Categoria: ESPECIAL CIÊNCIA E POLÍTICA

  • A política e as histórias em quadrinhos

    Texto por Dani Marino

     

    Sabemos que nenhuma manifestação humana é dissociada do contexto em que foi produzida. Das artes plásticas, passando pelo cinema, pela literatura e outras expressões como as histórias em quadrinhos, essas expressões representam não só a visão de um artista sobre algo, mas indicam também quais são as condições sociais, políticas, culturais que possibilitaram a existência de suas obras.

    Painel da HQ “Vingadores: A cruzada das crianças” Foto: Reprodução

    Crivella manda recolher HQ dos Vingadores com beijo gay; Bienal se recusa – Prefeito disse estar ‘protegendo os menores da nossa cidade’; advogada diz que decisão é ‘censura’

    Ao mesmo tempo, o apagamento sistêmico da produção de determinados grupos, hoje entendidos como minorizados (a saber: mulheres, negros, LGBTs…), causa ausências que também são melhor compreendidas quando conhecemos o contexto político e social de cada época e de cada cultura.

    Nos quadrinhos, a política sempre esteve presente.

    Às vezes de maneira mais explícita, reforçando certos discursos e às vezes de maneira menos explícita, contrariando os discursos hegemônicos vigentes. Esses discursos podem ser examinados a partir de diversos vieses e é nas áreas como História e Ciências Sociais que estas análises encontram terreno muito fértil.

    Por exemplo, um dos marcos do desenvolvimento dos quadrinhos é o personagem Yellow Kid, de Richard Outcault. O garoto careca e de orelhas grandes já havia aparecido em outras publicações antes de se tornar o primeiro personagem colorido dos jornais estadunidenses.

    Suas tiras exerciam grande apelo ao púbico por reproduzir um tipo de humor carregado de estereótipos e era facilmente compreendida por imigrantes que não compreendiam bem a língua inglesa. Ou seja, por mais inocente que possa parecer, há uma série de elementos que podem ser observados a respeito do momento que os Estados Unidos atravessavam (MOREAU; MACHADO, 2020).

    Os códigos de ética e censura nos quadrinhos

    Com o surgimento dos quadrinhos de super-heróis no final dos anos 1930, o sentimento de nacionalismo inflamado pelas histórias de personagens como Capitão-América, Mulher-Maravilha e tantos outros tomou conta do dos EUA e contribuiu ainda mais com o sucesso das histórias em quadrinhos que enfrentariam um duro golpe nos anos 1950, quando o Comics Code Authority (código de ética dos quadrinhos) foi implementado pelas editoras (MOREAU; MACHADO, 2020).

    Em sua forma original, o código impõe, entre outras, as seguintes regras:

    • Qualquer representação de violência excessiva e sexualidade é proibida.
    • As figuras de autoridade não devem ser ridicularizadas ou apresentadas com desrespeito.
    • O bem deve sempre triunfar sobre o mal.
    • Personagens tradicionais da literatura de terror (vampiros, lobisomens, ghouls e zumbis) são proibidos.
    • Anúncios de tabaco, álcool, armas, pôsteres e cartões — postais nus são proibidos nas histórias em quadrinhos.
    • Zombarias ou ataques contra qualquer grupo racial, ou religioso são proibidos.

    o Código Hays que se trata do Código de Produção de Cinema aplicava entre outras regras as abaixo.

    Não era permitido:

    • Profanidade — uso de palavras como “Deus”, “Senhor”, “Jesus” ou “Cristo” (a não ser no contexto de cerimônias religiosas), “inferno”, “droga” e outras palavras profanas e expressões vulgares de qualquer forma;
    • Nudez — de facto ou insinuada
    • Tráfico de drogas
    • Insinuação de perversões sexuais
    • Escravidão de brancos
    • Miscigenação — relações sexuais entre brancos e negros
    • Higiene sexual e doenças venéreas
    • Cenas de parto — de facto ou insinuada
    • Órgãos sexuais de crianças
    • Ridicularização do clero
    • Ofensa deliberada a qualquer nação, raça ou credo

    Esse código impunha autocensura aos autores de quadrinhos a partir de critérios que foram acordados por editores após uma série de audiências no senado, após os estudos fraudados do psiquiatra Fredric Wertham em seu livro Sedução do Inocente (1954) terem ganhado popularidade. Com isso, vários temas e representações passaram a ser proibidos de serem retratados nos quadrinhos. Esse período coincidiu com o backlash (retrocesso) que as mulheres sofreram após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando toda indústria cultural reproduzia valores e discursos que pregavam a submissão da mulher ao marido, entre outras coisas.

    Paralelamente, em outros países do mundo também se observava esse movimento de constante entrelaçamento dos quadrinhos e da política. Fosse na censura da antologia de quadrinhos produzidos por mulheres na França, como o que ocorreu com a revista Ah! Nana! (NOGUEIRA, 2015), fosse na representação cômica dos gauleses e romanos nos quadrinhos de Asterix, que sempre representou uma crítica ao imperialismo britânico ou mesmo em nas caricaturas que Nair de Teffé fazia de personalidades brasileiras na primeira metade do século XX.

    Ainda sobre os quadrinhos mainstream, podemos citar os X-Men, que surgiram nos anos 1960 como uma alegoria para a situação de negros, mulheres e LGBTs nos EUA e que cujas causas ganharam visibilidade com os movimentos sociais que clamavam por direitos iguais na época. Com a equipe mais diversa de super-heróis já criados atém então, suas histórias inspiraram filmes, jogos e animações que traziam em seus discursos questionamentos sobre o ódio a quem era diferente. Porém, foi no final dos anos 1960 e durante os anos 1970 que os quadrinhos independentes, muitos deles com narrativas autobiográficas, definiram o tom de um estilo de quadrinhos que é publicado até hoje.

    Nomes como Robert Crumb, Art Spielgeman, Justin Green, Trina Robbins, Aline Kominsky-Crumb e tantos outros, encontraram no meio underground a chance de abordar temas tabu como sexualidade, aborto, direitos civis… e, em 1992, com o reconhecimento da HQ Maus, de Art Spielgeman (1986), contemplada com o prêmio Pulitzer, pessoas do mundo todo conheceram a história biográfica que narrava os horrores do Holcausto.

    Sem dúvida alguma, é por meio das publicações independentes que os autores alcançam maior autonomia para abordar temas como guerras, conflitos políticos, sexualidade, luta por direitos, como é o caso também da premiada HQ Persépolis (2000), da iraniana Marjani Satrapi, que aborda a revolução islâmica, ou de Fun Home (2006), de Alison Bechdel e que fala sobre sua homossexualidade e seu relacionamento com sua família enquanto tenta lidar com seus conflitos internos.

    E no Brasil?

    Com o golpe militar no Brasil nos anos 1960, a imprensa alternativa atingiu seu auge e entre os veículos de maior expressão na época, estava o periódico Ovelha Negra, editado pelo cartunista Geandré.

    Sua relevância é tamanha que o pesquisador e professor Osvaldo da Silva Costa decidiu registrá-la em sua dissertação de Mestrado, onde entendemos porque o humor gráfico teve um papel tão importante na propagação de ideais de oposição à Ditadura, fazendo com que muitos artistas que contribuíram com o jornal fossem perseguidos pelos militares.

    Capa do jornal Ovelha Negra fundado pelo cartunista Geandré (Foto: Divulgação)  

    Nos anos 1970, desenhistas e jornalistas que colaboravam com edições como O Pasquim, entre eles Ziraldo e Henfil, foram presos e várias publicações passaram a sofrer censura. Esta censura resultou na proibição de publicação de caricaturas durante o período de dez anos:

    “A censura proibia a publicação de caricaturas de autoridades nacionais e estrangeiras. Havia a censura prévia, que consistia na presença de um censor junto às redações até 1977”. (DA COSTA, 2012, p.73).

    Laerte Coutinho, uma das mais influentes cartunistas brasileiras, colaborou com muitos dos periódicos alternativos que circularam no Brasil e ainda hoje, seja em suas tiras como Piratas do Tietê ou em cartuns e charges encomendadas especialmente para ilustrar colunas de política em jornais, seu trabalho continua irreverente e provocativo.

    O cartum abaixo é um exemplo do diálogo entre o humor gráfico e a crítica político-social. Reflexo de temas recentes como os 50 anos do Golpe Militar no Brasil e uma pesquisa feita pelo Instituto de Pesquisa econômica aplicada havia apontado que 65% das pessoas entrevistadas acreditavam que mulheres que usam roupas curtas devam ser atacadas/estupradas, o cartum chama a atenção para os dois fatos diferentes e promove uma reflexão sobre ambos.

    Apesar da vocação dos quadrinhos para o entretenimento, não podemos negar sua importância no que se refere à crítica social e política através da História de diversos países. Muitas delas desempenharam um papel significativo na articulação de ideias durante regimes ditatoriais em países como Brasil e Argentina. Hoje, embora o Brasil viva um regime democrático, problemas como corrupção, escândalos políticos, desigualdade social, falta de investimento em programas de saúde e educação são temas recorrentes em tiras e charges de todo país.

    Nem só de humor vive a crítica

    Sabemos que nem todos os cartuns e tiras utilizam humor em sua linguagem, porém, é através do riso que grande parte dos artistas cria uma conexão com seu público. Tendo isso em mente, vale lembrar que não faltam estudos filosóficos, psicológicos e antropológicos acerca do poder do riso e suas funções, entre as quais podemos ressaltar a de atuar como arma de contestação política, como afirma Da Costa em sua pesquisa:

    A linguagem do humor – arma política contra regimes repressivos – é também considerada subversiva e de contracultura – pode ser narrada por meio do teatro, da música, da literatura, da imprensa, do cinema e do desenho de humor. Tem como finalidade provocar o riso ou o sorriso. O risível nas piadas e paródias, como imitação burlesca, era um dos recursos mais populares entres os bufões na Antiguidade. Rir de si mesmo e do seu semelhante, seja em tom jocoso ou de escárnio, é um traço marcante da natureza humana desde os tempos mais remotos. (DA COSTA, 2012, p.18).

    O escritor e semiólogo Umberto Eco, conhecendo o poder inquietador do riso, dedicou uma das de suas maiores obras a ele. Em O nome da Rosa, thriller ambientando na França medieval, a luta dos monges beneditinos do mosteiro de Melk para proteger um manuscrito nunca publicado de Aristóteles acaba causando inúmeras mortes e deixando um rastro de sangue.

    De acordo com as convicções dos monges mais conservadores do romance, o riso seria algo muito próximo da morte e da corrupção do corpo, mas o filósofo grego, em seu livro que só existiu na ficção, alertava para o poder libertador do riso como um veículo da verdade.

    O riso desvia, por alguns instantes, o vilão do medo. Mas a lei impõe-se através do medo, cujo nome verdadeiro é temor de Deus. E deste livro poderia partir a centelha luciferina que transmitiria ao mundo inteiro um novo incêndio: e o riso designar-se-ia como a arte nova, ignorada até de Prometeu, para anular o medo. Ao vilão que ri naquele momento, não importa morrer: mas depois, cessada a sua licença, a liturgia impõe-lhe de novo, segundo o desígnio divino, o medo da morte. E deste livro poderia nascer a nova e destruidora aspiração a destruir a morte através da libertação do medo. E que seríamos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais provido e afetuoso dos dons divinos? (ECO,1980, p. 359)

    Sendo então o riso capaz de nos guiar no caminho de descobertas sobre verdades que talvez nossos governantes prefiram que não tomemos conhecimento, não é de se espantar que tantos cartunistas tenham sido ameaçados, torturados ou mortos durante regimes ditatoriais ocorridos na América Latina, como foi o caso do autor de El Eternauta. Héctor Germán Oesterheld foi sequestrado, assim como quatro de suas filhas, duas delas grávidas, durante o regime militar da Argentina.

    Porém, engana-se quem acredita que essa tendência à crítica política mais explícita possa ser encontrada exclusivamente em charges e cartuns. Quadrinhos mainstream como V de Vingança ou Watchmen, por exemplo, são produções que também viraram filmes e que fazem críticas explícitas ao autoritarismo e à corrupção por exemplo. E até mesmo nos quadrinhos de Batman, cujos quadrinhos nos anos 1930 traziam forte propaganda dos esforços de guerra, é possível pensar sobre como Bruce Wayne se beneficia do capitalismo e contribui para a degradação de Gotham, como alerta a pesquisadora e especialista no personagem, Laluña Machado.

    V de Vingança – Filme

    No entanto, é por meio das charges que um tipo de humor costuma chamar os leitores à reflexão de maneira mais contundente, o que tem gerado consequências envolvendo censura e perseguição de artistas desde a eleição do atual presidente do Brasil ou até mesmo morte, como o que ocorreu com os cartunistas do jornal francês Charlie Hebdo.

    Também não muito tempo atrás, que o projeto de quadrinhos Políticas, produzido por mulheres e dedicado a compartilhar charges e cartuns produzidos exclusivamente por mulheres (cis ou não) fez uma convocatória para homenagear a vereadora carioca Marielle Franco , brutalmente assassinada em 2018. Mais recentemente, a HQ da socióloga sueca Liv Stromqüist explorou a história da vulva a partir de inúmeras referências históricas, filosóficas e sociais em A Origem do Mundo (2018), enquanto artistas brasileiras como Carol Ito e Helô D’Ângelo exploram temas políticos em suas tiras online.

