Categoria: Covid-19

  • Vacina de Pólio e a segurança dos protocolos de vacinação atuais

    Texto escrito por Flávia Ferrari

    O primeiro texto sobre vacinas, da equipe do Todos Pelas Vacinas, falou sobre Reações Adversas, com a Mellanie Fontes-Dutra! Hoje nós vamos falar sobre uma vacina especial, que é o coração do Programa Nacional de Imunização e a grande vedete dos fãs de vacina: a vacina de pólio (poliomielite ou a gotinha!).

    O que é pólio?

    Temos relatos de poliomielite (popularmente conhecida como paralisia infantil) desde a antiguidade. Não é, portanto, uma doença recente em nossa história, como humanidade. Porém, o vírus só foi descoberto no começo do século XX. A trajetória foi, portanto, longa até entendermos o que causa esta doença!

    A principal forma de transmissão é por contato com as fezes. Isto é, fecal-oral. Mas também pode ser transmitida de forma oral-oral. A paralisia infantil é assintomática em 95% dos casos. Todavia, em 1% dos casos podem se desenvolver sintomas graves, menos de 0,05% morrem.

    Se olharmos estes números, de alguma forma (curiosa até) eles colocam em xeque as discussões que temos hoje sobre a COVID. Isto porque muitos afirmam sobre os supostos “baixo riscos” que crianças têm ao contraírem a doença a COVID-19. Entretanto, nós sabemos que devemos tentar preservar o máximo de vidas possível, especialmente quando se trata de doenças e mortes evitáveis! Aliás, isso ainda intensifica-se ao refletirmos nas sequelas para toda uma vida e no impacto disso para a saúde pública. 

    Jonas Salk e a poliomielite

    Mas o assunto hoje é a pólio e a vacina! Então, quero contar um pouco sobre a história da pesquisa de Jonas Salk. Salk trabalhava desde 1941 com o vírus Influenza (gripe) e em 1947 começou seus estudos sobre a poliomielite. Em 1949, outros pesquisadores desenvolveram um método in vitro de propagação do poliovírus. Salk usou a técnica para produzir grandes quantidades de vírus e iniciar testes de inativação do vírus. Salk acreditava que a vacina poderia ser feita de vírus morto, produzindo assim anticorpos através da presença no sangue. 

    Os primeiros testes de segurança foram feitos em cerca de 5000 indivíduos. Salk chegou até mesmo a inocular a vacina experimental nele mesmo, na esposa e nos seus três filhos. 

    Após esses testes de segurança em pequena escala, realizou-se o maior estudo clínico já feito, recrutando 1,8 milhões de crianças só nos Estados Unidos, para realizar os testes de fase 3. 

    No caso da COVID, por se tratar de um vírus com transmissão muito mais comum, precisamos de grupos menores para tanto. Os testes de fase 3 não passaram de dezenas de milhares. 

    A aplicação da vacina de pólio

    Voltando ao teste de Salk, já em 1955, a vacina começou a ser aplicada em massa. Com um controle muito menos rígido que os atuais houve uma grande falha em um laboratório que não utilizou o procedimento correto para inativar o vírus. Com isso, de 380 mil doses lançadas pelo laboratório, 164 crianças ficaram paralisadas (0,043%) e 10 morreram (0,003%), uma porcentagem muito baixa, em relação ao total de vacinas aplicadas. No entanto, mesmo com uma porcentagem baixa assim, este foi considerado o maior desastre biológico da história dos Estados Unidos da América. 

    Aliás, tão desastroso que culminou na mudança de todo o padrão de checagem de segurança das vacinas, até os dias atuais no mundo inteiro. A cepa utilizada era a mais virulenta também, algo inimaginável nos dias atuais.

    Cabe ressaltar que após esse incidente, nenhum evento desse tipo ocorreu mais.  Devido às novas técnicas de segurança e ao controle de qualidade para as vacinas, que inclusive ajudaram a melhorar os procedimentos atuais.

    Hoje no Brasil, usamos a CoronaVac como vacina contra COVID-19 tendo a tecnologia de vírus inativado que possui mais de um método de inativação. Isto é, o utilizado pela vacina Salk e também métodos de radiação de alta frequência. Além disso, usamos atualmente métodos de controle muito mais efetivos.

    Como assim? Quer dizer que usam o mesmo método catastrófico do Salk? Não. Quer dizer que aprimoramos a tecnologia de inativação do vírus, construímos conhecimento sobre nossos erros

    Hoje, o método de vacinas de vírus inativado é considerado muito seguro.

    Em 1961, com a continuidade da vacinação e revisão dos protocolos, os casos reduziram 90% só nos Estados Unidos. No Brasil, a vacina começou a ser utilizada a partir de 1960.  Porém não temos dados seguros da redução, pois não havia notificação compulsória até 1968. 

    Na década de 80 surgiram os Dias Nacionais de Vacinação (e o Zé Gotinha – A gente tem um vídeo fofo disso). Em 1991 houve o último caso de pólio nas Américas! Um marco histórico de vitória de uma política pública de saúde tão importante!

    Em 1994 fomos certificados como área livre de circulação de pólio selvagem. Segundo projeções, se a queda continuar no mundo todo (hoje apenas Nigéria, Afeganistão e Paquistão e outros casos relatados em outros países), em 2024 poderemos ter erradicado o vírus no mundo, 70 anos após o desenvolvimento da vacina.

    Segundo a Organização Mundial da Saúde, erradicar a poliomielite significaria uma economia mundial de cerca de 40 bilhões de dólares, pelo menos. Este número torna-se ainda mais significativo quando levamos em conta que são países de baixa renda os afetados por esta doença. Mas mais importante do que isto, a OMS aponta que:

    Quando a pólio for erradicada, o mundo poderá celebrar a entrega de um grande bem público global que beneficiará todas as pessoas da mesma forma, não importando onde elas vivam (…) o sucesso significará que nenhuma criança voltará a sofrer os terríveis efeitos da paralisia provocados pela poliomielite ao longo da vida

    E o que isto tem a ver com a vacinação de COVID-19, o Todos Pelas Vacinas e nossa campanha de vacinação infantil?

    É importante termos noção de que a ciência não funciona em saltos com soluções inéditas. Sabemos que vivemos atualmente um momento difícil, que parece se arrastar por nossas vidas e esperamos diariamente notícias de que a pandemia acabou. Mas compreender estes processos científicos também torna-se parte da possibilidade de confiar mais ainda nos processos científicos. Isto é, compreender que a ciência funciona a partir de análises anteriores, técnicas já desenvolvidas, aprimoradas, para problemas contemporâneos e novos. A vacina para Covid, como não poderia deixar de ser, utilizou-se de plataformas, técnicas e conhecimentos prévios para ser desenvolvida com segurança para nós e para as crianças.

    Assim, reforçamos alguns pontos: Vacinas salvam vidas, mas não extinguem o vírus em um passe de mágica. A pesquisa em vacinas pode ser rápida, ainda mais se houver interesse público, financiamento e uso de plataformas já desenvolvidas. As vacinas não foram desenvolvidas rapidamente como passe de mágica, nós utilizamos saberes prévios, como são as outras usadas atualmente. Por exemplo, a vacina de RNA que já vinha sido desenvolvida para outros vírus.

    Além disso, a aplicação de vacinas em massa ocorrem após testes em grupos para verificar a segurança. Erros que aconteceram no passado balizaram métodos que asseguram formas muito mais confiáveis de produção. Ou seja: Aprendemos e evoluímos muito em segurança e qualidade para que erros do passado não aconteçam mais

    Em suma, as vacinas…

    As vacinas usadas para a COVID-19, tanto em adultos, quanto as vacinas pediátricas são seguras, seguiram protocolos rígidos, aprimorados em dezenas de anos. Assim, não precisamos ter receio em relação à vacinação atual e teremos um mundo mais sadio e com menos adoecimentos, quanto mais pessoas estiverem vacinadas!

    Para Saber Mais:

    Neto Tavares Fernando. O início do fim da poliomielite: 60 anos do desenvolvimento da vacina. Rev Pan-Amaz Saude [Internet]. 2015.

    Organização Panamericana de Saúde. Poliomielite

    Paul JR. A history of poliomyelitis. New Haven: Yale University Press; 1971.

    Polio Global Erradication Iniciative

    Fiocruz. Salk versus Sabin: dois personagens e suas estratégias contra a pólio

    BBC News. ‘Incidente Cutter’: a tragédia nos EUA dos anos 1950 que resultou em vacinas mais seguras

    A autora

    Flávia Ferrari continua a série maravilhosamente bem iniciada pela Mellanie Fontes-Dutra, que falou sobre reações adversas das vacinas, contando um pouco de histórias de pesquisas em vacina, em especial de uma que todos tomaram: A pólio (ou a gotinha). Flávia é bióloga e atua como professora de ciências e autora de materiais didáticos, integra os grupos Observatório da COVID-19 Brasil e Todos Pelas Vacinas.

    Este texto compõe uma série para a campanha Vou Vacinar, do Todos Pelas Vacinas, Flávia é autora convidada do Especial COVID-19. 

    Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19.

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Reações Adversas e Vacinas: o que são e onde habitam?

    Texto escrito por Mellanie Fontes-Dutra

    Há muita informação e desinformação rolando por aí acerca do que é uma Reação Adversa ou eventos adversos e vacinas. Hoje resolvemos abrir a Caixa de Pandora com as informações confusas e falar sobre isto!

    O nome que usamos, técnico, é Evento Adverso Pós-Vacinação (EAPV) e significa qualquer ocorrência médica indesejada após a vacinação. Todavia, não necessariamente a EAPV possui uma relação causal com o uso de uma vacina ou outro imunobiológico (imunoglobulinas e soros heterólogos). Isto quer dizer que eventos que acontecem em nosso corpo não necessariamente são consequência da vacina.

    Vamos entender melhor?

    Existem reações mais frequentes, como a dor no local da injeção, febre e dores no corpo. Esses eventos frequentes são chamados assim porque são experienciados por muitas pessoas, com certa frequência. Mas temos os eventos raros e muito raros, que vamos defini-los abaixo:

    • Eventos adversos raros podem ser registrados de uma vez a cada 1.000-10.000 doses aplicadas.
    • Eventos muito raros podem ser registrados menos de uma vez a cada 10.000 doses aplicadas. Portanto, a ocorrência deles é muito, muito rara, e muitas vezes de difícil relação com a vacina.

    Existem razões para EAPVs acontecerem, por isso analisa-se tudo!

    A principal delas é em decorrência da falha na aplicação da vacina. Por ser a principal causa, em investigações, este deve tornar-se primeiramente descartado – portanto o primeiro analisado. É considerado um evento evitável, por isso a instrução é importante.

    Outro motivo de termos EAPVs são falhas no controle de qualidade/produção e até mesmo práticas inadequadas para a imunização. Por isso a Anvisa (aqui no Brasil) faz um controle imenso e super detalhado desses processos ao avaliar um imunizante. Quem quiser entender melhor sobre isso, pode assistir a Live que fizemos pelo Todos Pelas Vacinas e a Rede Análise, com Gustavo Mendes, que é gerente geral de medicamentos e produtos vivos da Anvisa.

    Aliás, também é por isso que todo o processo, desde as fases de segurança até a de efetividade, é examinado pela comunidade científica internacional. Além disso, todo evento torna-se alvo de analises minuciosas por órgãos fiscalizadores de cada país. Sempre que necessário – seja por que motivo for! – interrompe-se a produção e analisa-se a causa.

    Como reportar um EAPV?

    Há duas formas principais aqui no Brasil:

    Uma vez notificado, investiga-se o evento para saber se a vacina teve relação com o evento. Após a notificação, há uma sequência na avaliação. Inclusive, há uma troca internacional diária entre as farmacovigilâncias dos países. Isto tudo para alertar sobre o eventual aparecimento de um evento adverso mais grave ou inesperado.

    Todos os eventos esperados são computados e não precisam de investigação (pois são esperados). Os eventos esperados, como o próprio nome já diz, são esperados. Isto quer dizer que são comuns e não apresentam gravidade. Febre é um exemplo deles.

    Mas aqueles eventos inesperados são separados para uma maior e detalhada investigação. Assim, é super importante ressaltar a seriedade com que são estudados e analisados eventos adversos pós-vacinação. Não é uma análise banal ou trivial. Tampouco é algo que passa batido por instituições internacionais. Todo e qualquer evento reportado inicia uma análise e toma-se muito a sério cada uma das análises!

