circulam em morcegos, os quais apresentam particularidades que os relacionam muito proximamente ao vírus da COVID-19.

    E esse spillover não dá em nada?

    Segundo o preprint  já citado, e tendo cuidado com as limitações do dado obtido, cerca de 400.000 pessoas estão provavelmente infectadas com coronavírus relacionados à SARS todos os anos, em transbordamentos que nunca se transformam em surtos detectáveis. 

    “Mas por que, se temos todas essas infecções anualmente, não vemos muitos surtos?” 

    Porque a maioria das infecções ocultas têm vida curta e não levam à transmissão, em razão de os vírus não serem bem adaptados aos humanos. Em geral, alguns humanos podem se infectar diretamente do contato com animais, mas acabam não transmitindo a outros seres humanos, acabando ali mesmo com a infecção. O problema é se a frequência delas se tornar alta, o que pode propiciar a transmissão entre seres humanos.

    Ainda, existe outro risco! Muitas dessas infecções, exatamente por serem “novas”, podem gerar diagnósticos errados, exatamente por sintomas que se assemelham a outras doenças. No caso da COVID-19, por exemplo, os primeiros diagnósticos saíam como gripe ou pneumonia, até que se percebesse que existia um novo patógeno infectando ali! Isto também adiciona um viés ao dado. Soma-se a isso toda uma discussão sobre o acesso à saúde que pessoas de regiões rurais possuem, e isso é uma questão importante.

    Só morcego pode passar doença para humano?

    Na verdade não. Em geral, o monitoramento de vírus que podem fazer o spillover aponta que existem vários vírus – de Influenza por exemplo – que indicam outros animais, especialmente aves. A gente já ouviu falar da gripe aviária e gripe suína, que são vírus da família Influenza. Portanto, tanto espécies ditas como “domésticas”, quanto espécies que vivem em ambientes selvagens podem estar envolvidas em spillover

    Mas em se tratando de coronavírus, apesar de os morcegos serem fortíssimos candidatos a reservatórios desta família, não podemos afirmar com certeza se existem ou não outros animais possíveis. No caso do surto de SARS-CoV em 2002, as Civetas foram um provável candidato, por exemplo.

    E aquele bichinho da China, o pan… pe… pebolim?

    Ah, quer dizer o Pangolin? SIM! Existe a possibilidade de o pangolin ter entrado de bobo nessa história. Ou seja, ser um hospedeiro intermediário entre o possível reservatório do vírus (morcego) e nós. Mas ainda precisamos de mais análises para entender se sim, e como isso ocorreu. 

    Essa situação não seria algo improvável, já que algumas famílias de morcegos (como o Rhinolophidae) compartilham algumas dietas com os pangolins na natureza. E por fim, temos fatores ecológicos que propiciaram esses spillovers. Urbanização, deflorestamento, redução de habitats selvagens forçam uma proximidade dessas espécies conosco, favorecendo contatos e exposições.

    Entretanto, analisando os SARS-CoVs, nota-se uma semelhança de mais ou menos 85,5 -92,4% ao SARS-CoV-2 em seu material genético. Além disso, possuem semelhanças intrigantes com o vírus em regiões que são fundamentais para a interação com nossas células. Especificamente, existe uma região do vírus, conhecida como RBD (sigla para receptor-binding domain), que é exatamente onde o vírus se liga com o ACE2 de nossas células, para entrar nelas. Esta região de um SARS-CoV de pangolim tem 97,4% de semelhança com o do SARS-CoV-2, o que é muito intrigante e mostra que existe muito ainda para conhecermos e, também, que a identificação filogenética destes vírus não é tão simples, tendo em vista que pode haver troca de materiais virais em animais hospedeiros. Isto é, os diferentes tipos de coronavírus que infectam um animal, podem trocar materiais genômicos (que conhecemos como recombinações).

    Imagem retirada de: https://www.cell.com/trends/ecology-evolution/fulltext/S0169-5347(20)30348-7

    Mas o Mercado de Huanan tem alguma coisa a ver?

    Vamos falar disso agora! Vimos anteriormente que os morcegos eram o reservatório do ancestral do SARS-CoV-2, certo? Também sabemos que este mercado é conhecido por ter bancas que vendem animais vivos, como o cão-guaxinim, que já foi associado a emergência do SARS-CoV-1 e que é não só suscetível ao SARS-CoV-2, como capaz de transmiti-lo. 

    Aliás, por meio de análises espaciais, um artigo demonstrou que os primeiros casos relatados de COVID-19 em dezembro de 2019 foram distribuídos geograficamente próximos e centrados no mercado de Huanan, em Wuhan. Assim, os autores comentam que essa proximidade de casos ao mercado de Huanan foi, em Dezembro de 2019, maior que o esperado, dada a densidade populacional de Wuhan ou a distribuição espacial dos casos de COVID mais tarde na epidemia, sugerindo o epicentro no mercado.

    Todavia, o mais interessante é que, considerando o próprio mercado, os dados desse trabalho sugerem que um grande número de casos estava ligado ao setor oeste do mercado, onde a maioria das bancas que vendiam animais vivos se concentravam. Somando os dados, é plausível que várias espécies de mamíferos suscetíveis ao SARS-CoV-2 e que poderiam ser hospedeiros intermediários de seus “parentes ancestrais” foram vendidos vivos no mercado de Huanan em novembro de 2019 e podem ter contribuído para a transmissão.

    Pois é! Há indícios de que não foi “uma só infecção”!

    Deste modo, é provável que houvesse vários animais infectados no mercado de Huanan e pode ter havido pelo menos duas “entradas” do SARS-CoV-2 (linhagens A e B) em humanos, com a entrada da linhagem B e algumas semanas após, a linhagem A.

    A linhagem A do vírus, a qual não havia sido encontrada no mercado de Huanan, tem uma associação geográfica imensa com esse mercado, sugerindo que “as linhagens A e B surgiram nesse mercado e começaram a se espalhar para a comunidade residencial de Wuhan”. Dessa forma, os autores dizem que

    “Amostras positivas para SARS-CoV-2 estavam fortemente associadas à venda de mamíferos vivos, particularmente no canto sudoeste do mercado de Huanan, onde amostras ambientais positivas provavelmente foram derivadas de animais infectados”

    Outro artigo concluiu que a circulação de um vírus ancestral em morcegos, que passou a ser capaz de ligar em ACE2, “pulou” para hospedeiros intermediários (animais suscetíveis) que foram comercializados vivos no mercado de Huanan, surgindo as linhagens A e B pouco tempo depois e a infecção em humanos.

    A importância de monitoramentos ambientais e pesquisa básica!

    Sim, voltaremos a este tema, pois além de informações interessantes e fundamentais para compreendermos melhor o mundo que vivemos, também usamos estas informações para entender a importância da pesquisa científica! Recentemente, o vírus Neo-CoV foi encontrado entre morcegos na África do Sul. Cientistas chineses alertaram para esse vírus, no entanto, falta ainda um entendimento maior sobre seu potencial infeccioso. 

    Neo-Cov: quem é e o que sabemos dele?

    Primeiro, um spoiler: não é uma nova variante do vírus da COVID-19, e não é algo novo no geral!

    O Neo-CoV é um outro tipo de coronavírus que foi relatado pela primeira vez em 2012 e em 2015 durante o surto de MERS-CoV que pode usar receptores ACE2 de morcegos, mas não os receptores ACE2 de humanos. E, até o presente momento, não se observou infecção em humanos em sua forma atual, espalhando-se exclusivamente entre os morcegos.

    De acordo com especialistas, as descobertas feitas pelos cientistas de Wuhan não representam um risco para a humanidade no momento atual. Apenas apontam para a necessidade de se acompanhar mais um tipo de coronavírus e sua evolução.

    O Neo-CoV ganhou a atenção da mídia pelo fato de os cientistas chineses disponibilizarem esses dados recentes (e importantes) em um preprint. Assim, este vírus é na verdade um vírus intimamente relacionado ao MERS-CoV que entra nas células através dos receptores DPP4 e pode usar o ACE2

    Finalizando

    Por fim, imagino que não seja possível negar a importância do monitoramento epidemiológico e do investimento nesta ciência, não é? É muito provável que, para praticamente qualquer patógeno zoonótico da vida selvagem, o transbordamento é mais frequente do que anteriormente reconhecido. E precisamos de mais investimento em ciência e vigilância genômica para monitorá-los de maneira pública para que possamos controlar epidemias e evitar que novas pandemias, como COVID-19, apareçam.

    Além disso, também é sempre bom lembrar que não é culpa dos animais estas infecções. Portanto, não deveríamos interferir ainda mais nos habitats deles e causar danos e diminuição das populações silvestres. Os monitoramentos devem ser no sentido de compreendermos quais são os vírus presentes nestes animais e, também, estabelecermos formas de preservação e diminuição de interações que sejam prejudiciais para nós, enquanto espécie, e para estas espécies silvestres.

    Parte das infecções ocorre (e pode ocorrer) especialmente pela invasão de habitats destes animais, aumentando o contato entre seres humanos e espécies de ambientes naturais.

    Para saber mais: 

    LAM, Tommy Tsan-Yuk; JIA, Na; ZHANG, Ya-Wei; et al (2020) Identifying SARS-CoV-2-related coronaviruses in Malayan pangolins Nature, v 583, n 7815, p 282–285, 2020. 

    ‌XIAO, Kangpeng; ZHAI, Junqiong; FENG, Yaoyu; et al (2020) Isolation of SARS-CoV-2-related coronavirus from Malayan pangolins Nature, v583, n7815, p 286–289. ‌

    ZHANG, Yong-Zhen ; HOLMES, Edward C (2020) A Genomic Perspective on the Origin and Emergence of SARS-CoV-2 Cell, v 181, n 2, p 223–227.

    BONI, Maciej F.; LEMEY, Philippe; JIANG, Xiaowei; et al (2020) Evolutionary origins of the SARS-CoV-2 sarbecovirus lineage responsible for the COVID-19 pandemic Nature Microbiology, v5, n11, p 1408–1417. 

    BANERJEE, Arinjay; DOXEY, Andrew C.; MOSSMAN, Karen; et al (2021) Unraveling the Zoonotic Origin and Transmission of SARS-CoV-2 Trends in Ecology & Evolution, v 36, n 3, p 180–184. 

    KUPFERSCHMIDT, ‌SARS-like viruses may jump from animals to people hundreds of thousands of times a year. Science.org. 

    SÁNCHEZ, Cecilia A; LI, Hongying; PHELPS, Kendra L; et al (2021) A strategy to assess spillover risk of bat SARS-related coronaviruses in Southeast Asia. ‌

    FORATO, Fidel (2021) NeoCoV: tipo diferente de coronavírus chama atenção, mas não chegou em humanos Canaltech.

    KUMAR, Ajeet (2021) NeoCov: What is WHO saying about newly discovered coronavirus found in bats? Republic World. 

    WOROBEY, Michael; LEVY, Joshua I; MALPICA, Lorena M; et al (2022) The Huanan market was the epicenter of SARS-CoV-2 emergence, Zenodo, 2022. 

    PEKAR, Jonathan E; MAGEE, Andrew; PARKER, Edyth; et al (2022) SARS-CoV-2 emergence very likely resulted from at least two zoonotic events Zenodo, 2022. 