    Assim, não só artigos, como teses e dissertações sobre quadrinhos costumam explorar os aspectos políticos apresentados nas HQ e independentemente de os discursos políticos estarem explícitos, eles atravessam as obras em maior ou menor grau.

    Para saber mais:

    Podcast Confins do Universo com o professor Silvio Almeida: Tem política nos quadrinhos sim!

    Narrativas distópicas em quadrinhos

    Elas fazem política, cartuns e charges

    Referencias:

    DA COSTA, Osvaldo. Uma Ovelha Negra na Cultura Midiática: Inovações do Humor Gráfico na imprensa alternativa brasileira. Santos, Ateliê de Palavras. 2015.

    ECO, Umberto. O nome da Rosa. São Paulo. Record. 2009
    MARINO, Daniela; MACHADO, Laluña. Mulheres e Quadrinhos. Skript, 2019.
    MOREAU, Diego; MACHADO, Laluña. História em Quadrinhos EUA. Skript, Florianópolis, 2020.

    NOGUEIRA, Natania. Ah! Nanah! As mulheres e os quadrinhos na França. XXVIII Simpósio Nacional de História. Florianópolis, 2015. Disponível em: http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1435888872_ARQUIVO_AhNana_artigo.pdf

  • Por que aborto é um tema de Saúde Pública?

    Texto por Ana Arnt

    O Brasil vive um cenário de eterno retorno à questão do aborto entre debates morais, criminais, de saúde, planejamento familiar e educação sexual e reprodutiva. Assim, não é incomum estas falas aparecerem em períodos eleitorais, como palco de intensas disputas entre grupos religiosos, feministas, acadêmicos e científicos, de saúde, dentre outros.

    Além disso, é usual, também, apontar que o aborto deve ser tratado como um tema de saúde pública e que isso independe de opiniões individuais sobre ser favorável ou não à prática do aborto. Vamos compreender um pouco mais sobre o tema, pensando acerca de diferentes abordagens?

    Saúde é um conceito

    Sempre é bom conceituar o que é saúde e o que é saúde pública. O conceito de saúde não é simples ou definitivo. Em geral temos duas grandes ideias usuais (que não são muito compatíveis em vários sentidos):

    • Ausência de doença;
    • Completo bem estar físico, mental e social.

    Enquanto o primeiro conceito olha para pessoas a partir apenas de suas características físicas (anatômicas e fisiológicas), ignorando fatores sociais amplos que podem contribuir para adoecimentos ou estados saudáveis; o segundo conceito aponta para a necessidade de olharmos para fatores psicológicos e sociais, traz a implicação do Estado para a manutenção da saúde (via questões sociais, mais amplas e que fogem ao controle de indivíduos), bem como insere a subjetividade no conceito, tendo em vista que diz respeito ao modo como lidamos com doenças, sintomas e muitos aspectos de nossa vida. Todavia, este segundo conceito insere, também, uma saúde inalcançável, tendo em vista que o conjunto “físico, mental e social” estando em completo bem estar não é, exatamente, a situação mais simples que existe.

    Saúde Pública

    Saúde Pública diz respeito a uma prática, que deveria ser embasada em dados técnicos e científicos, para direcionar políticas públicas que aumentem qualidade de vida, diminuam mortes, possibilitem uma vida sadia a uma população.

    Lembrando que quando falamos de população, estamos falando de um conjunto de pessoas que vivem em um determinado território. Portanto, a Saúde Pública diz respeito a um conjunto de políticas públicas, direcionadas a uma população de um determinado lugar (município, estado, país, continente, mundo, por exemplo).

    A Saúde Pública busca a saúde de uma população a partir de dados complexos, estatísticas de curto, médio e longo prazo, análises epidemiológicas e vigilância sanitária constantes.

    E o que isto têm a ver com Aborto???

    Tratar o aborto como temática de saúde pública é olhar, sem julgamento de valor, para a saúde de pessoas com útero, que estão gestando um feto e ver quais são as causas de adoecimento e morte destas pessoas. Dessa forma, ao constatar que aborto é uma destas causas, também procura-se interferir neste fator, diminuindo ele como causa de morte.

    Quando eu falo de saúde pública, estamos falando sobre a diminuição de causas de mortes e adoecimentos em uma população, em modos de interferir em causas de mortes e adoecimentos. Não é, necessariamente, uma interferência médica, mas sim de interferências que podem abranger diversas áreas, em um trabalho interdisciplinar que diminua estes números de adoecimentos e mortes.

        Entretanto, é claro que não é tão simples assim. Como podemos interferir em algo como o aborto? Primeiro devemos caracterizar a população que aborta. A segunda questão é perceber alguns dos fatores que levam ao óbito, mulheres que abortam. De maneira simples, parece óbvio: são complicações com o procedimento do aborto.

        Ao olharmos com mais cuidado, um dos problemas é a busca por instâncias de saúde, quando estas complicações acontecem. Em função do aborto ser ilegal em nosso país, estas mulheres correm o risco de serem acionadas juridicamente, para responder pelo crime, previsto no código penal. Neste caso, a falta de assistência, por um receio de prisão, é uma das consequências sofridas por estas mulheres, que podem falecer.

    Pensando a partir de dados públicos

    Os dados trazidos a seguir são de Bonfim e colegas (2021), a partir de um levantamento e análise do banco de dados DataSUS. Entre 2010 e 2019, o Brasil teve cerca de 650 mil casos de abortos (procedimentos legalizados ou não), segundo dados do DataSUS. Destes casos, 44.70% tem entre 20-29 anos, 48.59% se autodeclara parda; 38.91% tem apenas ensino fundamental e 62.56% declara-se solteira. Em relação às internações durante uma gestação, nosso país registra cerca de 500 por dia, causadas por aborto (espontâneos/naturais ou provocados). Ao longo dos anos de 2009 e 2018, o Brasil registrou mais de 700 óbitos em decorrência de aborto, sendo 60% destas mulheres, pardas ou negras. Por fim, mas não menos importante, entre 2010 e 2019 o país registrou 24 mil internações por aborto, crianças entre 10 e 14 anos. 

    E aí?

    Em suma, a questão, olhada como saúde pública, é buscar entender o que leva a um abortamento da gestação e atender a estas pessoas, diminuindo os efeitos na saúde delas. Assim, a proibição legal, neste caso, fragiliza exatamente por expor a riscos de complicação, sem busca de socorro especializado, além do risco do aprisionamento.

    Dessa maneira, a preocupação imediata é que estas pessoas tenham atendimento seguro, com procedimentos que acolham e atendam às necessidades de manutenção de suas integridades físicas, psicológicas, por ações sociais.

    Além disso, o custo do SUS para remediar, cuidar e salvar mulheres que chegam aos hospitais a partir de procedimentos de risco, é altíssimo. Aliás, isso não é sobre ideias aleatórias, novamente é bom lembrar que esta defesa se faz por dados públicos. Por exemplo, segundo estudo recente, quase metade de gestantes (48%) precisa de internação para finalizar o procedimento de abortamento. Neste sentido, há risco de denúncia e, consequentemente, prisão. Além do risco de agravamento da saúde e possibilidade de óbito.

    Todos estes dados constroem esta compreensão de que oferecer um serviço seguro de aborto diminui os riscos e a vulnerabilidade destas pessoas. E aqui, novamente, estamos falando de saúde pública. Isto é, diminuição de casos de morte e agravamento de riscos de saúde

    – Ah, mas eu acho que o aborto não deveria ocorrer

    Olhar o ato do aborto, como saúde pública, não é julgar os motivos pelos quais ele ocorre, mas assegurar que pessoas que precisem recorrer a este serviço, não se exponham a riscos à sua saúde. Dessa forma, neste caso, uma das medidas de saúde pública também é investir em educação sexual e reprodutiva desde períodos escolares e planejamento familiar em espaços de saúde pública, como postos de saúde, com distribuição de preservativos e contraceptivos.

    Todavia, tratar deste tema como saúde pública, é mais do que apenas isso. Uma vez que precisamos trabalhar com campanhas reais, sem debates morais ao estilo “não transem”, que geram culpabilização e fragilização destas pessoas que podem engravidar. Ou seja, trabalhar com prevenção ao aborto, como medida de saúde pública, é trabalhar não na responsabilização de indivíduos, mas ações efetivas de educação, planejamento, prevenção.

    Assim, o aborto, neste caso, é a última saída ou subterfúgio para assegurar a saúde das pessoas que precisam abortar.

    É preciso encarar como saúde pública este dado, pois todos os anos pessoas morrem por falta de acesso a práticas seguras. É fundamental encarar o aborto como saúde pública, pois é tarefa deste setor social garantir saúde, minimizar mortes, promover vidas sadias, especialmente àquelas vulneráveis.

    Finalizando

    O aborto, como questão moral, pode e deve ser debatida publicamente. Mas é fundamental e emergente que tomemos estas questões como fundamentais para salvar vidas de pessoas vivas, mantendo sua integridade, sem expor a riscos desnecessários, causados por falta de políticas públicas de saúde eficientes para estas pessoas.

    Ainda não concorda com o aborto? Ora, nos parece que a questão tangencia uma abordagem moral, de construção familiar, de aspectos sociais específicos e individuais. Mas aqui estamos falando de saúde pública, e a saúde pública trabalha com dados populacionais, proporcionando base para práticas para promoção à saúde – e não em detrimento desta.

    Por fim, quer saber mais sobre questões individuais? O nosso próximo texto abordará estas relações! Por hoje, seguimos batendo nesta tecla: aborto, como prática em debate público, precisa analisar dados públicos e promoção à saúde.

    Para saber mais

    BOMFIM, VVB da S; ARRUDA, MDIS; EBERHARDT, EdaS; CALDEIRA, NV; SILVA, HFda; OLIVEIRA, ARdo N; SANTOS, ERdos; SILVA, LRMda; SOARES, LL; BEZERRA, MELdeM; OLIVEIRA, MPde; ANJOS, GFde PFdos; CAVALCANTE, RP; FERREIRA, PdeF; SILVA, JFT (2021) Abortion mortality in Brazil: Profile and evolution from 2000 to 2020, Research, Society and Development, [Sl], v10, n7.

    BRASIL (2021) Mortalidade proporcional por grupos de causas em mulheres no Brasil em 2010 e 2019, Boletim Epidemiológico n29, v52

    CARDOSO, BB, VIEIRA, FM (2020) dos Santos Barbeiro e Saraceni, ValeriaAborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais? Cadernos de Saúde Pública, v36, nSuppl 1.

    LICHOTTI, C, MAZZA, L, BUONO, R (2020) Os abortos diários do Brasil, Revista Piaui

    MAIA, G; ZANLORENSSI, G, GOMES, L (2020) O direito ao aborto e a legislação ao redor do mundo, Jornal Nexo.

    Este texto foi publicado originalmente no blog PemCie.

  • Vidas negras importam – Black lives matter

    Texto por José Felipe Teixeira da Silva Santos

    Após o homicídio de George Floyd, asfixiado em público pelo policial Derek Chauvin, no dia 25 de maio em Minneapolis nos Estados Unidos, uma onda de protestos violentos se desencadeou em todo o País. Os manifestantes protestam pedindo a condenação do policial por homicídio em 1° (quando o autor do crime tem a intenção de matar) e, mais do que isso, esses manifestantes clamam pelas vidas de pessoas negras que, constantemente, são alvo de uma política de extermínio racista.

    Já no Brasil, o recente homicídio do menino João Pedro, alvejado pela Polícia do Rio de Janeiro dentro de seu próprio lar, mostra novamente que em nosso país, o Estado segue uma política de extermínio da população negra, semelhante aos Estados Unidos. Isto quer dizer que não foi um caso isolado. Apontar que existe uma política de extermínio é afirmar que não foi o primeiro caso, não será o último e, mais do que isso, é prática rotineira e em muitas medidas legitimadas publicamente.

    Os números têm nome e cor

    Casos de pessoas negras que tiveram suas vidas interrompidas, como o de João Pedro, de Ágatha Félix, de Marielle Franco, mortos pelas mãos do Estado, permanecem sem resolução até hoje, compondo uma dolorosa e cruel estatística. A maior parte das justificativas compreende a Guerra às drogas e ao Tráfico, mas ao que fica evidente, esta guerra na verdade é declarada a somente uma parcela da população, a que possui cor e endereço bem determinados. Estas guerras acabam com balas perdidas que coincidentemente são sempre encontradas em corpos de comunidades de favelas ou de bairros de periferia, negros.

    Essas situações não são novidade, mas têm inflamado ainda mais o descontentamento dos cidadãos brasileiros com o panorama atual do país. Similar aos protestos em Minneapolis, aqui também houve protestos e chamados para sairmos às ruas, exigindo justiça pelas mortes e igualdade racial nas políticas públicas e na vida em sociedade. Desse modo, as ameaças pelo contágio da doença COVID-19 causada pelo novo coronavírus, parece não serem suficientes para conter uma população que morre por tantos outros motivos, incluindo um período de isolamento social. Tais atos apresentam, assim, o lado cruel de políticas, de vivências, de rotina em que a morte é um enfrentamento cotidiano – dentro ou fora de casa. 