    O que é feito para os dados e análises?

    As equipes responsáveis por analisar EAPVs vão atrás de prontuários médicos, histórico de saúde das pessoas, dos familiares, novos exames e outras informações. O objetivo é entender se houve relação entre a aplicação da vacina e o aparecimento desse evento adverso de saúde.

    Por isso é de suma importância que só se estabeleça a relação se for comprovada. E aqui ressaltamos isso várias vezes exatamente para deixar clara a necessidade de tomarmos muito cuidado com desinformações propositais que nos causam receio (ou como temos chamado hesitação vacinal) ou qualquer veiculação de eventos, sem que tenham sido cumpridos os protocolos internacionais de análise. Infelizmente, vemos muitas situações até mesmo trágicas acontecerem. Mas podemos não ter evidências de que as vacinas foram as desencadeadoras. Além disso, podemos causar receio e hesitação acerca da vacinação, sem que faça sentido a relação entre eventos adversos e a vacina em si. 

    Com isso, sempre alertamos: antes de espalhar algum material que tu recebas, veja se existe algum dado científico atrelado a isto!

    Existe um fenômeno chamado associação temporal, que é quando dois eventos acontecem em tempos muito próximos. Mas podem não ter relação de causa e consequência estabelecida entre eles

    Querendo saber mais sobre isso, já escrevi um fio no Twitter sobre o tema! Olha aqui

    Caso identifiquem-se reações inesperadas graves, que se mostrem um risco à população em geral, a Anvisa pode interromper a autorização da vacina. Para isso, também se leva em conta se o eventual risco de um EAPV pode superar o benefício da vacina.

    E aqui já deixamos bem claro:

    NÃO HOUVE ISSO EM NENHUM MOMENTO NO BRASIL

    Até o dia 06 de Dezembro de 2021, nós tivemos 131.685 EAPVs. Neste mesmo período, tivemos 194 milhões de aplicações da vacina. Isto é, 0,07% das aplicações tiveram alguma notificação. Vamos lembrar que eventos raros acontecem uma vez entre 1.000 e 10.000 aplicações. Já Eventos muito raros acontecem uma vez entre 10.000 aplicações. Isto considerando um evento específico (e não qualquer evento aleatório).

    Estes dados indicam que tivemos 0,7 eventos a cada 1.000 aplicações.

    Além disso, e mais importante, não significa que a vacina é a causa. Significa que observamos os eventos observados depois da aplicação. Além disso, este dado é público e pode ser visto no Boletim Epidemiológico publicado pelo Ministério da Saúde.

    Contudo, parece-nos fundamental apontar ainda que a grande maioria (92%) dos eventos adversos são reações sem gravidade. Por exemplo: dores de cabeça, dores no local de aplicação, febre e tosse.

    Calma, ainda tem mais sobre EAPVs

    No Brasil tivemos 9.896 reações consideradas graves. Isto significa cerca de 5 eventos a cada 100 mil doses aplicadas. Dessa forma, é algo menor que 0,005%. E tudo isto, destrinchando apenas os eventos em si, sem analisar especificamente se a reação grave teve como causa a vacina! Em suma, ao fim das análises, na verdade, a maioria das reações nada tem a ver com a vacina (ver o link do Boletim Epidemiológico).

    Ainda não está convencido? 

    Existem mais dados a respeito da vacina, os EAPVs e o coronavírus. Todos eles têm apontado que os riscos da infecção viral mostram-se MUITO mais elevados do que os riscos causados pela vacina. Por exemplo, o risco de alguém que tenha sido internado por COVID-19 desenvolver trombose é 41.000x maior que o da vacina.

    Se estiver difícil de entender estes números, podemos explicar com fatores do dia-a-dia. Assim, é muitíssimo mais fácil ter trombose por tomar anticoncepcional (0,05%) ou fumar (0,18%) do que por tomar a vacina contra a COVID-19 (0,0001% – Janssen a 0,0004% – AstraZeneca). Colocando assim, fica claro que quaisquer riscos de EAPVs mais sérios não são nem próximos de serem superiores aos riscos que corremos no nosso cotidiano, e principalmente pensando na infecção pelo coronavírus (COVID-19).

    Segundo o boletim do Ministério da Saúde, o risco de pegar a COVID-19 e morrer é 56,6 vezes maior que o de ter algum efeito adverso após tomar a vacina (seja leve ou grave). Se olharmos estes números, parece bem estranho ter qualquer hesitação vacinal. Mais ainda causar algum debate enfatizando o cuidado tão exacerbado sobre tomar vacina – incentivando que não se tome a vacina como têm sido feito em nosso país!

    Mas e as crianças? E a Miocardite???

    Ah, sim. O tema do momento: e a miocardite em crianças? O risco de uma criança de 5-11 anos ter miocardite ao pegar COVID-19 é 40 vezes maior do que o risco de essa criança ter miocardite ao ser vacinada. Em suma: os riscos são muito maiores para quem não toma a vacina. 

    Portanto, tome sua vacina! Aliás, se estiver sentindo algum efeito, notifique nos links citados. Mas, ressaltando ainda, se tiver dúvidas, não deixe de enviar para nós! Tanto eu, Mellanie Fontes-Dutra, quanto os parceiros Todos Pelas Vacinas, Rede Análise, Observatório COVID-19 e nós, do Blogs Unicamp); estamos sempre disponíveis para ajudar. Vacine-se e se (nos) proteja! 

    Saiba Mais

    Documentos Oficiais:

    Manual de Vigilância Epidemiológica de Eventos Adversos Pós-Vacinação

    Boletim Epidemiológico Nº 90 – Boletim COE Coronavírus

    Reportagens

    Mali, Thiago (2021) Poder Explica: reações adversas às vacinas contra a covid

    A autora

    Mellanie Fontes-Dutra é biomédica, doutora em neurociência e pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Divulgadora Científica na Rede Análise COVID-19. Autora convidada no Especial COVID-19 e parte do projeto Todos Pelas Vacinas.

    Este texto compõe uma série para a campanha Vou Vacinar, do Todos Pelas Vacinas, Mellanie é autora convidada do Especial COVID-19. 

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os produziram-se textos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, os textos passaram por revisão revisado por pares da mesma área técnica-científica na Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • COVID-19: faz sentido calcular um único Rt para o Brasil?

    Sempre que era noticiado no jornal que “O Imperial College de Londres recalculou a taxa R para o Brasil” eu me perguntava: mas isso faz sentido? E isso me incomodava porque parecia que cada canto do Brasil estava num momento diferente da pandemia. Moro em Belo Horizonte e, quando Manaus estava colapsando, por aqui estávamos em um momento mais tranquilo. Para mim não fazia sentido… Para responder a essa questão vamos analisar como ocorreu a disseminação da COVID-19 pelo nosso país e fazer uma reflexão sobre a taxa de transmissão do coronavírus no Brasil – o agora famoso R0 (ou seria Rt?). Vem com a gente pra entender isso aí!

    COMO A COVID-19 SE ESPALHOU PELO BRASIL?

    Marcia Castro é uma demógrafa brasileira, professora em Harvard, e publicou um artigo sobre a disseminação da COVID-19 no Brasil. Para a pesquisadora, ao falarmos em número total de casos e de mortes acabamos por esconder as grandes diferenças entre os estados

    Os gráficos abaixo, elaborados por pesquisadores da Fiocruz-MG, cobrem o período de abril a julho de 2020, conseguimos comparar a razão de transmissão (Rt) do vírus SARS-Cov-2 em diferentes cidades do Brasil.

    Vamos falar sobre essa a taxa daqui a pouco, mas aqui conseguimos observar como esse padrão é diferente entre cada um desses locais.
    Texto: número efetivo de reprodução (Re ou Rt) de acordo com a data de notificação, para 12 municípios brasileiros em 2020.
12 gráficos com o eixo vertical contendo valores de Rt (entre 0 e 3), e o eixo horizontal as datas entre 8 de abril e 17 de julho. Os gráficos representam as cidades de Belém, Curitiba, Manaus, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegra, Salvador, Brasília, Goiânia, Recife e São Paulo. O objetivo não são os valores em si, apenas a diversidade do comportamento do Rt.

    O que poderia explicar essas diferenças no padrão de espalhamento da COVID-19? Para Marcia Castro, a falta de uma ação coordenada pelo governo federal, somada a problemas de notificação e a ações locais descoordenadas (como o fechamento de cidades), podem ter contribuído para isso. O que a professora observou em seu trabalho é que, ao longo do tempo, houve um processo de interiorização da doença. Esse processo se deu tanto nos estados quanto no país como um todo – e, também, é o esperado em uma situação de epidemia.

    Explico: A pandemia começa em São Paulo, uma capital com grande movimentação de pessoas que vêm de fora do país, mas também acaba sendo um polo de dispersão para outros estados. Assim a pandemia que chega numa metrópole como SP, inicia seu movimento da capital para o interior do próprio estado, mas também para os demais estados brasileiros. Da capital, a COVID-19 se espalha para as regiões metropolitanas e vai cada vez chegando mais ao interior. Com isso, o que se observa é que, ao longo do tempo, o número de casos e mortes caem nas capitais à medida que sobem no interior do país.

    E é isso que o gráfico abaixo mostra pra gente.
    Texto: Percentual de casos e mortes por covid nas capitais dos estados e demais municípios por semanas epidemiológicas.
Gráfico com eixo vertical contendo percentual de casos ou mortes e o eixo horizontal contendo as semanas epidemiológicas (9 a 41) de 2020. Observa-se a linha de casos e mortes nas capitais saindo de 100% e caindo gradualmente até se estabilizar por volta de 25%. A linha de casos e mortes no interior segue oposta, saindo de 0% e se estabilizando por volta de 75%. As linhas se cruzam por volta da semana epidemiológica 19.

    Observe que a inversão ocorreu a partir da semana epidemiológica 19 (entre os 03-09/05/20) e que, devido ao processo de interiorização, as cidades do interior tiveram mais tempo para se preparar para a chegada da pandemia do que as capitais – assim como, por exemplo, o Brasil teve mais tempo do que países Europeus.

     Vale ressaltar ainda, que essa não é a única forma de dispersão do vírus, ele não chega uma única vez e se espalha. A entrada do vírus numa população pode ocorrer em vários momentos. No Amazonas, por exemplo, a variante Gama do novo coronavírus circulou por um bom tempo no interior do estado e foi constantemente reintroduzida em Manaus. A capital do AM, por sua vez, foi responsável pelo movimento contrário.  

    R0: COMO A GENTE MEDE O QUE ESTÁ ACONTECENDO COM A PANDEMIA? 

    Tendo entendido que a disseminação se deu de forma diferente entre cidades e estados, podemos falar no R0.

    número médio de pessoas que uma pessoa contaminada infecta é chamado de R0 (lemos R-zero) ou de razão básica de reprodução de um vírus. 

    De uma forma mais técnica, essa definição poderia ser “o número de casos que se espera que ocorra em média em uma população homogênea como resultado da infecção por um único indivíduo, quando a população é suscetível no início de uma epidemia, antes que a imunidade generalizada comece a se desenvolver e antes que qualquer tentativa de imunização tenha sido feita”. Um ponto central, importante de ser ressaltado aqui, é a necessidade de que haja contato entre as pessoas dessa população.

    Por exemplo, se uma pessoa contaminada transmite, em média, a infecção para outras 3 pessoas (e assim por diante), temos um R0 com valor de 3. 
    Texto: Em uma situação de R0=3, uma pessoa com o vírus contamina outras 3, que por sua vez transmitem, cada uma, para outras 3.
Esquema representando uma pessoa transmitindo para outras 3. E cada uma para novas 3. Num esquema 1 -> 3 -> 9.

Texto: Ebola, Gripe (2009). R0 = 1,7
Texto: Poliomielite, Difteria, Caxumba, Rubéola, Varíola. R0 = 7
Texto: Sarampo: R0=18; Coqueluxe: R0 = 18
Para cada um dos textos, um esquema mostrando uma pessoa transmitindo vírus para 2 ou 7 ou 18 pessoas.

    É importante conhecermos o R0 de diferentes infecções virais para estabelecermos as estratégias de combate à infecção. Na imagem acima, observamos os valores estimados de R0 para diferentes doenças causadas por vírus. Ah! Veja bem, quando falamos do R0, nos referimos ao potencial de disseminação do vírus; e isso não está diretamente ligado à letalidade ou à gravidade da doença causada! Estima-se que o SARS-CoV-2 tenha um R0 de aproximadamente 2,6. 