    Observação 1:

    Este texto foi organizado com informações complementares às publicações de Mellanie Fontes-Dutra

    1. E se eventos zoonóticos como o que provavelmente gerou o SARS-CoV-2 estiverem acontecendo centenas de milhares de vezes por ano?
    2. Sobre o Neo-CoV
    3. Origem do SARS-CoV-2

    Observação 2

    Há trechos desta postagem que são traduções livres de artigos, com adequações de linguagem para melhor compreensão do tema.

    As Autoras

    Ana Arnt é licenciada em biologia, doutora em educação, professora do Instituto de Biologia da Unicamp, coordena os projetos Blogs de Ciência da Unicamp e o Especial COVID-19.

    Livia Okuda é estudante de Farmácia na Unicamp e divulgadora científica do Especial Covid-19 do Blogs Unicamp.

    Mellanie Fontes-Dutra é biomédica, doutora em neurociência e pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Divulgadora Científica na Rede Análise COVID-19. Autora convidada no Especial COVID-19 e parte do projeto Todos Pelas Vacinas.

    Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Como o SARS-CoV-2 infecta nossas células?

    Já sabemos que o novo coronavírus, o SARS-CoV-2, causa a COVID-19 e também que as medidas efetivas para seu combate são a vacinação, distanciamento social e uso de máscaras. Mas o que acontece no momento exato em que ele infecta um novo hospedeiro? Para entendermos como ocorre a infecção dentro dos organismos e dentro das células, primeiro precisamos lembrar da estrutura desse vírus. 

    Assim como outros coronavírus, o SARS-CoV-2 possui uma coroa de proteínas em suas extremidades. Essas proteínas são as que chamamos de spike, que iniciam o processo de entrada (ou infecção) do vírus nas nossas células. 

    Só que assim como uma coroa, as proteínas spike possuem alguns adereços junto com elas, chamados de glicanos. Os glicanos nada mais são do que açúcares que ficam acoplados nessa proteína e são essenciais para garantir o equilíbrio e a estrutura. Cientistas descobriram que esses açúcares são muito importantes para a mobilidade da proteína spike durante a infecção, da mesma forma que as rodinhas de apoio de uma bicicleta ajudam na sustentação da roda principal.

    A infecção acontece através de um sistema que costumamos chamar de “chave fechadura”.

    Isto é, a proteína spike seria como uma chave e alguns tipos de células do nosso corpo possuem moléculas em sua membrana que funcionam como a fechadura. Assim como colocamos a chave certa na fechadura da nossa casa, ao haver o encontro da spike com essas moléculas, o vírus consegue entrar na célula. Essa fechadura “molecular” é o receptor ACE2, presente em células do nariz, dos pulmões e de todo o trato respiratório. É por isso que, na maioria dos casos, a COVID-19 apresenta sintomas que são principalmente respiratórios. 

    A principal diferença do SARS-CoV-2 para outros vírus da mesma família, é que os glicanos ajudam a proteína spike a ser EXTREMAMENTE móvel, então ela possui uma chance muito maior de encontrar a fechadura das células. Em comparação com o coronavírus que causou o surto de SARS em 2002, o novo coronavírus tem uma capacidade de 4 a 5 vezes maior de se ligar a esses receptores e estabelecer uma ligação forte. Inclusive, atualmente já se sabe que o SARS-CoV-2 consegue infectar células de outros órgãos, como o fígado, rim, cérebro e intestino, fato esse que não havia sido visto para outros coronavírus, como a SARS de 2002 e a MERS de 2012.

    E por que estudar isso é importante?

    Porque a maioria das variantes possuem mutações (que também podem ser chamadas de diferenças ou modificações) exatamente nesta proteína! A variante Delta possui modificações que fazem com que ela tenha muito mais facilidade de se ligar aos receptores do que as outras variantes! 

    Uma variante que é capaz de infectar células mais rápido e mais fácil do que as outras, consequentemente também consegue gerar uma quantidade maior de vírus. Estima-se que a variante Delta possa produzir até mil vezes mais vírus do que outras variantes. Dessa forma, ela possui uma maior eficiência na transmissão e infecção de pessoas, até mesmo entre os vacinados. 

    Outro fato importante é que ao entender como acontece a infecção do vírus na célula, isso pode nos ajudar a descobrir (ou descartar) alguns remédios! 

    Depois de infectar alguns tipos de células, o SARS-CoV-2 utiliza pequenas vesículas, os endossomos. Dentro dos endossomos acontece uma modificação no pH que é a peça-chave para que o vírus consiga se “despir”, isso é, retirar todas as proteínas, açúcares e gorduras que protegem o seu genoma. Ao fazer isso, o vírus consegue liberar seu material genético para realizar o processo de replicação. É justamente nessa etapa de modificação de pH que alguns remédios conseguem atuar. 

    Você provavelmente se lembra da cloroquina, muito utilizada nos falsos kit de cura da COVID-19. A cloroquina consegue bons resultados dentro dos laboratórios quando é testada contra esses tipos celulares específicos. O problema é que nem sempre o SARS-CoV-2 utilizará os endossomos! Então em sistemas mais complexos do que uma simples célula (como nós, seres humanos, e outros seres vivos multicelulares), esses medicamentos não irão funcionar, como aconteceu isoladamente no laboratório. 

    Apesar disso, algumas terapias que realmente funcionam estão utilizando os anticorpos monoclonais, que já explicamos aquiaqui. Esses anticorpos se ligam à proteína spike e impedem que o vírus se ligue ao receptor ACE2 das nossas células. Isto representa 4 dos 5 tratamentos já aprovados pela ANVISA para a COVID-19!

    Por agirem na etapa de infecção das células, os remédios baseados em anticorpos precisam ser dados logo no início da doença. Além de serem tratamentos caros, outro problema que encontramos na terapia com anticorpos é que caso o SARS-CoV-2 continue se espalhando e novas variantes surjam, se alguma mutação nova agir na proteína spike, esses anticorpos podem perder a eficácia!

    O que devemos fazer então?

    A melhor maneira de combatermos a COVID-19 continua sendo: impedir o aumento no número de casos e o aparecimento de variantes! Todavia, isso só será possível se cumprirmos com o cronograma vacinal (duas doses e dose de reforço!), e continuarmos com medidas de distanciamento e o uso de máscaras! 

    Quer saber mais?

    Mishra, Sanjai (2021) Por que a variante Delta é mais transmissível e letal? National Geographic Brasil

    Menezes, Maíra (2021) Pesquisa sugere maior risco de reinfecção pela variante Delta Fiocruz

    Bertoni, Estevão (2021) Quais medicamentos contra a covid foram aprovados pela Anvisa, Jornal Nexo

    Referências! 

    1. Baisheng Li, Aiping Deng, Kuibiao Li, (…) Jing Lu (2021) Viral infection and transmission in a large well-traced outbreak caused by the Delta SARS-CoV-2 variant

    2.Scudelari, Megan (2021) How the coronavirus infects cells — and why Delta is so dangerous Nature, 595, 640-644.

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial COVID-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Por dentro da variante Ômicron

    O mundo todo aguarda ansioso enquanto pesquisadores trabalham arduamente em seus laboratórios. Tudo isso na tentativa de descobrir mais informações sobre a nova variante do SARS-CoV-2 que vem criando dúvidas e pânico nas populações: a variante Ômicron. Por causa disso, nós, do Blogs Unicamp, decidimos fazer um apanhado geral do que se sabe até o momento sobre essa variante. Nosso objetivo hoje é mostrar que, apesar de toda a preocupação, talvez não seja o fim do mundo. Muito menos a volta à estaca zero que muitos alegam. Ou seja, estamos aqui defendendo o “menos alarmismo, mais compreensão do problema”

    Onde surgiu essa variante?

    As coisas aqui podem parecer um pouco confusas. Mas é importante deixar uma coisa bem clara! Vamos lá: o lugar onde uma variante é detectada pela PRIMEIRA vez, não necessariamente é o lugar onde essa variante surgiu. Por exemplo, em uma situação imaginária:

    “Vamos pegar a variante Gama, que apareceu em Manaus. Ela poderia ter sido detectada pela primeira vez em outro país, digamos, em Portugal, a partir de uma pessoa que viajou de Manaus para lá. Apesar dela ter sido detectada em Portugal, ela não teria SURGIDO lá. Ela somente foi vista primeiro em Portugal. Pois um viajante de Manaus teria demonstrado sintomas de COVID-19, testado positivo no teste de diagnóstico por RT-qPCR. Posteriormente, teria o genoma do vírus que estava no seu corpo sequenciado. Em suma, a variante teria sido DETECTADA em Portugal, mas a primeira pessoa com ela (o chamado primeiro paciente ou paciente zero) seria do Brasil.”

    Perceba que para uma variante ser detectada são necessárias duas etapas. Aliás, etapas que temos defendido desde o início da pandemia, aqui no Blogs: Testagem Diagnóstica e Sequenciamento Genômico. Estes dois passos são fundamentais para sabermos não apenas a quantidade de casos, mas as mutações do vírus e, também, possíveis variantes importantes.

    Agora vamos separar esses momentos para a variante Omicron:

    • 11 de novembro de 2021. O genoma do primeiro caso da variante Omicron é sequenciado, a partir de um paciente em Botsuana, um país do sul da África. 
      • Nos dias que se seguem, são sequenciados outros genomas. São eles: um caso em Hong Kong, a partir de um paciente que tinha vindo da África do Sul.
      • Ao mesmo tempo, alguns casos começam a aparecer na África do Sul, na região de Gauteng. Esta é a região com maior fluxo de viajantes nacionais e internacionais do país (correspondente a São Paulo, aqui no Brasil).
      • Até esse momento, pouca ou nenhuma atenção era dada a essa variante do SARS-CoV-2.
    • 24 de novembro de 2021. Pesquisadores da África do Sul notam que essa variante tinha um nível de mutação altíssimo na proteína Spike e no resto do vírus todo. Assim, neste momento, começam a se mobilizar para entender melhor ela.
    • 26 de novembro de 2021. Após ter sido notificada pelos pesquisadores da África do Sul, a OMS anuncia uma nova variante, chamada Ômicron, como uma VOC (ou Variante de Preocupação).
    • 29 de novembro de 2021. variante Ômicron já é detectada em vários países da Europa, além de Israel e Canadá.

    Por que todo o alarde quanto à essa nova variante?

    Muito do espanto, medo e perguntas sobre a variante Ômicron gira ao redor do grande número de mutações que ela possui. Para fins de comparação, podemos entender essas mutações como pequenas diferenças que essa variante possui quando comparada com o vírus original, lá do começo da pandemia, no surto de Wuhan na China. 

    Essas diferenças podem ser tanto benéficas quanto maléficas para o vírus. Isto é, podem apresentar uma vantagem (como uma maior transmissibilidade, letalidade ou capacidade de fugir do nosso sistema imune – a chamada Evasão Imune), ou uma desvantagem (nas mesmas características que mencionamos anteriormente). Ao todo, a variante Ômicron possui um pouco mais de 50 mutações. Ou seja, esse vírus possui 50 diferenças do SARS-CoV-2 original. De todas essas mutações, 32 delas são na proteína Spike e acredite, caro leitor(a), quando dizemos que isso é muito. Para uma nova comparação, a variante Delta (que atualmente é a variante dominante no mundo) possui 16 mutações na sua Spike

    A princípio, imaginou-se que pelo grande número de mutações, os testes de diagnóstico por RT-qPCR não conseguiriam detectar essa variante. Mas já sabemos que isso não é mais um problema: pesquisadores já viram que os testes de RT-qPCR conseguem detectar essa nova variante normalmente.

