Categoria: ESPECIAL COVID-19

  • Como acontece a interação da levedura com o coronavírus?

    Texto escrito por Fellipe Mello, Carla Maneira da Silva e Ana Arnt

    Até esse ponto, nos textos anteriores, introduzimos uma variedade de conceitos importantes no desenvolvimento do conceito da CORONAYEAST. Vocês podem recapitular as ideias aqui e aqui.

    Vamos revisar as modificações genéticas que a S. cerevisiae deve apresentar para detectar o vírus:

    • O receptor do vírus e regulador da Angiotensina II (ACE2),
    • O “detector” de angiotensina (AT1)
    • As proteínas que fazem a levedura biossensora mudar de cor (os genes repórter).

    Tá, e como isso tudo vai funcionar de forma que a levedura irá acusar a presença do vírus? 

    Primeiro, você precisa saber que, pra funcionar, o biossensor atua na presença de Angiotensina II – que será adicionado ao CORONAYEAST da mesma forma que “tampões de corrida” são adicionadas ao teste rápido – ou seja, um conjunto de reagentes que permite que a reação ocorra e o sinal seja visível. Vamos pensar então nos dois cenários: a levedura na presença e ausência do vírus.

    Na ausência do vírus, a levedura modificada está em um meio contendo uma concentração conhecida de Angiotensina II. Neste cenário, o ACE2 está disponível para converter a Angiotensina II em Angiotensina 1-7, diminuindo a concentração do primeiro. Desta forma, o AT1 não será ativado, uma vez que seu receptor – a Angiotensina II – não estará lá. Receptor não ativado: gene repórter não produzido e levedura não muda de cor.

    Na presença do vírus, a alta afinidade que a proteína Spike do SARS-CoV-2 possui com a ACE2 faz com que sua atividade enzimática fique comprometida. Desta forma, quanto mais vírus, menos ACE2 disponível. Logo: Angiotensina II acumula no meio extracelular, uma vez que a ACE2 está “ocupada” com o SARS-CoV-2, ou, em termos biológicos: a função enzimática de conversão em Angiotensina 1-7 foi capturada pelo vírus. Isto quer dizer que: mais Angiotensina II no meio extracelular significa maior a ativação do receptor AT1.

    É aqui que entra o resultado da nossa pesquisa! Na presença do vírus, portanto, o receptor AT1 ativado da levedura modificada geneticamente emitiria um sinal que faria o gene repórter ativar e produzir uma proteína que faria a levedura mudar de cor: fluorescente ou vermelha, a olho nu.

    Nossa! Que legal! Eu estou com suspeita de COVID-19, onde posso fazer este teste diagnóstico?

    Calma! O CORONAYEAST ainda está sendo desenvolvido pelo LGE!

    Benefícios da pesquisa, caso os resultados sejam positivos

     Uma vez que o CORONAYEAST estiver pronto e funcional, seus benefícios serão extensos. Vamos falar um pouco disso agora…

    Primeiro, o preço. Imagine a diferença de custo entre produzir um diagnóstico dependente de insumos importados e infraestrutura especializada (como é o caso do qRT-PCR) e um teste em que um microorganismo faz tudo. A levedura cresce fácil – coloque um pouco de açúcar e pronto. Sem contar que o Brasil tem uma infraestrutura bastante robusta para isso. Isto é, já produzimos bastante desse fungo para usarmos na produção de etanol, por exemplo. E o diagnóstico só dependeria dela, a S. cerevisiae modificada (com um pouco de Angiotensina II). Estimamos custo de produção até 100 vezes menor que para o teste de PCR!

    Outra vantagem importante é a especificidade. Como falamos, a detecção do SARS-CoV-2 é permeada por um GPCR e, por isso, é bastante específica. A única possibilidade de se alterar o sinal captado pelo AT1 é a ligação do vírus com ACE2. Aliás, usarmos a ACE2 também é outra garantia de especificidade, porque sabemos que esta é a única forma que o coronavírus da covid-19 reconhece uma célula hospedeira. Também não prevemos a alteração da funcionalidade desta enzima por qualquer outro composto presente na saliva. Esta é uma característica do CORONAYEAST que o coloca à frente dos atuais testes rápidos, porque sabemos o quanto estes têm altas taxas de resultados falsos.

    Ademais, o diagnóstico para Covid-19 a partir do biossensor baseado em levedura detecta o vírus inteiro. Isso quer dizer que 1) não precisamos extrair material genético viral, como o teste de PCR; 2) não é baseado em anticorpos, como nos atuais testes rápidos imunológicos, permitindo identificar potenciais vetores da doença, ainda que assintomáticos; 3) poderia ser usado em superfícies para teste da presença do vírus, permitindo a correta desinfecção de ambientes. CORONAYEAST se apresenta como um conceito disruptivo e inovador que está sob atual desenvolvimento e poderá mudar a forma como fazemos diagnósticos virais!

    E sabe o que é mais interessante de tudo isto? É tecnologia brasileira, pesquisa nacional, feita por cientistas do nosso país. Barateando o custo para diagnóstico e o tempo de resposta do resultado. 

    Este texto foi elaborado a partir de uma pesquisa financiada pela FAPESP, cujo processo é n.2018/03403-2

    Força Tarefa da Unicamp

    O artigo que embasou esta postagem faz parte de um conjunto de postagens sobre as pesquisas científicas que a Unicamp vem fazendo desde o início da pandemia, no que chamamos “Força Tarefa”. O Especial Covid-19, do Blogs de Ciência da Unicamp, participa da Força Tarefa desde o início, com a divulgação científica sobre a doença. Mas também vai se dedicar à publicação destes conhecimentos produzidos especificamente pelos pesquisadores da Unicamp cada vez mais! Acompanhe as próximas postagens!

    Nossos sites institucionais:

    Força Tarefa da Unicamp

    Unicamp – Coronavírus

    Para Saber mais

    Chauhan DS, Prasad R, Srivastava R et al. Comprehensive Review on Current Interventions, Diagnostics, and Nanotechnology Perspectives against SARS-CoV-2. Bioconjug Chem 2020:acs.bioconjchem.0c00323.

    Nakamura, Y., Ishii, J. and Kondo, A. (2014), Construction of a yeast‐based signaling biosensor for human angiotensin II type 1 receptor via functional coupling between Asn295‐mutated receptor and Gpa1/Gi3 chimeric Gα. Biotechnol. Bioeng., 111: 2220-2228. doi:10.1002/bit.25278

    Tang Y-W, Schmitz JE, Persing DH et al. Laboratory Diagnosis of COVID-19: Current Issues and Challenges. McAdam AJ (ed.). J Clin Microbiol 2020;58:e00512-20.

    Os Autores

    Ana Arnt é Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência!

    Carla Maneira da Silva Mestranda em Genética de Micro-organismos pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Realiza suas atividades de pesquisa no Laboratório de Genética e Bio-Energia (LGE). Possui experiência na área de genética e engenharia metabólica. Mais especificamente na produção de compostos de interesse econômico a partir de micro-organismos. Assim como na produção de biossensores baseados em levedura.

    Fellipe Mello é Engenheiro químico (2014) e doutor em ciências (2019) pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é post doc em engenharia genética no Laboratório de Genômica e bioEnergia no Instituto de Biologia da Unicamp. Tem experiência na área de engenharia química, com ênfase em termofluidodinâmica, no reaproveitamento de biomassas e purificação de proteínas; e na área de genética, com ênfase em engenharia metabólica e estudo de QTLs.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Leveduras, genes modificados e diagnóstico de Covid-19

    Texto escrito por Fellipe Mello, Carla Maneira da Silva e Ana Arnt

    No primeiro texto, falamos um pouco do desenvolvimento do teste diagnóstico para Covid-19 baseado em uma levedura modificada geneticamente. Mas agora, neste segundo texto, vamos explicar um pouco mais sobre o que são estas modificações e de que modo ela acontece na levedura. Isto é, vamos entrar um pouco mais a fundo no mundo da Engenharia Genética para entender melhor como a ciência trabalha e é produzida!

    Levedura modificada geneticamente – o que estamos modificando nela?

    Organismos geneticamente modificados (OGM) são mais comuns do que imaginamos. O ser humano tem utilizado vastamente o melhoramento genético em benefício da nossa sociedade. Por exemplo, a seleção de características de interesse em animais e plantas – que é traço de nossa organização social desde os primórdios. Além disso, temos a produção de químicos específicos por microrganismos,  

        O CORONAYEAST não é diferente: é um biossensor viral baseado em uma levedura que precisa ter seu genoma editado para servir a esse propósito. Para tal, precisamos inserir no microorganismo alguns genes heterólogos. Calma, o nome é difícil, mas a explicação é simples…  Isto é, o que quisemos dizer é que são genes que a espécie Saccharomyces cerevisiae não possui naturalmente.

    Como já falamos sobre o funcionamento do CORONAYEAST, podemos dividir essas modificações genéticas em três grupos principais: 1) proteína ACE2 de humano, responsável tanto pela percepção do SARS-CoV-2 quanto pelo controle do hormônio angiotensina II (já vamos explicar!); 2) receptor AT1 de humano, receptor de membrana da classe das proteínas do tipo G que consegue detectar angiotensina II e enviar um sinal pra célula; 3) os genes repórter, que produzem proteínas que conferem a mudança de cor e fluorescência na levedura e que são ativados pelo receptor AT1.

    Agora é que vem a parte complicada e cheia de termos. Mas respira fundo aí que a gente vai explicar com calma um por um!

    ACE2, AT1 e SARS-CoV-2: quê?

    A ACE2 – Enzima Conversora de Angiotensina 2 é encontrada naturalmente em humanos. Assim, ela tem o papel de regular os níveis de Angiotensina II no nosso organismo, convertendo-a em Angiotensina 1-7.

     A Angiotensina II é um hormônio peptídeo que atua na vasoconstrição e, junto com a ACE2, faz parte do sistema renina-angiotensina (RAS), que é um intricado e complexo sistema de regulação da nossa pressão arterial. Além disso, também estão presentes os receptores de membrana, como o AT1. O AT1, como dissemos, consegue perceber a concentração de angiontesina II no meio e enviar um sinal para a célula reagir em conformidade. Ou seja, a resposta celular varia de acordo com a quantidade do hormônio detectado. Ademais, esse receptor de membrana faz parte da classe dos GPCR. Ou seja: o AT1 reage apenas à presença de angiotensina II e consegue detectar baixas concentrações deste hormônio. 

    Todavia, o entendimento de todo esse sistema é importante não apenas para entender o CORONAYEAST. Foi essencial também para elucidar os efeitos da COVID-19 em pacientes. O SARS-CoV-2 tem apenas uma forma de infectar nossas células: através da ligação com a ACE2 . Portanto, ao detectar uma possível célula hospedeira, o SARS-CoV-2 se liga a essa enzima e faz com ela não consiga desempenhar seu papel normalmente. Resumindo: quando o vírus nos infecta, o ACE2 fica comprometido e, por isso, apresentamos maiores níveis de angiotensina II.

    Mas e o gene repórter? Pois é, Faltou explicar este último dos 3 elementos que precisamos modificar na levedura: o ACE2, o AT1 e o Gene Repórter…

    Gene Repórter: o que é e por que ele é necessário?