    E quais fatores influenciam nesse valor? 

    – O tamanho da população e o contato entre os indivíduos

    – Quantos indivíduos são susceptíveis à contaminação pelo vírus

    – Capacidade de infecção do microrganismo 

    – Tempo durante o qual um indivíduo permanece transmitindo a doença

    – Taxa de remoção da infecção (por cura ou morte de indivíduos infectados)

    É importante ressaltar que o valor calculado depende da acurácia dos dados e do modelo epidemiológico utilizados. Dados ruins ou modelos pouco acurados podem distorcer muito os resultados. Desde o início de dezembro (10/12/20), quando o Ministério da Saúde foi hackeado, estamos sofrendo com um apagão de dados que está influenciando análises e estimativas sobre a pandemia no Brasil. O Observatório COVID-19 BR, por exemplo, deixa avisado no site: “Devido ao apagão de dados do Ministério da Saúde, estamos impossibilitados de atualizar nossas estimativas. Esperamos que o Ministério da Saúde reestabeleça os sistemas de informações afetados e assim possa manter a divulgação e transparência de dados em Saúde no país.

    Devemos sempre nos lembrar que: modelos não são exatos, eles são estimativas que nos orientam e devemos ter cuidado para que eles não sejam grosseiramente errados.

    MAS E O TAL Rt? NÃO É A MESMA COISA? 

    O número zero em R0 significa que o valor é calculado considerando que há imunidade zero na população – o que foi o caso do SARS-Cov-2 no início da pandemia. Mas esse valor não é adequado, quando queremos analisar a taxa de disseminação do vírus ao longo do tempo. 

    Apesar de parecido, para esses casos utilizamos o Rt ou Re (número efetivo de reprodução; R0 no tempo; velocidade de contágio no tempo), que varia ao longo do tempo e depende dos valores do momento em que foi medido, sendo, também, impactado pelo aumento da imunidade após infecção ou vacinação, bem como pelo comportamento das pessoas (distanciamento social, uso de máscaras, por exemplo).

    Assim, a variação do Rt ao longo do tempo nos ajuda a tomar decisões sobre políticas públicas durante a pandemia em curso. Isso acontece porque se o Rt é maior do que 1 (Rt>1) isso indica que a pandemia está em expansão; e se o Rt é menor do que 1 (Rt<1), a pandemia está em um momento de regressão, ou seja, a quantidade de pessoas contaminadas está diminuindo, podendo levar ao controle da doença.

    COMPARANDO OS VALORES DO Rt DE MANAUS E BELO HORIZONTE 

    Tendo estabelecido as definições dos conceitos, procurei duas cidades que imaginei terem um perfil diferente de transmissão do SARS-Cov-2. Escolhi Belo Horizonte (MG) por ser onde moro e Manaus (AM) devido ao colapso que aconteceu na cidade no final de 2020/início de 2021; além do fato de as duas cidades ficarem muito distantes entre si, havendo um baixo fluxo entre os seus habitantes. Lembrando que o objetivo aqui não é analisar as causas da melhora ou piora de indicadores.Aqui vemos os gráficos com valores de Rt das duas cidades de março de 2020 a dezembro de 2021, destacando no quadro em amarelo o período entre novembro de 2020 e janeiro de 2021. Apesar de a escala do gráfico não ser a mesma e dificultar a comparação, conseguimos observar que as curvas mostram comportamentos diferentes da pandemia nas duas cidades.

    Texto: Número reprodutivo efetivo (Rt ou Re) para covid-19 nas cidades de Belo Horizonte e Manaus.
São dois gráficos cada um para uma das cidades englobam o período de março/2020 a dezembro/2021. Novamente o objetivo não são os valores, mas o perfil do gráfico. Em Manaus o gráfico começa num Rt maior do que dois, caindo para abaixo de 0, e então apresenta picos nos meses de agosto, setembro, dezembro/20 e outubro e novembro/21. Em Belo Horizonte, o gráfico inicia com Rt próximo a 1, caindo para apresentar 3 picos de Rt aproximadamente igual 1,2 (abril a junho/20; novembro-dezembro/20 e fevereiro/21)
    Vamos agora, colocar os gráficos sobrepostos (mas apenas o recorte do período em destaque). Observe que enquanto a cidade de Belo Horizonte (azul) apresenta uma queda quase contínua dos valores de Rt, em Manaus observamos uma curva que aumenta antes de diminuir.
    Texto: Número reprodutivo efetivo (Re ou Rt) para covid-19 nas cidades de Belo Horizonte (MG) e Manaus (AM), entre os dias 01 de novembro de 2020 e 31 de janeiro de 2021.
Gráfico único plotado com os valores de Rt das duas cidades. Observa-se que Belo Horizonte tem uma queda gradual do Rt de 1,2 a 0,83. Já em Manaus, os valores flutuam em torno de 1 no mês de novembro para, então, a partir de 29/11 aumentarem. O Rt sai de 0,98 e atinge 1,38 em 20/dez. O valor permanece próximo até o dia 10 de janeiro/21, quando, então, cai rapidamente atingindo 0,84 no final do mês.

    E ENFIM, FAZ SENTIDO CALCULAR UM Rt ÚNICO PARA O BRASIL?

    Conseguimos ver que em cidades diferentes a propagação da pandemia se dá de formas também diferentes. Com isso entendemos que quanto mais ampliamos o foco da análise, mais estamos agrupando cidades com comportamentos distintos nos valores de Rt. Assim, análises de cidades são mais precisas que análises que comparam estados; e quando consideramos um país grande como o Brasil vemos valores que não retratam os detalhes e as divergências.

    Quando comentei no Twitter sobre este tema, recebi o contato do Rafael Lopes – que faz doutorado em física, é pesquisador na área de dinâmica epidemiológica e, também, membro do Observatório COVID-19 BR.

    Lopes ressalta que “calcular valores de Rt para um país grande como o Brasil é errado por definição, uma vez que o Rt é uma razão entre os casos de hoje e os casos anteriores numa dada comunidade, supondo-se, assim, que todos os indivíduos da comunidade estão em contato uns com os outros. Pessoas em Manaus não estão em contato com pessoas de Porto Alegre, por exemplo. Logo, calcular um R único para o Brasil coloca essa suposição [pessoas de diferentes cidades em contato] como verdadeira, mas ela é claramente falsa”.

    Como vemos abaixo, o Rt da COVID-19 no Brasil vem sendo calculado ao longo de toda a pandemia pelo Imperial College de Londres. Mas por qual motivo isso vem sendo feito? 
    Texto: Variação da estimativa do número efetivo de reprodução (Re ou Rt) da covid-19 ao longo do tempo no Brasil. 
Novamente o objetivo não são os valores, mas o perfil do gráfico que cobre todo o período da pandemia, destacando-se o período de 01/11/20 a 31/01/21. São dois picos nos meses de fevereiro e março/20, com Rt próximo a 4. Em seguida há uma queda entre março e maio com Rt próximo a 1,5. Os valores permanecem próximos a 1 quase todo o período, com um pico quase atingindo 1,5 em novembro/21. No período em destaque observa-se uma estabilidade do valor em torno de 1,3 com uma leve queda por quase todo o período, não se assemelhando com os gráficos de Manaus, que tem uma queda anterior, nem com Belo Horizonte que apresenta uma queda contínua no período.

    Calcular o Rt agregado pode útil pois nos permite fazer uma análise geral da situação do país e uma comparação a nível global. Mas essa abordagem, apesar de funcionar bem para países pequenos (como os da Europa, por exemplo) é, também, criticada para países grandes (como o Brasil e os Estados Unidos) pelos motivos que já levantamos no texto.

    Por fim, é importante lembrar que ao fazermos isso acabamos perdendo detalhes da pandemia e, portanto, esse valor não deve ser utilizado como única base para políticas públicas nacionais. Para essas situações, porém, devem ser consideradas as especificidades locais antes de tudo!

    REFERÊNCIAS

    Esse post foi escrito originalmente no blog Meio de Cultura

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • O “fim” da história e o Homem Final

    Texto escrito por Rafael Lopes Paixão

    Francis Fukuyama, um filósofo e economista estadunidense, escreveu em 1992 um livro intitulado “O Fim da História e o Último Homem”. Neste livro, ele advogou que com o fim da União Soviética entrávamos  em um novo momento histórico em que o modelo de democracia ocidental teria prevalecido. Logo, a história humana estaria estagnada para sempre numa única forma de governo bem como um sucessivo caminhar em direção a um bem-estar generalizado.

    A segunda parte do título, “e o Último Homem”, evoca essa ideia, que bem antes de Fukuyama já era cultivada em diversas outras disciplinas científicas. Por exemplo, para mim o mais próximo que consigo pensar é a epidemiologia. A epidemiologia é o estudo das doenças e das epidemias que nos afligem no contexto da sociedade. Ou seja, é o estudo de doenças como fenômeno populacional e social.

    A epidemiologia se funda como ciência, ou seja, com método investigativo e de teste de hipóteses, a partir da descoberta feita por Sir John Snow. O cientista foi o responsável por analisar o surto de cólera, que afligia a população do bairro de Soho em Londres em 1854. Dessa forma, ele percebeu que a doença era causada, primariamente, pelo uso comum de uma fonte de água contaminada. Para tanto, Snow mapeou os casos de cólera no Soho.

    Com o mapeamento viu que a maior incidência se dava para famílias que localizavam-se mais próximas a uma fonte de água específica.

    E a solução? Snow manda selar a fonte e em algumas semanas o surto cessa.


    Figura 1: Mapeamento de casos realizados por John Snow em sua investigação do surto de cólera de 1854 no bairro do Soho, em Londres.

    A investigação de Snow obteve sucesso ao provar que a Cólera se dava pela contaminação de uma fonte de água de uso comum por um microorganismo. Assim, o debate à época, sobre qual seria a origem das doenças infecciosas, se vira para a comprovação de que a teoria microbiana das doenças infecciosas era a teoria mais plausível e explicativa da epidemias da época.

    Concorrente a essa teoria, tinha-se a teoria do miasma. Nesta teoria as doenças infecciosas se transmitiam por ares contaminados. Embora a teoria microbiana tenha sido aceita, acertadamente, há um revés nesta história. Infelizmente, com esse debate se constrói durante dois séculos a ideia que doenças infecciosas que se transmitem pelo ar são só um mito. Ou, ainda, uma teoria falha do passado para a epidemiologia. Todavia, a pandemia de Covid-19 nos desafia para outro lado. Apesar de ter identificado incorretamente o modo como certas doenças podem transmitir-se, a teoria do Miasma, ainda que ingênua, apoiava-se em algum fundo de verdade. Mas essa é uma discussão para outro texto.

    A teoria microbiana talvez tenha difundido-se tão fortemente difundida no nosso pensamento social exatamente por por sua capacidade de provar que a grande maioria das doenças infecciosas, que nos afligiram durante tantos séculos, facilmente resolvem-se com condições básicas de higiene e vida. Uma consequência disso, que pôde ser vista, principalmente na epidemiologia (mas não só), é que o pensamento epidemiológico do século XX caminhou na direção complementar do pensamento capitalista liberal de fim da história. Pensamento este fundado por Hegel e que deságua em Fukuyama e seu livro anteriormente citado.

    Até meados dos anos 1980, era corrente na epidemiologia a noção de que caminhávamos para a eliminação das doenças infecciosas. Assim, basicamente a epidemiologia se tornaria no estudo das doenças crônicas. Por trás disso, temos a ideia de fim da história e do “Homo Novissimus”. Ou seja, o homem que não mais padecerá por doenças infecciosas. Parece bom, não? Dessa forma, somente faleceríamos por doenças crônicas que aparecem, em uma ideia radicalmente reducionista, porque estamos vivendo demais. Tal ideia se traduz claramente no cartum abaixo:




    Figura 2. Cartum sobre a história médica atualizando lentamente o livro de doenças erradicadas.

    Homo Novissimus e os modos de produção

    Com o sucesso das vacinas e, no caso do cartum, da vacina da poliomielite, adentramos uma sociedade que se via cada vez mais os benefícios de um capitalismo capaz de inovar rapidamente. Bem como garantir que essa inovação chegasse a todos em um tempo razoável.