    Dessas 32 mutações na sua proteína Spike, algumas são bem raras. Enquanto outras já são conhecidas por estarem presentes também em outras variantes, como a Alfa, Beta, Gama e Delta. A preocupação aqui é porque algumas dessas mutações já conhecidas estão relacionadas a uma maior transmissibilidade e um possível escape imunológico. Entretanto, aqui deixamos bem claro: ainda NÃO HÁ INFORMAÇÕES e dados confiáveis mostrando que a variante Ômicron seja realmente mais transmissível. Tampouco que escape da proteção gerada pelas vacinas. 

    Enquanto cientistas correm nos laboratórios para tentar responder essas perguntas, outros pesquisadores olham para análises computacionais e suspeitam que caso haja um escape imunológico por parte dessa variante, ele seja similar ao que vimos para a variante Beta e Delta (uma redução na proteção, mas não completamente!). Dessa forma, as vacinas ainda continuariam protegendo as pessoas. Ao mesmo tempo, outros pesquisadores desconfiam que, pelo alto número de mutações, talvez essa variante não consiga se transmitir tão bem quanto outras (a chamada baixa estabilidade).

    Como se tudo isso não bastasse…

    Recentemente também descobriram que há uma segunda forma (uma variante) da própria variante Ômicron (assim como também aconteceu com a variante de Manaus) que, entre outras coisas, não possui alguns genes que são utilizados pelos testes de RT-qPCR para identificar o vírus e as variantes. Mas o que isso significa?

    Bem, a princípio isso quer dizer que os testes de RT-qPCR continuam detectando o vírus SARS-CoV-2 em uma pessoa, então não precisa entrar em pânico. Se, por um acaso, você ou algum(a) conhecido(a) venha pegar essa variante, ele ou ela ainda poderá ser diagnosticado(a). O problema é que, com as outras variantes, esse mesmo teste era capaz de dar uma ideia preliminar de qual “tipo” esse vírus poderia ser. Em outras palavras, o teste diria se a pessoa está com o vírus ou não, e qual variante ele seria. Agora para a variante Ômicron, o que se viu até o momento foi que os testes de RT-qPCR conseguem sim identificar se a pessoa tem esse vírus ou não no corpo, mas não conseguem dizer se ele é da variante Ômicron.

    Novamente, para ficar bem claro: até o momento não há quaisquer informações concretas que mostrem uma maior transmissibilidade, infecciosidade e escape imunológico das variantes Ômicron.

    Ok, já sabemos onde essa variante surgiu e porquê todos estão espantados como ela. E com isso, aparece outra dúvida: como ela surgiu?

    Essa é uma das principais perguntas que os cientistas têm feito. Atualmente, a comunidade científica tem proposto três ideias para responder essa questão. Algumas dessas hipóteses foram pensadas a partir de análises feitas para se ver a “árvore genealógica” desse vírus. Essa árvore genealógica mostrou que, aparentemente, a variante Ômicron não “nasceu” a partir de outras variantes, mas sim que ela teria sua origem lá atrás, no começo da pandemia. Mas para entender isso melhor, vamos olhar as ideias que os cientistas têm proposto para responder a pergunta de como ela teria surgido:

    A Variante apareceu “naturalmente.

    A variante teria nascido “naturalmente” dentro de uma população com baixa vigilância epidemiológica, em outras palavras, uma população que estava fazendo poucos testes de diagnóstico e poucos sequenciamentos de genomas virais. Dessa forma, a Ômicron teria ficado meses “escondida” nessa população, que muito provavelmente seria de um lugar afastado de grandes centros, o que poderia explicar o grande acúmulo de mutações e ser oriunda de um vírus mais “antigo”. Entretanto, muitos pesquisadores argumentam que seria impossível uma variante desse nível ter ficado escondida por tanto tempo, visto que atualmente tem se sequenciado muitos genomas de SARS-CoV-2.

    Spillover

    A segunda ideia de surgimento seria a partir do chamado Spillover (pode ver esse texto aqui para entender melhor esse processo). Isto é, um vírus SARS-CoV-2 ter passado de um humano para um animal, nesse animal o vírus teria acumulado mutações e então, depois de um tempo, teria voltado para o ser humano como a variante Ômicron. 

    Um dos motivos que levam os cientistas a considerar essa hipótese é a presença de algumas mutações na proteína Spike da Ômicron que já foram vistas em outras variantes. Sabe-se que essas mutações que aumentam o número e tipos de hospedeiros do vírus, tornam a variante capaz de infectar outras espécies de animais, como por exemplo roedores.

    Infecções Crônicas

    A hipótese mais aceita até o momento é que a variante teria aparecido a partir de infecções muito longas (as chamadas infecções crônicas) de COVID-19, provavelmente em um paciente imunocomprometido, isso é, um paciente em que o sistema imune está debilitado, por exemplo, pacientes com AIDS ou sob tratamento de câncer. A ideia por trás dessa hipótese é o vírus ter ficado se replicando várias vezes nessa pessoa, por muito tempo, acumulando mutações, sem que o sistema imune dela conseguisse combatê-lo eficientemente.

    Entretanto, a boa notícia por trás disso seria que todo esse acúmulo de mutações para conseguir sobreviver em uma pessoa por tanto tempo, também viria com um custo para o vírus: uma menor capacidade de se transmitir de pessoa para pessoa. Mas, ainda não temos informações claras sobre essa possibilidade.

    É pensando nessa possibilidade para o surgimento de variantes, que mais uma vez vemos porque a vacinação é tão importante no combate à pandemia. Além de reduzir o risco de infecção grave e severa, já foi visto que pessoas vacinadas conseguem combater o vírus mais rápido, impedindo que ela fique se multiplicando no corpo por um maior período de tempo, o que diminui as possibilidades dele acumular mutações como as que foram visto nas variantes Alfa, Beta, Gama, Delta e Ômicron. 

    Finalmente, qual é a situação atual do mundo e do Brasil com essa variante?

    Atualmente, detectaram a variante Ômicron em mais de 50 países ao redor de todo o mundo. Entretanto, até onde se sabe, as pessoas infectadas na maioria desses países eram viajantes que tinham vindo de outro lugar. Até o momento são poucos os países que tiveram a chamada Transmissão Comunitária, isso é, uma pessoa que tem um caso de COVID-19 causado pela variante Ômicron, mas que não se sabe quem pode ter passado o vírus para essa pessoa (em outras palavras, não é possível fazer o rastreio do vírus). 

    No Brasil, até o momento em que escrevo esse texto (às 13:20 do dia 7 de Dezembro de 2021), confirmaram-se 6 casos. Um número baixo, mas que foram suficientes para cancelarem muitas feitas do Réveillon por todo o território nacional (algo que já falávamos que não deveria acontecer com grandes multidões e aglomerações). Entretanto, alguns cientistas estão propondo que há mais casos do que parecem no Brasil, simplesmente por termos uma alta taxa de subnotificações e um baixo número de testes de diagnóstico e sequenciamento (a vigilância epidemiológica que comentei no início). 

    Por fim, termino esse texto lembrando que a vacinação de toda a população de um país pode sim ajudar a combater a pandemia de COVID-19. Mas somente isso não vai resolver o problema. Enquanto 80% de todas as doses de vacinas estiverem concentradas em 20 países do mundo, sendo que muitos desses países estagnaram em 60% ou 70% da cobertura vacinal de sua população (o que não é suficiente para resolver o problema), ainda veremos muitas variantes surgindo através do globo, principalmente em países com coberturas vacinais baixas (como muitos da África). 

    PARA SABER MAIS:

    Mellanie Fontes-Dutra Vamos falar da B.1.1.529

    Mellanie Fontes-Dutra O que sabemos da #Ômicron até o momento?

    Andrews, L (2021) New Botswana variant with 32 ‘horrific’ mutations is the most evolved Covid strain EVER and could be ‘worse than Delta’ — as expert says it may have emerged in an HIV patient MailOnline 

    Agencia Brasil (2021) Descoberta nova variante do coronavírus com grande número de mutações 

    Corum, J; Zimmer, C (2021) Tracking Omicron and Other Coronavirus Variants, New York Times.

    Cardim, ME (2021) Terceiro caso da variante ômicron é identificado no Brasil, Correio Braziliense

    Kupferschmidt, K (2021) Where did ‘weird’ Omicron come from? Science

    Couzin-Frankel, J (2021) A cancer survivor had the longest documented COVID-19 infection. Here’s what scientists learned, Science.

    Chotiner, I (2021) How South African Researchers Identified the Omicron Variant of COVID, The New Yorker.

    Petersen, E, Ntoumi, F, Hui, DS, Abubakar, A, Kramer, LD, Obiero, C, … & Zumla, A (2021) Emergence of new SARS-CoV-2 Variant of Concern Omicron (B. 1.1. 529)-highlights Africa’s research capabilities, but exposes major knowledge gaps, inequities of vaccine distribution, inadequacies in global COVID-19 response and control efforts, International Journal of Infectious Diseases.

    Karim, SSA, & Karim, QA (2021) Omicron SARS-CoV-2 variant: a new chapter in the COVID-19 pandemic, The Lancet

    Viggiano, G (2021) Por que há desigualdade de vacinas no mundo e o que isso tem a ver com a Ômicron, CNN

    G1 (2021) OMS diz que variante ômicron representa risco alto para o mundo, G1

    Costa, AG (2021) Ômicron: o que dizem autoridades de países onde a nova variante já chegou, CNN

    Ansede, M (2021) Ômicron: assim é o coronavírus ‘Frankenstein’ que assusta o planeta, El País Brasil.

    The Guardian (2021) Scientists find ‘stealth’ version of Omicron that may be harder to track, The Guardian

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial COVID-19
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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Como o vírus SARS-CoV-2 chega no cérebro?

    Texto escrito por Gabriela Vieira

    Depois de quase dois anos do início da pandemia causada pelo novo coronavírus, muitas dúvidas ainda restam sobre como este vírus age nas células do corpo humano. A comunidade científica tem avançado nas pesquisas sobre esta nova doença com uma rapidez nunca vista antes. Atualmente, diversas vacinas estão disponíveis, a sociedade está sendo imunizada e começamos a ver uma diminuição significativa de óbitos – embora ainda existam casos de infecção aumentando no mundo.

    Embora o SARS-CoV-2 seja um vírus que ataca predominantemente o sistema respiratório, hoje em dia nós já sabemos, por exemplo, que o vírus afeta outros órgãos e sistemas também. Já foi relatada a infecção de outros sistemas, como o sistema gastrointestinal e fortes evidências apontam que o vírus também infecta o sistema nervoso central (SNC). Porém, ainda há muito o que descobrir sobre a COVID-19 como, por exemplo, os danos que o vírus causa em outros órgãos e quais são as consequências e sequelas a longo prazo.

    Como nossa compreensão da doença muda conforme as evidências se fazem rotina

    No início na pandemia, os esforços dos médicos e cientistas estavam voltados para os sintomas respiratórios dos pacientes. Atualmente, muitas evidências mostram que pacientes com COVID-19 também apresentam efeitos neurológicos preocupantes como acidente vascular cerebral, hemorragia cerebral, perda de memória, dores de cabeça, perda de olfato e paladar, confusão mental e convulsão.