    Nas redes sociais não é diferente, pessoas das mais diferentes posições e crenças criaram filtros para destacar o seu compromisso com uma luta antifascista, têm postado questionamentos assertivos, cobrando posicionamentos de celebridades, intelectuais e veículos de comunicação.

    Todos estes momentos e movimentos são fundamentais, pois tornam visíveis os problemas da sociedade. Exaltar a ideia de que “vidas negras importam”, tanto quanto o nome e as vidas que estão sofrendo, tornando-os símbolos não é apontar isoladamente um problema que aconteceu, nem deve ser tomado desta forma. É, sim, buscar empatia de quem não vivencia isto como cotidiano (a população branca, por exemplo), tornar evidente a questão como parte da vida de muitos brasileiros. A luta contra o racismo não deve, portanto, estar restrita aos momentos de solidariedade às vítimas. A luta e o engajamento devem ser diários, pois para as famílias de sangue retinto, muitas vezes esse momento já é tarde.

    A famosa a frase da escritora Angela Davis segue apontando para o quanto é preciso protestar contra a desigualdade racial: não basta não ser racista, é preciso ser anti racista. 

    Você não acredita ou ainda tem dúvida que pessoas negras e suas vidas são as principais vítimas de violência no Brasil? Abaixo seguem estatísticas que retratam parte desta realidade.

    Genocídio da juventude Negra no Brasil

    Homicídio de pessoas negras no Brasil

    O informativo de Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil mostra que a população negra tem 2,7 mais chance de ser morta do que a população branca.

    Segundo dados do Sistema de Informação de Mortalidade do SUS, de 2012 a 2017, foram registrados 255 mil mortes de pessoas negras por assassinato

    Segundo a analista de indicadores sociais do IBGE – na série de 2012 a 2017, houve aumento da taxa de homicídios por 100 mil habitantes da população preta e parda (categorias adotadas pelo IBGE), passando de 37,2 para 43,4. Enquanto para a população branca esse indicador se manteve constante no tempo, em torno de 16.

    Em 2017, para jovens brancos, de 15 a 29 anos, a taxa de mortalidade era de 34 em cada 100 mil habitantes. Para pessoas pretas, 98,5 mortes por assassinato a cada 100 mil habitantes; o recorte apenas para homens negros nessa mesma faixa etária, alcança a taxa de 185. No recorte para mulheres, a taxa é de 5,2 para brancas e 10,1 para pretas.

    Crianças negras mortas nos anos de 2019 e 2020 vítimas de bala perdida

    No Brasil, crianças negras são vítimas de balas perdidas, dentro ou fora de suas casas, no trajeto para escola ou onde quer que estejam. A seguir, lista de nomes de crianças negras que tiveram suas vidas interrompidas por esta causa nos anos de 2019 a 2020:

    João Pedro Matos Pinto, 14 anos. Preto. 19/05/2020.

    Luiz Antônio de Souza Ferreira da Silva, 14 anos. Preto. 06/02/2020.

    Anna Carolina de Souza Neves, 8 anos. Preta. 29/01/2020.

    João Vitor Moreira dos Santos, 14 anos. Preto. 09/01/2020.

    Ketellen Umbelino de Oliveira Gomes, 5 anos. Preta. 13/11/2019.

    Ágatha Vitória Sales Félix, 8 anos. Preta. 20/09/2019.

    Kauê Ribeiro dos Santos, 12 anos. Preto. 08/09/2019.

    Kauã Rosário, 11 anos. Preto. 16/05/2019.

    Kauan Peixoto, 12 anos. Preto. 17/03/2019.

    Jenifer Cilene Gomes, 12 anos. Preta. 14/02/2019.

    PM’s negros lideram as estatísticas de mortes em serviço

    Mesmo estando em menor número dentro da corporação (37% do efetivo policial), entre os anos de 2017 e 2018, 51,7% dos policiais mortos em serviço eram negros.

    #vidasnegrasimportam

    Vidas negras importam, seja aqui, seja nos Estados Unidos, seja em qualquer outro lugar do mundo. José Felipe Teixeira da Silva Santos (autor deste texto), em conjunto com toda a equipe do Blogs de Ciência da Unicamp, manifestamos com este documento nossa posição anti racista e antifascista, mais do que não apoiar, nos contrapomos à conivência a qualquer tipo de ação, ato ou política que se articule ao racismo e a antidemocracia, hoje e sempre.

    Para saber mais

    ARAUJO, Taís.. Como criar crianças doces num país ácido | Taís Araújo – TedxSaoPaulo, TEDx Talks. 14 de nov. de 2017. Acesso em 01 de jun. de 2020.

    CERQUEIRA, Daniel RC; MOURA, Rodrigo Leandro de. Vidas perdidas e racismo no Brasil. 2013. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    COELHO, Leonardo. João Pedro, 14 anos, morre durante ação policial no Rio, e família fica horas sem saber seu paradeiro. El País, 19 de mai. de 2020.. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    DIEB, Daniel. Anonymous volta à ativa contra Bolsonaro e Trump; conheça o grupo hacker. Tilt, 02 de jun. de 2020. Acesso em 02 de jun. de 2020.

    DUAS novas autópsias afirmam que George Floyd foi morto por asfixia. Portal G1, 01 de jul. de 2020. Acesso em: 01 de jul. de 2020.

    IBGE: População negra é principal vítima de homicídio no Brasil. Exame, 13 de nov. de 2019. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    IBGE. Tábua completa de mortalidade para o Brasil. Acesso em: 01 de jul. de 2020.

    MARREIRO, Flávia. Marielle Franco, vereadora do PSOL, é assassinada no centro do Rio após evento com ativistas negras. El País, São Paulo, 15 de mar. de 2018. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    MENINO de 14 anos morre atingido por bala perdida na Baixada Fluminense. O Globo, Rio de Janeiro, 08 de fev. de 2020. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    MORRE adolescente de 14 anos baleado em Vila Kosmos. Portal G1, 02 de fev. de 2020. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    NITAHARA, Akemi. Negros têm 2,7 mais chances de serem mortos do que brancos. Agência Brasil, Rio de Janeiro 13 de nov. de 2019. Acesso em: 01 de jul. de 2020.

    OLIVEIRA, Leonardo. Da fatalidade epidemiológica à ferramenta de extermínio: a gestão necropolítica da pandemia. Blogs de Ciência da Unicamp – Especial Covid-19. 2020.

    SANTOS, Guilherme; SOARES, Paulo Renato. Em 10 meses, Rio tem 6 crianças mortas por bala perdida e poucas respostas para as famílias. Portal G1, Rio de Janeiro, 13 de nov. de 2019. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    TABU, Quebrando o. O dia que Brooklyn Nine-Nine explicou em um minuto o privilégio branco, Quebrando o Tabu, 01 de jun. de 2020. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    José Felipe Teixeira da Silva Santos é estudante de Biologia da Unicamp, membro da equipe técnica, administrativa e científica do Blogs de Ciência da Unicamp.
    O texto tem apoio total e incondicional de toda a equipe técnica, administrativa e científica do Blogs de Ciência da Unicamp.

  • Em governo de milico entreguista, Marinha perde propriedade de praias brasileiras

    Texto por Paulo Andreetto de Muzio

    Assim como o genocídio promovido pelos nazistas se intensificou no final da 2ª Guerra Mundial, diante da derrota iminente, o atual governo federal e seus aliados no Congresso, que pouco representam os anseios e necessidades do povo brasileiro, estão correndo para aprovar neste ano derradeiro mais medidas para prejudicar a população.

    No dia 22 de fevereiro, os deputados aprovaram a PEC 39, de 2011. Trata-se de um Projeto de Emenda à Constituição que propõe extinguir os chamados terrenos de marinha e dispor sobre a propriedade desses imóveis. “Os terrenos de marinha são as áreas situadas na costa marítima, as que contornam as ilhas, as margens dos rios e das lagoas, em faixa de trinta e três metros medidos a partir da posição do preamar (maré cheia) médio de 1831, desde que nas águas adjacentes se faça sentir a influência de marés com oscilação mínima de cinco centímetros.” Foram 389 votos a favor e 91 contra.

    Os argumentos a favor da mudança, descritos na própria redação da proposta, criticam o fato das posses da marinha tratarem-se de uma instituição antiga e as apontam como não condizentes com a realidade brasileira atual. Também defendem a necessidade de uma eficiência econômica, que aconteceria a partir da mudança.

    Antes mesmo da votação, o jornalista ambiental André Trigueiro mostrou sua preocupação ao dizer que tratava-se da boiada litorânea, fazendo referência  a uma fala de Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente que em determinado momento do governo Bolsonaro propôs aproveitar que os holofotes da mídia estavam voltados à pandemia de Covid-19 para aprovar na surdina medidas que promovessem o desmatamento.

    Acompanhando alguns debates e posicionamentos de membros da Frente Ampla Democrática Socioambiental (FADS), coletivo de luta pelo meio ambiente que congrega pesquisadores, professores, servidores públicos, ativistas e pessoas comprometidas com a justiça socioambiental, compreende-se que PEC 39 é uma grande ameaça.

    As áreas das quais a proposta trata pertencem à União. A PEC propõe a transferência da propriedade de parte delas para estados, municípios e os atuais ocupantes. Muitas são ocupadas por particulares que pagam pelo uso. É um prato cheio para aqueles endinheirados que querem fechar praias. Também é um incentivo para que ocorram mais casos como o do município paulista de Ilha Comprida, onde houve no ano de 2019 a aprovação de uma lei municipal feita sem consulta pública e sob encomenda para que um determinado empresário pudesse construir prédios de até 30 metros de altura (7 andares). Após mobilização popular, o empreendimento foi cancelado. Mas com a PEC 39, haverá mais áreas como essa a serem loteadas e ocupadas.

    Além da especulação dos grandes empreendimentos, pode haver distribuição de títulos de propriedade a populações em condições inadequadas de moradia e em áreas de risco, o que prejudica a realização das políticas públicas habitacionais e de urbanismo necessárias e perpetua a precariedade em que essas pessoas vivem.

    A pressão do capital em nossa costa irá explodir cada vez mais em conflitos fundiários. Essa proposta de emenda é um saldão da especulação imobiliária de políticos (no mal sentido da palavra) para liquidar com as áreas de preservação e com as pessoas que estarão cada vez mais em risco nessas áreas sensíveis a inundações e enxurradas.

    No momento, a proposta tramita para a apreciação do Senado Federal. O fim da posse desses terrenos da marinha leva à privatização turísticas de praias e caminha para a realização do sonho daquele sádico que botaram na presidência da república de termos uma (ou mais) Cancún brasileira. E isso não é uma coisa boa. Uma espécie de Apartheid vem por aí…


    Paulo Andreetto de Muzio é graduado em Relações Públicas (2005) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP. Especializou-se em Jornalismo Científico (2016) pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo – Labjor, da Universidade de Campinas – Unicamp, e é mestre em Divulgação Científica e Cultural (2020), também pelo Labjor.

    Este texto foi publicado originalmente no blog Natureza Crítica.

  • No Brasil, é mais fácil vacinar crianças ou envenená-las?

    Texto por Paulo Andreetto de Muzio

     

    Imagine se fizessem o mesmo barulho para a liberação de veneno que fizeram e ainda estão fazendo para tentar barrar a aprovação de vacinas. Só imagine…

    No dia 9 de fevereiro, a câmara dos deputados aprovou o Projeto de Lei nº 6.922 de 2002, conhecido como PL do Veneno, que flexibiliza o uso de agrotóxicos no Brasil. O resultado da votação foi de 301 a favor, 150 contra e duas abstenções. Neste momento o projeto tramita para o Senado.

    Ano após ano o Brasil bate recordes de liberação de agrotóxicos. Em 2020 foram 493 e em 2021 mais 562. “Entre os 50 agrotóxicos mais utilizados no Brasil, 30 já são banidos em outros países”, afirma o deputado federal Alessandro Molon, do Partido Socialista Brasileiro, contrário à flexibilização. A aprovação de veneno vem aumentando desde 2016, ano em que Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores, foi tirada do cargo de Presidenta da República.

    A língua não é neutra e sempre é utilizada na construção das narrativas. Luiz Nishimori, do Partido Liberal, relator do projeto, modifica alguns termos na própria redação do PL substituindo agrotóxicos (assim aparecem na Constituição Federal) por pesticidas. E quando utilizados em florestas e ambientes hídricos, passam a ser denominados produtos de controle ambiental. Também não é incomum militantes pró-veneno chamarem os agrotóxicos de defensivos agrícolas. É um belo eufemismo, pra não dizer mau-caratismo semântico. Um negócio que ataca a vida, que mata, ser colocado como algo que defende, que protege. O que está realmente sendo defendido é o lucro de alguns poucos capitalistas em cima de mortes e da degradação do meio ambiente.