    O problema, dizem os defensores do fim da história e do Homo Novissimus, era somente distributivo. Assim, se a saúde fosse, como ainda é em muitos países, visualizada como bem público, logo esse problema de alocação de vacinas para cada nova doença infecciosa, estaria resolvido. Ou seja, segundo a “teoria” do Homo Novissimus, em alguns anos, no máximo em décadas, erradicaríamos as doenças infecciosas. Só não combinamos com o planeta essa ideia também.

    Vale ressaltar aqui que eu não sou um adepto da teoria de Gaia. Esta teoria diz que o planeta Terra é um ser vivo como um todo. Portanto, segundo esta teoria, quando desequilibramos esse organismo, ele reagiria para combater isso. Para mim, esse tipo de teoria é só uma desculpa com fundo místico, para se pedir o básico da nossa relação com o planeta.

    O ponto todo é: nosso modo de produção e de sociedade, atomizado no conceito de Homo Novissimus não é verdadeiro.

    Ou seja, aquele homem que após ter resolvido suas disputas políticas vive quase que indefinidamente em confluência com seu habitat, não funciona na prática (nem na teoria…)! Durante os anos subsequentes à segunda guerra mundial, e algumas décadas após a pandemia da gripe “espanhola”, vimos anos de alguma tranquilidade. Aliás, foi um tempo de sucessiva erradicação de doenças infecciosas, ora por simples aumento da qualidade de vida, vez advinda do modelo de produção comunista, vez advinda do modelo de produção capitalista liberal, ora por inovação e acesso às vacinas.

    Tal fato parecia ser tão verdadeiro que o número de artigos científicos sobre doenças infecciosas em revistas de epidemiologia pareciam estar simplesmente sumindo dos registros destas revistas. Quase como um esgotamento do assunto, o gráfico abaixo traduz isso:


    Figura 3. Porcentagem de papers sobre doenças infecciosas apresentados para a AES, American Epidemiological Society (Sociedade Americana de Epidemiologia), e para a AJE, American Journal of Epidemiology (Revista Americana de Epidemiologia).

    Parcimônias nas análises

    Novamente, aqui precisamos analisar a evidência com parcimônia, ainda que tanto AES e AJE sejam revistas internacionalmente conhecidas e que versam sobre temas internacionais, há um viés de mais estudos voltados à realidade estadunidense. Ou seja, ainda que seja verdade que doenças infecciosas estavam deixando de ser assunto nos meios de estudo de doenças em geral, isso só seria verdade para a realidade que esses estudos cobrem, que provavelmente é a realidade da sociedade estadounidense. A partir da década de 1980, esse paraíso é abalado, com a pandemia de HIV e AIDS, uma doença tropical que circulava em populações da África central desde os anos 1920. Essa doença provavelmente espalhou-se para o mundo a partir da década de 1960 (Figura 5). Concomitantemente com isso tem-se a exploração imperialista europeia no continente desde o século XIX.  Posteriormente, com os movimentos de independência, a industrialização passada na região no pós segunda guerra.




    Figura 5. Localização de amostras de HIV-1, grupo M, e suas introduções a partir de Kinshasa ao longo das ferrovias e hidrovias tanto da República Democrática do Congo e da República do Congo. Anos mais recentes tons azuis, anos mais antigos tons vermelhos.

    E a COVID-19?

    Desde dezembro de 2019, o mundo se pergunta como e porquê há pessoas padecendo de uma pneumonia viral que parece se transmitir pelo ar. A resposta para origem do Covid-19, ainda hoje, dezembro de 2021, é incerta. Mas muito provavelmente ela surge de infecções em trabalhadores que têm contato com morcegos no interior do sul da China, mais especificamente na província de WuHan (武汉). Desde dezembro de 2019, aprendemos muito sobre o vírus e sobre como combatê-lo. Foram desenvolvidas vacinas que têm se mostrado efetivas em mitigar a severidade da doença. Assim como evitar grande parte dos óbitos por infecção.

    Em menos de 2 anos, fomos capazes de identificar o patógeno que nos afligia e criar uma vacina que impede que padecemos da infecção sem qualquer esperança de sobrevivência. Talvez existam dois paradigmas centrais da pandemia de SARS-CoV-2. O primeiro de que há vírus que se transmite pelo ar. Uma vez que o SARS-CoV-2 é capaz de permanecer apto a infectar uma pessoa ao permanecer em suspensão com micro gotículas de água exaladas pelo simples fato de respirarmos, os aerossóis. O segundo paradigma é que é muito mais usual do que o senso comum nos dizia o evento de um vírus pular de uma espécie para outra. Isso precisa ser aprendido devidamente para que seja possível desenvolver meios de identificar e barrar tais eventos que chamamos de spillover.

    Porém há um paradigma que pouco se comenta, que ainda não é devidamente aprendido por todos. Aliás, leva-se em consideração somente por algumas poucas pessoas. O Homo Novissimus, com o perdão do trocadilho, encontra-se ultrapassado.

    Isto é, o nosso futuro prometido, em que padeceríamos somente dos efeitos do tempo em nosso corpo, simplesmente não existe.

    Vivemos num mundo cada vez mais quente, mais desigual e mais segregado. Um planeta mais quente com certeza é um lugar favorável ao surgimento cada vez mais frequente de novos patógenos que com certeza vão nos trazer consequências como a pandemia de Covid-19.

    Além disso, uma sociedade mais desigual é incapaz de sanar os problemas existentes e, muito menos ainda, de sanar os problemas que vão existir. A falta de equidade vacinal, por exemplo, atualmente impede que saiamos da pandemia, ou que tenhamos um breve momento de alívio antes da próxima pandemia. E um mundo cada vez mais segregado é a volta ao ponto na história que nos moveu para chegar a um vida em sociedade. Como já falamos aqui no Especial sobre o “retorno ao nosso normal”. Vamos supor que cada indivíduo só precisa se importar e cuidar no máximo daqueles para com quem tem-se alguma dívida, seja ela qual for. Assim, neste caso, estaremos fadados a morrermos de qualquer doença surgida por uma planeta cada vez mais inabitável. Além disso ser agravado por uma sociedade cada vez mais desigual e individualista.

    Por fim

    A epidemiologia, talvez como toda e qualquer outra área da ciência, é nada mais que um reflexo do momento histórico que se vive. Se há 60 anos o fim das doenças infecciosas era declarado, há 40 ele era postergado, talvez hoje tenhamos consciência de que não haverá mundo sem doenças infecciosas. Caso persistâmos em não estudarmos suas causas e mitigar os meios, como sociedade, pelos quais elas se perpetuam no ápice da inteligência humana padecemos por suas consequências.

    É preciso entendermos que mais que fatos que vão acontecer. Isto é, as doenças infecciosas são consequências de atos passados e da forma como produzimos sob o solo que pisamos. Em suma, sem qualquer pretensão bucólica, precisamos parar de destruir o planeta por simplesmente acharmos que não haverá consequência ou porquê esse é o único modo como podemos viver.

    É preciso não aceitar nosso antigo e atual normal.

    Para Saber Mais

    Castro MC, Baeza A, Codeço CT, Cucunubá ZM, Dal’Asta AP, De Leo GA, et al. (2019) Development, environmental degradation, and disease spread in the Brazilian Amazon, PLoS Biol 17(11): e3000526.

    Faria, NR, Rambaut, A, Suchard, MA, (…) Lemey, Philippe (2014) The early spread and epidemic ignition of HIV-1 in human populations, Science, Vol 346, Issue 6205 • pp. 56-61

    Reingold, AL (2000) Infectious Disease Epidemiology in the 21st Century: Will It Be Eradicated or Will It Reemerge?, Epidemiologic Reviews, Volume 22, Issue 1.

    Figura 1 retirada de: Retirado de: https://en.wikipedia.org/wiki/1854_Broad_Street_cholera_outbreak, que por sua vez foi retirado do livro em domínio público, “On the Mode of Communication of Cholera” by John Snow, originally published in 1854 by C.F. Cheffins, Lith, Southhampton Buildings, London, England.

    Figuras 2 e 3 retiradas de: Reingold, AL (2000) Infectious Disease Epidemiology in the 21st Century: Will It Be Eradicated or Will It Reemerge?, Epidemiologic Reviews, Volume 22, Issue 1.

    O autor

    Rafael Lopes Paixão da Silva é doutorando em física. Ele estuda dados de saúde pública e sua dinâmica e relações com o clima é Físico. Pesquisador no Observatório Covid-19 Brasil e convidado pelo editorial para escrever no Especial COVID-19.

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial COVID-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Como o SARS-CoV-2 infecta nossas células?

    Já sabemos que o novo coronavírus, o SARS-CoV-2, causa a COVID-19 e também que as medidas efetivas para seu combate são a vacinação, distanciamento social e uso de máscaras. Mas o que acontece no momento exato em que ele infecta um novo hospedeiro? Para entendermos como ocorre a infecção dentro dos organismos e dentro das células, primeiro precisamos lembrar da estrutura desse vírus. 

    Assim como outros coronavírus, o SARS-CoV-2 possui uma coroa de proteínas em suas extremidades. Essas proteínas são as que chamamos de spike, que iniciam o processo de entrada (ou infecção) do vírus nas nossas células. 

    Só que assim como uma coroa, as proteínas spike possuem alguns adereços junto com elas, chamados de glicanos. Os glicanos nada mais são do que açúcares que ficam acoplados nessa proteína e são essenciais para garantir o equilíbrio e a estrutura. Cientistas descobriram que esses açúcares são muito importantes para a mobilidade da proteína spike durante a infecção, da mesma forma que as rodinhas de apoio de uma bicicleta ajudam na sustentação da roda principal.

    A infecção acontece através de um sistema que costumamos chamar de “chave fechadura”.

    Isto é, a proteína spike seria como uma chave e alguns tipos de células do nosso corpo possuem moléculas em sua membrana que funcionam como a fechadura. Assim como colocamos a chave certa na fechadura da nossa casa, ao haver o encontro da spike com essas moléculas, o vírus consegue entrar na célula. Essa fechadura “molecular” é o receptor ACE2, presente em células do nariz, dos pulmões e de todo o trato respiratório. É por isso que, na maioria dos casos, a COVID-19 apresenta sintomas que são principalmente respiratórios. 

    A principal diferença do SARS-CoV-2 para outros vírus da mesma família, é que os glicanos ajudam a proteína spike a ser EXTREMAMENTE móvel, então ela possui uma chance muito maior de encontrar a fechadura das células. Em comparação com o coronavírus que causou o surto de SARS em 2002, o novo coronavírus tem uma capacidade de 4 a 5 vezes maior de se ligar a esses receptores e estabelecer uma ligação forte. Inclusive, atualmente já se sabe que o SARS-CoV-2 consegue infectar células de outros órgãos, como o fígado, rim, cérebro e intestino, fato esse que não havia sido visto para outros coronavírus, como a SARS de 2002 e a MERS de 2012.

    E por que estudar isso é importante?

    Porque a maioria das variantes possuem mutações (que também podem ser chamadas de diferenças ou modificações) exatamente nesta proteína! A variante Delta possui modificações que fazem com que ela tenha muito mais facilidade de se ligar aos receptores do que as outras variantes! 

    Uma variante que é capaz de infectar células mais rápido e mais fácil do que as outras, consequentemente também consegue gerar uma quantidade maior de vírus. Estima-se que a variante Delta possa produzir até mil vezes mais vírus do que outras variantes. Dessa forma, ela possui uma maior eficiência na transmissão e infecção de pessoas, até mesmo entre os vacinados. 

    Outro fato importante é que ao entender como acontece a infecção do vírus na célula, isso pode nos ajudar a descobrir (ou descartar) alguns remédios! 

    Depois de infectar alguns tipos de células, o SARS-CoV-2 utiliza pequenas vesículas, os endossomos. Dentro dos endossomos acontece uma modificação no pH que é a peça-chave para que o vírus consiga se “despir”, isso é, retirar todas as proteínas, açúcares e gorduras que protegem o seu genoma. Ao fazer isso, o vírus consegue liberar seu material genético para realizar o processo de replicação. É justamente nessa etapa de modificação de pH que alguns remédios conseguem atuar. 

    Você provavelmente se lembra da cloroquina, muito utilizada nos falsos kit de cura da COVID-19. A cloroquina consegue bons resultados dentro dos laboratórios quando é testada contra esses tipos celulares específicos. O problema é que nem sempre o SARS-CoV-2 utilizará os endossomos! Então em sistemas mais complexos do que uma simples célula (como nós, seres humanos, e outros seres vivos multicelulares), esses medicamentos não irão funcionar, como aconteceu isoladamente no laboratório. 