    Apesar de alguns estudos indicarem que o vírus pode infectar células do sistema nervoso, ainda não sabemos precisamente como o vírus chega nestas células. Já falamos aqui sobre como um vírus que ataca principalmente o sistema respiratório pode causar danos no cérebro. Atualmente, os pesquisadores avançaram um pouco neste entendimento e vamos explicar o que eles descobriram.

    Vamos entender melhor…

    Alguns estudos sugerem que o vírus pode entrar pelo nervo olfatório, o que já era uma das suspeitas iniciais quando descobriram que o vírus infecta o SNC. Isto porque um dos sintomas da COVID-19 é a perda de olfato e paladar (também conhecidas em seus termos técnicos como anosmia e ageusia, respectivamente). No entanto, estas evidências ainda seguem bem controversas. A possibilidade de o vírus SARS-CoV-2 atravessar a barreira hematoencefálica tem ganhado força com alguns trabalhos que mostraram algumas evidências de que isso ocorre. Estas pesquisas vem utilizando, principalmente, modelos in vitro (linhagens celulares) e in vivo (camundongos e hamsters) de infecção com o SARS-CoV-2. 

    Mas o que é a barreira hematoencefálica?

    A barreira hematoencefálica é uma estrutura que serve como um filtro muito eficiente do SNC. Ou seja, ela impede ou dificulta a passagem de substâncias nocivas do sangue para o tecido nervoso. Por outro lado, permite a entrada de substâncias importantes como nutrientes, hormônios e gases. Esta membrana seletivamente permeável, restringe a entrada de substâncias tóxicas e patógenos, incluindo bactérias e vírus. Entretanto, muitas vezes medicamentos que teriam de agir no sistema nervoso também são impedidos de atravessar a barreira hematoencefálica. 

    Esta estrutura reveste os vasos sanguíneos do sistema nervoso central e é formada por 3 tipos de células: células endoteliais, pericitos e astrócitos. As células endoteliais revestem os capilares cerebrais e ficam muito próximas umas das outras, formando as “junções compactas” que atuam na seletividade das substâncias. Os astrócitos, que são células da glia em formato de estrela e os pericitos, que são células de origem mesenquimal que envolvem o endotélio dos capilares cerebrais, se comunicam com as células endoteliais e auxiliam na seletividade da barreira, atuando na regulação do tônus vascular e do fluxo sanguíneo capilar.

    Difícil, né? Vários nomes…

    O que importa é compreender que esta estrutura funciona como uma barreira que seleciona o que entra e o que sai de nosso cérebro! Veja a figura abaixo:

    A imagem mostra uma representaçaõ do cérebro, com destaque ressaltando um pedaço entre os vasos sanguíneos (com partículas do próprio sangue, oxigênio e outros gases, bactérias, anticorpos e outros compostos químicos) e a barreira hematoencefálica, que funciona como "Filtro Supereficiente: a barreira hematoencefálica é uma estrutura especial que reveste os vasos asnguíneos no sistema nervoso central. Formada por três tipos de células (células endoteliais, pericitos e astrócitos), ela permite que apenas alguns compostos cheguem ao cérebro. Trocas de informações entre os astrócitos da barreira e os neurônios a tornam mais restritiva ou mais permeável"
    Imagem retirada da Revista FAPESP: https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2017/06/054-055_barreira_256.jpg

    O que acontece se a barreira hematoencefálica for danificada?

    Várias doenças e infecções com bactérias e vírus são capazes de causar danos na barreira hematoencefálica. Estes danos podem aumentar a permeabilidade desta membrana. Isto é, provoca uma maior entrada de patógenos, toxinas e outras substâncias indesejadas. Esta maior permeabilidade induz uma resposta inflamatória cerebral, que pode resultar em danos neurológicos e agravamento de doenças do sistema nervoso central.

    E como o SARS-CoV-2 atravessa essa barreira?

    Neste artigo publicado em maio deste ano, os cientistas investigaram se o SARS-CoV-2 é capaz de atravessar a barreira hematoencefálica de modelos animais para infecção com SARS-CoV-2 e como este processo ocorre. Para isso, utilizaram camundongos e hamsters infectados com o vírus SARS-CoV-2, além de um modelo in vitro que mimetizou a barreira hematoencefálica com células provenientes dos animais.

    Os cientistas mostraram que o SARS-CoV-2 foi capaz de invadir o cérebro dos animais, infectando e se replicando nas células endoteliais da barreira hematoencefálica. Dessa forma, esta infecção das células endoteliais fez com que aumentasse a permeabilidade vascular cerebral. Ou seja, o “filtro” entre os vasos sanguíneos e o cérebro se tornou menos seletivo e deixou passar mais substâncias para o sistema nervoso central. Todavia, como exatamente o vírus SARS-CoV-2 consegue fazer esta invasão ainda é controverso entre os cientistas.

    O estudo mostrado aqui, evidenciou que a invasão pode ocorrer devido ao aumento de uma proteína chamada MMP9. Esta proteína é responsável pela degradação da matriz extracelular (o espaço entre as células). No caso da MMP9, ocorreu a degradação de colágeno, um dos principais componentes da matriz extracelular. E isto permite que o vírus cruzasse a barreira hematoencefálica.

    A infecção do SNC levou a vários danos cerebrais nos animais, causando morte celular (apoptose) de algumas células e outros danos em células vasculares do SNC. Além disso, os pesquisadores mostraram que a invasão do vírus no SNC dos animais também desencadeou uma resposta inflamatória cerebral, ativando células específicas do sistema nervoso responsáveis pela sua resposta imunológica.

    Com isso, os autores deste artigo concluíram que o SARS-CoV-2 pode atravessar a barreira hematoencefálica infectando células que fazem parte desta estrutura, o que pode levar a danos neuronais e a indução da resposta inflamatória.

    Figura do artigo demonstrando um possível mecanismo pelo qual o vírus SARS-CoV-2 atravessa a barreira hematoencefálica. Durante a infecção, o SARS-CoV-2 pode infectar as células endoteliais e cruzar a barreira hematoencefálica por meio da degradação de colágeno causado pela proteína MMP9. Os neurônios ficam então, relativamente vulneráveis à infecção por SARS-CoV-2, levando á danos neuronais e uma resposta inflamatória cerebral, aumentando o dano na barreira hematoencefálica e a lesão neuronal.

    E agora? Quais são os próximos passos?

    O entendimento de como o vírus SARS-CoV-2 infecta o SNC pode ajudar os pesquisadores a entenderem as manifestações neurológicas não respiratórias da COVID-19. No entanto, muitas incógnitas ainda permeiam o entendimento sobre o trajeto que o vírus faz no sistema nervoso central. Por exemplo: como ele atua nestas células, com que frequência isso ocorre e, principalmente, quais as consequências disso. Assim, estes estudos também são muito importantes na busca do tratamento desses pacientes a curto e longo prazo. Visto que muitas das consequências a longo prazo parecem ter relação não só com o sistema respiratório, mas também com o sistema nervoso central.

    A COVID-19 está conosco há 2 anos. Mas ainda há muito o que compreender sobre a doença, o vírus e o que acontece em nosso corpo nas infecções! E é pela ciência – e no investimento na ciência – que conseguiremos isso! Apoie a ciência brasileira, para fazermos parte deste combate à pandemia!

    Para saber mais

    Butowt, R, Meunier, N, Bryche, B & von Bartheld, CS (2021) The olfactory nerve is not a likely route to brain infection in COVID-19: a critical review of data from humans and animal models, Acta Neuropathol 141, 809–822.

    Meinhardt, J et al (2021) Olfactory transmucosal SARS-CoV-2 invasion as a port of central nervous system entry in individuals with COVID-19, Nat Neurosci 24, 168–175. 

    Goyal, P, Choi, JJ, Pinheiro, LC, Schenck, EJ, Chen, R, Jabri, A, Satlin, MJ, Campion, TR, Jr, Nahid, M, Ringel, JB, et al (2020) Clinical Characteristics of Covid-19 in New York City N Engl J Med 382, 2372–2374 (2020).

    Buzhdygan, TP et al (2020) The SARS-CoV-2 spike protein alters barrier function in 2D static and 3D microfluidic in-vitro models of the human blood-brain barrier, Neurobiol Dis 146, 105131.

    Pellegrini, L et al (2020) SARS-CoV-2 infects the brain choroid plexus and disrupts the blood-CSF barrier in human brain organoids Cell Stem Cell 27, 951–961 e955.

    Reynolds, JL & Mahajan, SD (2021) SARS-COV2 alters blood brain barrier integrity contributing to neuro-inflammation. J NeuroImmune Pharmacol 16, 4–6.

    Rhea, E M et al (2021) The S1 protein of SARS-CoV-2 crosses the blood-brain barrier in mice, Nat Neurosci, 24, 368–378.

    Song, E et al (2021) Neuroinvasion of SARS-CoV-2 in human and mouse brain, J Exp Med 218, 3.

    Zhang, L. et al (2021) SARS-CoV-2 crosses the blood-brain barrier accompanied with basement membrane disruption without tight junctions alteration, Signal Transduct Target Ther 6(1):337.

    A Autora

    Gabriela Maciel Vieira possui graduação em Biologia (2013), mestrado (2014-2016) e doutorado (2016-2021) em Ciências (com ênfase em Genética) pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, com período sanduíche na Kansas University Medical Center, EUA (2019). Atuou na pesquisa em oncologia, biologia celular e molecular e atualmente é pós-doutoranda do Laboratório de Neuroproteômica (Unicamp) estudando as bases moleculares do SARS-CoV-2 no sistema nervoso central.

    Este texto foi escrito originalmente para o blog EMRC

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Anticorpos neutralizantes e a variante P.1 Gamma

    Texto escrito por Mariene Amorim, Ana de Medeiros Arnt, Marcelo Mori, Alessandro Farias e José Luiz Proença-Modena

    Hoje nós vamos falar sobre um estudo que saiu quentinho do forno de pesquisadores aqui da UNICAMP! Como é um tema difícil e cheio de nuances, vamos começar aos poucos. Primeiro falaremos de conceitos do estudo. Após isso, vamos abordar sobre a metodologia. Só depois disso, vamos falar dos resultados em si.

    Nosso corpo e suas defesas: o nosso sistema imunológico

    Nosso corpo possui um sistema de defesa sofisticado e complexo, composto por diferentes tipos de barreiras, células e proteínas. Todos esses componentes juntos formam o nosso sistema imunológico, nosso sistema de defesa frente a invasores.

    Nosso sistema imune sempre está vigilante a tudo que entramos em contato. Quando algo considerado não-próprio (isso é, que não pertence ao nosso corpo) entra em contato conosco, o sistema imune identifica aquilo como “externo”, buscando destruir e algumas vezes guardando uma memória dessa ameaça. Mas algumas vezes precisamos de reforços. Nesses casos, além do sistema imune chamar mais células de defesa, este induz a liberação de várias proteínas que vão ajudar a combater a ameaça, resultando em uma Inflamação. 