    Para fechar o sistema biossensor, precisamos de um, ou mais, gene repórter. Entretanto, para ficar claro o porquê e como vamos usar esse artefato, precisamos de uns conceitos básicos de genética. Mas calma, não é nada muito complicado. O que precisamos saber é que os genes são estruturas formadas de subunidades que regulam sua expressão. Ou seja: pra um gene ativar e produzir uma proteína ele precisa estar sob uma condição específica. Por fim, quem regula essa condição e diz se o gene deve ativar é o promotor. Isto é: não basta um ser vivo “ter um gene” para determinada função. Assim, este gene precisa de um agente externo (o promotor) para ser ativado (e produzir uma proteína que funcione!).

    Mas, e o Gene Repórter? É um gene que é inserido junto com os genes de interesse da nossa pesquisa. Dessa forma, no nosso caso da Levedura Saccharomyces cerevisiae, o gene que produz o ACE2 e o gene que produz o AT1. Isto é, quando produzimos um Organismo Geneticamente Modificado, podemos também inserir um gene repórter junto com os genes que queremos que funcionem naquele organismo. Por quê? O gene repórter tem uma atividade facilmente rastreável – produz proteínas luminescentes ou que promovem mudança de cor, por exemplo. Em suma, com isto conseguimos saber que os genes que inserimos estão “funcionando”.

    Assim, no caso desta levedura, o gene repórter produz proteínas que conferem a mudança de cor e fluorescência. Quer dizer, isso quando ativadas pela sinalização dentro da célula gerada pelo receptor AT1!

    Para finalizar: o que tudo isto têm a ver com o teste CORONAYEAST?

    Por fim, depois de explicar todos os genes, receptores, hormônios e enzimas que estão envolvidos na técnica, vamos voltar ao RAS? Lembra que o AT1 percebe a presença de angiotensina II e envia um sinal para a célula?

    Pois bem, esse sinal diz pra um promotor específico, o FIG1, que ele deve ativar um gene. No caso do nosso biossensor, a gente vai colocar um gene repórter regulado pelo FIG1. Na verdade, vamos colocar dois (e por isso falamos que o CORONAYEAST pode ser usado no laboratório ou em casa). Quais? Um gene que produz uma proteína fluorescente e um gene que produz um pigmento visível à olho nu.

    Mas, como isso tudo funciona na presença e ausência do vírus? Agora que explicamos tudo isso, no próximo texto vamos falar com mais detalhes sobre a interação da levedura com o vírus mais apropriadamente!

    Este texto foi elaborado a partir de uma pesquisa financiada pela FAPESP, cujo processo é n.2018/03403-2

    Força Tarefa da Unicamp

    A pesquisa que embasou esta postagem é fruto da “Força Tarefa da Unicamp”. Assim, faz parte de um conjunto pesquisas científicas que a Unicamp vem fazendo desde o início da pandemia. O Especial Covid-19, do Blogs de Ciência da Unicamp, participa da Força Tarefa desde o início, com a divulgação científica sobre a doença. Mas também vai se dedicar à publicação destes conhecimentos produzidos especificamente pelos pesquisadores da Unicamp cada vez mais! Acompanhe as próximas postagens!

    Nossos sites institucionais:

    Força Tarefa da Unicamp

    Unicamp – Coronavírus

    Para saber mais

    Adeniran A, Sherer M, Tyo KEJ (2015) Yeast-based biosensors: Design and applications FEMS Yeast Res;15:1–15.

    Azzi L, Carcano G, Gianfagna F et al (2020) Saliva is a reliable tool to detect SARS-CoV-2 J Infect 2020;81:e45–50.

    Burrell LM, Johnston CI, Tikellis C et al. ACE2, a new regulator of the renin–angiotensin system. Trends Endocrinol Metab 2004;15:166–9.

    Imai Y, Kuba K, Rao S et al (2005) Angiotensin-converting enzyme 2 protects from severe acute lung failure Nature 2005;436:112–6.

    Nakamura Y, Ishii J, Kondo A (2014) Construction of a yeast-based signaling biosensor for human angiotensin II type 1 receptor via functional coupling between Asn295-mutated receptor and Gpa1/G i3 chimeric Gα. Biotechnol Bioeng;111:2220–8

    Takata, R (2010) O que é um gene repórter afinal?Gene Repórter

    Verdecchia, P, Cavallini, C, Spanevello, A, & Angeli, F (2020) The pivotal link between ACE2 deficiency and SARS-CoV-2 infection European journal of internal medicine, 76, 14–20.

    Zhang H, Penninger JM, Li Y et al (2020) Angiotensin-converting enzyme 2 (ACE2) as a SARS-CoV-2 receptor: molecular mechanisms and potential therapeutic target Intensive Care Med 2020;46:586–90.

    Os Autores

    Ana Arnt é Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência!

    Carla Maneira da Silva Mestranda em Genética de Micro-organismos pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Realiza suas atividades de pesquisa no Laboratório de Genética e Bio-Energia (LGE). Possui experiência na área de genética e engenharia metabólica. Mais especificamente na produção de compostos de interesse econômico a partir de micro-organismos. Assim como na produção de biossensores baseados em levedura.

    Fellipe Mello é Engenheiro químico (2014) e doutor em ciências (2019) pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é post doc em engenharia genética no Laboratório de Genômica e bioEnergia no Instituto de Biologia da Unicamp. Tem experiência na área de engenharia química, com ênfase em termofluidodinâmica, no reaproveitamento de biomassas e purificação de proteínas; e na área de genética, com ênfase em engenharia metabólica e estudo de QTLs.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Sabia que leveduras podem fazer diagnóstico de Covid-19?

    Texto escrito por Fellipe Mello, Carla Maneira da Silva e Ana Arnt

    Existem vários testes diagnósticos para a Covid-19, com maior ou menor precisão. Além de ter um resultado altamente confiável, uma das questões que é relevante pra este momento é, termos também uma agilidade nos resultados, com o menor valor possível!

    No Laboratório de Genômica e bio-Energia (LGE) da Unicamp, tivemos a ideia de aplicar leveduras na fabricação de um novo tipo de teste diagnóstico para COVID-19. Este laboratório é especializado, há mais de vinte anos na engenharia genética e aplicação de leveduras em processos industriais.

    O diagnóstico foi denominado CORONAYEAST e será baseado em leveduras que mudam de cor e emitem fluorescência na presença do vírus. Mas antes de falar do teste diagnóstico, vamos conhecer um pouco melhor as leveduras!

    Mas porque leveduras?

    Leveduras são microorganismos unicelulares pertencentes ao reino Fungi. Apesar de não ouvirmos muito falar seu nome, algum dos alimentos mais comuns do nosso cotidiano, como pães e vinhos, são produzidos com uma ajudinha desses pequenos seres. Além disso, leveduras podem ser aplicadas na fabricação de diversos outros produtos industriais, muitas vezes substituindo matérias-primas não-renováveis.

    Devido à sua grande importância histórico-econômica as leveduras – principalmente a espécie Saccharomyces cerevisiae – foram um dos primeiros seres a terem seu genoma sequenciado! E, a partir daí, diversas ferramentas genéticas, capazes de realizar modificações genéticas direcionadas e específicas foram desenvolvidas para esses organismos. Uma das ferramentas mais conhecidas e utilizadas por pesquisadores para a edição genética, não apenas de leveduras, mas também de diversos outros organismos, é o CRISPR/Cas9. É essa técnica que está sendo aplicada pelos pesquisadores do LGE para construir o CORONAYEAST. Ficou curioso? Acesse este vídeo e saiba mais sobre o CRISPR.

    De levedura alimentar à levedura para diagnóstico

    A utilização de leveduras como biossensores não é de hoje. Biossensores são organismos capazes de identificar compostos e acusar sua presença por meio de mudanças estruturais visíveis e/ou mensuráveis. A ideia por trás desse conceito fundamenta-se na compreensão de como as leveduras são e se “comportam” para detectar potenciais parceiros sexuais. Isso acontece através de uma série de reações químicas, com respostas fisiológicas bem específicas. São estas reações que nos interessam, quando estudamos biossensores, pois elas podem ser, digamos assim, “hakeadas” por meio da realização de edições genéticas.

    Basicamente, o que acontece é que leveduras apresentam em sua parede celular um receptor de hormônios reprodutivos (também conhecidos como feromônios). Esse receptor faz parte da classe dos Receptores Acoplados à Proteína G (GPCRs). Estes receptores, apesar deste nome longo e difícil, são comuns em uma variedade de espécies e particularmente  abundantes em mamíferos.

    O que fazemos em laboratório é substituir o GPCR original da levedura por outros GPCRs provenientes de outros organismos. Dessa forma, esta levedura será capaz de perceber outros tipos de sinais – pois cada receptor reconhece hormônios bem específicos. Assim, a substituição do tipo de ação efetuada por esse sinal permite que leveduras tornem-se verdadeiras plataformas de detecção de compostos diversos. No caso do CORONAYEAST, o GPCR que inserimos conseguirá detectar mudanças extracelulares causadas pelo vírus  da COVID-19: SARS-CoV-2!

    Como a levedura detecta o vírus

    É por meio de uma linhagem modificada geneticamente da levedura S. cerevisiae que funcionará o diagnóstico por CORONAYEAST. A linhagem biossensora será capaz de expressar um sistema de recepção viral, assim como um GPCR humano que percebe mudanças fisiológicas que ocorrerem apenas mediante a infecção. Ficou confuso?

    Isto quer dizer que a levedura, funcionando com um GPCR modificado, também expressará (vai produzir proteínas específicas que são) um sistema de recepção viral – como um sensor de movimento, que detecta quando algo passa na frente, por exemplo, só que neste caso, detecta apenas o SARS-CoV-2! 

    E como a levedura nos avisa que o está presente na amostra? 

    Vocês podem estar se perguntando como a levedura nos indica a presença do vírus! Esta é uma das partes interessantes! Quando há presença no novo coronavírus, a levedura muda de cor e emite fluorescência (basicamente: a levedura brilha!). Isso acontece porque o SARS-CoV-2, ao se ligar a este receptor viral, irá causar uma mudança fisiológica no meio onde está a levedura. O GPCR irá captar exatamente essa mudança e isso irá desencadear uma cascata de sinalização dentro da célula que irá orientá-la a mudar de cor. 

    Sua aplicação poderá ocorrer de duas formas:

    (1) Como um teste quantitativo de laboratório. Neste caso, as amostras incubadas com a levedura poderão ser lidas por um aparelho capaz de medir fluorescência – a intensidade de fluorescência das amostras corresponderá a quantidade de partículas virais na amostra ou;

    (2) Como um teste qualitativo em domicílio. Este teste funcionará como um aparato de leitura, semelhante a um teste de gravidez, acusará a presença viral por meio de mudança de cor, após a adição de saliva.

    Finalizando

    Neste primeiro texto, apresentamos um pouquinho do projeto que o LGE, da Unicamp, vem desenvolvendo, ainda com resultados iniciais apenas. Vamos explicar ainda como funciona a pesquisa e de que maneira trabalhamos no laboratório, para alcançar os resultados, nos próximos textos. Aguarde e acompanhe esse trabalho!