    Prejuízos à saúde humana e impactos no Meio Ambiente

    Os agrotóxicos podem causar nas pessoas efeitos como como “aborto, impotência, depressão, problemas respiratórios graves, alteração do funcionamento do fígado e dos rins, anormalidade da produção de hormônios da tireoide, dos ovários e da próstata, incapacidade de gerar filhos, malformação e problemas no desenvolvimento intelectual e físico das crianças”.  Também podem causar câncer.

    Os principais afetados são agricultores, agentes de controle de endemias, trabalhadores de empresas desinsetizadoras e das indústrias de agrotóxicos. Mas todas a população está exposta a agrotóxicos pelo consumo de alimentos e água contaminados.

    E se engana quem pensa que os agrotóxicos estão presentes apenas em produtos frescos. Pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, mostra que “os resíduos de agrotóxicos permanecem até em produtos ultraprocessados, como bisnaguinhas, bolachas recheadas, biscoito de água e sal, cereais matinais, bebidas de soja e salgadinhos. Foram 27 produtos analisados, divididos em oito categorias. Dessas, seis apresentaram  resíduos de agrotóxicos.”

    Com tanto veneno sendo solto no mercado, fica bastante difícil especificar os impactos negativos de cada um deles. Alguns são mais leves, outros mais pesados.

    O glifosfato, por exemplo, é o agrotóxico mais utilizado no Brasil. Um estudo realizado por pesquisadores das universidades de Princeton, Fundação Getulio Vargas e Insper revelou que a disseminação do glifosato nas lavouras de soja levou a uma alta de 5% na mortalidade infantil em municípios do Sul e Centro-Oeste que recebem água de regiões sojicultoras. Isso representa um total de 503 mortes infantis a mais por ano associadas ao uso do glifosato na cultura de soja.

    Os agrotóxicos podem contaminar os corpos hídricos, afetando tanto a vida aquática quanto o abastecimento humano. Comprometem ainda a fertilidade do solo.

    Alguns desses produtos podem impactar na biodiversidade de insetos. No caso da mortalidade de abelhas, principal polinizadora animal, comprometem a própria produção agrícola. Algumas culturas são essencialmente dependentes dessa polinização, como abóbora, acerola, cajazeira, cambuci, castanha do pará, cupuaçu, fruta do conde, gliricídia, jurubeba, maracujá, maracujá doce, melancia, melão e urucum. Quando não polinizadas, a produção cai entre 90 e 100%.

    Lobby poderoso

    No documentário O Veneno Está na Mesa (2011), de Silvio Tendler, Eduardo Galeano afirma que os agrotóxicos, que são venenos contra a natureza, estão sendo permitidos até mesmo por governos progressistas em nome de uma produtividade, a partir de um critério economicista do que é o desenvolvimento humano. E dessa forma, esses governos aceitam os agrotóxicos como se fossem uma necessidade inevitável. Vale lembrar que Kátia Abreu, pecuarista pró-veneno e atualmente senadora pelo estado de Tocantins, que não consegue parar quieta em um partido político, foi Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento no segundo mandato do governo Dilma.

    Se em gestões progressistas já estava ruim…

    Anos atrás, no Congresso Brasileiro de Jornalismo Ambiental, conversei com uma pessoa que representava uma ONG que exibia filmes sobre temas ambientais e havia firmado uma parceria com uma secretaria de estado de Meio Ambiente para a realização de sessões de cinema. O cronograma já estava rolando e vários filmes já haviam sido exibidos. Ela me contou que ao ser divulgada a exibição de O Veneno Está na Mesa, rolou censura. Tema sensível. Polêmico até mesmo para uma pasta governamental de Meio Ambiente.

    Ano passado escrevi aqui no blog como profissionais são perseguidos ao mexer em vespeiros como esse. Larissa Mies Bombardi, doutora em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP), publicou em 2017 o Atlas “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia”. Em 2019 foi publicado em inglês na Europa e, após a maior rede de supermercados orgânicos da Escandinávia boicotar produtos do Brasil, Larissa sofreu intimidações por personalidades e instituições do agronegócio. Além disso, foi vítima de um assalto a sua casa em que o notebook com dados de sua pesquisa foi roubado. Monica Lopes Ferreira, imunologista do Instituto Butantan, também sofreu retaliações por sua pesquisa. Em 2018, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), estudou 10 tipos de agrotóxicos e demonstrou que não há doses seguras para o uso de nenhum deles. A direção do Instituto Butantan proibiu Monica de submeter novos projetos de pesquisa por seis meses. Ela teve que entrar na justiça para reverter a situação.

    Ainda temos fresco na memória a perseguição recente por parte do desgoverno miliciano a servidores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no contexto da pandemia de Covid-19, após a aprovação da vacina da Pfizer para crianças de 5 a 11 anos.  Em 2010, José Agenor Álvares, um dos diretores da Anvisa, deu entrevista à edição brasileira do jornal francês Le Monde com o título “Brasil envenenado”, fazendo crítica ao uso excessivo de agrotóxicos pela agricultura brasileira. Na época, acabou sendo intimado pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado, na figura de Kátia Abreu, para prestar esclarecimentos.

    A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional realizou levantamento em 2021 que revelou que 19 milhões de pessoas passam fome no Brasil. Desde 2018 somos o país que mais consome agrotóxicos no mundo. Em nome de uma suposta necessidade de alimentar a população, envenena-se a terra e tudo o que se vive nela. Uns poucos lucram com isso e grande parte da população continua passando fome.

    Imagine se vacinar as crianças fosse mais fácil que envenená-las… só imagine.

     


    Paulo Andreetto de Muzio é graduado em Relações Públicas (2005) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP. Especializou-se em Jornalismo Científico (2016) pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo – Labjor, da Universidade de Campinas – Unicamp, e é mestre em Divulgação Científica e Cultural (2020), também pelo Labjor.

  • Arte e gastos públicos

    Texto por Lucas Miranda

    O que vem à sua mente quando você vê uma performance como essa da imagem? E o que vem à mente se eu te contar que ela teve um custo de 20 mil reais para a prefeitura da cidade de Juiz de Fora / MG? Um absurdo? Qualquer coisa menos arte? Um dinheiro que poderia estar sendo utilizado para cobrir buracos, melhorar os postos de saúde, melhorar a segurança pública? Uma “lacração”?

    Nesse texto, vamos conversar um pouco sobre gastos públicos com cultura e o que exatamente é arte.

    Este conteúdo foi originalmente produzido em vídeo, mas se preferir pode lê-lo logo depois do player!

    Cartaz chamando o público para a Semana de Arte Moderna de 1922. 

    100 anos da Semana de Arte Moderna de São Paulo

    No dia 13 de fevereiro de 2022, a famosa Semana de Arte Moderna de 1922 completa 100 anos. A Semana aconteceu no Teatro Municipal de São Paulo e foi um grande catalisador de mudanças importantes na linguagem artística brasileira. A partir desse marco, surge o chamado “modernismo” no Brasil, trazendo uma estética bastante diferente.

    Até aquele momento, prevalescia a expressão artística do academismo, baseada nas academias de arte europeias e instituída no país desde 1816, com a criação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios por D. João VI.

    A arte acadêmica tinha um caráter bastante moralista, muitas vezes recorrendo a cenários bíblicos ou à coragem nobre de soldados em guerras. A idealização das formas e dos corpos também era algo que se perseguia, evitando-se ao máximo o mundano, o cotidiano e o real. As obras academistas eram carregadas de técnias complexas, uso moderado de cor e de tinta e as superfícies eram perfeitamente lisas (sem que se pudessem perceber os traços do pincel).

    Com a intenção de promover uma renovação artística e social no Brasil, um grupo de artistas (revolucionários) que se apresentariam na grande e esperada Semana de Arte Moderna de 1922, resolveram apresentar obras que causavam drástico rompimento com a expressão artística vigente (o academismo). Dentre as várias apresentações de música, poesia, esposição de obras, as obras dos chamados “modernistas” eram muito mais mundanas, cotidianas, coloquiais, cômicas, irônicas e com temáticas bem brasileiras.

    É claro que isso desagradou uma parcela importante da população e gerou diversos ataques aos artistas e a esse movimento. Mesmo assim, essa semente plantada em 1922 levou a uma série de movimentos e mudanças estilísticas nos anos seguintes.

    Segundo a jornalista e historiadora Marcia Camargos, o maior legado da Semana de 1922 “foi no sentido de libertar as artes e a cultura das amarras do academicismo, do parnasianismo, dos padrões europeus, para dar inicio à construção de uma estética nacional”.

    Primeira Missa no Brasil (1861). Obra de caráter histórico do período academicista do artista Victor Meirelles
    Samba (1925). Obra modernista do artista Di Cavalcanti

    Ataques à arte

    Para homenagear o centenário da Semana de 1922, a Prefeitura de Juiz de Fora lançou o edital cultural “Pau Brasil” para apoiar 15 ações culturais e artísticas na cidade com o valor fixo de R$ 20.000,00.

    Dos projetos contemplados o 5º lugar foi uma intervenção cultural chamada PRAIA. De acordo com a diretora dessa intervenção,

    “A ideia é a gente ocupar o Parque Halfeld [um ponto de encontro importante da cidade] de uma maneira diferente do que acontece normalmente e estamos aqui para propor novos olhares, novas maneiras de estar, questionando protocolos sociais, preconceitos e se dando ao prazer de desfrutar esse momento”.

    A intervenção artística, que ocorreu no dia 05/02/2022, consistiu em um grupo de artistas sobre uma lona amarela simulando que estavam na praia (tomando sol, conversando, etc.). Parte da população de Juiz de Fora criticou fortemente essa intervenção, alegando que: 1) isso não é arte e 2) foi um dinheiro jogado fora e os 20 mil reais gastos pela prefeitura poderiam ser utilizados para, por exemplo, cobrir buracos no asfalto.

    As críticas foram tão intensas, que o setor de inteligência da Secretaria de Segurança Urbana recomendou a suspensão da segunda apresenação dessa intervenção, de modo a proteger a integridade física dos artistas.

    É assustador ver uma performance artística precisar ser cancelada por risco à integridade física dos artistas. Da mesma forma que a Semana de Arte Moderna de 1922 sofreu ataques duros, essa intervenção (que homenageou a Semana de 1922) e outras obras artísticas que provocam rompimento com a arte mais pura, mais moralista, também sofrem ataques até hoje. Isso mostra que nesses 100 anos ainda não aprendemos tanto assim com os artistas modernistas, embora a arte tenha se transformado muito.

    Dinheiro jogado fora?

    O projeto “PRAIA” recebeu R$ 20.000,00, como estava previsto no edital Pau Brasil, sendo que cerca de 5.000,00 ficaram retidos por imposto de renda. O dinheiro restante foi usado para remunerar: 1) uma oficina de criação de 1 mês de duração; 2) duas apresentações de 2h de duração com um grupo grande de artistas; 3) a produção de um vídeo de registro; e 4) uma oficina de avaliação aberta ao público. Ou seja, não foram 20 mil reais por uma performance.

    Para ser aprovado neste edital, o proponente deveria justificar a destinação de cada centavo gasto no projeto (e valores superfaturados ou gastos desnecessários poderiam fazer o projeto ser desclassificado) e após a sua execução todos os gastos deveriam ser comprovados. Ou seja, tudo é muito bem controlado e avaliado pela Comissão Municipal de Incentivo à Cultura (Comic), que é composta por membros do poder público e da sociedade civil (principalmente da classe artística).

    Existem outros fatores importantes também: o projeto precisa ter alguma acessibilidade (seja para surdos, cegos, pessoas com deficiência, etc.); precisa estar muito bem justificado quanto ao seu objetivo artístico (e isso é avaliado por artistas); e ainda precisa oferecer uma contrapartida social gratuita (isso quer dizer que quem ganha essa verba precisa de oferecer gratuitamente uma oficina, um curso, uma aula, etc. para a poppulação da cidade. Ou seja, há aí uma importante devolutiva à sociedade, cujo dinheiro foi investido nesse projeto.

    Por fim, vale dizer que seria impossível a prefeitura simplesmente pegar esse dinheiro e usar para cobrir buracos no asfalto, simplesmente porque é uma verba que já está destinada à pasta da cultura. Quando a prefeitura aprova a lei orçamentária de um ano, ela já estabelece quanto de verba vai para cada setor. Uma vez que o dinheiro foi para a cultura, lá ele fica, e quem vai administrá-lo é a secretaria responsável. Além disso, um investimento de 300 mil reais (que foi o orçamento do edital inteiro, que contemplou 15 projetos) pode até parecer um valor exorbitante, mas não é. Para uma cidade que tem um orçamento anual da ordem de 2 bilhões e 600 milhões, esse investimento é muito pequeno. A arte sempre recebeu, e recebe, muito pouco. E o pouco que ela recebe é sempre alvo de muitos ataques e questionamentos.

    Sobre o argumento de que isso é ou não arte, nem faz sentido entrar nessa discussão, uma vez que as pessoas que mais estão defendendo que esta intervenção não é arte não têm qualquer formação artística e, pelo visto, não são consumidoras de algumas lingagens artísticas, como a arte performática. Muitas das críticas também se originam de um pensamento mais moralista e conservador e traz uma bagagem ideológica que dificulta o indivíduo a se abrir a expressões artísiticas que rompem com esse conservadorismo.