    Entretanto, nosso corpo tem limites. Um longo período de inflamação (por exemplo, combatendo um patógeno) pode resultar em dano às células e órgãos do nosso corpo. Em outras palavras, podemos “exagerar” enquanto estamos tentando proteger nosso corpo de elementos externos (como vírus ou bactérias). Assim, acabamos gerando respostas que em certa medida também dão uma “bagunçada geral” no sistema. Como vocês podem ver a imunologia (e já temos falado disso em nossos textos) é bem complexa. Ao longo dos anos, esse tem sido foco de estudos e tem se desvendado mais e mais sobre o tema. Isto para a nossa melhor compreensão e para que possamos combater muitas doenças.

    Ensinando o corpo a se proteger

    Entender o sistema imunológico e como ele funciona não é algo fácil para compreendermos. No entanto, graças a muitos estudos, muitas noites sem dormir e experimentos sem fim, aprendemos um pouco mais sobre como o sistema imune funciona. Mas melhor do que isto, hoje também somos capazes de “ensinar” ao nosso sistema imune sobre um patógeno. Ou seja, quando, ou se, entrarmos em contato com este patógeno, ele não consegue se espalhar abundantemente e causar muitos danos. É o que fazemos quando tomamos vacinas!

    Quando a humanidade ainda estava desvendando as doenças e como preveni-las, há muito tempo atrás (século XVIII e antes), na tentativa de combater a varíola, pessoas eram inoculadas com uma versão mais branda da doença (uma varíola de vacas) e se tornavam imunes ao desenvolvimento da varíola humana, que era mais grave. A história das doenças e vacinas é fascinante, mas não é o que vamos discutir nesse texto!

    Hoje, já existem diversas maneiras de elaborar uma vacina, de forma que sejam muito mais seguras. A depender da técnica utilizada na produção de uma vacina, nós vamos apresentar ao nosso corpo o patógeno inativado, ou uma pequena parte do patógeno, para que o nosso sistema imune reconheça e guarde aquela informação em forma de memória imunológica.

    Vacinas, vírus e variantes

    Atualmente existem diversas vacinas contra vírus, que ajudaram a extinguir doenças em várias partes do globo. Porém, não é um processo fácil e não funciona para todas as doenças. Se um vírus, por exemplo, sofre muitas modificações genéticas (mutações) e consequentemente estruturais, à medida que ele se espalha em uma população, se torna difícil, produzir uma vacina eficiente, como é o caso do vírus da imunodeficiência humana HIV. É como se esse vírus fosse mudando com o tempo, de forma que a memória gerada pelo nosso sistema imune não irá reconhecê-lo mais. Além de outros fatores relacionados ao desenvolvimento da doença, que podem inviabilizar o uso de uma vacina. 

    Para nossa sorte, muitas doenças são causadas por vírus que não sofrem tantas mutações com muita rapidez, para as quais já temos vacinas eficientes, como a varíola, a rubéola, a poliomielite, entre outras. No cenário atual da pandemia de COVID-19, nos deparamos com um vírus de RNA que não sofre tantas mutações como outros vírus com genoma de RNA, como HIV e influenza. Entretanto, essa história não é tão simples como parece, como podemos ver com as notícias de surgimento de tantas variantes.

    Então não têm tanta mutação assim o tal do Corona??

    Mas o SARS-CoV-2 não é, de fato, um vírus que muta tanto assim. Todavia, ele se espalha muito rapidamente e o número gigantesco de pessoas infectadas juntamente com a alta taxa de transmissibilidade, tem favorecido não somente o aparecimento de mutações nesse vírus, como também a seleção de mutações mais favoráveis à infecção fixando-as na população. Ao longo da história da pandemia, foram surgindo variantes virais com mudanças significativas em algumas de suas estruturas, preocupando pessoas no mundo inteiro.

    Novamente, graças a conhecimentos acumulados ao longo de décadas de estudos, a humanidade conseguiu produzir não só uma, como vários tipos de vacinas contra esse vírus, e é claro que o aparecimento das novas variantes colocou o mundo inteiro em estado de alerta. A pergunta que não quer calar é:

    As vacinas ainda irão funcionar?

    Temos pesquisado muito a fim de desvendar como acontece a nossa resposta imune frente ao SARS-CoV-2, e as variações que têm aparecido. Será que produzimos memória imunológica quando entramos em contato com esses vírus? Por quanto tempo? Podemos pegar um tipo de vírus e depois pegar novamente uma variante? Como podemos investigar se temos alguma proteção?

    São muitas perguntas, pouco tempo para desenvolver os estudos e obter respostas enquanto tem muita gente adoecendo, muita gente morrendo, variantes surgindo… Mas vamos lá, temos muito ainda a percorrer sobre o tema!

    O que podemos fazer no âmbito científico para obter algumas respostas?

    Muita coisa tem sido feita. Primeiramente, nunca tivemos tanto sequenciamento de genoma completo de um vírus anteriormente na história. Temos conseguido acompanhar a evolução desse vírus em muitos países, identificar o surgimento das variantes e acompanhar seu desenvolvimento epidemiológico, inclusive no Brasil.

    Segundo, nós podemos isolar as partículas virais de uma amostra de paciente infectado, para que possamos estudar o vírus em cultura de células no laboratório (in vitro). Conseguimos fazer isso com as diferentes linhagens do SARS-CoV-2, as mais antigas e as novas variantes.

    Os vírus isolados podem ser utilizados, por exemplo, para investigar a presença de anticorpos neutralizantes circulando no sangue de pessoas que já tiveram algum contato com o vírus, seja por infecção natural ou vacinação. Um desses ensaios se chama PRNT, do Inglês Plaque reduction neutralization test. Nesse ensaio, utilizamos amostras de soro ou plasma, para investigar a presença de anticorpos capazes de neutralizar o vírus. Ou seja, anticorpos capazes de fazer com que o vírus não seja mais capaz de se replicar numa célula e causar dano no organismo.

    Como fazemos isso? Em nossa pesquisa, realizamos uma diluição seriada de uma amostra de soro ou plasma. Logo depois, incubamos as diferentes diluições com uma quantidade fixa de partículas virais viáveis. Ressaltamos este ponto aqui, pois é uma questão metodológica importante:

    Há diferentes concentrações de soro, mas com a mesma quantidade de partículas virais.

    Depois de um tempo, colocamos essas misturas em pocinhos contendo células que são facilmente infectadas pelo vírus. As partículas virais que ainda continuam viáveis em cada mistura de vírus+soro/plasma, serão capazes de infectar as células. Caso o soro/plasma da pessoa contenha anticorpos neutralizantes, estes irão neutralizar (ou seja, bloquear a capacidade do vírus infectar) as partículas virais que não serão capazes de infectar as células nos pocinhos. As células infectadas acabam morrendo depois de um tempo, formando uma pequena plaquinha no fundo do poço. Parece mais uma história triste essa parte né? Mas na verdade são estas plaquinhas que nós conseguimos contar, montar gráficos e realizar testes estatísticos.

    E o quê elas representam?

    Estas plaquinhas são exatamente o que nos indicam a quantidade de células que foi infectada e morreu. Portanto, indicam que o meio em que elas estavam (a mistura com soro/plasma) tinha poucos (ou nenhum) anticorpos neutralizantes. Assim, não houve bloqueio da ação dos vírus.  

    Nosso estudo sobre Neutralização da linhagem P.1 por anticorpos 

    Recentemente um estudo realizado pelo grupo do professor José Luiz Módena, aqui da UNICAMP, analisou diferentes amostras de pacientes para realizar exatamente este tipo de ensaio que comentamos anteriormente, com a variante P.1 – também conhecida como variante Gamma. 

    O estudo foi publicado ontem na revista The Lancet Microbe! Sim! Como dissemos, recém saído do forninho da publicação!

    Neste estudo, analisou-se a quantificação de anticorpos neutralizantes presentes em amostras de soro/plasma de pessoas previamente expostas ao SARS-CoV-2. Quando falamos em “previamente expostas” estamos falando de “exposição natural” (pessoas que se infectaram pelo vírus) ou por vacinação com vírus inativado – no caso, Coronavac.

    Ao analisar estas amostras, percebeu-se que a neutralização por anticorpos diminui quando incubadas com essa variante em relação à linhagem mais antiga do vírus. O que isto quer dizer?

    Resumidamente, observou-se diminuição da capacidade de neutralização dos anticorpos em relação à variante P.1 Gamma. Ou seja, percebemos que houve uma menor capacidade de bloquear a infecção em relação à variante P.1 Gamma, quando comparamos as mesmas amostras usando as linhagens originais de SARS-CoV-2.

    Então a vacina não funciona, e isto que vocês estão me dizendo?

    Calma lá! Longe disso… Estamos dizendo que uma das defesas estimuladas por esta vacina, tanto quanto por infecção natural de linhagens “originais” – que é a produção de anticorpos neutralizantes – diminui sua capacidade de nos defender quando encontra a P.1 Gamma pela frente.

    Mas há um porém, vamos a eles…

    Primeiramente, os anticorpos neutralizantes não são a única defesa do nosso sistema imune. Existem outras defesas, como a imunidade celular, que também atuam no combate à infecção. E a imunidade celular não foi testada e analisada nesta pesquisa!

    Em segundo lugar, diminuir a capacidade de anticorpos neutralizantes não é “não ter ação alguma de anticorpos neutralizantes”. É, como a palavra diz: diminuir. Além disso, os anticorpos podem atuar por outros meios que não a neutralização, como a indução de fagocitose de partículas virais recobertas de anticorpo e a indução de morte celular em células infectadas. Isto é, existe resposta imune produzida pelo nosso corpo.

    E as outras vacinas?

    Outros grupos de pesquisa, em outros países, têm realizado testes semelhantes em relação aos diferentes tipos de vacinas que temos disponíveis atualmente, frente às diferentes variantes de SARS-CoV-2. E temos observado que algumas variantes tem maior capacidade de escape de anticorpos do que outras. Vamos detalhar este tema em um próximo texto, aguarde!

    Enquanto isso, 

    É fundamental este tipo de pesquisa ser feita e ser divulgada, sempre! Tal como é sempre fundamental apontar que sua divulgação precisa ser feita com cautela e sem alarmismos. Precisamos compreender a ação das vacinas em relação às novas variantes e, sim, pode ser que em algum momento existam escapes das variantes. As vacinas precisam (e provavelmente precisarão) ser “atualizadas” para conseguir nos defender das variantes que forem surgindo.

    Por isso, claro, vacinar é FUNDAMENTAL, não escolher vacina é primordial – lembrando que a vacinação é um fenômeno de massa e, mais importante do que isto, precisamos seguir protocolos e medidas de segurança mesmo depois de vacinados! Quais medidas? Uso de máscara, distanciamento social, higienização das mãos, diminuir ao máximo a circulação, especialmente em locais não ventilados!

    Por fim,

    É um texto trocando em miúdos os resultados que vocês querem? Pois esperem que vamos fazer também! Este artigo vai ter várias postagens sobre: metodologia, obtenção de resultados, análises e ponderações! Mas é claro que não podíamos deixar passar o tempo e precisávamos conversar com vocês sobre os resultados hoje mesmo!

    Para Saber Mais

    Estudo de referência:

    Souza, Willian … Modena, José Luiz (2021) Neutralisation of SARS-CoV-2 lineage P.1 by antibodies elicited through natural SARS-CoV-2 infection or vaccination with an inactivated SARS-CoV-2 vaccine: an immunological study The Lancet Microbe, 08 de Julho de 2021.