    Este texto foi elaborado a partir de uma pesquisa financiada pela FAPESP, cujo processo é n.2018/03403-2

    Força Tarefa da Unicamp

    O artigo que embasou esta postagem faz parte de um conjunto de postagens sobre as pesquisas científicas que a Unicamp vem fazendo desde o início da pandemia, no que chamamos “Força Tarefa”. O Especial Covid-19, do Blogs de Ciência da Unicamp, participa da Força Tarefa desde o início, com a divulgação científica sobre a doença. Mas também vai se dedicar à publicação destes conhecimentos produzidos especificamente pelos pesquisadores da Unicamp cada vez mais! Acompanhe as próximas postagens!

    Nossos sites institucionais:

    Força Tarefa da Unicamp

    Unicamp – Coronavírus

    Para saber mais

    Adeniran A, Sherer M, Tyo KEJ (2015) Yeast-based biosensors: Design and applications. FEMS Yeast Res ;15:1–15.

    Lengger B, Jensen MK (2020) Engineering G protein-coupled receptor signalling in yeast for biotechnological and medical purposes. FEMS Yeast Res ;20:87

    Morales-Narváez E, Dincer C (2020) The impact of biosensing in a pandemic outbreak: COVID-19. Biosens Bioelectron ;163:112274.

    Outros textos do Especial Covid-19

    Diagnóstico por RT-qPCR, o que é isso?

    Como se detecta o coronavírus?

    Os Autores

    Ana Arnt é Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência! 😉

    Carla Maneira da Silva Mestranda em Genética de Micro-organismos pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), realiza suas atividades de pesquisa no Laboratório de Genética e Bio-Energia (LGE), possui experiência na área de genética e engenharia metabólica, mais especificamente na produção de compostos de interesse econômico a partir de micro-organismos, assim como na produção de biossensores baseados em levedura.

    Fellipe Mello é Engenheiro químico (2014) e doutor em ciências (2019) pela Universidade Estadual de Campinas, atualmente é post doc em engenharia genética no Laboratório de Genômica e bioEnergia no Instituto de Biologia da Unicamp. Tem experiência na área de engenharia química, com ênfase em termofluidodinâmica, no reaproveitamento de biomassas e purificação de proteínas; e na área de genética, com ênfase em engenharia metabólica e estudo de QTLs.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e que são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Covid-19: um exército invisível combatendo a doença!

    Em textos prévios, nós vimos vários conceitos relacionados à imunidade inata, adaptativa, humoral e celular. Nesse último, entendemos como as principais células trabalham para combater diferentes tipos de ameaças, desde vírus e bactérias, até fungos e vermes. Mas então surge a grande dúvida: e no caso do SARS-CoV-2, como combatemos ele? 

    Para responder essa pergunta, vamos olhar para várias pesquisas que estão sendo feitas ao redor do mundo. Pesquisas que estão tentando entender melhor a imunidade celular. Além disso, buscam compreender sua relação com o vírus causador da Covid-19, dando foco um pouco maior para os linfócitos T. Antes, vamos retomar a estrutura do SARS-CoV-2. Primeiramente, destacamos a Spike, que é a proteína responsável pela entrada dele nas células. Há, também, as proteínas do Nucleocapsídeo, que forma a capa que protege o material genético. O Envelope, que é a membrana de gordura que envolve o nucleocapsídeo. Por fim, as proteínas não estruturais, relacionadas principalmente à replicação viral). Caso tenha mais dúvidas, não deixe de conferir dois textos muito bons que já explicaram sobre elas aqui no blog 1, 2.

    Uma descoberta surpreendente

    A cada dia um número maior de artigos vêm sendo publicados e mostrando aquilo que muitos pesquisadores já imaginavam que poderia acontecer. Isto é, desde pessoas que tiveram a forma assintomática e leve da Covid-19 até as que tiveram a forma severa, desenvolvem linfócitos T de memória. Estes linfócitos são capazes de responder ao vírus de forma eficiente, caso sejam expostos ao vírus novamente. Apesar de vários estudos mostrarem que células de memória reagem contra partes diferentes do SARS-CoV-2 3-8, desde a Spike, até a proteína do envelope, nucleocapsídeo e NSPs.

    Sobre a Imunidade ou Reatividade Cruzada, de novo

    Contudo, o que mais tem chamado a atenção dos pesquisadores é o fenômeno chamado de Imunidade ou Reatividade Cruzada de linfócitos T de memória de outros coronavírus contra proteínas do SARS-CoV-2. Já explicado em outro texto aqui no Blogs . Um artigo publicado na Nature 3, mostrou que uma parte das pessoas infectadas com o vírus da SARS de 2002-2003 (SARS-CoV-1), isto é, há 17 anos atrás, ainda tinham células que conseguiam responder e se multiplicar ao reconhecerem a proteína N (de Nucleocapsídeo) do SARS-CoV-2.

    Esse mesmo artigo também viu que indivíduos que não haviam contraído a SARS e Covid-19, tinham linfócitos T de memória. Estes linfócitos T respondiam principalmente à duas NSPs do SARS-CoV-2, e a proteína N. Além disso, os linfócitos reconheciam um pedaço da proteína N que era muito parecido com pedaços da mesma proteína de outros coronavírus de humanos. No entanto, com os fragmentos das NSPs isso não acontecia, levantando a hipótese que essas células poderiam responder a fragmentos de proteínas de coronavírus animais.

    Um segundo artigo4, mostrou que uma parte dos pacientes saudáveis que não tinham sido expostos a Covid-19 também possuíam linfócitos T de memória funcionais. Estes respondiam há um fragmento da proteína S, assim como pacientes que haviam se infectado com o SARS-CoV-2. Além disso, esse fragmento da Spike (que as células respondiam) é bastante parecido com a Spike de outros coronavírus de humanos (os HCoVs).

    A partir de experimentos utilizando tanto a proteína Spike dos HCoVs, quanto os HCoVs inteiros, os pesquisadores viram que essas células de memória reagentes, presente em pacientes que nunca tinham se infectado com SARS ou Covid-19, respondiam muito bem e eram capazes de se multiplicar tanto na presença da proteína quanto do vírus completo.

    O que tudo isso significa?

    A essa altura do campeonato, vocês devem estar se perguntando o que toda essa quantidade absurda de siglas e dados tem a ver com vocês. O ponto todo desses estudos é indicar que existe uma certa quantidade de imunidade em pessoas não expostas ao causador da Covid-19. Além disso, as pesquisas buscam mostrar a imunidade celular que geramos contra o SARS-CoV-2. É claro que grandes dúvidas ainda ficam no ar, como por exemplo: da onde vêm essas células? Qual o grau de proteção que elas garantem? O que poderia ter levado a formação delas? 

    Como já comentado anteriormente, muitos pesquisadores especulam que essas células possam surgir a partir de eventos prévios de infecção pelos Coronavírus Endêmicos de Humanos (HCoVs)9. Estes coronavírus são causadores dos ciclos de resfriado comum nas estações secas e que circulam amplamente entre a população humana, assim como o vírus influenza. Dessa forma, acredita-se que as pessoas que já tivessem entrado em contato com esses vírus teriam uma maior chance de ter células de memória. As células de memória poderiam responder a alguma proteína ou fragmento de proteína que fosse compartilhado entre os HCoVs e o SARS-CoV-2.

    Mas qual a implicação disso?  

    A principal hipótese levantada é que a presença de linfócitos de memória em parte da população seja o porquê algumas pessoas desenvolvem a forma leve da doença. Ou, até mesmo, permanecem de forma assintomática – estes seriam os casos em que há a presença dessas células de memória. Enquanto isso, a Covid-19 poderia estar relacionada à presença de comorbidade (como já foi muito discutido) somada a falta dessas células de memória. Isso, claro, em sua forma mais severa. Aqui é necessário lembrar que as pessoas que teriam os linfócitos de memória poderiam gerar a forma leve ou assintomática. Isto em decorrência delas conseguirem montar uma resposta mais rápida e forte contra o SARS-CoV-2, dessa forma limitando a severidade da doença. 

    Um outro impacto que a existência de uma imunidade celular cruzada entre SARS-CoV-2 e HCoVs poderia ter é relacionada ao desenvolvimento de vacinas. A pré-existência de linfócitos T de memória, principalmente nas primeiras fases de testes, poderia gerar um fator de confusão durante a análise dos resultados. Assim, não seria possível saber se essas células que respondem à vacina seriam novos linfócitos gerados a partir dessa imunização, ou linfócitos de memória que foram reativados após a vacinação. Assim, esta informação, obviamente, não é banal dentro do que precisamos compreender sobre o coronavírus…

    Por fim…

    Apesar disso tudo, muitos estudos (principalmente com grupos maiores e mais diversos de humanos) ainda precisam ser realizados. Tais estudos necessitam verificar a pré-imunidade ao SARS-CoV-2 – decorrente dos HCoVs. Além disso, analisar o potencial de infecção e severidade da doença nesses casos, através da medição dessa pré-imunidade antes e após os testes. Como vocês podem ver, ainda há muito o que descobrir sobre esta doença e nosso sistema imune!

    Para saber mais

    1. A Joia da Coroa (2020) https://www.blogs.unicamp.br/covid-19/a-joia-da-coroa/
    2. Valentões dentro da célula, sensíveis fora dela: os vírus (2020) https://www.blogs.unicamp.br/covid-19/valentoes-dentro-da-celula-sensiveis-fora-dela-os-virus/
    3. Le Bert, N, Tan, AT, Kunasegaran, K, Tham, CY, Hafezi, M, Chia, A, & Chia, WN (2020) SARS-CoV-2-specific T cell immunity in cases of COVID-19 and SARS, and uninfected controls, Nature, 584(7821), 457-462. 
    4. Braun, J, Loyal, L, Frentsch, M, Wendisch, D, Georg, P, Kurth, F, & Baysal, E (2020) SARS-CoV-2-reactive T cells in healthy donors and patients with COVID-19 Nature, 10
    5. Ni, L, Ye, F, Cheng, M. L, Feng, Y, Deng, YQ, Zhao, H, … & Sun, L (2020) Detection of SARS-CoV-2-specific humoral and cellular immunity in COVID-19 convalescent individuals Immunity
    6. Sekine, T, Perez-Potti, A, Rivera-Ballesteros, O, Strålin, K, Gorin, JB, Olsson, A, … & Wullimann, DJ (2020) Robust T cell immunity in convalescent individuals with asymptomatic or mild COVID-19 Cell
    7. Meckiff, BJ, Ramírez-Suástegui, C, Fajardo, V, Chee, SJ, Kusnadi, A, Simon, H, … & Ay, F (2020) Single-cell transcriptomic analysis of SARS-CoV-2 reactive CD4+ T cells Available at SSRN 3641939.
    8. Grifoni, A, Weiskopf, D, Ramirez, SI, Mateus, J, Dan, JM, Moderbacher, CR, … & Marrama, D (2020) Targets of T cell responses to SARS-CoV-2 coronavirus in humans with COVID-19 disease and unexposed individuals Cell
    9. Sette, A, & Crotty, S (2020) Pre-existing immunity to SARS-CoV-2: the knowns and unknowns Nature Reviews Immunology, 20(8), 457-458. 