    No fim, a melhor prova de que trata-se de uma obra de arte singela e potente é que ela cumpriu um papel importante de provocar, tocar em feridas da sociedade e efervescer discussões.


  • Volóchinov, Marighella e o camarão de Wagner Moura

    Texto por Armando Martinelli Neto

    “Quero ser apenas um entre
    os milhões de brasileiros que resistem”
    (Carlos Marighella)

    Enquanto escrevo esse texto, no dia 04 de dezembro, data em homenagem a Orixá Iansã (rainha dos ventos, raios e tempestades), vejo um vídeo nas redes sociais com a primeira-dama do país saltitante a gritar “glória a Deus, aleluia, aleluia”, em razão da aprovação do Sr. André Mendonça ao cargo de juiz do Superior Tribunal Federal (STF). É, segundo os próprios seres que choram e rezam no vídeo, um feito histórico, pois trata-se de um representante terrivelmente evangélico a ingressar no STF.

    É dentro desse contexto de distopia ao vivo, que no segundo semestre tive a oportunidade de tomar conhecimento das ideias centrais do pensador russo Valetin Volóchinov, por meio do livro “A palavra na vida e a palavra na poesia – ensaios, artigos, resenhas e poemas”. Falar em coletivo, em compartilhamento de ideais, me faz conectar as páginas do livro com o filme Marighella, dirigido por Wagner Moura e lançado em 04 de novembro.

    A obra, pronta desde 2018, sofreu inúmeras retaliações da Ancine (órgão oficial do cinema nacional), atuando, principalmente, em dificultar sua chegada aos cinemas. Calhou que depois de tanto atraso, o lançamento ocorresse justamente em período de menor contágio da pandemia, possibilitando o acesso maior das pessoas.

    O filme, como esperado, sofreu muitas críticas das narrativas centradas nas alas conservadoras que lideram o país, uma delas, com grande repercussão, foi o episódio da marmita com camarão degustada por Wagner Moura, em uma das exibições realizadas em acampamento do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).

    É dessa junção do lançamento de Marighella, das repercussões sobre o prato com camarão degustado por Wagner Moura, ladeados pela distopia nacional, que esse texto pretende conduzir algumas reflexões, tendo como base ideias de Valetin Volóchinov, mostrando quão atuais são os pensamentos desse filósofo, poeta, linguista e crítico literário, falecido em 1936.

    Marighella Vive

    Um adolescente viaja no carro com o pai saindo do interior do estado com destino a São Paulo, capital. Visitar São Paulo sempre foi para aquele jovem um grande fascínio, com as misturas de fachadas e cores que se prolongavam diante dos curiosos olhares, ao mesmo tempo que um tom melancólico irrompia diante das cenas explícitas de miséria, com os barracos de papelão nas bordas das grandes avenidas e a multiplicação de pessoas pedindo esmolas. Nesse dia, em particular, uma pichação chamou sua atenção. Como essa da foto abaixo:

    Pixação em João Pessoa – Murilo Endriss
    https://www.flickr.com/photos/50496888@N00/8746527671/

    – Pai, quem é Marighella?
    O pai, que assoviava distraidamente na espera do semáforo, com a vista para uma roda de samba na esquina, coçou levemente a cabeça e respondeu.
    – Ah, filho, foi um terrorista, comunista, algo assim. Olha, já estamos quase na av. Paulista.

    Naquela época não havia google para que o jovem digitasse Marighella e recebesse inúmeras informações sobre o personagem. Anos mais tarde, na faculdade de Jornalismo, ele finalmente teve elementos mais contundentes sobre a vida de Carlos Marighella, durante aulas que abordaram a relação da imprensa e a ditadura militar no Brasil.

    Foi aí que ele entendeu a importância daquela frase no muro, ao se deparar com a trajetória do poeta, escritor, político, e um dos líderes da resistência armada contra a ditadura militar no Brasil. Como constatado no impactante filme de Wagner Moura, uma das grandes frentes de atuação da resistência era fazer chegar à população brasileira a mensagem de que havia um grupo de pessoas lutando pela liberdade do país.

    A expectativa de Marighella consistia em quebrar a versão oficial dos fatos disseminada pelo governo golpista, que sob a égide da truculência dos coturnos impunha a censura a qualquer veículo de comunicação. Mais do que nunca, a “verdade” oficial dos militares procurava ter um caráter eterno, e, assim, apagar qualquer fresta de comunicação que pudesse ampliar os horizontes, como Volóchinov explica.

    A classe dominante aspira dar ao signo ideológico um caráter eterno, acima das classes, apagar ou encurralar a luta de relações de classe que ocorrem no seu interior, fazer dele a expressão de apenas um olhar firme e imutável. (VOLÓCHINOV. A palavra na vida e a palavra na poesia. Pág. 320)

    O que mais assombra diante da pontuação dos fatos acima citados não é constatar que grande parte da população brasileira tenha aceitado o discurso dos “terroristas da luta armada”, que insistiam em atrapalhar a ordem e progresso do país. Afinal, a massificação da mensagem oficial torna o receptor alvo fácil. (Caso queira sentir hoje em dia o mesmo “gosto” da comunicação unilateral dessa época, basta sintonizar na emissora Jovem Pan).

    Junta-se a isso a “caça às bruxas” ocorrida em nível mundial decorrente da Guerra Fria, como no período do Macarthismo estadunidense, com listas de comunistas sendo expostas como inimigos da pátria (O filme Trumbo é bom exemplo da época, com inúmeros artistas e diretores de cinema americanos ameaçados de boicotes por serem comunistas) e compreende-se, assim, a força do discurso impregnado.


    A questão é verificar como a mensagem oficial perpetuou uma sensação positiva nas pessoas, em contraponto ao apagamento de Marighella e do grupo de resistentes, lembrados majoritariamente como terroristas. E, nesse sentido, existe um componente comunicacional crucial, a chamada mídia jornalística de massa. (Você pode conferir mais sobre isso no texto “Qual a diferença da comunicação antes da internet e agora?“)

    Se na ditadura militar os veículos de comunicação sofriam censura em razão do Ai-5, muitos anos depois constata-se que a cobertura tendenciosa de alguns casos auxiliou na corroboração de discursos cruciais para a conjectura política e social dos últimos anos. Exemplo claro foi a participação ativa da Rede Globo na valorização da operação Laja Jato.

    O veículo The Intercept Brasil teve acesso a várias mensagens virtuais que comprovaram a estreita relação entre a emissora e os procuradores-chaves da operação, conforme trecho da matéria abaixo.

    “Por anos, a Globo trabalhou com a operação Lava Jato numa parceria de benefício mútuo. O arquivo da Vaza Jato mostra que a força-tarefa antecipava informações para jornalistas da emissora e dava dicas sobre como achar detalhes quentes nas denúncias. A Globo usava os furos para atrair audiência e servia como uma plataforma para amplificar o ponto de vista dos procuradores. O espaço dado à defesa dos suspeitos e investigados viraria nota de rodapé, e minguava a esperada distância crítica que jornalistas precisam ter de suas fontes e de grupos políticos que são tema de suas reportagens. A parceria da Globo com a Lava Jato foi fundamental para consolidar a imagem de heróis que procuradores e o ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sergio Moro sustentaram por anos”.
    ‘UM TRANSATLÂNTICO’ – O namoro entre a Lava Jato e a Rede Globo

    A frase “O espaço dado à defesa dos suspeitos e investigados viraria nota de rodapé…”, demonstra bem a tendenciosa apuração dos fatos, e a força que o tom das matérias alcançou, elevando figuras como o então juiz Sérgio Moro. A valorização da Lava Jato, sobretudo na concentração de denúncias contra o PT, impulsionou o discurso de ódio contra a esquerda. O conceito de entonação de Volóchinov traduz bem a forma da cobertura da Rede Globo, e como a construção das matérias sobre a Lava Jato auxiliou na simpatia com o auditório.

    A ideologia de classe penetra de dentro (por meio da entonação, da escolha e da disposição das palavras), qualquer construção verbal, ao expressar e realizar não só por meio do seu conteúdo, mas pela sua própria forma, a relação do falante com o mundo e as pessoas, bem como a relação com dada situação e dado auditório. (VOLÓCHINOV. A palavra na vida e a palavra na poesia. pág. 309)

    A Globo, assim como outros veículos de comunicação de massa do país, conduziram a entonação favorável para cristalizar a Lava Jato como uma operação séria e vital para o bom andamento do Brasil. A entonação utilizada pelos grandes veículos de mídia de massa fez com que um inimigo fosse criado, simbolizado na figura de Lula, adjetivado pelos signos vermelho, comunista, socialista, petista etc. O Brasil necessitava, novamente, de ordem para manter o progresso. Marighella renascia no filme de Wagner de Moura, no país que nunca saiu de 1964.

    Pobre pode comer camarão?

    Repare bem na foto abaixo. O leitor nascido no Brasil pode identificar que se trata do ator e diretor Wagner Moura, comendo uma refeição em evento de alguma unidade do MTST. Afinal, o símbolo do movimento está estampado nas paredes, bonés e vestes das pessoas que surgem na cena.

    Fonte: Uol

    Dentre as inúmeras polêmicas com o filme Marighella, uma das maiores originou-se na exibição, mais propriamente, em uma das várias sessões realizadas junto aos representantes do MTST, com a participação do diretor do filme, Wagner Moura, notoriamente reconhecido como um artista atuante em frentes políticas, sem nunca ter escondido suas críticas ao atual governo do país. Tudo tem origem com a foto acima publicada por Guilherme Boulos (Psol) em sua página no Twitter.

    O pré-candidato pelo Psol ao governo de São Paulo legenda seu post com o seguinte texto – “Wagner Moura comendo uma quentinha na ocupação do MTST, onde fizemos ontem a exibição popular de Marighella. Foi potente! Viva a luta do povo!”

    Fonte: @GuilhermeBoulos

    O post de Boulos reverbera e acaba por gerar comentários dos representantes da direita, como esse de Eduardo Bolsonaro. “Agora tem o MTST raiz e o MTST nutela. Ou será que já é o comunismo purinho, onde a elite do partido come camarão e o restante se vira e passa fome igual à exemplar Venezuela?

    Fonte: @BolsonaroSP

    Depois de muita polêmica e ataques no Twitter, Boulos fez novo post dizendo: “Direitistas raivosos com a foto do Wagner Moura comendo acarajé no prato na ocupação do MTST mostra que o bolsonarismo vibra com a fome e, acima de tudo, desconhece a cultura brasileira”.

    Fonte @GuilhermeBoulos

    Como podemos ver, a questão crucial é a ingestão de camarão dentro de um ambiente geograficamente destinado a pessoas de origem humilde. Notem que algumas palavras do diálogo deixam claro as relações de classes. Boulos em sua primeira mensagem denomina a refeição de Moura como quentinha, termo comum para designar as marmitas em embalagem de isopor ou alumínio, normalmente atreladas aos trabalhadores de menor poder aquisitivo.

    Eduardo Bolsonaro frisa em seu comentário a presença do camarão servido a Wagner Moura, dizendo que a iguaria provavelmente era destinada somente à elite do movimento, pois os demais integrantes do MTST deveriam passar fome como na Venezuela.

    Em três linhas, o deputado federal cita o termo comunismo e o atrela com a Venezuela, relembrando a retórica chavão das eleições de 2018. Boulos retruca conectando os termos direita e bolsonarimo com vibração pela fome e desconhecimento da cultura brasileira, já que o prato em questão é um vatapá (comida originária da época da escravidão e que contém camarão).

    A fotografia, para alguém distante da realidade brasileira traria como significado apenas um homem comendo uma refeição, em pé, provavelmente em algum evento, já que aparecem cartazes ao fundo e outras pessoas ao lado. Mas, como explicado por Volochinov, a imagem é cheia de signos quando alocada diante de seu embate social.

    Na verdade, apenas graças a essa refração de opiniões, avaliações e pontos de vista é que o signo tem a capacidade de viver, de movimentar-se e desenvolver-se. Ao ser retirado do embate social acirrado, o signo ficará fora da luta de classes, inevitavelmente enfraquecendo, degenerando em alegoria e transformando-se em um objeto de análise filológica, e não de interpretação social viva. (VOLÓCHINOV. A palavra na vida e a palavra na poesia. pág. 319).

    O camarão de Wagner Moura é um exemplo perfeito das narrativas que se configuram diante do mesmo signo, de como a luta de classes se embrenha na imagem e possibilita o surgimento de retóricas. Em uma entrevista realizada ao podcast PodPah, no dia 03.12, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi questionado sobre a polêmica do “pobre pode comer camarão”. A resposta de Lula viralizou nas redes sociais e recebeu mais de 16 mil curtidas.


    PodPah – Lula, pobre pode comer camarão?
    Lula – “Deve e pode comer. Até porque é ele quem pega o camarão. É ele quem constrói o carro, é ele quem faz a roupa que você está vestindo, então ele tem o direito de ter as coisas que ele produz”.