    Apesar disso, algumas terapias que realmente funcionam estão utilizando os anticorpos monoclonais, que já explicamos aquiaqui. Esses anticorpos se ligam à proteína spike e impedem que o vírus se ligue ao receptor ACE2 das nossas células. Isto representa 4 dos 5 tratamentos já aprovados pela ANVISA para a COVID-19!

    Por agirem na etapa de infecção das células, os remédios baseados em anticorpos precisam ser dados logo no início da doença. Além de serem tratamentos caros, outro problema que encontramos na terapia com anticorpos é que caso o SARS-CoV-2 continue se espalhando e novas variantes surjam, se alguma mutação nova agir na proteína spike, esses anticorpos podem perder a eficácia!

    O que devemos fazer então?

    A melhor maneira de combatermos a COVID-19 continua sendo: impedir o aumento no número de casos e o aparecimento de variantes! Todavia, isso só será possível se cumprirmos com o cronograma vacinal (duas doses e dose de reforço!), e continuarmos com medidas de distanciamento e o uso de máscaras! 

    Quer saber mais?

    Mishra, Sanjai (2021) Por que a variante Delta é mais transmissível e letal? National Geographic Brasil

    Menezes, Maíra (2021) Pesquisa sugere maior risco de reinfecção pela variante Delta Fiocruz

    Bertoni, Estevão (2021) Quais medicamentos contra a covid foram aprovados pela Anvisa, Jornal Nexo

    Referências! 

    1. Baisheng Li, Aiping Deng, Kuibiao Li, (…) Jing Lu (2021) Viral infection and transmission in a large well-traced outbreak caused by the Delta SARS-CoV-2 variant

    2.Scudelari, Megan (2021) How the coronavirus infects cells — and why Delta is so dangerous Nature, 595, 640-644.

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial COVID-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Por dentro da variante Ômicron

    O mundo todo aguarda ansioso enquanto pesquisadores trabalham arduamente em seus laboratórios. Tudo isso na tentativa de descobrir mais informações sobre a nova variante do SARS-CoV-2 que vem criando dúvidas e pânico nas populações: a variante Ômicron. Por causa disso, nós, do Blogs Unicamp, decidimos fazer um apanhado geral do que se sabe até o momento sobre essa variante. Nosso objetivo hoje é mostrar que, apesar de toda a preocupação, talvez não seja o fim do mundo. Muito menos a volta à estaca zero que muitos alegam. Ou seja, estamos aqui defendendo o “menos alarmismo, mais compreensão do problema”

    Onde surgiu essa variante?

    As coisas aqui podem parecer um pouco confusas. Mas é importante deixar uma coisa bem clara! Vamos lá: o lugar onde uma variante é detectada pela PRIMEIRA vez, não necessariamente é o lugar onde essa variante surgiu. Por exemplo, em uma situação imaginária:

    “Vamos pegar a variante Gama, que apareceu em Manaus. Ela poderia ter sido detectada pela primeira vez em outro país, digamos, em Portugal, a partir de uma pessoa que viajou de Manaus para lá. Apesar dela ter sido detectada em Portugal, ela não teria SURGIDO lá. Ela somente foi vista primeiro em Portugal. Pois um viajante de Manaus teria demonstrado sintomas de COVID-19, testado positivo no teste de diagnóstico por RT-qPCR. Posteriormente, teria o genoma do vírus que estava no seu corpo sequenciado. Em suma, a variante teria sido DETECTADA em Portugal, mas a primeira pessoa com ela (o chamado primeiro paciente ou paciente zero) seria do Brasil.”

    Perceba que para uma variante ser detectada são necessárias duas etapas. Aliás, etapas que temos defendido desde o início da pandemia, aqui no Blogs: Testagem Diagnóstica e Sequenciamento Genômico. Estes dois passos são fundamentais para sabermos não apenas a quantidade de casos, mas as mutações do vírus e, também, possíveis variantes importantes.

    Agora vamos separar esses momentos para a variante Omicron:

    • 11 de novembro de 2021. O genoma do primeiro caso da variante Omicron é sequenciado, a partir de um paciente em Botsuana, um país do sul da África. 
      • Nos dias que se seguem, são sequenciados outros genomas. São eles: um caso em Hong Kong, a partir de um paciente que tinha vindo da África do Sul.
      • Ao mesmo tempo, alguns casos começam a aparecer na África do Sul, na região de Gauteng. Esta é a região com maior fluxo de viajantes nacionais e internacionais do país (correspondente a São Paulo, aqui no Brasil).
      • Até esse momento, pouca ou nenhuma atenção era dada a essa variante do SARS-CoV-2.
    • 24 de novembro de 2021. Pesquisadores da África do Sul notam que essa variante tinha um nível de mutação altíssimo na proteína Spike e no resto do vírus todo. Assim, neste momento, começam a se mobilizar para entender melhor ela.
    • 26 de novembro de 2021. Após ter sido notificada pelos pesquisadores da África do Sul, a OMS anuncia uma nova variante, chamada Ômicron, como uma VOC (ou Variante de Preocupação).
    • 29 de novembro de 2021. variante Ômicron já é detectada em vários países da Europa, além de Israel e Canadá.

    Por que todo o alarde quanto à essa nova variante?

    Muito do espanto, medo e perguntas sobre a variante Ômicron gira ao redor do grande número de mutações que ela possui. Para fins de comparação, podemos entender essas mutações como pequenas diferenças que essa variante possui quando comparada com o vírus original, lá do começo da pandemia, no surto de Wuhan na China. 

    Essas diferenças podem ser tanto benéficas quanto maléficas para o vírus. Isto é, podem apresentar uma vantagem (como uma maior transmissibilidade, letalidade ou capacidade de fugir do nosso sistema imune – a chamada Evasão Imune), ou uma desvantagem (nas mesmas características que mencionamos anteriormente). Ao todo, a variante Ômicron possui um pouco mais de 50 mutações. Ou seja, esse vírus possui 50 diferenças do SARS-CoV-2 original. De todas essas mutações, 32 delas são na proteína Spike e acredite, caro leitor(a), quando dizemos que isso é muito. Para uma nova comparação, a variante Delta (que atualmente é a variante dominante no mundo) possui 16 mutações na sua Spike

    A princípio, imaginou-se que pelo grande número de mutações, os testes de diagnóstico por RT-qPCR não conseguiriam detectar essa variante. Mas já sabemos que isso não é mais um problema: pesquisadores já viram que os testes de RT-qPCR conseguem detectar essa nova variante normalmente.

    Dessas 32 mutações na sua proteína Spike, algumas são bem raras. Enquanto outras já são conhecidas por estarem presentes também em outras variantes, como a Alfa, Beta, Gama e Delta. A preocupação aqui é porque algumas dessas mutações já conhecidas estão relacionadas a uma maior transmissibilidade e um possível escape imunológico. Entretanto, aqui deixamos bem claro: ainda NÃO HÁ INFORMAÇÕES e dados confiáveis mostrando que a variante Ômicron seja realmente mais transmissível. Tampouco que escape da proteção gerada pelas vacinas. 

    Enquanto cientistas correm nos laboratórios para tentar responder essas perguntas, outros pesquisadores olham para análises computacionais e suspeitam que caso haja um escape imunológico por parte dessa variante, ele seja similar ao que vimos para a variante Beta e Delta (uma redução na proteção, mas não completamente!). Dessa forma, as vacinas ainda continuariam protegendo as pessoas. Ao mesmo tempo, outros pesquisadores desconfiam que, pelo alto número de mutações, talvez essa variante não consiga se transmitir tão bem quanto outras (a chamada baixa estabilidade).

    Como se tudo isso não bastasse…

    Recentemente também descobriram que há uma segunda forma (uma variante) da própria variante Ômicron (assim como também aconteceu com a variante de Manaus) que, entre outras coisas, não possui alguns genes que são utilizados pelos testes de RT-qPCR para identificar o vírus e as variantes. Mas o que isso significa?

    Bem, a princípio isso quer dizer que os testes de RT-qPCR continuam detectando o vírus SARS-CoV-2 em uma pessoa, então não precisa entrar em pânico. Se, por um acaso, você ou algum(a) conhecido(a) venha pegar essa variante, ele ou ela ainda poderá ser diagnosticado(a). O problema é que, com as outras variantes, esse mesmo teste era capaz de dar uma ideia preliminar de qual “tipo” esse vírus poderia ser. Em outras palavras, o teste diria se a pessoa está com o vírus ou não, e qual variante ele seria. Agora para a variante Ômicron, o que se viu até o momento foi que os testes de RT-qPCR conseguem sim identificar se a pessoa tem esse vírus ou não no corpo, mas não conseguem dizer se ele é da variante Ômicron.

    Novamente, para ficar bem claro: até o momento não há quaisquer informações concretas que mostrem uma maior transmissibilidade, infecciosidade e escape imunológico das variantes Ômicron.

    Ok, já sabemos onde essa variante surgiu e porquê todos estão espantados como ela. E com isso, aparece outra dúvida: como ela surgiu?

    Essa é uma das principais perguntas que os cientistas têm feito. Atualmente, a comunidade científica tem proposto três ideias para responder essa questão. Algumas dessas hipóteses foram pensadas a partir de análises feitas para se ver a “árvore genealógica” desse vírus. Essa árvore genealógica mostrou que, aparentemente, a variante Ômicron não “nasceu” a partir de outras variantes, mas sim que ela teria sua origem lá atrás, no começo da pandemia. Mas para entender isso melhor, vamos olhar as ideias que os cientistas têm proposto para responder a pergunta de como ela teria surgido:

    A Variante apareceu “naturalmente.

    A variante teria nascido “naturalmente” dentro de uma população com baixa vigilância epidemiológica, em outras palavras, uma população que estava fazendo poucos testes de diagnóstico e poucos sequenciamentos de genomas virais. Dessa forma, a Ômicron teria ficado meses “escondida” nessa população, que muito provavelmente seria de um lugar afastado de grandes centros, o que poderia explicar o grande acúmulo de mutações e ser oriunda de um vírus mais “antigo”. Entretanto, muitos pesquisadores argumentam que seria impossível uma variante desse nível ter ficado escondida por tanto tempo, visto que atualmente tem se sequenciado muitos genomas de SARS-CoV-2.

    Spillover

    A segunda ideia de surgimento seria a partir do chamado Spillover (pode ver esse texto aqui para entender melhor esse processo). Isto é, um vírus SARS-CoV-2 ter passado de um humano para um animal, nesse animal o vírus teria acumulado mutações e então, depois de um tempo, teria voltado para o ser humano como a variante Ômicron. 

    Um dos motivos que levam os cientistas a considerar essa hipótese é a presença de algumas mutações na proteína Spike da Ômicron que já foram vistas em outras variantes. Sabe-se que essas mutações que aumentam o número e tipos de hospedeiros do vírus, tornam a variante capaz de infectar outras espécies de animais, como por exemplo roedores.

    Infecções Crônicas

    A hipótese mais aceita até o momento é que a variante teria aparecido a partir de infecções muito longas (as chamadas infecções crônicas) de COVID-19, provavelmente em um paciente imunocomprometido, isso é, um paciente em que o sistema imune está debilitado, por exemplo, pacientes com AIDS ou sob tratamento de câncer. A ideia por trás dessa hipótese é o vírus ter ficado se replicando várias vezes nessa pessoa, por muito tempo, acumulando mutações, sem que o sistema imune dela conseguisse combatê-lo eficientemente.

    Entretanto, a boa notícia por trás disso seria que todo esse acúmulo de mutações para conseguir sobreviver em uma pessoa por tanto tempo, também viria com um custo para o vírus: uma menor capacidade de se transmitir de pessoa para pessoa. Mas, ainda não temos informações claras sobre essa possibilidade.

    É pensando nessa possibilidade para o surgimento de variantes, que mais uma vez vemos porque a vacinação é tão importante no combate à pandemia. Além de reduzir o risco de infecção grave e severa, já foi visto que pessoas vacinadas conseguem combater o vírus mais rápido, impedindo que ela fique se multiplicando no corpo por um maior período de tempo, o que diminui as possibilidades dele acumular mutações como as que foram visto nas variantes Alfa, Beta, Gama, Delta e Ômicron. 