    Para mais informações:

    Chen, Z, & Wherry, E J (2020) T cell responses in patients with COVID-19 Nature Reviews Immunology, 1-8. 

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e que são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Deus, hidroxicloroquina e unicórnios: é impossível demonstrar um negativo?

    Texto escrito por Fábio Machado

    Quem está habituado à discussão teológica está familiarizado com a afirmação de que seria “impossível demonstrar uma negativa”. Ela é rotineiramente usada por crentes e apologetas para argumentar que, “segundo a lógica”, é impossível dizer que Deus não existe, mesmo na total ausência de evidências da sua existência. Logo se você crê em Deus por fé apenas (sem evidencia), você não estaria sendo irracional ou ilógico. Esse argumentos sempre me soou estranho, mas eu honestamente não havia pensado nele por anos até que me deparei com alguns debates recentes na internet envolvendo a hidroxicloroquina e sua eficácia. A discussão segue mais ou menos assim:

    Crítico da hidroxicloroquina – Foi demonstrada a ineficácia da hidroxicloroquina

    Defensor da hidroxicloroquina – Não foi demonstrada sua ineficácia, porque é impossível demonstrar uma negativa.

    O que para mim o curioso nessa história toda é que a frase de efeito, ou truísmo, usado para corroborar esse raciocínio, de que  “é impossível demonstrar uma negativa” é obviamente falso. É completamente lógico derivar um argumento formal no qual a conclusão é a inexistência de algo. Por exemplo, digamos que estejamos argumentando sobre a existência de unicórnios. Eu poderia montar o seguinte argumento

    • P1 – Se unicórnios existem, deveria haver alguma evidência deles no registro fóssil.
    • P2 – Não existe evidência de unicórnios no registro fóssil.
    • Conclusão- Unicórnios não existem.

    Esse é um argumento logicamente válido no qual a conclusão (uma negativa) é a consequência lógica das premissas. Proposições negativas são tão demonstráveis quanto proposições positivas.

    “Mas, calma lá”, você pode pensar “o registro fóssil é notoriamente incompleto. Espécies podem simplesmente não estar representadas sem que isso signifique que elas nunca existiram”.

    Esse argumento remete ao problema da indução, que diz basicamente que nenhuma generalização baseada em observações limitadas pode ser bem sucedida. O exemplo clássico é a ideia de que, não importa quantos cisnes brancos você encontre na natureza, você nunca vai poder dizer que todos os cisnes são brancos, visto que você ainda pode encontrar um cisne negro que refute essa generalização. É importante ressaltar que, enquanto isso não invalida a ideia que proposições negativas são demonstráveis, isso parece levantar um problema sério para premissas que sustentem supostas inexistências.

    Porém, nem todas proposições são iguais. Imagine que, ao invés de você estar buscando cisnes negros, você que saber se um gene X está associado com a cor das penas em cisnes negros. Uma prática em genética para entender o funcionamento de um dado gene é exatamente deletar esse gene de um embrião, ou “nocautear” o gene. Se o gene era associado com a cor das penas, você espera que o embrião com o gene nocauteado desenvolva penas brancas (ou não-negras). Se o embrião continua desenvolvendo penas negras, você pode afirmar que o gene X não tem efeito sob a coloração negra das penas. Em forma de argumento formal:

    • P1- Se o gene X determina a cor negra da pena, sua remoção produziria penas sem essa coloração
    • P2- A remoção do gene não afeta a cor da pena
    • Conclusão- O gene X não afeta a cor da pena.

    Nesse caso não há ambiguidade alguma: uma vez que o mecanismo é proposto e testado, a ausência de um efeito implica que sua hipótese foi refutada: o mecanismo, como designado, não existe. A diferença é que, quanto mais específica é sua premissa inicial, mais certeza você pode conferir à sua conclusão.

    O caso de medicamentos tem mais a ver com o encontrar um mecanismo genético do que buscar unicórnios no registro fóssil: a ação de um remédio depende de que um mecanismo proposto seja verdadeiro, ou potencialmente verdadeiro. O que nos trás à hidroxicloroquina.

    Presidente Jair Bolsonaro no jardim do Palácio da Alvorada alimentando as emas e mostrando a caixa do remédio cloroquina para as emas, a mesma caixa que mostrou para os apoiadores no ultimo domingo 19/07. Sérgio Lima/Poder360. 23.07.2020

    Querida de três em cada três líderes com tendências autoritárias no continente americano (Trump, Bolsonaro e Maduro), a hidroxicloroquina foi alardeada com um possível tratamento ao COVID19 com base em um estudo feito em células in vitro (em placas de petri; aqui e aqui). Esse estudo demonstrou que a hidroxicloroquina em conjunto com azitromicina era capaz de prevenir a entrada do vírus em células vivas. Em investigações sobre a eficácia de medicamentos, a existência de algum tipo de efeito in vitro é considerado premissa básica para que mais estudos sejam realizados, para observar se um remédio pode ter efeito em seres vivos e, em última analise, humanos. De qualquer maneira, esse estudo deu o pontapé inicial à investigação sobre a eficiência da hidroxicloroquina contra o COVID19, resultando em diversos trabalhos que buscaram encontrar um efeito da droga em seres humanos infectados.

    Nada disso seria particularmente problemático se políticos não tivessem tomado para si o papel de decidir, com base em evidências problemáticas, quais são os tratamentos que devem ser seguidos. O que temos agora é a pior situação possível: enquanto a ciência demonstra a total ineficácia da hidroxicloroquina no tratamento de COVID19 (ver aqui e aqui, por exemplo), políticos e entusiastas destes mesmos governantes se veem na posição de ter que defender pseudociência por motivos meramente ideológicos. E é nesse momento que vemos as pessoas se agarrarem cada vez mais desesperadamente à argumentos falaciosos para defender sua posição. No caso da hidroxicloroquina, como coloquei anteriormente, surge essa ideia de que seu efeito positivo não pode ser negado, pois seria impossível demonstrar uma negativa. Como já argumentei, essa afirmação é falsa (é incrivelmente simples demonstrar um negativo). Mas seria esse o caso da hidroxicloroquina?

    Pra entender isso, precisamos entender um pouco como supostamente a hidroxicloroquina deveria funcionar. Para entrar nas células animais, o coronavírus pode se valer de dois mecanismos. O primeiro é se ligando a receptores de superfície das células do hospedeiro para introduzir o seu material genético diretamente no interior da célula. No segundo mecanismo, o vírus é absorvido por invaginações da membrana celular (endossomos) e invadem o citoplasma celular a partir daí. Esse segundo mecanismos, o realizado por endossomos, necessita de uma proteína funcional chamada catepsina L, que necessita de um meio ácido para funcionar. Nesse contexto, a hidroxicloroquina atua diminuindo a acidez do meio intracelular, impedindo a ação da catepsina L, impedindo a entrada do coronavírus na célula. Para voltar para nossas preposições, podemos descrever a atuação da hidroxicloroquina da seguinte forma:

    • P1- Para a hidroxicloroquina funcionar no combate a COVID19 ela necessita prevenir a entrada do coronavírus nas celulas pulmonares humanas.
    • P2- Hidroxicloroquina diminui a acidez intracelular, afetando o funcionamento da catepsina L.
    • P3- Catepsina L é usada pelo coronavírus para entrar na célula.

    Segundo essa lógica – e essa era a lógica que poderíamos aceitar no começo do ano – a hidroxicloroquina (potencialmente) funcionaria no combate a COVID19. Mas o diabo mora nos detalhes. As células usadas inicialmente para demostrar que a hidroxicloroquina funciona in vitro eram culturas de células de rins de macacos. Essas células normalmente apresentam resultados bons o suficiente para a maior parte dos fármacos, porém no caso do coronavírus a coisa parece ser mais complicada. Enquanto é verdade que em células de rim a Catepsina L é essencial para a ação de entrada do vírus, células pulmonares humanas não apresentam essa enzima em grandes quantidades.

    Ao invés, o mecanismo de entrada do coronavírus na célula é mediada por uma enzima chamada TMPRSS2. O problema é que, diferente da Catepsina L, o funcionamento da TMPRSS2 não é afetado pela alteração da acidez do meio celular. De fato, um estudo recente em células pulmonares humanas demonstrou que a hidroxicloriquina é incapaz de impedir a invasão das células pelo coronavirus. Assim, podemos atualizar a descrição da atuação da hidroxicloroquina da seguinte forma:

    • P1- Para a hidroxicloroquina funcionar no combate a COVID19 ela necessita prevenir a entrada do coronavírus nas celulas pulmonares humanas.
    • P2- Hidroxicloroquina diminui a acidez intracelular, afetando o funcionamento da catepsina L.
    • P3- Catepsina L é usada pelo coronavírus para entrar em células de rim.
    • P4- TMPRSS2, que é usada pelo coronavirus para entrar em células pulmonares, não é afetada pela hidroxicloroquina.

    E disso segue que

    • C- Hidroxicloroquina não funciona no combate a COVID19 através do mecanismo proposto.

    O que mostra que é plenamente lógico afirmar que a hidroxicloroquina não funciona.

    Óbvio que isso não vai satisfazer os defensores da droga, pois inúmeros outros mecanismos podem ser propostos, inclusive mecanismos sem o menor respaldo científico, como foi o caso da “pílula do câncer”, uma droga sem efeito também defendida pelo presidente da república.

    Eu acredito que a luta pela hidroxicloroquina vai durar muito mais tempo depois que sua discussão acadêmica estiver de fato encerrada. Estamos entrando em um caminho onde teorias conspiratórias, pseudociência e pseudofilosofia estarão intrinsecamente ligados com a política nacional. Vai ser um caminho tortuoso. Boa sorte a todos nós.

    *Para os nerds: sim, eu estou mais que ciente das problemáticas sobre o grau de confiabilidade em resultados experimentais e estatísticos. Você pode transformar todos esses argumentos em probabilísticos e chegar a conclusão que a hidroxicloroquina muito provavelmente não funciona (o que é basicamente a mesma, visto que a única “certeza” que podemos ter em termos científicos são aquelas referentes à altas probabilidades).

    Para saber mais

    Boulware DR, Pullen MF, Bangdiwala AS, et al. A Randomized Trial of Hydroxychloroquine as Postexposure Prophylaxis for Covid-19. N Engl J Med. 2020;383(6):517-525. doi:10.1056/NEJMoa2016638

    Cavalcanti, AB; Zampieri, FG; Rosa, RG et al (2020) Hydroxychloroquine with or without Azithromycin in Mild-to-Moderate Covid-19. The New England Journal of Medicine

    Liu, J., Cao, R., Xu, M. et al. Hydroxychloroquine, a less toxic derivative of chloroquine, is effective in inhibiting SARS-CoV-2 infection in vitro. Cell Discov 6, 16 (2020). https://doi.org/10.1038/s41421-020-0156-0

    Wang, M., Cao, R., Zhang, L. et al. Remdesivir and chloroquine effectively inhibit the recently emerged novel coronavirus (2019-nCoV) in vitro. Cell Res 30, 269–271 (2020). https://doi.org/10.1038/s41422-020-0282-0

    O autor

    Fabio Machado é Biologo Evolutivo, pesquisador e professor. Amante dos animais, defensor da natureza, amigo do vento.