    A luta de classes viralizando no Brasil polarizado.

    A palavra resistência, mencionada na frase de Marighella na epigrafe desse texto, talvez seja o termo mais importante às pessoas que se unem em prol da oposição do governo autoritário e desumano de Bolsonaro. Oposição que não se faz através de armas, mas da junção de posicionamentos e manifestações que valorizem a democracia. As armas, inclusive, são símbolos do governo, de quem prega o direito de “proteção” a vida por meio da força, especialmente no campo, estimulando o uso desenfreado da violência pelos latifundiários.

    É óbvio que mesmo com todo alarde em torno da exibição do filme, com as polêmicas geradas pela guerra de narrativas, o alcance da obra será pequeno diante da força do sistema, impregnado nos veículos da mídia jornalística de massa, nas redes de Fake News, nos discursos que menosprezam as posições consideradas de esquerda, eternas “ameaças” aos bons andamentos do setor financeiro.

    Pouco antes de ser preso pela operação Lava Jato, Lula fez um discurso onde destacou a seguinte frase: “Eu não sou um ser humano, sou uma ideia. E não adianta tentar acabar com as ideias”. Se o país ainda trava embates de narrativas que contestam as forças sistêmicas é porque há pessoas que construíram e seguem a defender ideias opositoras, que cruzam os tempos em prol da contestação das mensagens oficiais impostas e/ou manipuladas pelos interesses do capital. Todos os dias somos atravessados por notícias e imagens repletas de signos, narrativas propostas com interesses específicos. Cabe as pessoas compreenderem que toda a realidade circundante é marcada pelas batalhas da luta de classes, como define Volóchinov.

    Em suma, toda a realidade e toda a existência do homem e da natureza não apenas refletem-se no signo, mas também refratam-se nele. Essa refração da existência no signo ideológico é determinada pelo cruzamento de interesses sociais multidirecionados nos limites de uma coletividade sígnica, isto é, pela luta de classes. (VOLÓCHINOV. A palavra na vida e na poesia. Pág. 319)

    Que Iansã continue a ventar forte e siga espalhando os ideais de Volóchinov, Marighella, Wagner Moura e energize todas e todos principalmente na defesa da democracia, contra os discursos fascistas que insistem em nos rodear. Ainda aproveitando o clima de início de ano, finalizo com um post no twitter de 2019, da atriz Vera Holtz, muito compartilhado nas redes sociais, com a permissão de atualizá-lo para 2022, afinal, as esperanças, principalmente no Brasil, precisam ser continuamente renovadas.

    Desejo para esse 2022
    ⦁ consciência de classe
    ⦁ Pensamento crítico para checar as informações
    ⦁ Interpretação de texto


    Referências bibliográficas

    VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, 400 p.

    Filmografia – – Marighella – Direção de Wagner Moura – lançamento (2021) – 155 min

  • Esquerda e direita: quem é mais feliz? E por quê?

    (Capa: à esquerda, foto por Caco Argemi CPERS/Sindicato, usada sob CC BY 2.0; à direita, foto por Larrion Nascimento)

    Texto por Davi Carvalho

     

    Ao ler o título deste texto, seja você de esquerda ou de direita, é possível que tenha elaborado mentalmente uma resposta às perguntas ali levantadas e, então, iniciou a leitura em busca de possível confirmação de sua hipótese. Aí vai uma resposta curta: conservadores são mais felizes do que as pessoas de esquerda. Essa afirmação confirma ou não o que pressupunha? Seja como for, entender – de um ponto de vista científico – a extensão e o porquê dessa diferença pode mudar sua visão sobre o quão feliz você pode ser. 

     O que diz a ciência?

    A grande maioria das pesquisas indicam que conservadores são realmente mais felizes, na média, do que as pessoas mais à esquerda no espectro político-ideológico. Um estudo do Pew Research Center (PRC), nos EUA, apontou que 45% das pessoas de direita (republicanos) contra apenas 30% das de esquerda (democratas) consideram-se “muito felizes”. [1]  Apesar de esses dados serem de uma pesquisa com mais de uma década, o aspecto mais interessante dos levantamentos feitos pelo PRC é a constância nos resultados sobre felicidade: desde 1972, os conservadores consistentemente aparecem como mais felizes do que os progressistas. 

    Esquerda e direita: quem é mais feliz?
    Afinal, quem é mais feliz? (Fonte: Pixabay)

    Outro estudo, de 2014, feito por pesquisadores da Universidade de Nova Jersey, EUA, apoiado em uma gigantesca base de dados (mais de 1 milhão de indivíduos oriundos de 16 países europeus), também apontou que as pessoas de direita são mais felizes do que as de esquerda [2].  Por fim, em um terceiro estudo, envolvendo 15 países europeus, além dos EUA, pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia e da Universidade de Utah descobriram que conservadores veem maior significado na vida do que progressistas [3]. Um ponto curioso dessa pesquisa é que, entre as pessoas de direita, aquelas mais conservadoras nos costumes (contra o casamento gay e o aborto, por exemplo) foram as que mais acentuadamente reportaram ver a vida com grande significado. 

    Tais pesquisas levantam uma questão ainda mais importante: afinal, por que as pessoas de direita são mais felizes? A literatura científica a respeito do assunto aponta três grupos de fatores que influenciam nisso:  1) aspectos demográficos – tais como casamento e religiosidade; 2) diferenças ideológicas ou comportamentais – como o grau de crença na meritocracia; 3) e, por fim, até mesmo a ideologia predominante do governo do país em que essas pessoas vivem. Quanto a este último fator, principalmente se não está contente com o governo atual de seu país, dificilmente você duvidaria do impacto disso em sua felicidade, não é mesmo? Vejamos, então, o que a ciência diz sobre a relevância de cada um desses fatores para o nosso bem-estar. 

    1)  Fatores demográficos:

    As pessoas de orientação política de direita casam-se mais [4], têm mais filhos [5] e são mais religiosas [6], quando comparadas às de esquerda. Ocorre que esses fatores todos se relacionam com a felicidade. Um estudo dos sociólogos Steven Stack and Ross Eshleman, da Wayne State University, encontrou que, em 16 de 17 países industrializados pesquisados, o casamento estava positivamente associado a um maior grau de felicidade [7]. E os conservadores não só se casam mais como, em comparação com esquerdistas casados, há maior probabilidade de se afirmarem “muito felizes” no casamento [8]. 

    Uma família feliz. Quais seriam as causas? [Fonte: Pixabay]

    Quanto à crença religiosa, segundo o célebre psicólogo social Jonathan Haidt, pessoas que comungam da mesma fé costumam compor comunidades de apoio social mútuo, o que as torna menos isoladas [9]. Além disso, sistemas religiosos oferecem explicações sobre algumas das questões mais profundas que afligem os seres humanos, como sobre a finitude e o que ocorre após a morte [10]. A crença em tais narrativas pode aplacar a angústia existencial, o que tem o potencial de proporcionar maior nível de felicidade aos religiosos.

    Quando tais fatores demográficos são considerados em conjunto, a diferença dos níveis de felicidade entre pessoas de ideologias políticas opostas pode ser muito expressiva. Segundo o cientista social Arthur Brooks, da Universidade de Harvard, 52% dos conservadores casados, religiosos e com filhos se afirmam muito felizes, contra apenas 14% das pessoas de esquerda solteiras, sem religião e sem filhos [11]. Esses fatores, porém, não explicam tudo. As próprias características ideológicas dos indivíduos também contam (e muito).

     2) Características ideológicas e comportamentais:

    Segundo pesquisas do proeminente psicólogo social John Jost, da Universidade de Nova York, o conservadorismo político é uma ideologia que justifica o sistema social, isto é, seus portadores endossam e defendem o status quo, a realidade social, política e econômica como ela é [12]. Conservadores, além de aceitarem as desigualdades sociais, também as enxergam como causadas por mecanismos que consideram justos e legítimos. Assim, Jost argumenta que essa ideologia política acaba tendo uma função paliativa, ou seja, como pessoas de direita tendem a justificar a realidade social, é menor a possibilidade de  sofrerem em relação aos problemas sociais, como a desigualdade, o que as tornaria mais felizes do que as de esquerda [13].

    Para testar essa hipótese, John Jost e a psicóloga social Jaime Napier realizaram três estudos baseados em surveys [14]. Como resultado desses estudos, amparados em dados de dez países, encontraram que, em comparação com pessoas de esquerda, o maior bem-estar subjetivo de conservadores está de fato relacionado à sua capacidade de racionalizar a desigualdade. Por “racionalização”, conceito bastante conhecido na psicologia social, entenda-se que as pessoas criam narrativas e explicações próprias para as coisas – explicações essas frequentemente bem distantes da realidade – para que se sintam confortáveis com suas crenças e formas de ver o mundo. Um exemplo disso pode ser observado quando uma pessoa conservadora considera que a pobreza seja resultado de apatia, de uma suposta indolência das pessoas: se são pobres, é porque não se esforçaram o suficiente. Eis aí uma típica e clara racionalização de um fenômeno social complexo.

    Não à toa, com base nos estudos mencionados, Napier afirma que a crença na meritocracia – a ideia segundo a qual o trabalho duro leva necessariamente ao sucesso na vida – é o principal fator para se predizer quem é mais feliz. Quanto mais se crê na meritocracia, mais feliz é o indivíduo. E os conservadores são os maiores defensores dessa crença.

    Esquerda e direita – nível de bem-estar em queda

    Em um dos três estudos referidos, Jost e Napier encontraram também que o nível de bem-estar subjetivo geral diminuiu significativamente, nos EUA, entre as décadas de 1970 e 2000. E essa queda geral da felicidade acompanhou um aumento expressivo da desigualdade naquele país. Curiosamente, ao mesmo tempo que a felicidade da população como um todo declinou ao longo do período relatado, aumentou a diferença do nível de felicidade entre os lados ideológicos: as pessoas de direita também foram afetadas e tiveram queda no nível de felicidade, mas em proporção bem menor do que as de esquerda. Observe o gráfico:  

    (Relação entre orientação política e felicidade declarada como função do índice de Gini – 1974 a 2004 – Extraído de JOST & NAPIER, 2008)

    Jost e Napier supõem que isso ocorra porque os conservadores possuem, em sua visão de mundo, um “amortecedor” ideológico contra os efeitos deletérios da desigualdade econômica no bem-estar das pessoas. Assim, conforme a desigualdade cresce, isso afeta negativamente a todos, mas atinge mais acentuadamente a esquerda, que, em vez de justificar a realidade social e suas mazelas sociais, a elas se opõe. 

    Contudo, tais características ideológicas das pessoas aparentemente também não explicam, por si só, sua diferença nos níveis de felicidade. O contexto político e social em que vivem também pesa nessa equação.

    3) Diferenças no tipo de governo

    Para cada minuto que você sente raiva, perde sessenta segundos de felicidade. – Ralph Waldo Emerson

    Se, por acaso, você se opõe firmemente ao governo atual de seu país, suas chances de ser bastante feliz diminuem. Difícil discordar dessa afirmação, não acha? Se os valores que permeiam os governantes no poder são opostos aos seus, isso tem grande potencial para reduzir seu bem-estar.  É nesse sentido que apontam alguns estudos.

    Em um extenso estudo que envolveu 98 países (incluindo o Brasil), economistas da Universidade de Heidelberg, Alemanha, investigaram a relação entre felicidade individual e ideologia de um governo. Esta última foi aferida a partir da orientação político-ideológica do chefe do Executivo, no caso de sistemas presidencialistas, e a partir da ideologia do maior partido no governo, nos países de regimes parlamentaristas. Como resultado geral da pesquisa, encontraram que as pessoas de direita são, de fato, mais felizes em média; já as pessoas de esquerda têm maior probabilidade de se declararem satisfeitas com a vida quando vivem sob governos de esquerda [15]. 

    Esquerda e direita
    A ideologia política do governo de onde vivemos também impacta nossa felicidade

    Em outro estudo bastante extenso, similar ao dos economistas alemães, psicólogas sociais da Universidade de Colônia também analisaram a questão. Com base em dados extraídos ao longo de 40 anos, de mais de 270 mil indivíduos, oriundos de 92 países (Brasil incluído), as pesquisadoras questionaram a universalidade da diferença de níveis de felicidade entre esquerda e direita. Segundo elas, seus dados mostram que, em comparação com progressistas, conservadores se declaravam mais felizes e mais satisfeitos com suas vidas à medida que a ideologia política conservadora prevalecia no contexto sociocultural do país em que viviam. Nesse estudo, as pessoas de direita se afirmaram mais felizes em 65% dos países e épocas analisados. Em parte das análises, não houve diferença significativa entre os lados ideológicos. Por fim, as pessoas de esquerda se afirmaram mais felizes em 5 dos 92 países estudados [16].

    E a sua felicidade e bem-estar? Como andam?