    Primeiro texto feito sobre este estudo:

    P.1 e a CoronaVac: é verdade que não precisa mais vacinar? (Spoiler, precisa sim!)

    Outras referências

    O Que são Anticorpos?

    História das vacinas (em inglês)

    Imunidade Celular: um exército de soldados invisíveis

    E aqueles resultados das vacinas? – Parte 2: Memória Imunológica

    Estudo sobre a CORONAVAC no Chile (Texto de Mellanie Fontes-Dutra)

    Este texto foi escrito originalmente no blog EMRC

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • PCR e a sopa de letrinhas científica

    Por: Rafael Sanchez Luperini e Renato Augusto Corrêa dos Santos

    PCR, qPCR, RT-qPCR: o que significam essas siglas e o que elas têm a ver com os fungos? As discussões sobre técnicas e metodologias científicas utilizadas para diagnóstico da COVID-19 se popularizaram nos mais diversos meios de comunicação. 

    O RT-qPCR (Reverse Transcriptase Quantitative Polymerase Chain Reaction, em inglês), por exemplo, é o método mais eficaz para diagnosticar um paciente e ficou conhecido como “o teste do cotonete no nariz”. E nós queremos saber:

    1. Você já se perguntou como ele funciona? 
    2. Como e quando surgiu essa metodologia científica tão avançada? 
    3. Você sabia que existem ainda outras variantes desta técnica, chamadas de PCR, qPCR e RT-PCR? 
    4. Além das letras em cada sigla, quais as verdadeiras diferenças por trás de cada uma dessas técnicas? 

    Esse texto busca trazer as respostas para quem está cheio de dúvidas a respeito dessas interessantes, e extremamente versáteis, ferramentas das ciências biológicas.

    A história do PCR

    Essas metodologias são geralmente aplicadas na identificação de seres vivos a níveis bastante específicos, e para esclarecer melhor todas essas perguntas, vamos explicar a técnica, juntamente com a sua história. 

    Em 1983 aconteceu uma das mais significantes descobertas do século XX. O cientista Dr. Kary Mullis desenvolveu a reação em cadeia da polimerase (Polymerase Chain Reaction ou PCR). A partir dessa técnica se tornou possível obter muitas cópias de um mesmo fragmento de material genético, possibilitando a obtenção de grandes quantidades de DNA de uma amostra genética de um organismo.

    A técnica possibilita a produção de fragmentos de DNA de interesse partindo de pequenas quantidades de amostras de DNA usando a enzima DNA polimerase, a mesma que participa da multiplicação do material genético nas células. Esta enzima se liga a um pequeno fragmento (o iniciador, ou primer, em inglês), desenhado especialmente para se ligar ao DNA alvo, produzindo uma sequência complementar ao fragmento de DNA de interesse, escolhido antes do início da análise.

    O primeiro estudo detalhando a metodologia da técnica foi publicado no periódico científico Science, no ano de 1985, revolucionando a ciência e as possibilidades de descobertas ao se trabalhar com DNA. Porém essa metodologia ainda apresentava uma série de desafios, visto que é composta de 3 etapas demonstradas na imagem abaixo:

    Reação em cadeia da polimerase explicada passo a passo

    A realização de 20 a 40 ciclos promove a amplificação da região que se pretende analisar, seja ela um gene humano específico, ou de microrganismos ou basicamente qualquer material genético que se deseja multiplicar para analisar posteriormente.

    Variações da técnica de PCR

    Ao longo dos anos, começaram a surgir variações da técnica, e aplicações das mais diversas formas, e é nesse contexto que surge a análise tão utilizada hoje em dia nos diagnósticos de COVID-19, a RT-qPCR. 

    E o que significam todas essas letras adicionadas antes da PCR?

    Elas dizem respeito a uma metodologia com uso de uma enzima chamada Transcriptase Reversa (Reverse Transcriptase, ou RT), que tem a função de produzir uma fita de DNA (chamada de DNA complementar ou cDNA) a partir de uma fita de RNA. 

    Além disso, a letra “q” indica que esta técnica é quantitativa e pode ser usada em RT-qPCR e qPCR. Esta metodologia se parece muito com a PCR original, porém com a diferença de que são adicionadas sondas fluorescentes de DNA junto das amostras, as quais emitem fluorescência a cada ciclo realizado pelo aparelho.

    Portanto, durante a amplificação, a quantificação de DNA é determinada pela quantidade de fluorescência emitida pelo produto amplificado a cada ciclo.

    Isso é possível somente com a utilização de um sistema de equipamentos com monitoramento da fluorescência emitida, possibilitando uma quantificação mais exata de quanto material genético existia na amostra inicial, abrindo ainda mais opções e oportunidades de análises a serem feitas, como será explicado a seguir.

    Pesquisas que utilizam a técnica PCR

    Agora vamos dar alguns exemplos de pesquisas importantes no Brasil e ao redor do mundo, que utilizam a técnica de PCR e suas variantes.

    Aplicações de PCR nas pesquisas agrícolas do Brasil.

    Além dos interesses das aplicações da técnica na área da saúde, a agricultura e a indústria de alimentos e bebidas também se beneficiam da técnica. Em algumas situações, a qPCR é utilizada em laboratórios de análise de alimentos visto que é uma técnica altamente específica e sensível. Porém, dentre as dificuldades estão seu alto custo devido à necessidade de mão de obra especializada, insumos e metodologia para a detecção e identificação de determinados microrganismos.

    Diversas pesquisas desenvolvidas no Brasil visam o melhoramento da detecção de fungos que contaminam alimentos, como é o caso de espécies das espécies Aspergillus niger e Aspergillus welwitschiae, produtoras de micotoxinas, algumas delas nefrotóxicas e potencialmente carcinogênicas. 

    Pesquisas na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em 2018, coordenadas pela Dra. Marta Hiromi Taniwaki e em colaboração com pesquisadores da Universidade Estadual de Londrina (UEL) estudaram o uso da técnica de qPCR na detecção destas espécies citadas acima, obtidas de café. O método desenvolvido possibilita rápida, precisa e sensível detecção das espécies citadas, que são morfologicamente idênticas.

    PCR em laboratórios de fitopatologia

    No Brasil, há algumas clínicas fitopatológicas que fazem a análise de qPCR para a detecção de doenças importantes em plantas, como é o caso da EMBRAPA, a ESALQ (Universidade de São Paulo, em Piracicaba), o Centro de Cana e o Centro de Citricultura, ambos pertencentes ao Instituto Agronômico de Campinas (IAC). 

    A pesquisadora Laís Moreira Granato, do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), contou um pouco sobre a aplicação de qPCR no cotidiano. Na prática, laboratórios de fitopatologia usam a técnica de RT-qPCR para a detecção de vírus de RNA  e atécnica de qPCR para detecção de fungos e bactérias em citros. Geralmente o citricultor leva amostras de frutas ou folhas para a clínica do Centro de Citricultura procurando por essas doenças.

    Infelizmente, como ja foi dito, os insumos e equipamentos que envolvem a qPCR são caros! No entanto, os citricultores precisam desse serviço para ter certeza de que não há doenças escondidas em seus pomares. 

    Uma das motivações para se pagar um pouco mais por esse serviço envolve a legislação que regula a exportação dos vegetais. Frutas de mesa, quando exportadas para a Europa, precisam obrigatoriamente passar por uma comprovação de que não há presença de alguns fungos. Um exemplo é Phyllosticta citricarpa nas cascas das laranjas. Este fungo não existe na Europa e a legislação não permite que nada entre sem uma comprovação de que está “limpo”.

    Na prática, em algumas situações, mesmo que a detecção pudesse ser feita, questões ligadas ao sistema produtivo podem ser um problema, como a limitação de equipamentos, disponibilidade de equipes de inspeção e de corpo técnico. Mas, além disso, descobrimos algo curioso quando o assunto é priorizar um problema ou outro na agricultura, e que podem deixar os fungos “de lado”, como nos contou a pesquisadora Dra. Andressa Bini, do Centro de Cana do IAC. 

    O exemplo é o fungo Colletotrichum falcatum, causador da podridão vermelha em cana-de-açúcar. Acreditava-se que o fungo infectaria apenas plantas a partir de ferimentos causados por uma praga, a lagarta de Diatraea saccharalis. Seguindo este raciocínio, a prioridade no passado era controlar apenas a praga, mas não o fungo em si, que seria uma consequência oportunista. 

    No entanto, a realidade é que os fungos conseguem infectar as plantas mesmo na ausência da praga chamada de “broca”, tornando a detecção do fungo uma prioridade, já que sem um controle efetivo da doença, podem ocorrer perdas de até 35% da produção e hoje o patógeno já ocorre pelo menos no Triângulo Mineiro, no Mato Grosso do Sul e em algumas regiões de São Paulo.

    Os eucaliptos e o fungo Austropuccinia psidii

    Outro exemplo de pesquisa aplicada e com uso de qPCR também vem da ESALQ! O eucalipto é uma planta muito importante para a produção de madeira e papel em nosso país. Uma doença fúngica causada por Austropuccinia psidii, a ferrugem, é conhecida como problemática para esta cultura. 

    Um grande problema da detecção desta doença é que o fungo é normalmente percebido apenas após o aparecimento de sintomas nas plântulas, quando o problema já é muito grande. Os métodos usados geralmente são pouco eficientes ou pouco sensíveis. Apostando na qPCR, mais sensível, mais rápida e menos laboriosa, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), em 2018, propuseram o uso de qPCR para a detecção prematura da doença em eucalipto. Outra aplicação interessante desta análise, sugerida pelos pesquisadores, é a identificação rápida de plântulas suscetíveis ou resistentes à doença em programas de melhoramento.

    Como pudemos ver, geralmente as limitações ainda estão no alto custo dessa tecnologia recente, porém as aplicações são as mais diversas, e ainda há muito para se desenvolver na área. Ainda estamos no começo de uma nova era, e a tendência é que a técnica seja aprimorada e torne-se mais barata e aplicável com o passar dos anos.

    Fontes consultadas

    • Dra. Laís Moreira Granato (Instituto Agronômico de Campinas – IAC)
    • Dra. Andressa Peres Bini (Centro de Cana – IAC)
    • Dra. Daniele Sartori (Universidade Estadual de Londrina, UEL)
    • Artigo científico intitulado “A Real Time PCR strategy for the detection and quantification of Candida albicans in human blood.”, publicado na revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo 62 em 2020, de autoria de Busser, F. e colaboradores. 
    • Artigo científico intitulado “A New Age in Molecular Diagnostics for Invasive Fungal Disease: Are We Ready?”, publicado na revista Frontiers in Microbiology em 2020, de autoria de Kidd, S. e colaboradores.
    • Artigo científico intitulado “Development of a quantitative real-time PCR assay using SYBR Green for early detection and quantification of Austropuccinia psidii in Eucalyptus grandis.” publicado na revista European Journal of Plant Pathology 150.3 em 2018, de autoria de Bini, A. e colaboradores.
    • Artigo científico intitulado “Real-time PCR-based method for rapid detection of Aspergillus niger and Aspergillus welwitschiae isolated from coffee.” publicado na revista Journal of microbiological methods 148 em 2018, de autoria de Von Hertwig, A. e colaboradores.
    • Matéria no site da empresa Kasvi intitulada “História e evolução da técnica de PCR (Polymerase Chain Reaction ou Reação em Cadeia da Polimerase)” publicada em 18/06/2015. (Website).
    • Matéria no site da empresa Kasvi intitulada “Qual a diferença entre PCR e qPCR?” publicada em 30/04/2015. (Website).
    • Matéria no Blog Biomedicina Padrão intitulada “A evolução da PCR” publicada em 05/12/2013. (Website).
    • Matéria no Blog Biomedicina Padrão intitulada “Reação em Cadeia da Polimerase – PCR” publicada em 14/06/2020. (Website)
    • Site da Embrapa (Website)

    Sobre os autores

    Rafael Sanchez Luperini é aluno de pós-graduação (mestrado) pelo programa de Bioquímica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) na Universidade de São Paulo (USP), atualmente orientado pelo Prof. Dr. Gustavo H. Goldman (FCFRP, USP Ribeirão Preto). Trabalha com espécies do gênero Aspergillus, buscando desvendar as diferenças entre espécies de fungos.

    CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/7815439327487936
    E-mail: rafaluperini@gmail.com
    Instagram: @rafasluperini
    Facebook: https://www.facebook.com/rafaluperini/

    Renato Augusto Corrêa dos Santos é doutorando pelo programa de Genética e Biologia Molecular da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), fazendo análises genômicas de fungos patogênicos do gênero Aspergillus, sob orientação do Prof. Dr. Gustavo H. Goldman (FCFRP, USP Ribeirão Preto) e com financiado da FAPESP. Seu projeto envolve uma colaboração do com o LGE (UNICAMP) e o Rokas Lab (Vanderbilt University, EUA).

    CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3339727232509001
    E-mail: renatoacsantos@gmail.com
    Instagram: @renato.correa.182
    Facebook: https://www.facebook.com/renato.correa.182

    Este texto foi escrito com originalmente no Blog Descascando a Ciência

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Diversidade viral e surgimento de novas variantes do SARS-CoV-2


    O que isso tem a ver com as “escapadinhas” da quarentena

    Texto escrito por Mariene Amorim

    Vírus. Nunca houve tanto interesse sobre o significado dessa palavra antes. O conceito de vírus é simples, em comparação com a complexidade do seu significado na natureza. Os vírus são partículas muito pequenas, formadas apenas por proteínas e ácido nucleico (material genético que pode ser DNA ou RNA), e alguns possuem ainda um envelope lipoproteico recobrindo a partícula.

    Todos os organismos vivos são compostos por células, às vezes por uma única célula, como as bactérias, e às vezes por milhares de células, como nos animais e nas plantas. Os vírus, por sua vez, não possuem células e dependem totalmente de componentes das nossas células para se replicarem.

    Sendo assim, enquanto as células possuem uma maquinaria específica responsável por corrigir eventuais mutações à medida que replicam seu DNA, esse processo não acontece nos vírus. Portanto, quanto mais os vírus se replicam e se espalham pela população, mais eles vão sofrendo alterações em seu material genético as quais não são corrigidas.

    As mutações

    Essas alterações são mudanças na sequência de nucleotídeos, que são as moléculas que compõem o DNA e o RNA, e são conhecidas como mutações. No entanto, o acúmulo de mutações, com o tempo, permite o surgimento de partículas virais um pouco diferentes umas das outras, que seriam as variantes virais. E vale ressaltar que essas mutações acontecem por acaso, e não propositalmente.

    Dessa forma, esse é um processo natural na história evolutiva dos vírus, e é esperado que aconteça. Todavia, alguns vírus sofrem mutações com mais frequência do que outros, devido a uma diversidade de fatores.  

    Os vírus de RNA costumam sofrer muitas alterações em seu material genético à medida que se replicam e se espalham. O SARS-CoV-2 é um vírus que possui como material genético uma fita simples de RNA, e acumula cerca de 1 a 2 mutações a cada mês. A pandemia do novo coronavírus começou em dezembro de 2019, e diversas variantes já foram reportadas por todo o globo. Entretanto, várias destas mutações não alteram significativamente a ação do vírus.

    As mutações e as infecções

    Já sabemos também da existência de algumas mutações específicas que acabam favorecendo a infecção de alguma forma. Por exemplo, uma alteração que proporciona uma melhor ligação do vírus com o receptor celular para a entrada do vírus na célula que ele precisa infectar, que chamamos de célula hospedeira.

    Mas, o que isto quer dizer? Apenas para relembrar o que já vimos em textos anteriores. O vírus entra na célula a partir de um receptor – uma proteína que se localiza na membrana de nossas células. No caso do SARS-CoV-2, esta molécula presente nas nossas células chama-se ACE2. Já a proteína do vírus que se encaixa na ACE2 é a “famosa” Spike. A Spike funciona como uma chave, que consegue acessar a fechadura (a proteína ACE2) para entrar nas células.

    Recentemente, duas variantes do SARS-CoV-2 têm chamado muito a atenção das autoridades e da população mundial, devido ao acúmulo de várias mutações em seu RNA, que aparentemente favorece sua dispersão, ou seja, essas variantes se espalham mais rapidamente do que as outras variantes locais. São elas a B 1.1.7 reportada pela primeira vez no Reino Unido, e a 501.V2, ou B 1.351, reportada pela primeira vez na África do Sul, que já são encontradas em outros países. 

    A análise filogenética da variante B 1.1.7 mostra uma alta taxa de evolução molecular.

    O que isto quer dizer?

    Bom, “análise filogenética” é como se fosse uma análise dos “antepassados”, na biologia. Só que neste caso, analisamos a evolução dos seres e populações a partir de sua genética. Neste tipo de análise, conseguimos estabelecer o acúmulo de mutações e como elas vão dando origem a seres ligeiramente diferentes – até tornarem-se (por exemplo) outro ser completamente diferente. 

    Claro que vírus não são considerados seres vivos! Todavia, eles têm RNA ou DNA e, assim, é possível traçar também uma linha que explica e nos ajuda a analisar as mutações e as variações.

    Dito isto, vamos à variante B 1.1.7.

    Essa variante possui um acúmulo significativo de mutações (no total de 17 mutações!). Aparentemente, a grande questão desta variante é que as mutações podem estar proporcionando maior transmissibilidade. Dito de maneira mais simples: esta variante se espalha mais e de maneira mais eficiente do que a “versão anterior” do coronavírus. 

    É importante ressaltar que até o momento, esse conjunto de mutações apresentadas pela B 1.1.7 não está diretamente relacionado ao desenvolvimento de casos mais graves da doença. Todavia, é necessário que seja feita uma vigilância genômico- epidemiológica para acompanhar os casos, além de investigações laboratoriais para verificar antigenicidade e mecanismos de patogênese.

    Calma! Como assim?

    É fundamental, neste momento, acompanharmos como esta nova variante está se espalhando, fazendo sequenciamento genético destes vírus, para avaliar a situação epidemiológica da doença – que diz respeito à velocidade que se espalha, em que situações, como se diferencia da “variante de coronavírus original”. Isto é: precisamos monitorar esta variante e analisar seu impacto na população.

    As investigações laboratoriais dizem respeito ao sequenciamento, mas também a como esta variante reage no nosso organismo e como nosso organismo responde a esta nova variante (se o agravamento da doença passa a existir, se conseguimos nos defender desta variante como da anterior etc.).

    Reino Unido… África do Sul… São países distantes, de outros continentes… Isso nunca vai acontecer no Brasil, certo? Errado!

    Dois casos da variante B 1.1.7 já foram reportados no Brasil, em dezembro do ano passado, aproximadamente na mesma época em que essa linhagem foi reportada no Reino Unido. Encontrar essas variantes não é uma tarefa fácil, e demanda árduas horas de trabalho dos pesquisadores, investimento, e parcerias com unidades de saúde. Porém, apenas assim é possível identificá-las.

    Foi no intuito de investigar as variantes circulantes em Manaus, atualmente uma das cidades que mais tem sofrido com o avanço da pandemia em nosso país, que pesquisadores identificaram uma nova variante, ou linhagem, que recebeu o nome de P1, descendente da B 1.1.28.

    Foi visto que a P1, encontrada em Manaus, tem mutações em comum com a B 1.1.7 e com a B.1.351, em regiões do material genético que codifica a proteína Spike que comentamos anteriormente. Ou seja, essa variante também pode ter maior transmissibilidade. Estaria ela associada ao recente aumento de casos em Manaus e às reinfecções?

    Mas, vamos guardar essa pergunta para os próximos capítulos!

    Os vírus são partículas muito pequenas, de constituição simples, mas que podem ser complexos na sua maneira de existir no mundo, e gerar problemas globais. O número de casos de COVID-19, e a pandemia na qual nos encontramos é, de fato, algo que ficará marcado na história.

    A maneira como esse vírus se espalha tão facilmente, e o crescente número de casos, resulta no aumento da diversidade do vírus, e podemos a qualquer momento nos deparar com um vírus mais facilmente transmissível, mais perigoso, mais mortal. Portanto, sim, variantes virais importantes também podem surgir no Brasil, bem debaixo (ou dentro) do nosso nariz. Bem como, a transmissão está diretamente relacionada a maneira como nos comportamos diante dessa grande tragédia, e da nossa responsabilidade social.

    Por fim

    É sempre importante retomar a necessidade dos cuidados básicos de higiene e distanciamento social. Neste momento, claro que as novas variantes nos assustam. Mas não é “culpa” delas tudo o que estamos vivendo agora. Assim, é fundamental seguirmos cobrando políticas públicas que possibilitem que o máximo de pessoas fiquem em casa com segurança.

    As novas variantes também são decorrentes da enorme circulação dos vírus que temos. Em suma, é necessário que a gente diminua a circulação dos vírus – e todas as suas variantes – da maneira mais urgente e imediata possível.

    #maisresponsabilidadesocial #menoscoronavirus

    Mais textos sobre coronavírus neste blog:

    Como é que um vírus que ataca o sistema respiratório, causa danos no cérebro?

    Para saber mais

    1. Rambaut, Andrew et al (2020) Preliminary genomic characterisation of an emergent SARS-CoV-2 lineage in the UK defined by a novel set of spike mutations. Virological org Dezembro de 2020

    2. Faria, Nuno R (2021) Genomic characterisation of an emergent SARS-CoV-2 lineage in Manaus: preliminary findings. Virological org Janeiro de 2021.

    3. Candido, Darlan S et al (2020) Evolution and epidemic spread of SARS-CoV-2 in Brazil Science, Vol369 (6508), p. 1255-1260, 2020

    4. Voloch, CM et al (2020) Genomic characterization of a novel SARS-CoV-2 lineage from Rio de Janeiro, Brazil medRxiv.

    5. Tegally, H et al (2020) Emergence and rapid spread of a new severe acute respiratory syndrome-related coronavirus 2 (SARS-CoV-2) lineage with multiple spike mutations in South Africa, medRxiv.

    6. Duchene, Sebastian, Leo Featherstone, Melina Haritopoulou-Sinanidou, Andrew Rambaut, Philippe Lemey, and Guy Baele (2020) “Temporal Signal and the Phylodynamic Threshold of SARS-CoV-2” Virus Evolution 6 (2): veaa061.