    Este texto foi escrito originalmente no Blog Haeckeliano.

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Imunidade Celular: um exército de soldados invisíveis

    Em textos anteriores, nós já vimos como minúsculos sinalizadores – os anticorpos – do nosso sistema imune trabalham para auxiliar nosso corpo a combater os patógenos que tentam nos fazer mal, na chamada Resposta Imune Humoral. Agora, vamos entender melhor como um exército de soldados pessoais combatem diariamente toda uma magnitude de inimigos que tentam invadir nosso organismo, na Resposta Imune Celular.

    O que é Imunidade Celular

    A resposta imune celular, ou imunidade celular, é aquela que reside (como o nome diz) nas nossas células do sistema imunológico. Ela pode ser passada de uma pessoa imunizada para um indivíduo que não teve contato com o patógeno através da transferência dessas células a partir da pessoa que já foi infectada. Este  fenômeno nós chamamos de Transferência Adotiva, pois a pessoa que recebe as células as “adota”. 

    Mas de que células estamos falando?

        Bem, aqui é uma pergunta complicada, pois o sistema imune é formado por uma infinidade de células com diversas, diferentes e muitas vezes redundantes funções, contudo aqui vamos abordar somente algumas delas. Primeiro precisamos lembrar de algo que já falamos sobre Anticorpos: a divisão e as principais características da imunidade inata e adaptativa. Começando pela Imunidade Inata, vamos citar as principais células responsáveis no combate dos três tipos de ameaças mais comuns: patógenos unicelulares (que vivem fora de nossas células), patógenos unicelulares (que vivem dentro de nossas células) e os vermes (representando a classe de patógenos multicelulares).

    Macrófagos

    Essas são as principais células responsáveis pelo combate aos patógenos extracelulares como bactérias, protozoários e fungos. Além disso, essas células tem um papel muito grande na limpeza dos tecidos durante e após uma infecção, eliminando restos de células mortas e auxiliando no processo de cicatrização. Dentre muitas habilidades, a principal arma dos macrófagos no combate a patógenos é a Fagocitose: o simples fenômeno de envolver uma partícula externa e/ou patógeno, trazê-la para dentro da célula (simbolizado no ato de comer) e digerir essa partícula ou patógeno. O interessante desse mecanismo é que alguns pesquisadores da evolução do sistema imune consideram ele o primeiro mecanismo imune a surgir 1. Isto porque mesmo os animais mais ancestrais (as esponjas) já possuem células com essa função de “comer”. Todavia, nesses animais tais células têm a função ligada à alimentação e não à defesa como em nós, mamíferos.

    Células Natural Killers

    Podemos dizer que essas células são a Polícia ou os Agentes Especiais do sistema imune inato. São as responsáveis por matar células modificadas. Isto é, aquelas células que sofreram alguma modificação dentro de si, seja pela infecção por um vírus ou outro patógeno intracelular, a transformação em uma célula cancerígena ou mesmo o envelhecimento celular. Essas células também estão envolvidas na rejeição de transplantes, por reconhecerem as células do doador como não pertencentes a nós.

    Diferentemente dos Macrófagos, essas células atuam não engolindo outras células. Mas liberando substâncias antivirais (os famosos Interferons) e citotóxicas. Com essas últimas sendo substâncias capazes de fazer com que as células cometam suicídio, (processo chamado Morte Celular Programada, ou Apoptose). Vocês podem pensar então “Ahh mas Maurílio, como elas sabem que as células estão saudáveis e são nossas?”. Eu respondo vocês: as Natural Killers matam somente a células que não apresentam uma molécula chamada MHC ou Complexo Principal de Histocompatibilidade. Um termo que é, sim, muito complicado até para nós que somos da área! Mas que quer dizer algo muito simples: essa molécula é o nosso crachá.

    Cada um de nós, humanos, temos um MHC diferente. Temos uma probabilidade próxima de zero de encontrarmos uma pessoa com um MHC igual ao nosso. Para se ter ideia, o grupo de genes responsáveis por essa molécula é aquele tem o maior número de variantes dentro da espécie humana. Assim, cada ser humano tem um MHC diferente, e todas as nossas células expressam ele. Como as Natural Killers fazem um “cara-crachá”, verificando se cada célula tem o nosso MHC, quando encontram alguma célula expressando um MHC diferente ou não expressam MHC qualquer, elas sabem que devem matar essa célula, ou por ela estar modificada (como no caso de câncer) ou por ela ser externa a nós.

    Eosinófilos

    Essas são as principais células responsáveis no combate a helmintos, ou comumente conhecidos: os vermes. Por esse tipo de patógeno ser muito grande, nossas células não conseguem “comer” ele, como os macrófagos fazem com bactérias e protozoários. Por causa disso, os eosinófilos carregam enzimas que liberam para destruir a parede das células do patógeno, ajudando no combate destes parasitas, mas também machucando os tecidos do hospedeiro – nós, no caso! Além disso, essas células são uma das principais responsáveis pelas alergias.

    Agora, falando sobre a resposta imune celular adaptativa, nós nos focaremos nos Linfócitos T, visto que os linfócitos B já foram comentados anteriormente em outro texto. Aqui é preciso lembrar que diferentes das células da imunidade inata que reconhecem somente alguns padrões moleculares que são comuns em vários patógenos, os linfócitos conseguem reconhecer muito mais especificamente os patógenos, ao ponto de que muitas vezes eles acabam “confundindo” fragmentos de proteínas nossas com o de algum patógeno, e é assim que começa uma doença autoimune. Mas isso é assunto para um outro texto.

    Além disso, é importante lembrar aqui também que são os linfócitos os responsáveis por gerar a memória imunológica, aquele fenômeno já comentado anteriormente em que após um primeiro contato com um patógeno, o sistema imune consegue responder de forma mais rápida, forte e eficiente contra esse mesmo patógeno em um segundo contato. Agora, falando dos linfócitos T, eles são divididos em duas classes de acordo com a sua função:

    Linfócito T Auxiliar

    Também conhecido como T Helper. Essa célula é responsável por liberar citocinas – proteínas que regulam a resposta celular – que vão dar todo o auxílio necessário para a resposta imune que já esteja atuando, seja ela antiviral, antibacteriana ou antiparasitária, por exemplo. Isso é feito de vários modos. Pode ser aumentando a eficiência de macrófagos em fagocitar e digerir e aumentando a produção de enzimas pelos eosinófilos. Também atuam ajudando os linfócitos B a se ativarem mais eficientemente e produzirem anticorpos mais específicos. Bem como aumentando a expressão de citocinas antivirais e substâncias citotóxicas pelas Natural Killers.

    Linfócito T Citotóxico

    Chamadas comumente de CTL. Assim como as Natural Killers, essas células são responsáveis por matar células modificadas (infectadas por vírus e cancerígenas). No final do processo, elas vão atuar da mesma forma que as Natural Killers. Para tanto, se utilizando de substâncias citotóxicas que levam as células afetadas a cometerem suicídio (apoptose), ao invés de fagocitarem como os macrófagos fazem. Contudo, a diferença é que essas células conseguem reconhecer especificamente quais células estão infectadas com qual patógeno, dessa forma, sua eliminação é muito mais eficiente.

    Visto tudo isso…

    Falou, falou… e a Covid-19?

    Vocês viram que ficou longo né? Estamos recém começando! Fica ligado aí, porque no próximo texto vamos abordar um pouco das pesquisas referente ao estudo da Imunidade Celular contra o Covid-19. Intrigantemente, essa é uma área em que poucas pesquisas estão sendo feitas no atual momento. Apesar de alguns grupos (inclusive daqui da UNICAMP) estarem trabalhando fervorosamente para descobrir como os linfócitos T funcionam no combate o SARS-CoV-2.

    Referências

    1. Buchmann, K (2014) Evolution of innate immunity: clues from invertebrates via fish to mammals; Frontiers in immunology, 5, 459.

    Para mais informações:

    Kaech, SM, Wherry, EJ, & Ahmed, R (2002) Effector and memory T-cell differentiation: implications for vaccine development; Nature Reviews Immunology, 2(4), 251-262. 

    Koch, U, & Radtke, F (2011) Mechanisms of T cell development and transformation, Annual review of cell and developmental biology, 27, 539-562. 

    Este texto foi publicado com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Impactos da Pandemia de Covid-19 sobre a Economia Brasileira

    Texto escrito por Paulo Ricardo S. Oliveira*

    A chamada “segunda onda” da pandemia de Sars-Cov-2, isto é, a crise econômica do pós-pandemia, tem sido objeto de discussão entre os especialistas. As necessidades de isolamento social impostas pela pandemia certamente tem impactos sobre a economia, e é sabido que os efeitos deletérios na economia podem perdurar para além da dissolução da crise sanitária. Mas em qual proporção a pandemia deve afetar a economia brasileira? Nesta nota, busca-se lançar luz sobre essa questão com bases na avaliação dos dados da atividade econômica no primeiro trimestre e nas projeções para a retração do PIB brasileiro no ano de 2020.

    Antes de analisar os dados, é importante reconhecer que a crise da pandemia não cessa a retomada do crescimento da economia brasileira. A crise da pandemia chega ao Brasil num período de estagnação econômica, que pode ser visto como um desdobramento da crise financeira global e da crise política brasileira, com efeitos mais dramáticos a partir de 2014. Em 2015, por exemplo, o PIB brasileiro encolheu -3,15%. Em 2016, houve nova retração de -2,90%. Desde então, temos observado taxas de crescimento inferiores a 1,5%, nível considerado baixo para as economias emergentes. Por fim, no ano passado, a economia brasileira cresceu apenas 1,08%, e é neste contexto de estagnação que a crise da pandemia nos atinge.[1]

    Impactos da pandemia no 1º Trimestre/ 2020

    De acordo com os dados oficiais, o PIB brasileiro recuou -1,5% no primeiro trimestre de 2020, em relação ao último trimestre de 2019. Sob a ótica da oferta, o PIB industrial recuou -1,4%, serviços -1,6%, enquanto a produção agropecuária apresentou crescimento de 0,6%.  Do lado da demanda, a pandemia afetou significativamente o consumo das famílias, que caiu -2,0% no 1° Trimestre/2020 – maior queda desde 2001. Na contramão, a formação bruta de capital, isto é, a compra das empresas de bens de capital como máquinas e equipamentos, cresceu 3,1%, sobretudo pela baixa base de comparação do 4º Trimestre/2019. Por fim, os gastos do governo cresceram apenas 0,2%, mesmo diante da gravidade da pandemia[2].  

    Os índices de atividade, divulgados para os meses entre janeiro e junho/2020, revelam que, apesar de indicadores positivos na comparação mês a mês desde maio/2020, indústria, comércio e serviços acumulam quedas significativas na comparação entre o 1° Trimestre/2020 e o 1° Trimestre/2019, como mostra a Tabela 1.