    E a felicidade, ainda que tardia, deve ser conquistada. – Sérgio Vaz

    Fato já bem documentado na literatura científica, o grau de felicidade que sentimos se relaciona com a nossa orientação político-ideológica. Ocorre que essa última é provavelmente imutável por vontade própria. Em verdade, as pessoas que têm lado definido no espectro ideológico costumam mesmo exibir até certo orgulho de sua posição. É possível, porém, dar sua contribuição para que seu entorno mude a favor de sua visão de mundo. Em regimes democráticos, isso não só é possível, como também é absolutamente legítimo.

    A luta política pode ser travada de mil maneiras na democracia. Quando você participa de manifestações democráticas de rua ou compartilha um post de cunho político e se posiciona, discutindo e debatendo temas, está influenciando as pessoas ao seu redor em algum grau. Sua meta maior pode mesmo ser a de dar sua contribuição para eleger um governo alinhado com seus valores. Nada mais legítimo. Afinal, sua felicidade e bem-estar podem disso depender. 

    Referências

    1. (2016) Are We Happy Yet? – Pew Research Center. Acesso em: 10 Out. 2021.

    2. Okulicz-Kozaryn, A., Holmes IV, O., & Avery, D. R.  (2014).  The Subjective well-being political paradox:  Happy welfare states and unhappy liberals.  Journal of Applied Psychology, 99(6), 1300-1308.

    3. Newman, D. B., Schwarz, N., Graham, J., & Stone, A. A. (2019). Conservatives report greater meaning in life than liberals. Social Psychological and Personality Science, 10(4), 494-503

    4. Wilcox, W. Bradford. & Wang, Wendy. (2019) Conservatives: Happier at Home, Worried for the Nation. Institute for Family Studies – IFS. Acesso em: 11 Out. 2021. {link}

    5. Stone, Lyman. (2020) The Conservative Fertility Advantage. Institute for Family Studies – IFS. Acesso em: 11 Out. 2021. {link}

    6. (2014) Religious Landscape Study – Religious composition of conservatives, Pew Research Center. Acesso em: 15 Out. 2021. {link}

    7. Stack, Steven. & Eshleman, Ross (1998) Marital Status and Happiness: A 17-Nation Study. Journal of Marriage and the Family, 60, 527-536.

    8.  Wilcox, W. Bradford & Wolfinger, Nicholas H. (2015) Red Families vs. Blue Families: Which Are Happier? Institute for Family Studies – IFS. Acesso em 17 Out. 2021. {link}

    9. Haidt, J. (2006). The happiness hypothesis. New York: Basic Books.

    10. Myers, David G. 2000. The Funds, Friends, and Faith of Happy People. American Psychologist 55:56–67.

    11. Brooks, Arthur C. (2012) Why Conservatives Are Happier Than Liberals. The New York Times. Acesso em 17 Out. 2021. {link

    12. Jost, J.T., Nosek, B.A., & Gosling, S.D. (2008). Ideology: Its resurgence in social, personality, and political psychology. Perspectives on Psychological Science, 3, 126–136.

    13. Jost, J.T., & Hunyady, O. (2002). The psychology of system justification and the palliative function of ideology. European Review of Social Psychology, 13, 111–153.

    14. Napier, Jaime L.  & Jost, John T. ( 20008) Why Are Conservatives Happier than Liberals? Psychological Science – Vol. 19, No. 6, 565-572

    15. Dreher, Axel & Öhler, Hannes. (2011) Does government ideology affect personal happiness? A test. Economic Letters. (2):161–5. 

    16. Stavrova, Olga. & Luhmann, Maike. (2016) Are conservatives happier than liberals? Not always and not everywhere. Journal of Research in Personality. 63:29–35. 

     

    Agradecimentos

    Este texto contou com a sempre excelente revisão de Caroline Frere e Eduardo J. V., aos quais sou muito grato. Sem a decisiva contribuição do amigo Daniel Nunes, que trouxe referências, ideias e insights, o texto também não seria o mesmo. Gracias!

     

  • Balanço da COP26: o que é possível comemorar

    Texto por Jaquelini Nichi

     

    Nesta 26ª edição da COP, que acaba de ser encerrada em Glasgow, no Reino Unido, o mercado global de carbono, que trata da regulamentação do artigo 6, deve possibilitar a transferência de renda de países ricos – que emitem maior quantidade de carbono – para países mais vulneráveis, que geram créditos de carbono. Previsto pelo Protocolo de Kyoto e ratificado no Acordo de Paris, em 2015, ele seguia travado por falta de entendimento entre os países.

    A presidência da COP26, divulgou uma primeira versão de um acordo para que o mercado de carbono seja regulamentado com a resolução de questões dúbias como a dupla contagem dos créditos a metodologia para valorar e quantificar o carbono como ativo. No entanto, para ser aprovado, o documento requer mais reuniões a serem realizadas em 2022.

    A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática (UNFCCC) é um tratado internacional para reduzir as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera. A Conferência das Partes (COP) tem o papel de revisar as comunicações nacionais e os inventários de emissões dos países-membros para monitorar seu progresso.

    No panorama geral das negociações e discussões em torno desta COP ficou evidente o protagonismo do setor privado e financeiro na busca por soluções para os impactos das mudanças climáticas. Outra novidade foi a forte atuação de movimentos jovens negros e indígenas, pouco visto nas edições anteriores, uma sinalização de que diversidade e inclusão são importantes para aplacar a injustiça climática.

    E desta vez, o carvão entrou na mira de mais de 40 países que se comprometeram a abandonar a geração de energia baseada nessa fonte de origem fóssil até 2030. E outros, como o Brasil, assumiram o compromisso de zerar o desmatamento ilegal até 2028.

    O carvão é o combustível fóssil mais poluente e o mais caro entre as fontes de energia. Foto: Pexels

    Mas, se por um lado houve avanços, por outro, pontos importantes como o financiamento para alcançar as metas do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global abaixo de 2ºC ou mais próximo a 1,5ºC continua a enfrentar impasses. A premissa é que os países desenvolvidos devem financiar iniciativas de adaptação e mitigação dos países mais vulneráveis, já que são as maiores emissoras de GEE. Vale ressaltar que a meta de US$ 100 bilhões de repasse anuais até 2020, estabelecida em 2009, não foi cumprida, mas o Climate Home News aponta que o montante correto para atender a essa demanda após 2025 seria de US$ 1,3 trilhão por ano, muito acima da meta atual.

    O que ficou estabelecido no documento final?

    O novo documento do acordo final da Cúpula do Clima, assinado por 200 países e divulgado no final do encontro, em 12 de novembro, tenta equilibrar as demandas dos diferentes países com um reforço para que os países desenvolvidos dobrem o financiamento para medidas de adaptação contra o aquecimento global com prazo estabelecido até 2025. Assim, falta saber como os objetivos de descarbonização serão atingidos na prática, já que regras mais objetivas de contribuição de cada setor ainda não são claros.

    De acordo com dados do Carbon Action Tracker, se os setores se comprometerem realmente para: reduzir emissões de metano, eliminar o uso do carvão, ampliar o uso de energia limpa e acabar com o desmatamento, será possível alcançar a meta. Agora, é a nossa vez de cobrar os países para que cumpram com esses compromissos com metas mais ambiciosas e com ações efetivas.

    Mais de cem países, incluindo o Brasil, assinaram acordo para zerar desmatamento até 2030. Foto: Matt Palmer, Unsplash

    Jaqueline Nichi é jornalista e cientista social com mestrado em Sustentabilidade pela EACH-USP. Atualmente, é doutoranda no Programa Ambiente e Sociedade do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM-UNICAMP). Sua área de pesquisa é centrada nas dimensões sociais e políticas das mudanças climáticas nas cidades e governança multinível e multiatores.

     

     

     

    Este texto foi publicado originalmente no blog Natureza Crítica.

  • Porque liberdade de expressão não é desculpa para falar o que quiser na internet?

    Arte de Capa: Arte por @galvaobertazzi – https://www.instagram.com/galvaobertazzi/

    Texto por Erica Mariosa Carneiro

     

    Hoje vamos conversar um pouco sobre a evolução da comunicação e a responsabilidade que devemos ter ao colocar informação na internet: 

    Quem um dia iria dizer que colocar na mão de qualquer pessoa a possibilidade de produzir conteúdo informativo daria “errado”?

    Esperançosos pela promessa de conectar as vozes em torno do planeta, promoção do diálogo e do acesso a informações negligenciadas pela mídia tradicional. O comunicador de hoje enfrenta algo muito diferente do idealizado nos anos 90 com o advento da internet. 

    Na era da informação todos podem ser produtores de conteúdo. Basta ter o acesso a internet que qualquer pessoa, sem restrições geográficas ou de horários, possa publicar informações que o mundo todo tem acesso. O resultado disso? Um mundo exausto da informação, fadigado por não saber em qual ou em quem confiar e imerso em uma avalanche de desinformação.

    A primeira vista, o início dessa postagem parece um pouco exagerada, mas insisto que observe e faça o exercício de conferir suas redes sociais, canais de chat e canais de informação (todas elas) para perceber, ao final dessa tarefa, o esgotamento, entraves e dificuldades em encontrar informações confiáveis.

    Falei um pouquinho mais sobre as diferenças entre Fake News, Desinformação e Infodemia e como identificá-las e combatê-las nos textos: O que é “Fake News” e por que devo me preocupar com isso? e Fake News, Desinformação e Infodemia. Qual a diferença?. Também recomendo os textos: Coronavírus e Fake News na Saúde e Corrigindo boatos de forma estratégica

    Ser produtor de conteúdo

    A rotina diária do produtor de conteúdo, (principalmente o de conteúdo informativo e que se dedica ao trabalho de forma profissional) passou a ser dividida entre as horas de discussões e planejamento sobre como promover uma comunicação mais ética, empática e de credibilidade. E outras tantas horas sobre como dispor esse conteúdo em veículos saturados, na qual a relevância e sua distribuição é medida de acordo com as decisões de algoritmos, que se baseiam, entre outras coisas, em bolhas e pela quantidade de dinheiro investida nessa distribuição.

    Falei um pouco sobre os algoritmos e a sua influência nos problemas contemporâneos no texto: O Dilema das Redes e porque esse problema também é seu! e recomendo esta seleção de textos do Blogs de Ciência da Unicamp sobre os desafios da divulgação científica em tempos de pandemia

    Já a rotina diária do consumidor de conteúdo, está longe de ser menos complicada que do produtor de conteúdo, esta rotina é permeada pela confusão e dificuldade em identificar qual das postagens que passa por sua tela é confiável. Já para a tarefa de checagem da informação é preciso uma dose extra de paciência, acesso a internet e até um sexto sentido para se perceber envolvido em bolhas que devem ser furadas e alteradas consultando novos canais de informação.

    O que são Bolhas? É a lógica ditada pelos algoritmos da internet/redes sociais que criam filtros e classificações de postagens de acordo com os seus interesses, (apresentados como curtidas, comentários ou tempo de visualização, por exemplo) ou o sobre conteúdos que são mais acessados que outros. Esses filtros limitam o seu acesso as informações dispostas na internet afetando assim a sua possibilidade de conhecimento, discernimento, tomada de decisão, e por consequência, o modo como agimos, pensamos e/ou aprendemos.

    Ser produtor de conteúdo no Blogs de Ciência da Unicamp

    Como comunicadora reconheço que, neste mundo conectado e sempre com pressa, é normal que fique cansativo pensar constantemente em formas de melhorar o trabalho de produção de conteúdo, mas é necessário. Por isso insistimos na importância de pararmos para refletir e conversar sobre as dificuldades e ideias que surgem na rotina de produção de conteúdo e sua divulgação.

    A equipe aqui do Blogs de Ciência da Unicamp aprendeu a importância desse tempo de estudo e de reflexão. E achamos tão importante quanto reproduzir o que aprendemos nos textos desse blog. Pensar nessas questões nos ajudou a entender que a comunicação é muito mais do que as “trends” do Twitter, pautas quentes que pipocam no jornalismo ou se devemos ou não nos render as dancinhas no TikTok ou Reels. Optar por trabalhar com qualquer uma dessas opções acima, é uma questão de conhecimento, planejamento e estratégia, apesar de parecer simples aos olhos dos desavisados, na prática não é bem assim.

    Antes…

    By THE DENVER POST | newsroom@denverpost.com
    PUBLISHED: March 26, 2009 at 2:55 p.m. | UPDATED: May 7, 2016 at 1:00 a.m. https://www.denverpost.com/2009/03/26/evolution-of-communication/

    Dos primórdios da comunicação até os dias de hoje, a história da civilização, as discussões e a evolução tecnológica da comunicação determinou como consumimos, produzimos e guardamos a informação.

    Vários marcos históricos foram importantes para mudanças nos modelos de comunicabilidade, e apesar da internet e as redes sociais serem o marco histórico mais comentado dos últimos tempos, é preciso lembrar que a comunicação não surgiu em 1995 com o surgimento da primeira rede social, o ClassMates.com 

    Na comunicação oral, por exemplo, as informações eram passadas de pessoa por pessoa ou por oradores que tinham como função de se posicionarem em locais de grande circulação para apresentar as informações que lhe fossem confiadas e como, por muito tempo, as massas não eram alfabetizadas, restava a população acreditar no dito.