    Finalmente, qual é a situação atual do mundo e do Brasil com essa variante?

    Atualmente, detectaram a variante Ômicron em mais de 50 países ao redor de todo o mundo. Entretanto, até onde se sabe, as pessoas infectadas na maioria desses países eram viajantes que tinham vindo de outro lugar. Até o momento são poucos os países que tiveram a chamada Transmissão Comunitária, isso é, uma pessoa que tem um caso de COVID-19 causado pela variante Ômicron, mas que não se sabe quem pode ter passado o vírus para essa pessoa (em outras palavras, não é possível fazer o rastreio do vírus). 

    No Brasil, até o momento em que escrevo esse texto (às 13:20 do dia 7 de Dezembro de 2021), confirmaram-se 6 casos. Um número baixo, mas que foram suficientes para cancelarem muitas feitas do Réveillon por todo o território nacional (algo que já falávamos que não deveria acontecer com grandes multidões e aglomerações). Entretanto, alguns cientistas estão propondo que há mais casos do que parecem no Brasil, simplesmente por termos uma alta taxa de subnotificações e um baixo número de testes de diagnóstico e sequenciamento (a vigilância epidemiológica que comentei no início). 

    Por fim, termino esse texto lembrando que a vacinação de toda a população de um país pode sim ajudar a combater a pandemia de COVID-19. Mas somente isso não vai resolver o problema. Enquanto 80% de todas as doses de vacinas estiverem concentradas em 20 países do mundo, sendo que muitos desses países estagnaram em 60% ou 70% da cobertura vacinal de sua população (o que não é suficiente para resolver o problema), ainda veremos muitas variantes surgindo através do globo, principalmente em países com coberturas vacinais baixas (como muitos da África). 

    PARA SABER MAIS:

    Mellanie Fontes-Dutra Vamos falar da B.1.1.529

    Mellanie Fontes-Dutra O que sabemos da #Ômicron até o momento?

    Andrews, L (2021) New Botswana variant with 32 ‘horrific’ mutations is the most evolved Covid strain EVER and could be ‘worse than Delta’ — as expert says it may have emerged in an HIV patient MailOnline 

    Agencia Brasil (2021) Descoberta nova variante do coronavírus com grande número de mutações 

    Corum, J; Zimmer, C (2021) Tracking Omicron and Other Coronavirus Variants, New York Times.

    Cardim, ME (2021) Terceiro caso da variante ômicron é identificado no Brasil, Correio Braziliense

    Kupferschmidt, K (2021) Where did ‘weird’ Omicron come from? Science

    Couzin-Frankel, J (2021) A cancer survivor had the longest documented COVID-19 infection. Here’s what scientists learned, Science.

    Chotiner, I (2021) How South African Researchers Identified the Omicron Variant of COVID, The New Yorker.

    Petersen, E, Ntoumi, F, Hui, DS, Abubakar, A, Kramer, LD, Obiero, C, … & Zumla, A (2021) Emergence of new SARS-CoV-2 Variant of Concern Omicron (B. 1.1. 529)-highlights Africa’s research capabilities, but exposes major knowledge gaps, inequities of vaccine distribution, inadequacies in global COVID-19 response and control efforts, International Journal of Infectious Diseases.

    Karim, SSA, & Karim, QA (2021) Omicron SARS-CoV-2 variant: a new chapter in the COVID-19 pandemic, The Lancet

    Viggiano, G (2021) Por que há desigualdade de vacinas no mundo e o que isso tem a ver com a Ômicron, CNN

    G1 (2021) OMS diz que variante ômicron representa risco alto para o mundo, G1

    Costa, AG (2021) Ômicron: o que dizem autoridades de países onde a nova variante já chegou, CNN

    Ansede, M (2021) Ômicron: assim é o coronavírus ‘Frankenstein’ que assusta o planeta, El País Brasil.

    The Guardian (2021) Scientists find ‘stealth’ version of Omicron that may be harder to track, The Guardian

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial COVID-19
    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Prática de endurance na pandemia

    Em tempos de pandemia, mais do que nunca, é fundamental manter-se ativo fisicamente para aumentar o bem-estar, reduzir o estresse e melhorar a qualidade de vida.

    Sabe-se que a prática regular de exercício físico associada à alimentação adequada traz vários benefícios para a saúde física e mental. Além de auxiliar no controle de peso, prevenção de doenças como obesidades, diabetes e dislipidemia, aumentar a imunidade e contribuir para uma composição corporal adequada.

    Com a pandemia, a prática de exercícios ao ar livre como os esportes de endurance vem aumentando significativamente. É uma forma segura de praticar exercício físico em locais abertos e com distanciamento social.

    Os principais esportes de endurance incluem: ciclismo, corrida, travessias, duatlo (ciclismo e corrida), triatlo (natação, ciclismo e corrida), mountain bike, montanhismo, cross country, maratonas, entre outros.

    O termo endurance é usado para modalidades de exercício de resistência com duração média maior ou igual a 90 minutos (1hora e 30 minutos) de forma contínua.

    SUPLEMENTAÇÃO NO ENDURANCE

    A demanda nutricional e o gasto energético no endurance costumam ser bem altos. Uma vez que trata-se de uma modalidade esportiva de resistência de longa duração cuja intensidade pode variar entre média e elevada.

    Porém, a demanda calórica e nutricional deve ser calculada de forma individual. Considerando que o gasto energético variam de acordo com: idade, sexo, composição corporal, além do tipo, duração e intensidade do exercício.

    E muitas vezes não é possível atingir as recomendações calóricas e nutricionais apenas com a alimentação.

    Por isso, suplementos a base de carboidratos e proteínas, e repositores de eletrólitos são boas estratégias para manutenção e/ou melhora do desempenho. E também para a recuperação pós-exercício.

    FORMAS DE SUPLEMENTAÇÃO

    Existem três tipos de suplementação: antes, durante e depois do exercício, treino ou competição. Cada tipo tem sua funcionalidade.

    • Pré-treino: Melhora a resposta e as adaptações fisiológicas ao exercício. E pode promover o aumento do desempenho esportivo.
    • Intra-treino: Usado para a reposição de eletrólitos e fornecimento de energia de forma rápida durante o exercício.
    • Pós-treino: Utilizado para reposição de nutrientes de forma eficiente visando a recuperação e também o preparo físico para os próximos treinos.

    SUPLEMENTOS NO ENDURANCE

    Existem vários suplementos utilizados por praticantes de endurance como: creatina, cafeína, bicarbonato de sódio, beta-alanina, nitrato, glutamina, zinco, ômega-3, probióticos, além de polivitamínicos, suplementos a base carboidratos e proteínas.

    Dentre eles, vale destacar aqueles que possuem altos níveis de evidência científica na melhora do desempenho no endurance como por exemplo: carboidrato, cafeína e nitrato.

    • Carboidrato: Auxilia na manutenção da glicemia e reposição de energia durante o exercício prolongado. A recomendação pode variar, em média, de 6 a 10g de carboidrato/kg de peso/dia. E podem ser distribuídos antes, durante e depois do treino. Pode ser usado na forma de gel, cápsula, pó ou bebida com carboidrato. E alimentos como: rapadura, mel, frutas, aveia, macarrão, batata doce, entre outros.
    • Cafeína: Tem efeito positivo na função neuromuscular, redução da fadiga e diminuição na percepção do esforço por seu efeito estimulante. A recomendação é de 3-6 mg/kg de 30 a 90 minutos antes do exercício.
    • Nitrato: É convertido em nitrito e óxido nítrico que provoca o aumento da vasodilatação, da eficiência mitocondrial e do fluxo sanguíneo e regulação de O2 no músculo, reduzindo a fadiga e melhorando o desempenho cardiorrespiratório. Além dos suplementos a base de nitrato, o suco de beterraba é uma ótima opção. A recomendação é de 500mL de suco ou 3 a 6 unidades ou 150-200g de beterraba (300-600mg de nitrato) 90 minutos antes do exercício.

    Lembrando que o planejamento alimentar, a suplementação, a hidratação e a periodização alimentar e nutricional devem ser individualizadas e de acordo com o tipo, frequência, duração e intensidade da modalidade de endurance praticada.

    Vitale K, Getzin A. Nutrition and Supplement Update for the Endurance Athlete: Review and Recommendations. Nutrients. 2019;11(6):1289.

    Este post foi escrito originalmente no blog Nutrição e Ciência

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

     

  • Como o vírus SARS-CoV-2 chega no cérebro?

    Texto escrito por Gabriela Vieira

    Depois de quase dois anos do início da pandemia causada pelo novo coronavírus, muitas dúvidas ainda restam sobre como este vírus age nas células do corpo humano. A comunidade científica tem avançado nas pesquisas sobre esta nova doença com uma rapidez nunca vista antes. Atualmente, diversas vacinas estão disponíveis, a sociedade está sendo imunizada e começamos a ver uma diminuição significativa de óbitos – embora ainda existam casos de infecção aumentando no mundo.

    Embora o SARS-CoV-2 seja um vírus que ataca predominantemente o sistema respiratório, hoje em dia nós já sabemos, por exemplo, que o vírus afeta outros órgãos e sistemas também. Já foi relatada a infecção de outros sistemas, como o sistema gastrointestinal e fortes evidências apontam que o vírus também infecta o sistema nervoso central (SNC). Porém, ainda há muito o que descobrir sobre a COVID-19 como, por exemplo, os danos que o vírus causa em outros órgãos e quais são as consequências e sequelas a longo prazo.

    Como nossa compreensão da doença muda conforme as evidências se fazem rotina

    No início na pandemia, os esforços dos médicos e cientistas estavam voltados para os sintomas respiratórios dos pacientes. Atualmente, muitas evidências mostram que pacientes com COVID-19 também apresentam efeitos neurológicos preocupantes como acidente vascular cerebral, hemorragia cerebral, perda de memória, dores de cabeça, perda de olfato e paladar, confusão mental e convulsão.

    Apesar de alguns estudos indicarem que o vírus pode infectar células do sistema nervoso, ainda não sabemos precisamente como o vírus chega nestas células. Já falamos aqui sobre como um vírus que ataca principalmente o sistema respiratório pode causar danos no cérebro. Atualmente, os pesquisadores avançaram um pouco neste entendimento e vamos explicar o que eles descobriram.

    Vamos entender melhor…

    Alguns estudos sugerem que o vírus pode entrar pelo nervo olfatório, o que já era uma das suspeitas iniciais quando descobriram que o vírus infecta o SNC. Isto porque um dos sintomas da COVID-19 é a perda de olfato e paladar (também conhecidas em seus termos técnicos como anosmia e ageusia, respectivamente). No entanto, estas evidências ainda seguem bem controversas. A possibilidade de o vírus SARS-CoV-2 atravessar a barreira hematoencefálica tem ganhado força com alguns trabalhos que mostraram algumas evidências de que isso ocorre. Estas pesquisas vem utilizando, principalmente, modelos in vitro (linhagens celulares) e in vivo (camundongos e hamsters) de infecção com o SARS-CoV-2. 

    Mas o que é a barreira hematoencefálica?

    A barreira hematoencefálica é uma estrutura que serve como um filtro muito eficiente do SNC. Ou seja, ela impede ou dificulta a passagem de substâncias nocivas do sangue para o tecido nervoso. Por outro lado, permite a entrada de substâncias importantes como nutrientes, hormônios e gases. Esta membrana seletivamente permeável, restringe a entrada de substâncias tóxicas e patógenos, incluindo bactérias e vírus. Entretanto, muitas vezes medicamentos que teriam de agir no sistema nervoso também são impedidos de atravessar a barreira hematoencefálica. 

    Esta estrutura reveste os vasos sanguíneos do sistema nervoso central e é formada por 3 tipos de células: células endoteliais, pericitos e astrócitos. As células endoteliais revestem os capilares cerebrais e ficam muito próximas umas das outras, formando as “junções compactas” que atuam na seletividade das substâncias. Os astrócitos, que são células da glia em formato de estrela e os pericitos, que são células de origem mesenquimal que envolvem o endotélio dos capilares cerebrais, se comunicam com as células endoteliais e auxiliam na seletividade da barreira, atuando na regulação do tônus vascular e do fluxo sanguíneo capilar.