    Tabela 1. Índices de atividade econômica na indústria, serviços e comércio – Junho/2020

     IndústriaComércioServiços
    Taxa de variação mensal (ref. Maio/20)8,9%12,6%5,0%
    Taxa de variação mensal (ref. Junho/19)-9,0%-0,9%-12,1%
    Taxa de variação semestral (ref. 1S/19)-10,9%-7,4%-8,3%
    Notas: Comércio – índice de volume de vendas no comércio varejista ampliado | Serviços – índice de volume de serviços | Indústria – índice de produção física industrial.
    Fonte: Elaboração própria com bases nas Pesquisa Mensal de Comércio, Pesquisa Mensal de Serviço e Pesquisa Industrial Mensal do IBGE.

    De forma contra intuitiva, nota-se que a indústria foi o setor mais afetado na comparação trimestral, acumulando queda de -10,9% no 1° Trimestre/2020. Da mesma forma, a despeito das taxas positivas para comparação mês a mês, o comércio encolheu -7,4% e os serviços -8,3% no 1° Trimestre/2020. A Tabela 2 mostra a queda por categoria econômica industrial.

    Tabela 2. Variação da Produção Física Industrial por Categoria Econômica

    Var. 1T/2020 1T/2019Var. Mensal Jun/2020 Jun/2019Var. Mensal Jun/2020 Maio/2020
    Bens de capital-21,2-22,213,1
    Bens intermediários-6,6-5,94,9
    Bens de consumo-16,2-11,615,9
          Bens de consumo duráveis-36,8-35,182,2
          Bens de consumo semiduráveis e não duráveis-10,3-5,66,4
    Fonte: Produção Industrial Mensal – Produção Física/ IBGE.

               

    Nota-se, que o fechamento do semestre, reforça a persistência dos indicadores negativos e revertem os indicadores positivos verificados nas contas nacionais no 1° Trimestre/2020.

    Em relação ao emprego, os dados mais recentes apontam que a taxa de desocupação vem crescendo desde maio/2020, quando estava em 10,5%, e atingiu o ponto máximo do período no final de julho/2020, quando chegou a 13,7%. Também na última semana de julho, o país tinha 5,8 milhões de pessoas afastadas do trabalho devido ao distanciamento social, 8,3 milhões de pessoas em trabalho remoto, 18,7 milhões de pessoas trabalhando menos que o habitual e 29,5 milhões de pessoas com rendimentos menor do que o habitual. Mais preocupante, estima-se que, neste momento, 18,5 milhões de pessoas não procuram emprego por conta da pandemia ou por falta de trabalho na sua localidade e 43,0% dos domicílios nacionais recebem auxílio emergencial.

    Para se ter uma ideia da dimensão da amplitude do auxílio emergencial, o bolsa família, um dos maiores programas de transferência de renda da história recente brasileira, beneficiou 13,5% dos domicílios brasileiros, em 2019 [3].

    Por fim, é possível verificar que os impactos no setor externo da economia brasileira têm sido consideráveis. As exportações caíram -7,7% e as importações -5,21% no 1º Semestre/2020. Apesar das quedas relativamente baixas, o impacto qualitativo da crise sobre a pauta de exportação merece destaque. Como esperado, dada a elasticidade renda das exportações e importações[4], isto é, como a demanda internacional de cada bem responde a movimentos na renda internacional, a queda foi maior para produtos mais complexos e menor para produtos menos complexos. Produtos mais complexos são produzidos em países mais avançados tecnologicamente, demandam mais conhecimentos para serem manufaturados e possuem maior valor agregado. A Tabela 3 mostra a variação das exportações e importações por categoria de complexidade para economia brasileira.

    Tabela 3. Variação das Exportações por Categoria de Complexidade – 1° Trimestre/2020

    Grau de ComplexidadeExportações (bilhões USD)% do total exportadoVar. % 2019/2020
    Baixa28,3427,9%-6,5%
    Média-baixa                  45,645,0%7,9%
    Média-alta22,622,3%-25,5%
    Alta46,34,5%-30,6%
     Fonte: Elaboração própria com base nos dados do Ministério da Economia e do Observatório de Complexidade Econômica.

    Nota-se que as quedas mais acentuadas nas exportações se deram nas categorias de produtos mais complexos, isto é, a pandemia alterou a qualidade da pauta exportadora nacional. A reversão deste impacto qualitativo vai depender da recuperação das economias parceiras e do grau de protecionismo que pode ampliar-se no pós-pandemia. A queda nas importações, no entanto, foi mais equilibrada dentre as principais categorias de complexidade, como mostra a Tabela 4.

    Tabela 4. Variação nas Importações por Categoria de Complexidade – 1º Trimestre/2020

    Grau de ComplexidadeImportações (bilhões USD)% do Total ImportadoVar. % 19/20
    Baixa3,84,8%-24,0%
    Média-baixa                  21,527,1%-5,6%
    Média-alta36,345,7%-2,4%
    Alta17,622,2%-5,0%
     Fonte: Elaboração própria com base nos dados do Ministério da Economia e do Observatório de Complexidade   Econômica.

    Projeções de Impactos da pandemia em /2020

    Infelizmente, as principais projeções para economia brasileira no 2º semestre de 2020 reforçam a continuidade das quedas verificadas até o momento. A projeção mais recente do Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê que a economia brasileira deve encolher -9,1%, em 2020[5]. A mesma instituição também prevê que a economia global sofrerá retração de -4,9% neste ano.  As projeções do Banco Central do Brasil (BCB), no entanto, são mais otimistas, prevendo uma retração anual de -6,4%, ao mesmo tempo que reconhece que o nível de incerteza continua elevado para os próximos trimestres[6].

    Uma das projeções mais robustas sobre os impactos econômicos da pandemia, que utiliza dados da matriz-insumo produto brasileira, foi feito pelo Grupo de Indústria e Competitividade do Instituto de Economia da UFRJ[7]. O estudo prevê três cenários para o comportamento do PIB e os componentes da demanda final, em 2020, como mostra a Tabela 5.

    Tabela 5. Projeções de retração do PIB brasileiro – 2020

    CenáriosVar. PIBConsumo das FamíliasFormação Bruta de CapitalGasto do GovernoExportações
    Otimista-3,1%-1,5%-10,0%2,5%-6,6%
    Referência-6,4%-3,8%-20,0%2,5%-15,7%
    Pessimista-11,0%-8,3%-30,0%2,5%-20,4%
    Fonte: GIC UFRJ

    Em síntese, as diferentes fontes convergem em relação às previsões para economia brasileira em 2020. Mesmo as estimativas do governo já se aproximam do cenário de referência, e a estimativa do Fundo Monetário Internacional do cenário mais pessimista estimado pelos pesquisadores do IE/UFRJ. Neste cenário, até o final de 2020, espera-se que as exportações brasileiras caiam -20,4%, a formação bruta de capital fixo -30% e o consumo das familiais -8,3%.  O aumento de 2,5% nos gastos do governo, foram estimados a partir da previsão dos gastos adicionais com a saúde pública.

     Considerações Finais

    Em suma, os números e projeções do ano corrente indicam que os impactos da crise sobre a economia brasileira serão consideráveis, piores do que os verificados em virtude dos desdobramentos da crise financeira e política de 2014. Certamente, os impactos não afetarão apenas a economia nacional, mas também as demais economias globais. As economias que não lograram o rápido controle da epidemia e continuam alimentando altos níveis de incerteza sobre a capacidade de controle da crise sanitária tendem a sofrer mais intensamente os impactos da “segunda-onda”.

    É preciso ter em mente que essa crise, além do maior impacto sobre PIB brasileiro, tem caráter bastante distinto da crise financeira global de 2008[8]. Por afetar diretamente a capacidade produtiva, a crise da pandemia faz com que as políticas monetárias sejam relativamente ineficazes na retomada da atividade.

    É por isso que policymakers do mundo inteiro têm cada vez mais destacado a importância da política fiscal expansionista (gasto do governo) para a retomada econômica no pós-pandemia. As autoridades econômicas nacionais, no entanto, tendem a perceber a pandemia e seus impactos como um fenômeno temporário, e descartar a possibilidade da ampliação dos investimentos públicos. Essa percepção incorreta da gravidade da crise pode comprometer a recuperação econômica e prolongar o cenário de estagnação da economia brasileira. 

    Do ponto de vista do choque externo e da política comercial e industrial no pós-crise, é provável que os efeitos da queda na renda global e políticas mais protecionistas de comércio afetem as exportações brasileiras de forma significativa. É válido lembrar que, apesar da predominância do consumo interno sobre o produto nacional, a indústria brasileira é altamente dependente da importação de insumos industriais e pode ser afetada pela quebra de algumas cadeias de fornecimento que serão afetadas por possíveis guinadas protecionistas.

    Por outro lado, esse recuo na liberalização comercial pode gerar algum espaço para implementação de políticas industriais e comerciais mais alinhadas com os objetivos de desenvolvimento da indústria nacional. De todo modo, qualquer movimento neste sentido parece improvável diante da atual visão liberalizante das autoridades econômicas nacionais.


    Para saber mais

    [1] Dados do IBGE, Sistema de Contas Nacionais Anuais. Produto Interno Bruto (PIB) a preços básicos, variação real anual.

    [2] Dados do IBGE, Sistema de Contas Nacionais Trimestrais. Dados dessazonalizados, disponíveis em https://sidra.ibge.gov.br/tabela/5932#/n1/all/v/6564/p/201901,201902,201903,201904,202001/c11255/all/d/v6564%201/l/v,p,t+c11255/resultado

    [3] PNAD-Covid/IBGE (2020) Dados da PNAD-COVID/IBGE, disponíveis em  https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/ .

    [4] Informalmente, elasticidade renda das importações e exportações refere-se a mudança percentual no volume destes dois fluxos após uma variação na renda.

    [5] Dados do World Economic Outlook, Junho/2020 do FMI, disponíveis em https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/06/24/WEOUpdateJune2020

    [6] Dado do Relatório de Inflação do Banco Central, Junho/2020 disponível em https://www.bcb.gov.br/content/ri/relatorioinflacao/202006/ri202006p.pdf

    [7] Dados disponíveis em  https://www.ie.ufrj.br/images/IE/grupos/GIC/GIC_IE_NT_ImpactosMacroSetoriaisdaC19noBrasilvfinal22-05-2020.pdf

    [8] Ver análise da Nota do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica, disponível em http://www3.eco.unicamp.br/images/arquivos/nota_cecon_coronacrise_natureza_impactos_e_medidas_de_enfrentamento.pdf

    O autor

    Paulo Ricardo S. Oliveira é Doutor em Desenvolvimento Econômico (IE-UNICAMP), Professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e Economista do Observatório PUC-Campinas.

    Este texto foi publicado originalmente no Blog Sobre Economia

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • “Só dá aulas”: o que fazemos na universidade pública? (parte 2 – a pandemia)

    Texto escrito por Lavínia Schwantes e Ana Arnt

    No outro texto, falamos um pouco sobre rotina de trabalho de professores universitários a partir daquela pergunta que escutamos desde que começamos a ser professoras: “mas você só dá aulas?”. E agora? O que fazemos nesse período peculiar de 2020? As universidades estão sem estudantes?