    A autora

    Mariene Amorim Natural de Salvador, Bahia, e biomédica formada pela Universidade Tiradentes – Aracaju, Sergipe. Mestre em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, na área de Virologia. Trabalha com vírus emergentes desde 2015. Atualmente é doutoranda em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, e participa de um estudo genômico-epidemiológico e de multi ômicas do novo coronavírus (SARS-CoV-2), a fim de acompanhar a evolução molecular do vírus, entender o desenvolvimento da COVID-19 e acompanhar o avanço da pandemia na cidade de Campinas e região metropolitana. Mariene também é membro da Força-Tarefa contra a COVID-19 da Unicamp.

    Nossos sites institucionais:

    Força Tarefa da Unicamp

    Unicamp – Coronavírus

    Este texto foi escrito originalmente no blog EMRC

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • O código genético

    Atualmente, temos ouvido/lido muito sobre os termos código genético do vírus, DNA e RNA mensageiro. Mas o que esses termos significam?

    Nós não estamos sozinhos na Terra. Ela é a casa de mais de 8.7 milhões de espécies, isso contando apenas os eucariontes – daqui a pouco conto o que eles/nós temos de especial – e não inclui as bactérias e vírus. Já parou para pensar em como essas espécies garantem que a sua prole tenha as mesmas características da espécie?  

    A ideia de como as informações sobre como os organismos fazem cópias de si mesmos, assim como a instrução para a construção de estruturas e funcionamento de um novo organismo, foi um mistério por um longo tempo. As primeiras peças do quebra-cabeça para enterdemos como as informações estão organizadas nos organismos começou a ser encontrada há muitos anos atrás. 

    Para se ter uma ideia, a célula, a estrutura mínima que compõe os seres vivos, foi descoberta por volta de 1660 graças a invenção do microscópio. Quando Robert Hooke olhou para as fatias finas de cortiça através do microscópio, viu que elas eram compostas por pequenas estruturas, que lembravam buraquinhos de um favo de mel a que ele deu o nome de célula (pequena cela). 

    Esse foi só o início. Com o desenvolvimento da ciência e o aparecimento de novos  instrumentos e técnicas continuamos a descobrir cada vez mais sobre essa pequena unidade que nos compõe.

    O núcleo de tudo isso

    A unidade morfológica em que se baseia a vida, a célula, pode ser classificada em dois grupos principais, as eucarióticas, que possuem núcleo envolto por uma membrana e que contém o material genético – dos quais fazemos parte –  e os procariotos que não possuem núcleo e o material genético fica disperso no citoplasma, como é o caso das bactérias. 

    Apesar da diferença quanto a presença de núcleo, tanto as células eucarióticas quanto as procarióticas possuem membrana plasmática que separa o interior da célula do seu ambiente. Ela tem um papel extremamente importante e acaba selecionando o que entra no interior da célula por meio de diferentes processos. 

    Representação simplificada de uma célula eucariótica.  A imagem foi criada com  BioRender.com.

    Além disso, as células são compostas pelo citosol, ou seja, o interior da célula. Ele é repleto de espécies químicas e organelas, o citoplamas. As organelas são estruturas celulares com funções específicas e separadas do citoplasma por meio de uma membrana. 

    A maior organela da célula  eucariótica é o núcleo. Ele abriga o DNA (ácido desoxirribonucleico), que contém a informação genética para todas as funções  da célula/organismo. 

    Mas essa informação não está escrita de maneira como lemos esse texto, seria muito texto para tantos comandos que nosso organismo executa. Ao invés disso, a informação está codificada, ou escrita por meio de códigos moleculares. Como uma sequência de blocos menores, as bases nitrogenadas constituem a molécula de DNA. 

    O DNA 

    O DNA é composto de quatro tipos diferentes de bases nitrogenadas, representadas pelas letras A,T, C, G (de adenina, timina, citosina e guanina). 

    As bases nitrogenadas estão em sequência na molécula de DNA, cuja estrutura é em dupla hélice, em que as duas fitas compõem o DNA que interagem e dão forma à molécula. A interação entre as fitas do DNA ocorre graças a complementaridade entre as bases nitrogenadas, em que A (adenina) se liga com T (timina) e a C (citosina) com a G (guanina).

    A complementaridade entre as bases nitrogenadas no DNA. A imagem foi criada com  BioRender.com.

    Essa complementaridade entre as fitas é importante, pois torna possível a replicação (duplicação) da molécula de DNA. Quando ocorre a duplicação do DNA, as duas fitas se separam e a partir do molde são formadas as fitas-filhas complementares.

    Em células eucarióticas, como as dos seres humanos, tanto a replicação quanto a transcrição do DNA acontecem no núcleo. A imagem foi criada com  BioRender.com.

    A descoberta da estrutura em hélice do DNA

    A informação chave para a estrutura do DNA foi obtida por Rosalind Franklin que conseguiu uma fotografia do DNA por uma técnica chamada de difração de raio X. A partir desse achado de Rosalind, dois pesquisadores, Watson e Crick, determinaram a estrutura do DNA – nunca mencionaram a pesquisadora – e anos mais tarde foram laureados com o prêmio Nobel.

    Para saber mais sobre Rosalind Franklin leia o texto Celebrando Rosalind Franklin – a mulher que ajudou a desvendar a estrutura do DNA no Ciência pelos Olhos dela do Blogs Unicamp. 

    O sistema de tradução da informação do DNA em proteínas é regulado por uma série de interações e reações químicas. Além disso, a informação necessária não é entregue de forma direta para a preparação de proteínas pelos ribossomos, uma organela presente no citoplasma das células. 

    DNA como molde para o ácido ribonucleico, RNA

    Além de se replicar no procesos de duplicação, o DNA também serve de molde para a preparação de uma outra molécula importante na síntese de proteínas, o RNA mensageiro, mRNA, em um processo chamado de transcrição. A partir dessa última molécula é que ocorre a tradução com a síntese de proteínas. 

    Então, o DNA tem a informação transmitida ao mRNA. A partir do mRNA é que há a tradução – daquela informação codificada – em proteínas. Essa tradução ocorre fora do núcleo em uma outra organela da célula, no ribossomo. 

    Não é sopa de letrinha

    A sequência desses bloquinhos de base nitrogenada no DNA não é aleatória. A combinação de cada três bloquinhos é traduzida pela célula em um aminoácido – a menor parte da estrutura de uma proteína. O conjunto de aminoácidos ligados é que dá origem a uma proteínas. Quantidade e sequências diferentes de aminoácidos estão associados a proteínas diferentes. E é nelas que está a beleza da vida. Entre outras coisas, as proteínas fazem parte de estruturas das células, transportam o oxigênio necessário para a nossa respiração, conseguem deixar as reações químicas mais rápidas nos organismos. Enfim são fundamentais para a manutenção e funcionamento dos organismos.

    Combinando as sequências

    O interessante sobre o código genético é que a sequência das bases nitrogenadas presentes em um códon (sequência de três bases nitrogenadas) específica corresponde a um aminoácido específico e isso é praticamente universal entre todas as formas de vida na Terra. 

    Um pouco de matemática

    Podemos inferir a quantidade de combinações possíveis de bases nitrogenadas para a formação de códons por meio de uma fórmula matemática chamada de Arranjo com Repetição:

    A(n, r)  = nr, em que

    n é o número de elementos do conjunto, no caso são quatro (A, T, C, G)

    r é a quantidade de elementos por agrupamento, no códon são 3. 

    Dessa forma, 

    A  = 43

    A = 64

    Existem 4 pares de base nitrogenadas diferentes (A, T, C e G). A combinação entre elas em uma das três posições em um códon nos dá a possibilidade de 64 códons diferentes. Desses 64 códons, 61 são traduzidos em aminoácidos e 3 estão associados a uma espécie de sinalização para a parada de tradução da sequência do DNA, os códons de Parada (Stop codons). 

    Mas alguns códons diferentes sinalizam para a produção de um mesmo aminoácido. Os 61 códons produzem apenas 20 aminoácidos diferentes. Por esse motivo, o código genético é considerado redundante ou degenerado,

    A sequência de aminoácidos que compõem uma determinada proteína é codificada por um gene específico. Dessa forma, o DNA contém o genoma da célula que é a totalidade da informação genética que além de dar origem a milhares de proteínas, também regula quando e onde elas serão feitas.

    A replicação refere-se ao processo de duplicação do DNA e em células eucarióticas acontece no núcleo. A transcrição, o processo de produção de RNA a partir do DNA também acontece no núcleo. A tradução é um processo de produção de proteínas a partir do mRNA (RNA mensageiro). Ela acontece nos ribossomos, organelas presentes no citosol da célula. As células não conseguem produzir DNA a partir do RNA, mas alguns vírus possuem em sua maquinária uma enzima, um tipo de proteína, capaz de fazer esse processo, a transcriptase reversa.

    Material genético materno

    Na reprodução sexuada, a composição do DNA presente no núcleo das células eucarióticas é uma contribuição de 50% de cada um dos sexos. 

    Além disso, a célula eucariótica abriga outra organela com material genético próprio, a mitocôndria. Como regra, o material genético presente na mitocôndria é de origem apenas materna. Se compararmos com o DNA do núcleo, a quantidade de informação genética presente na mitocondria é bem menor, mas ambas informações são muito importantes. 

    Mas e os vírus?

    Os vírus não têm a maquinaria para fazer cópias de si mesmos, nem mesmo para a transcrição e tradução em proteínas, mas contém a informação genética para a sua produção, o mesmo acontece com o SARS-CoV-2, o vírus que causa a COVID-19. 

    Para saber um pouco mais sobre a necessidade dos vírus por um hospedeiro leia Valentões dentro da célula, sensíveis fora dela: os vírus

    Dica

    Em comemoração aos 20 anos de existência, o Instituto Suiço de Bioinformática (Swiss Institute of Bioinformatics) lançou o jogo Gene Jumper. O jogo é gratuito e está disponível em 3 idiomas, inglês, francês e alemão. Apesar de não ter disponível a versão em português, é bem divertido jogar e se tem uma idéia do processo de tradução do DNA. 

    Para saber mais

    Alberts, B.; Johnson, A. Lewis, J.; Morgan, D.; Raff, M.; Roberts, K. Walter, P.; Molecular Biology of the Cell. Sixth Edition. 2015

    Mora C, Tittensor DP, Adl S, Simpson AGB, Worm B (2011) How Many Species Are There on Earth and in the Ocean? PLoS Biol 9(8): e1001127. doi:10.1371/journal.pbio.1001127 

    Voet, D. e Voet, JG. Bioquímica. 4 Edição. Editora Artmed. 2011. 

    Este texto foi escrito originalmente no blog Ciência de Fato

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Por dentro da Força Tarefa da Unicamp, Com Dr. Marcelo Mori

    O que é e como funciona a pesquisa por dentro da Força Tarefa da Unicamp tem a participação do Dr. Marcelo Mori, coordenador da Força Tarefa.

    Nosso convidado vai falar para nós sobre como é o trabalho coletivo, em várias áreas de conhecimento, contra a Covid-19!

    Entrevistado de hoje:

    Dr.Marcelo Mori, professor do Departamento de Bioquímica e Biologia Tecidual do Instituto de Biologia da Unicamp, Coordenador da Força Tarefa da Unicamp

    Entrevistadoras

    Drª. Ana de Medeiros Arnt – Coordenadora do Especial Covid-19 do Blogs de Ciência da Unicamp e professora do Instituto de Biologia da Unicamp

    Drª. Graciele Oliveira – Comitê técnico e científico do Especial Covid-19 do Blogs de Ciência da Unicamp

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