    Já com a escrita manual o registro da informação e posterior consulta se tornou possível, contudo apenas com o avanço da alfabetização e, no século XV, com a prensa Gutenberg que a informação escrita passou a ganhar amplitude e chegar a número muito maior de pessoas. Mesmo assim foi só com a invenção do rádio em 1906 e da TV em 1927 que a comunicação realmente se tornou de massa, ou seja, a informação era disponibilizada a uma massa de pessoas geograficamente enorme, e cada vez maior conforme as tecnologias de áudio e imagem fossem sendo melhoradas.

    O que é Comunicação de Massa?

    Comunicação de Massa é o processo pelo qual se cria uma mensagem (de forma individual, em grupo ou de forma institucional) e a transmite por algum meio de comunicação para um grande grupo anônimo e heterogêneo. Na comunicação de massa o emissor da mensagem é sempre um comunicador profissional ou uma empresa de comunicação e a mensagem precisa ser rápida e pública. Os meios de comunicação de massa são televisão, rádio, revista, Internet, livros e cinema, pelo menos os mais comuns, e tem como principal função informar, mas ao longo do tempo também assumiram outras funções, como entreter, educar e comercial, por exemplo.

    * Nesta altura é importante deixar claro que a definição da comunicação de massa tem variações e semelhanças conforme os autores estudados.

    A Comunicação de Massa tem como base o envio da informação por um emissor que tem a responsabilidade de transmitir a informação da forma mais clara, completa, ética e acessível possível. Mas é claro que esse emissor/comunicador precisa adequar a informação ao meio de comunicação na qual está trabalhando.

    A título de exemplo e de forma simplificada: uma informação pensada para a televisão é diferente da pensada para jornais e revistas. Na televisão o comunicador precisa ser adequar a informação as características de tempo e áudio visuais que o veículo precisa. Já no jornal ou em uma revista a mensagem pode ser explicada por um longo período, se utilizando de desenhos, gráficos, tabelas e equações para que o receptor entenda a mensagem.

    Na comunicação de massa a informação, principalmente jornalística, antes de ser disponibilizada ao receptor precisa passar por um editor responsável que tem o poder de modificá-la ou até vetá-la, conforme entenda que o resultado final não cumpriu a chamada ética jornalística. Falo mais sobre esse assunto pelo olhar institucional/empresarial no texto: O que é Comunicação Institucional?

    Ética jornalística é um conjunto de normas e procedimentos éticos que regem a atividade do jornalismo e que podem ser adotadas por outros canais de comunicação.

    • Relevância e utilidade pública – a informação que a população tem o direito de ter conhecimento.
    • Objetividade – a informação deve ser produzida de forma objetiva, evitando subjetividades ou comentários (nesse caso se exclui artigos de opinião)
    • Imparcialidade – a informação precisa ter o compromisso com a diversidade e o equilíbrio dos pontos de vista, contudo essas duas “fases da moeda” devem ser equivalentes na credibilidade e na especialização do assunto.
    • Verdade e precisão – a informação precisa ser checada e conferida, buscando assim a veracidade e a precisão das informações.
    • Confidencialidade – as fontes jornalísticas devem ter sua identidade preservada e só revelado se a fonte permitir.
    • É função do jornalismo (nos regimes democráticos) fiscalizar e denunciar poderes públicos e privados, assegurando a transparência das relações políticas, econômicas e sociais. Por esse motivo, a imprensa tornou-se conhecida como Quarto Poder.

    * É importante ressaltar que cada um desses itens foi longamente discutido ao longo dos anos por cientistas e profissionais da comunicação, e ao com o tempo códigos de ética jornalísticas e manuais de comunicação foram sendo definidas e atualizadas.

    Aqui faço uma relação desses Manuais de Comunicação que podem ser baixados. E outras informações sobre o assunto podem ser conferidas também na Federação Nacional dos Jornalistas

    Acho importante também acrescentar a Liberdade de Imprensa e a Liberdade de Expressão. De acordo com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios – TJDFT

    A liberdade de imprensa decorre do direito de informação. É a possibilidade do cidadão criar ou ter acesso a diversas fontes de dados, tais como notícias, livros, jornais, sem interferência do Estado. O artigo 1o da Lei 2.083/1953 a descreve como liberdade de publicação e circulação de jornais ou meios similares, dentro do território nacional.

    A liberdade de expressão está ligada ao direito de manifestação do pensamento, possibilidade do indivíduo emitir suas opiniões e ideias ou expressar atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação, sem interferência ou eventual retaliação do governo. O artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos define esse direito como a liberdade de emitir opiniões, ter acesso e transmitir informações e ideias, por qualquer meio de comunicação.

    Importa ressaltar que o exercício de ambas as liberdades não é ilimitado. Todo abuso e excesso, especialmente quando verificada a intenção de injuriar, caluniar ou difamar, pode ser punido conforme a legislação Civil e Penal. 

    E por fim, devido as configurações dos meios de comunicação de massa dificilmente o emissor tinha condições de ter retorno do receptor sobre como a informação estava sendo entendida.

    Claramente algumas soluções foram pensadas, como as carta do leitor ou as ligações ao vivo durante os programas televisivos, por exemplo. Mas ainda hoje, essas soluções não são suficientes para que o emissor tenha real noção sobre como e de que forma a informação está sendo compreendida pela população.

    Agora…

    Em 1992, o cientista Tim Berners-Lee criou a World Wide Web e abriu um mundo de possiblidades, dentre elas, a comunicação. E conforme novas inovações eram oferecidas, como sites próprios e as redes sociais, por exemplo, fomos entusiasmados, como comunicadores, a ideia de solucionar muitos dos entraves da comunicação de massa, como: rapidez, espaço, facilidade na verificação, promoção do diálogo com o receptor e a possibilidade de ter acesso a vozes negligenciadas.

    Sendo assim, o modelo comunicacional sofreu uma nova mudança, conforme comenta Jesús Martín-Barbero em Diversidade em convergência

    A convergência digital introduz nas políticas culturais uma profunda renovação do modelo de comunicabilidade, pois do unidirecional, linear e autoritário paradigma da transmissão de informação, passamos ao modelo da rede, isto é, ao da conectividade e da interação que transforma o modo mecânico da comunicação a distância pelo modo electrônico de interface de proximidade.

    Por Erica Mariosa Moreira Carneiro em 05/11/2021

    Na imagem acima é possível ver a diferença entre a comunicação de massa e a digital no que se refere a esse novo modelo comunicabilidade em rede que comenta Barbero.

    Enquanto a comunicação de massa envia a informação a partir de um emissor (que é um comunicador ou empresa de comunicação) para o receptor que o recebe de forma “unidirecional, linear e autoritário” e tem poucas oportunidades de informar ao emissor suas opiniões, compreensões e dúvidas sobre a mensagem. Na comunicação digital a informação passa a ser enviada pelo emissor ao receptor que a recebe, interage e, muitas vezes, reformula o conteúdos, transformando-o em uma nova informação.

    Então Comunicação Digital é?

    A Comunicação Digital é o conjunto de normas, métodos e ferramentas de comunicação que se aplicam à web, redes sociais e dispositivos móveis. A comunicação digital conecta as pessoas ao redor do mundo possibilitando relações sociais e acesso a informação de forma ativa como produtor de informação e opinião e não mais passivamente como na comunicação de massa. A comunicação digital define a estratégia e as ações de comunicação dentro do ambiente digital de acordo com as caraterísticas: relacionamento, engajamento, produção de conteúdo e presença digital.

    Conforme novas tecnologias, plataformas, sites e aplicativos são criados, novas características e “regras” são inclusas no rotina do produtor de conteúdo, e esse é apenas um dos problemas. Às redes sociais possuem funcionamentos com regras próprias e de forma diferente dependendo da empresa que as administram. Esses algoritmos limitam o acesso ao público, ao contrário da sua premissa original e podem ser alterados sem aviso prévio.

    Para além disso, a falta de produtores de conteúdo com formação ou conhecimento mínimo em comunicação provoca enganos que dificilmente o emissor consegue mensurar ou lidar, como o recebimento constante de comentários com teor ofensivo, cancelamentos, conteúdo delicado sendo transmitido sem o devido cuidado. Não estou afirmando aqui que comunicadores treinados e especializados não cometam erros, mas a frequência desses erros são menores e a aplicação de estratégias para evitar danos sérios é mais ágil e consciente. Recomendo os seguintes textos sobre esse assunto: Então… O que é engajamento para você?, O que fica de aprendizado com a estratégia de divulgação “Enquete Terra Plana”?, Errei. E agora?, E o engajamento? e Refutando mitos: como evitar o ‘tiro pela culatra’ 

    Por isso, é fundamental estar de olhos na discussão sobre regras e leis que regularizem a atuação na internet e nas redes sociais que ganharam força no Brasil e no mundo após o escândalo de dados do Facebook – Cambridge Analytica. Como o Marco Civil da Internet, Lei Geral de Proteção de Dados, Artigos 138,139, 140 e 154-A do Código Penal que dizem respeito aos crimes de calúnia, difamação, injúria e invasão de dispositivos informáticos, respectivamente, e a Lei nº 13.718/2018 – crime de importunação.

    O texto Fake news – regulamentação por meio de leis fala um pouco mais sobre o assunto.

    Update necessário – 19/03/2022

    A questão da liberdade de expressão voltou nesses últimos dias após a repercussão de falas, como: a do Monark sobre nazismo, do ministro Alexandre de Moraes, do STF após ter determinado o bloqueio do aplicativo Telegram no Brasil e da determinação da retirada do filme ‘Como ser o pior aluno da escola’ do comediante Danilo Gentilli dos serviços de streaming.

    Assim usei minha conta no Twitter para comentar não só esses casos mas, principalmente, sobre como acredito que não só o autor da fala deve ser penalizado de acordo com a lei (conforme descrito no texto acima), mas o canal que permitiu a publicação da fala também deve sofrer as mesmas consequências.

    E como volta e meio esse assunto volta em reunião de colegas e palestras, achei importante também deixar aqui no texto essa continuidade da discussão feita no Twitter.

    Será mesmo que em nome da liberdade de expressão todo canal (grande ou pequeno) pode dizer qualquer coisa na internet?

    Vamos começar esse update deixando claro que mesmo um canal não jornalístico, ou seja, que se pretende ser informal e não adotar pauta ou conversa prévia precisa ser responsável com a informação que é disponibilizada.

    Utilizar-se da ética jornalística para compor os seus editoriais e normas de trabalho pode ser uma boa maneira de garantir essa responsabilidade da informação.

    E se mesmo assim, o canal prefere ter como direcionamento a Liberdade de Expressão, devo lembrar que essa liberdade também tem definições e parâmetros, como comentamos acima neste texto. Assim como leis e regras que regulariza a atuação na internet.

    Mas para continuarmos quero deixar destacado esse trechinho:

    “Devemos ressaltar que todo abuso e excesso, especialmente quando verificada a intenção de injuriar, caluniar ou difamar, pode ser punido conforme a legislação Civil e Penal.” 

    Portanto essa ideia de que a internet é “terra de ninguém” é totalmente furada, mesmo que tenhamos a sensação de “tudo pode”.

    E temos essa sensação devido aos constantes incentivos/cobranças das empresas de internet para que se consiga mais e mais visibilidade. Afinal fale bem ou mal mas falem de mim. E é claro que a lentidão do sistema jurídico também contribue para que se aumente essa sensação de que as leis não se aplicam a internet.

    Depois da entrega desse texto eu debati um pouquinho mais sobre esse assunto em outras postagens: O ódio como engajamento, O Influencer como Corpo Dócil e O Spoiler como discurso.

    O ponto é que o canal, mesmo não sendo formal ou de comunicação de massa como os programas exibidos na televisão, no rádio ou no jornal impresso, também tem a responsabilidade pela informação e possui o poder e o dever de, mesmo que ao vivo, monitorar as falas, orientar seus convidados e revisar o conteúdo antes da publicação.

    É de responsabilidade do canal a disponibilização de informação a sociedade.

    Falas criminosas, fake news e informações que prejudicam a população devem ser revistas e se necessário excluídas da edição final. E isso também tem haver com a liberdade de expressão, já que com grandes poderes vem grandes responsabilidades, certo?

    Quero ressaltar que essa crítica não se trata apenas de canais com grandes audiências, mas também de canais pequenos ou até os infinitos compartilhamentos em redes sociais, se você está informando alguém tem que se responsabilizar pela informação e ponto final.

    Também é importante dizer que toda vez que você se engaja com esse tipo de informação, e não importa se concorda ou não com ela, mais incentivo esses canais recebem para produzir mais conteúdos parecidos.

    E não só isso, com esse “fechar os olhos” para as falas criminosas dos canais e das instâncias que aplicam as leis outros canais se sentem incentivados a “copiar”. Afinal aquele determinado canal ganhou milhões de seguidores com a polêmica fala que incentiva o ódio a uma população inteira.

    Na prática, quando você se deparar com conteúdos de ódio, falas que incitam a violência e informações criminosas não denunciem apenas a pessoa que disse mas também o canal que divulgou o conteúdo.

    Referências e outras sugestões de leitura:

     

    Este texto foi publicado originalmente no blog Mindflow.

     

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