    Para retomar, você que tem de lembrar das três funções de um professor universitário: ensino, pesquisa e extensão. E ainda aquela quarta: a gestão. Como tudo isso funciona na quarentena?

    Nós somos professoras em duas universidades públicas distintas – a Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nesta série de textos sobre o trabalho universitário durante a pandemia, vamos apresentar um pouco sobre como nosso trabalho não é só dar aulas, mas também como temos organizações diferentes para trabalhar neste momento.

    Bom, com o início da pandemia da COVID-19, o distanciamento foi decretado como uma das melhores – e até agora mais efetiva – formas de evitar contágio. A universidade é um local de grande circulação de pessoas e, também, de aglomeração de estudantes dentro de laboratório ou espaços de pesquisa e nas salas de aula. É por isso que foi decretada quarentena nas atividades de ENSINO – e atividades presenciais como extensão e pesquisa também foram afetadas em várias universidades. A Unicamp decretou o fechamento das atividades presenciais no dia 14 de março, a FURG dia 16 de março.

    O que as universidades estão fazendo?

    Há várias atividades que citamos no primeiro texto que continuam acontecendo. De que forma? Principalmente via trabalho remoto, com auxílio da rede de internet. Dessa forma, continuamos orientando alunos, preparando aulas, estudando e escrevendo artigos sobre nossas temáticas de pesquisa, escrevendo e avaliando projetos e pensando alternativas para o trabalho de extensão e outras atividades que, como citamos, podemos fazer com o uso das redes de internet.

    Ah, então quer dizer que vocês ficam o dia inteiro na internet?

    Vamos falar de uma parte da pesquisa

    Neste contexto, o que mais temos feito nesse tempo são trabalhos desenvolvidos em reuniões on line! Parece meio estranho, mas nosso trabalho envolve, além de estudar e analisar o que temos pesquisado, conversar sobre isso com outros pesquisadores, para compartilhar resultados e conclusões de pesquisas.

    Isto atualmente é feito, por exemplo, com reuniões de orientação com os pós-graduandos e com discussão entre colegas. Na pesquisa, podemos ressaltar ainda que existem inúmeros trabalhos que podem ser desenvolvidos “sem trabalho de campo e/ou laboratório”. Há uma grande etapa da pesquisa, de análise, estudo de publicações científicas, discussões teóricas e escrita de artigos, que vêm sendo desenvolvidas através destas reuniões, cada um em sua casa. A pesquisa envolve, sim, uma parte de “campo” (no nosso caso, muitas vezes dentro de escolas, por exemplo). Mas neste momento, temos revisitado pesquisas que estavam com muitos dados coletados e não vínhamos tendo tempo para analisar. 

    Os alunos de pós-graduação (que são pesquisadores em formação) seguem fazendo suas pesquisas e nós, professoras, orientamos seus trabalhos (e pesquisamos junto). Este trabalho não parou, em momento algum, nestes tempos de isolamento social.

    E as aulas? Como ficam?

    Além disso, as aulas aconteceram em tempos diferentes em cada universidade. Na Unicamp, por exemplo, as atividades on line reiniciaram alguns dias após pararem as atividades presenciais – e percebemos que havia várias dificuldades que seriam difíceis de contornar se retomássemos tudo ao mesmo tempo, virtualmente. Paramos, reorganizamos enquanto estávamos em atividades. Já na FURG, que preferiu verificar o acesso dos estudantes e estudar a melhor forma de trabalho remoto previamente, estabeleceu-se que seria melhor espaçar o retorno das aulas virtualmente e apenas as atividades de ensino na pós-graduação retornaram dia 10 de agosto.

    Assim, há várias reuniões on line em que planejamos não apenas sobre como voltar às aulas, mas que estruturas têm nossos alunos para acessar as aulas e como podemos disponibilizar recursos a quem está faltando (computador e internet, especialmente). Algumas vezes, parece que, a cada semana, uma reunião “brota” na nossa agenda!!! Como tudo isto é novo para todos nós, parte das tarefas atuais é organizarmos ações da universidade, sem oferecer riscos a ninguém (ou minimizando os riscos ao máximo possível). 

    Por incrível que possa parecer para alguns, nem todos estudantes universitários têm acesso a internet. Cerca de 70% dos estudantes de universidades públicas vêm de famílias com renda de até 1,5 salários mínimos per capita. Neste sentido, são alunos que necessitam de auxílios diversos para se   manter estudando. Outros tantos que têm acesso, o fazem apenas de aparelhos celulares móveis. Então, este retorno tem de ser bem pensado para incluir o maior número possível de estudantes no processo de reinício de ensino de uma universidade que, lembramos a vocês, é pública!

    Tem ainda a gestão universitária em tempos pandêmicos, calma lá que ainda não acabou…

    De uma maneira geral, essas reuniões são principalmente relacionadas às atividades de gestão. Isto é,  como poderemos gerenciar as atividades da universidade sem prejudicar os estudantes, professores e toda a comunidade. Na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), há um grande grupo de colegas e de técnicos que estão no que chamamos a linha de frente do trabalho universitário na pandemia. Eles estão constantemente em reuniões de organização de como faremos para o retorno das aulas da graduação, da pós-graduação e atividades de extensão e de pesquisa. Na Unicamp, também existem grupos específicos para este debate. A Unicamp também montou a Força Tarefa da Unicamp, um grupo de pesquisa específico só para questões da Covid-19, além dos diagnósticos da doença. 

    Dessa forma, estes grupos de docentes, funcionários e, também, estudantes, buscam analisar e estipular prazos e protocolos para retornos – ou atividades remotas. Como isto acontece? Principalmente através de questionários aos estudantes e professores, para ver suas condições de acesso à internet, possibilidades de executar etapas da pesquisa à distância, existência de grupos de risco, dentre outras questões.

    Todos estes dados vêm sendo analisados – cada um em sua unidade universitária – para reorganizar normativas da universidade que regem a graduação e a pós-graduação para a nova realidade que estamos enfrentando. E agora, estão encaminhando novos calendários formulados a partir dos dados dos questionários para em um momento posterior, iniciar a retomada das atividades de ENSINO. Pode parecer enrolado – e nem sempre todas as medidas são simples – mas como dissemos, tudo é novo e tem sido feito às pressas, buscando impactar o menos possível a continuidade das atividades, nem colocar em risco à vida das pessoas.

    Por fim…

    Ainda há bastante a ser dito sobre esta reorganização da universidade, hoje trouxemos uma pequena pincelada do que temos feito. Cada universidade, por ter autonomia e por ter realidades diferentes, vem montando seus grupos de trabalho de forma diferenciada também. Nós vamos abordar um pouco mais sobre isto nos próximos textos, especialmente acerca dos serviços à comunidade que as universidades públicas tem feito agora na pandemia e sobre as aulas na modalidade remota…

    Nós duas temos pensado em escrever esta série há tempos, mas acabou demorando um pouco para ser escrito. Por quê? Isso mesmo! Como vocês podem ver, trabalho, pesquisa, aulas e reuniões, não faltam! Aguardem que logo logo traremos um pouco dos bastidores desse trabalho feito por aqui!

    Para saber mais:

    Rede pública do RS alcança primeiro lugar no ranking do Enem

    Dados INEP: Sinopse Estatística da Educação Superior 2018.

    MOITAL, F, Maria GSC; ANDRADE, FCB (2009) Ensino-pesquisa-extensão: um exercício de indissociabilidade na pós-graduação, Revista Brasileira de Educação, vol14, nº41, Rio de Janeiro, maio/ago.  

    KUENZER, AZ, MORAES, MCM (2005) Temas e tramas na pós-graduação em educação, Revista Educação e Sociedade, v26, nº93, Campinas, set/dez/2005

    Dados da Academia brasileira de ciências sobre produção científica no Brasil

    As autoras

    Lavínia Schwantes – Biológa, formada no século passado na UFRGS; atua como professora na área há mais de 20 anos. Encantada pela educação em ciências, trabalha formando professores de Ciências e Biologia. Pesquisa a ciência, sua produção e sua filosofia, e como pode ser ensinada, tendo aí concentrado seus estudos, projetos, publicações científicas, leituras e orientações de graduação e pós-graduação junto ao Grupo PEmCie no CEAMECIM na Universidade Federal do Rio Grande-FURG.

    Ana Arnt – Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB), do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM) e do Programa de Pós-Graduação em Genética e Evolução. Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência!

    Este texto foi escrito exclusivamente para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • “Só dá aulas”: o que fazemos na universidade pública? (parte 1)

    Texto escrito por Lavínia Schwantes e Ana Arnt

    Somos duas professoras, biólogas, com mestrado e doutorado na área de Educação/Ensino. E vamos contar um pouco da trajetória de trabalho nossa, para exemplificar um pouco do que é e como trabalha a universidade – e como isso vem acontecendo na pandemia.

    Mas antes de falarmos da pandemia, vamos falar sobre o nosso trabalho “no antigo normal”.

    “Só dá aulas”

    Já trabalhei com o Ensino Médio – eu amava “dar aulas” para essa galera no meu querido Sarmento Leite e me orgulho demais dos colegas que, mesmo com a desvalorização salarial imposta na última década, mantém bons índices de desempenho com os estudantes[1]. E, atualmente, estou como professora universitária há 13 anos, na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), já dei aula também na Universidade Federal do Tocantins (UFT). Essa pergunta que está no título deste post eu escuto desde o início de minha carreira profissional como professora há 20 anos! (Lavínia Schwantes).

    Eu fui professora de cursinho popular por 6 anos. Um tempo em que aprendi a compreender a docência, os conteúdos curriculares, como imersos em questões sociais que jamais poderiam ser segmentados. Também foi onde aprendi que entrar na universidade é, para muitas pessoas, um grande sonho. Sou professora universitária há 15 anos, já fui professora na Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT) e, desde 2016, dou aula na Unicamp. Esta pergunta que está no título do post eu escuto desde o início da minha carreira profissional, que completou 18 anos… (Ana Arnt)

    Mas ainda hoje? Sério?

    Ainda mais em tempos pandêmicos, com as universidades “paradas” (muitas aspas aqui), essa pergunta volta a ressoar por todos os lados e resolvemos explicar o que fazem docentes de universidade pública.

    Não fazem nada?

    Para começar, segundo a lei que rege o funcionalismo público civil (lei 8112/1990), este professor é um funcionário público. Na sua origem, portanto, deve atender ao serviço público. Ou seja, seu trabalho serve a toda a comunidade e à sociedade. Para ser servidor, precisa ser aprovado em um concurso público, aberto a todos que se encaixam nos requisitos da vaga.

    Assim, neste concurso, o candidato deve mostrar que sabe o conteúdo da vaga à qual está concorrendo. Isto é, deve mostrar que sabe “dar uma aula” e, mais do que isso, organizar um plano de trabalho no qual constem projetos de pesquisa, de extensão e, de ensino, claro. Daí, já tiramos as três funções que, tanto o professor quanto a universidade pública têm, que são: ensino, pesquisa e extensão!

    Aqui cabe um esclarecimento importante em relação a carreira de professores no Ensino Superior. Segundo a lei que rege o magistério público federal (Lei 12772/2012) a carreira de professor tem classes conforme o nível estudo (graduado, Mestre ou Doutor) e pode ser D.E. (Dedicação Exclusiva) ou não. Alguns tem regime parcial de 40h ou 20h semanais.