    Difícil, né? Vários nomes…

    O que importa é compreender que esta estrutura funciona como uma barreira que seleciona o que entra e o que sai de nosso cérebro! Veja a figura abaixo:

    A imagem mostra uma representaçaõ do cérebro, com destaque ressaltando um pedaço entre os vasos sanguíneos (com partículas do próprio sangue, oxigênio e outros gases, bactérias, anticorpos e outros compostos químicos) e a barreira hematoencefálica, que funciona como "Filtro Supereficiente: a barreira hematoencefálica é uma estrutura especial que reveste os vasos asnguíneos no sistema nervoso central. Formada por três tipos de células (células endoteliais, pericitos e astrócitos), ela permite que apenas alguns compostos cheguem ao cérebro. Trocas de informações entre os astrócitos da barreira e os neurônios a tornam mais restritiva ou mais permeável"
    Imagem retirada da Revista FAPESP: https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2017/06/054-055_barreira_256.jpg

    O que acontece se a barreira hematoencefálica for danificada?

    Várias doenças e infecções com bactérias e vírus são capazes de causar danos na barreira hematoencefálica. Estes danos podem aumentar a permeabilidade desta membrana. Isto é, provoca uma maior entrada de patógenos, toxinas e outras substâncias indesejadas. Esta maior permeabilidade induz uma resposta inflamatória cerebral, que pode resultar em danos neurológicos e agravamento de doenças do sistema nervoso central.

    E como o SARS-CoV-2 atravessa essa barreira?

    Neste artigo publicado em maio deste ano, os cientistas investigaram se o SARS-CoV-2 é capaz de atravessar a barreira hematoencefálica de modelos animais para infecção com SARS-CoV-2 e como este processo ocorre. Para isso, utilizaram camundongos e hamsters infectados com o vírus SARS-CoV-2, além de um modelo in vitro que mimetizou a barreira hematoencefálica com células provenientes dos animais.

    Os cientistas mostraram que o SARS-CoV-2 foi capaz de invadir o cérebro dos animais, infectando e se replicando nas células endoteliais da barreira hematoencefálica. Dessa forma, esta infecção das células endoteliais fez com que aumentasse a permeabilidade vascular cerebral. Ou seja, o “filtro” entre os vasos sanguíneos e o cérebro se tornou menos seletivo e deixou passar mais substâncias para o sistema nervoso central. Todavia, como exatamente o vírus SARS-CoV-2 consegue fazer esta invasão ainda é controverso entre os cientistas.

    O estudo mostrado aqui, evidenciou que a invasão pode ocorrer devido ao aumento de uma proteína chamada MMP9. Esta proteína é responsável pela degradação da matriz extracelular (o espaço entre as células). No caso da MMP9, ocorreu a degradação de colágeno, um dos principais componentes da matriz extracelular. E isto permite que o vírus cruzasse a barreira hematoencefálica.

    A infecção do SNC levou a vários danos cerebrais nos animais, causando morte celular (apoptose) de algumas células e outros danos em células vasculares do SNC. Além disso, os pesquisadores mostraram que a invasão do vírus no SNC dos animais também desencadeou uma resposta inflamatória cerebral, ativando células específicas do sistema nervoso responsáveis pela sua resposta imunológica.

    Com isso, os autores deste artigo concluíram que o SARS-CoV-2 pode atravessar a barreira hematoencefálica infectando células que fazem parte desta estrutura, o que pode levar a danos neuronais e a indução da resposta inflamatória.

    Figura do artigo demonstrando um possível mecanismo pelo qual o vírus SARS-CoV-2 atravessa a barreira hematoencefálica. Durante a infecção, o SARS-CoV-2 pode infectar as células endoteliais e cruzar a barreira hematoencefálica por meio da degradação de colágeno causado pela proteína MMP9. Os neurônios ficam então, relativamente vulneráveis à infecção por SARS-CoV-2, levando á danos neuronais e uma resposta inflamatória cerebral, aumentando o dano na barreira hematoencefálica e a lesão neuronal.

    E agora? Quais são os próximos passos?

    O entendimento de como o vírus SARS-CoV-2 infecta o SNC pode ajudar os pesquisadores a entenderem as manifestações neurológicas não respiratórias da COVID-19. No entanto, muitas incógnitas ainda permeiam o entendimento sobre o trajeto que o vírus faz no sistema nervoso central. Por exemplo: como ele atua nestas células, com que frequência isso ocorre e, principalmente, quais as consequências disso. Assim, estes estudos também são muito importantes na busca do tratamento desses pacientes a curto e longo prazo. Visto que muitas das consequências a longo prazo parecem ter relação não só com o sistema respiratório, mas também com o sistema nervoso central.

    A COVID-19 está conosco há 2 anos. Mas ainda há muito o que compreender sobre a doença, o vírus e o que acontece em nosso corpo nas infecções! E é pela ciência – e no investimento na ciência – que conseguiremos isso! Apoie a ciência brasileira, para fazermos parte deste combate à pandemia!

    Para saber mais

    Butowt, R, Meunier, N, Bryche, B & von Bartheld, CS (2021) The olfactory nerve is not a likely route to brain infection in COVID-19: a critical review of data from humans and animal models, Acta Neuropathol 141, 809–822.

    Meinhardt, J et al (2021) Olfactory transmucosal SARS-CoV-2 invasion as a port of central nervous system entry in individuals with COVID-19, Nat Neurosci 24, 168–175. 

    Goyal, P, Choi, JJ, Pinheiro, LC, Schenck, EJ, Chen, R, Jabri, A, Satlin, MJ, Campion, TR, Jr, Nahid, M, Ringel, JB, et al (2020) Clinical Characteristics of Covid-19 in New York City N Engl J Med 382, 2372–2374 (2020).

    Buzhdygan, TP et al (2020) The SARS-CoV-2 spike protein alters barrier function in 2D static and 3D microfluidic in-vitro models of the human blood-brain barrier, Neurobiol Dis 146, 105131.

    Pellegrini, L et al (2020) SARS-CoV-2 infects the brain choroid plexus and disrupts the blood-CSF barrier in human brain organoids Cell Stem Cell 27, 951–961 e955.

    Reynolds, JL & Mahajan, SD (2021) SARS-COV2 alters blood brain barrier integrity contributing to neuro-inflammation. J NeuroImmune Pharmacol 16, 4–6.

    Rhea, E M et al (2021) The S1 protein of SARS-CoV-2 crosses the blood-brain barrier in mice, Nat Neurosci, 24, 368–378.

    Song, E et al (2021) Neuroinvasion of SARS-CoV-2 in human and mouse brain, J Exp Med 218, 3.

    Zhang, L. et al (2021) SARS-CoV-2 crosses the blood-brain barrier accompanied with basement membrane disruption without tight junctions alteration, Signal Transduct Target Ther 6(1):337.

    A Autora

    Gabriela Maciel Vieira possui graduação em Biologia (2013), mestrado (2014-2016) e doutorado (2016-2021) em Ciências (com ênfase em Genética) pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, com período sanduíche na Kansas University Medical Center, EUA (2019). Atuou na pesquisa em oncologia, biologia celular e molecular e atualmente é pós-doutoranda do Laboratório de Neuroproteômica (Unicamp) estudando as bases moleculares do SARS-CoV-2 no sistema nervoso central.

    Este texto foi escrito originalmente para o blog EMRC

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • 600 dias e um desabafo: as pessoas são sempre maiores que as estatísticas

    Texto escrito por Rafael Lopes Paixão da Silva e Ana Arnt

    5 de novembro completamos 600 dias de pandemia de COVID-19. Nestes dias, foram 250 milhões de infecções no mundo (um Brasil inteiro de pessoas), 5 milhões de óbitos. No Brasil, 21 milhões de casos confirmados e 609 mil óbitos registrados.

    Uma pandemia joga por terra qualquer noção de estatística e parâmetros sobre o quê, verdadeiramente, estes conhecimentos significam. Isso é uma constatação minha, acredite. Eu (Rafael) trabalho há 3 anos com dados de saúde pública no Brasil, em meu projeto de doutorado. Ao longo deste tempo, fui percebendo estas relações ao longo da pesquisa. Além disso, sem muito esforço dos dados, isso transparece comparativamente, também.

    Vamos ver um exemplo?

    Um dos piores anos de epidemia de dengue, em todo o Brasil, tínhamos menos de 800 mortes, por essa doença, em um ano, no país.

    Em pouco mais de um ano e meio de pandemia de Covid-19 no Brasil, esse número foi ultrapassado em 329 dias. Ou seja, nos 600 dias de pandemia (529 dias para ser exato), em 329 dias  tivemos mais mortes que em anos inteiros de dengue, só para começar a colocar em perspectiva o que é a pandemia de Covid-19. Aqui somente nos referenciamos aos casos de Covid-19 confirmados. Há ainda o fato que como nossa testagem sempre foi pífia. Isto é, muito do que hoje chamamos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), é Covid-19 não diagnosticado. Se colocarmos nessa conta a SRAG, esse número de dias desde o anúncio da transmissão comunitária da Covid-19 no Brasil, dia 12 de março de 2020, subimos ao patamar de 396 dias com mais de 800 mortes. Isto significa 13 meses inteiros morrendo mais do que 800 pessoas por dia de uma só causa.

    Vale ressaltar que não importa se estamos falando, num primeiro momento, quando não havia vacinas. Sempre foram mortes evitáveis, se medidas de prevenção fossem amplamente adotadas. Em um segundo momento, essas mortes, que já eram evitáveis, se tornaram duplamente evitáveis. Primeiro, pelos motivos acima: medidas de prevenção de contágio fossem adotadas rigorosamente e amplamente. Depois porque, após as vacinações iniciadas no mundo, nós vacinamos lentamente e sem um planejamento rigoroso. Por fim, o caos no sistema hospitalar veio depois de iniciada a vacinação por total negligência de instâncias federais, estaduais e municipais de governo.

    Mas isso é só a frieza dos números e das estatísticas, as pessoas são sempre maiores que qualquer número e qualquer estatística. Somos seres sociais e também racionais.

    Então sabemos que necessitamos de interação, contato, e sabemos que precisamos disso de modo racional, temos a óbvia consciência dessa necessidade. Quando um igual nosso morre, isso nos fere duplamente, pelo menos.

    Primeiro, porque sabemos conscientemente que nossa interação social com esse igual se finda ali. Assim, sabemos que temos uma interação a menos para usufruir, um a menos na comunidade. Racionalmente, sabemos também que qualquer pessoa é única em si. Dessa forma, sabemos que quando a morte dessa pessoa ocorre, se fecham diversas possibilidades de vida, experiências e interações sociais. O luto é um processo importante, porque através dele podemos compreender e superar, ainda que de forma simbólica, esse encerramento de interações sociais.

    A pandemia é algo tão fora do imaginário cotidiano anterior à 2020 que, precisamos reformular a escrita do primeiro parágrafo. Durante 600 dias de pandemia no Brasil, em média, mais de 800 famílias passaram por esse processo de sofrimento e luto por dia. Isto a partir da constatação racional e social. Ou seja, de que naquele dia se findava uma interação humana relevante em suas rotinas, uma possibilidade de contato social, uma relação social, um membro da comunidade.

    Tanto individualmente, como socialmente isso é um fardo e uma tragédia sem igual.

    Especialmente em face de que isso continua a ocorrer todos os dias, até a atualidade, sem uma perspectiva exata de quando cessará.

    Em tempos de quase 400 mortes diárias, ainda estamos discutindo retirada de máscaras em ambientes abertos. Estes eventos, mais do que baseados em ciência, é uma evidente normalização  das infecções pela doença, como se nada fossem. Como se fosse gripe, mas que a cada dois dias, neste momento, mata mais do que dengue ao longo de anos anteriores. A COVID-19 ainda mata em um patamar muito alto. Ainda são mortes evitáveis,  como narrado no primeiro parágrafo.

    Não tenho mais nenhum amigo, colega ou familiar, que não tenha um caso de morte por COVID-19 para contar sobre os 600 dias de pandemia. Tanto tempo de provação e tanta exigência de luto tem um preço que sequer somos capazes de mensurar agora. Vamos precisar de anos para começar a entender a pandemia a partir da perspectiva das perdas que nos atravessam hoje. E talvez levemos décadas para formalmente contabilizar seu impacto, se pudermos fazer isso algum dia.

    Foram 600 dias de pandemia, e ainda não acabou por aqui…

    Uma das visões que se tem consolidado durante esse ano de 2021 é a de que a pandemia do COVID-19, não se findará neste ano. Junto disso, vem também a afirmação de que teremos que aprender a conviver com o vírus. Pois eu concordo somente com a primeira afirmação.

    Ao longo destes dias, a segunda afirmação tem nos causado muita indignação. Por quê? Basicamente porque ela se faz para uma doença que temos meios de prevenção altamente eficazes. Ou seja, o conjunto de medidas não farmacológicas e farmacológicas, como máscaras e vacinas. Ainda que as pessoas teimem em não seguir essas medidas, é trabalho nosso como sociedade fazer com que essas medidas sejam aplicadas. Aliás, sequer sabemos qual o preço que estamos pagando ao aceitar a “convivência” com o vírus. A COVID-longa é pouco documentada e estudada até o momento.

    Aceitar a COVID-19 como um custo desse novo mundo é, para mim, inaceitável. Tanto quanto a vacinação estagnar em parte do mundo por movimentos antivacina e existir estoques guardados. Isto tudo enquanto nações inteiras sucumbem por falta de acesso ao que a ciência alcançou em meses de intensa pesquisa, é inconcebível.

    A conformidade do status quo mundial é uma afronta, perante as mortes que sucedem diariamente.

    Quando repetimos que a pandemia é o resultado direto das ações humanas. Ou ainda, quando afirmamos que a vacina só funciona se for universal, estamos realizando uma constatação estritamente factual. Não haverá lugar para nós e o vírus nesse novo mundo. Ou escolhemos uma morte lenta e sofrida, e impomos isso à sociedade, como temos feito até agora. Ou escolhemos construir um mundo em que não seja mais tolerável mortes por uma doença evitável e que tenhamos vacinas universalmente disponíveis.

    Ao escolher uma morte lenta e impormos isso socialmente, emergirá uma sociedade com sequelas dessa pandemia. Sequelas essas que começamos a entender somente agora. Por exemplo, há estimativas de que até 80% da totalidade de casos, sintomáticos ou não, acabam com algum tipo de sequela de longo prazo.  Ou seja, escolhendo um mundo que luta junto para combater mortes evitáveis, optamos por um mundo em que a saúde é vista de modo holístico. Isto é, integrado a outros saberes. Por exemplo, com urbanismo, climatologia, ecologia, agricultura, e também de modo transdisciplinar, em que essas todas ciências possam transpor conhecimento entre si.

    Não gostaria que vissem esse último parágrafo como um sonho utópico, contraposto a um aviso. Pelo contrário, o escrevemos mais como uma realidade desejável (possível?). Fazendo isto, nos contrapomos a uma realidade cada vez mais próxima e que congrega adeptos sem respeito a si mesmos e aos outros.

    Desumanizações…

    Quando pedem que aceitemos as sequelas da doença, as normalizam. Com isto, estão pedindo a todos nós um custo que somente a falta de caráter é capaz de arcar. Querem nos desumanizar, retirando-nos a empatia com a dor e o sofrimento do outro. Nos negamos, pois é exatamente neste ponto que nos tornamos humanos.

    Justificar-se, na atual incapacidade de coordenação da nossa sociedade e nas estatísticas do cálculo frio do custo, tanto em vidas, como em moedas dos dois cenários, é o fim de nós como humanidade. No fundo,  nós sabemos que um mundo em que não tenhamos que conviver com o Covid-19 só é mais custoso se ignorarmos que pessoas são incomensuravelmente mais valiosas que qualquer estatística. 

    Somos humanos porque somos capazes de calcular, mensurar, pensar, amar. Somos humanos, também, por olharmos os números e sabermos que não basta. É preciso nos colocarmos no lugar uns dos outros e vislumbramos, sentirmos o que sofrem nossos iguais. Pessoas não são números em estatísticas, são vidas, em suspiros de dor, alegria, leveza, presença, ausência.

    Os autores

    Rafael Lopes Paixão da Silva é doutorando em física. Ele estuda dados de saúde pública e sua dinâmica e relações com o clima é Físico. Além disso, é pesquisador do Observatório Covid-19 Brasil e foi convidado pelo editorial para escrever no Especial COVID-19.

    Ana Arnt é professora do Instituto de Biologia, Unicamp, coordena o Blogs Unicamp e o Especial COVID-19.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Força Tarefa da Unicamp: a universidade como potência

    Texto escrito por Ana Arnt, Marcelo Mori e Maurílio Bonora Junior para a Força Tarefa da Unicamp

    O que pode uma universidade, frente à maior crise sanitária das últimas décadas?

    Há quem diga que as universidades são encerradas em si mesmas. Bem como, não conseguem atuar em um mundo fora dos seus muros – muros estes nem sempre visíveis. Há quem diga que a primeira menção à palavra universidade teria sido usada pelos sumérios, por volta de 3.500 a.C.. Sendo definida como um espaço para desenvolvimento da escrita e da matemática.

    Ao longo da história foram vários os momentos em que a universidade foi conceituada e repensada. Há inúmeros registros de “a primeira universidade” em diferentes sociedades e civilizações. Entretanto, as universidades sempre estão atreladas a ideais de conhecimentos, técnicas, tecnologias, sendo espaço de proliferação de perspectivas para a sociedade e seu desenvolvimento.

    As universidades são, assim, espaços de produção de conhecimentos, a partir de pessoas que se formam, estudam, dialogam e aprendem sobre o mundo e seus fenômenos. E muitas vezes, também, parecem ausentes de debates mais amplos na sociedade. Podemos dizer que muitas vezes ficamos alheios às problemáticas cotidianas – tanto quanto muitas vezes não temos condições reais de resolver problemas práticos como gostaríamos.

    Os espaços de pesquisa em tempos de crise

    O estudo não atravessa
    o alvorecer,
    não reduz o alvorecer
    para passar ali
    da noite para o dia

    O estudo se
    recolhe no alvorecer,
    se mantém em suspenso
    no centro mesmo do alvorecer
    (Jorge Larrosa, 2003)

    A pesquisa, ou o estudo, se faz no limiar entre as observações do mundo e dos seus fenômenos, a busca por respostas às nossas perguntas e as relações sociais possíveis a partir destes conhecimentos. A pesquisa se faz “no centro mesmo do alvorecer”. Entre a iminência de cores de cada dia, que vislumbram formas e compreensões potenciais e a incerteza pelos excessos de penumbras.

    Este espaço do alvorecer pode parecer poético e desconectado da realidade. No entanto, ele se configura mais como um espaço de silêncio e distanciamento necessário, para compreender os detalhes de acontecimentos iminentes. O alvorecer é o espaço do estudo, da criação de possibilidades da pesquisa tornar-se ação: o alvorecer é espaço de potência. 

    São em tempos de crise que se buscam soluções ágeis. Através de ações coletivas, a partir da diversidade de saberes, característicos do que é uma universidade. Conhecimento e tecnologia se tornam imprescindíveis para que possamos seguir vivendo nosso cotidiano. Se é verdade que a universidade é um espaço que constrói ambos, no centro do alvorecer e suas nuances, e se é verdade que não estamos apartados do mundo, na vivência rotineira de dias e noites, a COVID-19 foi o momento de imersão, em que o alvorecer pareceu borrar-se com os dias e as noites. Seja para compreender a crise, seja para atenuá-la, a universidade precisava se fazer presente.

    Foi nessa trajetória, dentro destes ideais, que a Força Tarefa da Unicamp contra a COVID-19 se idealizou:

    UNICAMP como espaço de potência

    Isto é, a universidade que foi, que é e que idealiza ser: instância de ciência e conhecimento, com e para a sociedade em que estamos inseridos. É por nós idealizarmos a universidade como este espaço de potência que desde a chegada da pandemia mergulhamos nos meandros de diferentes campos de atuação, reunindo forças, articulando estratégias, buscando, enfim, ações coletivas em tempos de isolamento.

    Assim, a Força Tarefa se constitui como um movimento de pessoas. Isto é, a partir de seus saberes, rotinas e laboratórios, mostrou que a idealização de uma potência não se faz com rankings publicados em páginas de notícias que se amarelam com o tempo. As potências são atemporais. Pois mostram que mesmo em silêncio, arquitetam atividades capazes de mudar tantas vidas quantas forem possíveis.

    O alvorecer

    Enquanto aparentemente fechávamos nossas portas, dia 13 de março de 2020, o interior da universidade já fervia em ideias que viraram ações: o que nosso arredor necessitava com urgência? Como o mundo vinha enfrentando este vírus e quais eram as dificuldades emergenciais? As pessoas estavam compreendendo a severidade daquele momento, que persiste até hoje? De onde estavam retirando as informações para enfrentar a COVID-19 com segurança e saúde?

    Estas eram algumas das perguntas que nortearam a nossa universidade. A organização da Força Tarefa partiu de grupos de pesquisadores, professores, estudantes e funcionários inquietos frente à crise que crescia sem impedimentos… muitas vezes dos próprios governos. Foram 11 frentes de trabalho elaboradas. Parece muito. Mas a ideia era exatamente criar condições para que nossas ideias – em diferentes campos e perspectivas – se transformassem em ações que fossem ao mesmo tempo abrangentes e específicas. Todavia, era também fazer muito mais do que isto, nosso trabalho foi sobre salvar vidas, todos os dias.

    A Universidade Pública, no seu cotidiano, cumprindo seu papel

    Pesquisador, fardado com o equipamento de proteção completo, segura uma ampola contendo uma substância, com a etiqueta "COVID-19". A mão dele está em primeiro plano, o corpo desfocado atrás e o laboratório em plano de fundo bem desfocado. Na frente, direita, abaixo na imagem, escrito "Força Tarefa da Unicamp: a universidade como potência"
    Foto: Liana Coll

    Sem nossa abertura a novas parcerias e novas ideias, empresas e laboratórios continuariam restritos em sua capacidade de atuar no enfrentamento à COVID-19, em seu cubículo, sala ou laboratório. Sem nosso cooperativismo, a produção científica da UNICAMP não seria páreo para a competição internacional e não poderia oferecer alternativas ágeis, seja no aspecto tecnológico ou farmacêutico, num contexto nacional ou global. Além disso, sem nossa empatia, demandas de diagnósticos e de soluções tecnológicas, com mão de obra nacional, partidas de comunidades vulneráveis – muitas vezes esquecidas ou deixadas de lado em momentos de crise – não seriam cumpridas, ou estariam estacionadas até o momento. Sem a formação de pesquisadores, a sociedade estaria sem conhecimento necessário para enfrentar a maior crise que vivemos neste século, e nos últimos 80 anos.

    Em suma, tudo foi força motriz e condição de possibilidade para a Força Tarefa da UNICAMP existir: a universidade como potência é feita de pessoas que fazem do pensamento, ação. Assim, potência é fazer do alvorecer nossa rotina ao longo dos dias. Somos uma organização que começou de baixo para cima e tornou-se parte essencial da instituição. Ao longo de todo este período, tivemos o propósito de servir à sociedade como a universidade pública deve servir. Isto é, com empatia, coletividade e cooperação, conhecimento técnico e disponibilidade para tempos de crise, representando um dos pilares mais sólidos de uma sociedade desenvolvida.

    O futuro

    Assim, como o alvorecer, a universidade, potência que foi e que é, continuará sendo: pesquisas continuarão sendo feitas para entendermos o funcionamento do vírus, testes serão realizados para se diagnosticar pessoas, vacinas serão estudadas e testadas para salvar vidas, tecnologias serão desenvolvidas e ações sociais, efetivadas. E o trabalho da Força-Tarefa permanecerá. Bem como, seu legado vai persistir. Mesmo que essa não exista mais como instância oficial, mesmo que as pessoas parem de chamá-la assim, os reflexos de todos esses 19 meses de trabalho, de pensamento, dúvidas, relações e realizações, tudo isso persiste. Assim, todo este momento, potente por si, abre portas para mais perguntas a serem feitas e respondidas. E como o alvorecer, com uma miríade de novas cores e formas, surge uma nova geração: de pessoas, de conhecimentos, de tecnologias, para seguir e manter a potência.

    Quer saber mais sobre a Força Tarefa da Unicamp?

    Dia 15/10 promoveremos o evento “O que falta para a pandemia acabar? A Força Tarefa da Unicamp responde”. O evento é gratuito e on line! Se inscreva e participe!

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_
    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os produziram-se textos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, os textos passaram por revisão revisado por pares da mesma área técnica-científica na Unicamp. Assim, não necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

plugins premium WordPress