    A maioria dos professores de Ensino Superior são doutores (58% nas universidades brasileiras em 2018)[2] e tem D.E. (71% nas universidades brasileiras em 2018)[3]. Isso quer dizer que eles se dedicam somente à universidade, ao trabalho que nela desenvolvem, considerando o tripé de ensino, pesquisa e extensão conforme previsto no artigo 207 da Constituição Federal (CF) de 1988. Não podem ter outra renda, nem trabalhar em outros lugares, não podem ter empresa ou receber remuneração para outra atividade fora da universidade de forma fixa (apenas para trabalhos pontuais – como consultorias ou cursos – e há um limite anual para isso).

    Afinal, o que compõe esse tripé?[4]

    ENSINO

    Uma das funções da universidade é a formação de profissionais em áreas específicas. Isso é ENSINO. Aí está, agora sim! É o “dar aulas”. Assim, todo semestre, o professor universitário público, não importa o regime de trabalho que tem (D.E., 40 ou 20h) atende turmas de alunos nos cursos de graduação que atuam.

    O tempo que ocupa para essa função é determinado pela universidade e pode variar dentro de seus órgãos internos. Isso chama-se autonomia universitária e é amparado no artigo 207 da CF e na Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional (lei 9394/96).

    Mas o “dar aulas” não é somente estar em sala de aula. Vejam que o conhecimento aumenta e se modifica muito ao longo do tempo e com isso, a necessidade do professor ter aulas atualizadas. Não adianta o professor dar a mesma aula desde o ano 2000 quando entrou na universidade, porque, com certeza, o conhecimento científico sobre sua temática de aula e as metodologias existentes para ENSINÁ-la se modificaram ao longo desse período.

    Para manter a atualização do que ensina aos seus graduandos, e assim, formar bons profissionais, o professor estuda e prepara aulas toda semana. Ainda tem a tarefa semanal de avaliar a aprendizagem dos estudantes, isto é, elaborar, disponibilizar, ler, corrigir trabalhos e provas, estabelecendo notas para cada uma das turmas das disciplinas. Vamos dizer então, se ele “dá aulas” duas tardes por semana na graduação, outros dois turnos ele usa para preparar as aulas, estudar para elas e avaliar trabalhos dos estudantes. Aí se vão quatro turnos de trabalho no ENSINO.

    PESQUISA

    A segunda função do professor universitário público D.E. é a PESQUISA! E aqui, entra outro tanto de atividades. O que é fazer pesquisa hoje? [5]É atualização de saber da área específica que o professor trabalha, isto é, produção de conhecimento. As universidades públicas são responsáveis por 95% do conhecimento produzido no país[6]. Como ele faz isso? O professor, geralmente, se vincula a um curso de pós-graduação de sua áre, cada universidade tem muitos destes cursos em todas áreas nas quais formam profissionais na graduação.

    Inserido na pós-graduação, o professor desenvolve pesquisas em diferentes espaços na universidade – um laboratório, uma sala multidisciplinar ou outro. Ali, o professor orienta os estudantes em pesquisas próprias, mas quase sempre vinculadas à temática e pesquisa central do professor. Existem professores que orientam cinco, sete ou 15 estudantes simultaneamente, que, depois de formados na graduação, se dedicam a desenvolver projetos para receber os títulos de Especialista, Mestrado e/ou Doutorado. Esses orientandos e o professor formam o que chamamos de grupos de pesquisa.

    Fazer pesquisa, atualmente, também implica compartilhar o conhecimento para a comunidade científica de cada área, o que significa escrever artigos científicos. E também implica buscar auxílio financeiro para que seus projetos sejam desenvolvidos, pois para fazer pesquisa, precisamos de livros, acesso bom à internet, equipamentos, materiais diversos, reagentes e outros recursos. E todos eles precisam de verba!

    Fazer pesquisa envolve todo um trabalho burocrático, além da “pesquisa em si”

    Na busca desses recursos, o professor precisa escrever projetos e submetê-los para avaliação de agências de fomento que abrem editais específicos para tal, sejam essas agências governamentais ou privadas. A pesquisa ainda inclui participar de comissões de avaliação de artigos científicos, de artigos para eventos, de comitês de avaliação de projetos de editais.

    Ou seja, o trabalho com PESQUISA na universidade pública requer tempo para: reuniões do grupo de pesquisa e orientação dos alunos (um turno); trabalho no laboratório ou espaço de pesquisa (um turno); escrita de artigos científicos, de projetos e de relatórios de pesquisa (um turno); leitura e avaliação de artigos dos orientandos, bem como, de revistas científicas (mais outro turno)…

    Ah, e claro que, na pós-graduação, o professor “dá aulas” também, nos cursos de Especialização, Mestrado e/ou Doutorado para os estudantes pós-graduandos. E para tal, como na graduação, ele também deve preparar e estudar, atualizando seu tema da aula. Portanto, aí temos, aproximadamente, mais quatro turnos de PESQUISA e mais um de ENSINO de novo!

    EXTENSÃO

    Por fim, a última função, mas não menos importante, de um professor docente universitário público é a EXTENSÃO!! Antes, comentei que a maior parte de produção do conhecimento se faz dentro das universidades públicas e que uma função da pesquisa é divulgar este conhecimento para comunidade científica. E quem não é desse grupinho da comunidade científica? Como fica sabendo do saber, ou dos produtos, ou das tecnologias que são produzidas na universidade?

    Pelo trabalho de extensão, cujo nome revela sua função: é uma extensão da produção da universidade para a comunidade no entorno dela. Assim, mais uma vez, o professor, tem de escrever projetos de extensão e executá-lo com a ajuda de uma equipe – outros colegas ou estudantes. Esse trabalho pode ser de divulgação científica, de trabalho com as comunidades periféricas, com determinada porção da população, com uma determinada instituição que não a universidade, com prefeituras ou associações de bairro, em hospitais ou museus, por exemplo.

    Há inúmeras possibilidades de extensão que envolvem, além da já citada divulgação de conhecimento, o retorno do investimento social na universidade para a população como um todo! Você sabia, por exemplo, que muitos dos museus, jardins botânicos ou espaços de cultura que você frequenta são mantidos pelas universidades públicas? Muitas delas mantêm também hospitais universitários públicos com recursos físicos, estruturais, de capital e humanos. Isto é, todos estes são espaços de extensão universitária com foco no atendimento direto ao público já mais consolidados historicamente!

    Lembra dos movimentos “Ciência na Rua”?

    Também lembramos a vocês, aqueles movimentos de maio de 2019 do tipo “ciência na rua”, em prol de uma educação de qualidade. Pois é, o objetivo desses eventos era mostrar todo o trabalho/pesquisa/conhecimento desenvolvido nas universidades para a comunidade, como um grande evento de EXTENSÃO!! Foi importante para muitos professores entenderem também qual sua função com essa atividade do tripé da universidade! Todavia, infelizmente, a extensão ainda é a “prima pobre” da universidade pública, há, mesmo com um crescente, pouco investimento e poucos projetos de extensão. Mas é função do docente universitário. Digamos que aí vai outro turno de trabalho na EXTENSÃO!

    No total…

    Por fim, voltamos a contagem: são dois turnos, mais dois, mais um no ENSINO; quatro turnos semanais na PESQUISA e um turno na EXTENSÃO, somando 10 turnos de trabalho! É possível para o professor “jogar” estes turnos a cada semana conforme a necessidade. Isto é, estes dez turnos aqui variam de semana a semana conforme as demandas vão surgindo no trabalho! Exceto o tempo de dedicação às aulas na graduação, que é mais fixo, o professor pode se envolver mais na pesquisa ou na extensão de acordo com a característica individual ou de sua área. Mas todo tripé é sua função!!!

    Um exemplo real

    Vejamos nosso exemplo (somos professoras com Doutorado e somos D.E.): duas tardes de aulas na graduação na Biologia; dois turnos de preparo das aulas sobre Educação em Biologia. Mas, calma, também temos aulas na pós-graduação (um turno de aula, um turno preparando material).

    Ainda, reunião com grupo de pesquisa PEmCie, estudos sobre nosso tema de pesquisa “História e Filosofia da Ciência”, reuniões com cada um dos orientandos do grupo. Na FURG, são um total de doutorando, duas mestrandas, dois bolsistas de iniciação científica, duas professoras. Na Unicamp, dois doutorandos, sete mestrandos, cinco alunos de iniciação científica e alunos que estão estudando para entrar nas próxima seleções de pósgraduação. Além disso, temos leitura dos artigos deles e organização de trabalhos dos orientandos e escrita de artigos e projeto de pesquisa (vai aí uns, sei lá, uns quantos turnos de trabalho, hehe).

    Estamos revitalizando meu projeto de extensão que incluía divulgação científica nas escolas e agora estamos focando nas tecnologias digitais para tal. Além disso, o grupo também tem atuado na Divulgação Científica – aqui no blogs e no nosso podcast, nesta empreitada são alguns turnos (que variam dependendo da semana…).

    Será que ficou um pouco mais claro?

    Quanto deu aí? Muitos turnos, não é? Deu para “encher” uma semana de trabalho? Dá pra incluir até o sábado, muitas vezes! Ah, sim… E, a Lavínia ainda trabalha com os estágios docentes nas escolas, então visitas periódicas a essas instituições parceiras estão, também, na minha rotina. Mas enfim, acho que conseguimos apresentar um panorama breve que indica que nosso trabalho é mais do que “dar aulas”. Não acha?

    Todavia, não esqueçamos que muitos professores, exercem cargos de gestão (seria uma quarta função nesse tripé), assumindo, temporariamente, coordenações de curso de graduação, de pós-graduação, diretoria de seções nas pró-reitorias ou em departamentos e institutos; ou mesmo, gerenciando pró-reitorias e reitorias. Como são temporários, não coloquei esse trabalho administrativo na conta, mas posso afirmar, por experiência própria como coordenadora por 2,5 anos, que é um baita trabalho, cansativo e, muitas vezes, burocrático!

    E tem mais, um professor D.E. participa de atividades temporárias na universidade como: comissão de graduação, de pós-graduação, de seleção de mestrado/de doutorado, bancas de avaliação de teses e dissertações, orientador de trabalho de conclusão de curso, comissões eleitorais, comissões de curso. Pode assumir gestão sindical ou comissão de organização de eventos. Por fim, ainda tem participação em eventos científicos e apresentação de trabalhos em congressos, participação em reuniões de todo e qualquer tipo, etc.

    “Ah, mas eu conheço um professor que só vai à universidade pra dar aulas”

    “Eu conheço o fulano, que foi meu professor, e não faz tudo isso não”. É, infelizmente, conhecemos professores universitários assim! Como em qualquer profissão, há quem não possa ser tomado de exemplo e, definitivamente não são a maioria. No entanto, apostamos nos meus colegas que trabalham bastante para um bom desenvolvimento na/da universidade para/com a sociedade!

    E o que podemos dizer para você? Espelhe-se naqueles que levam seu trabalho a sério e o conduzem de forma a promover melhorias para a nossa sociedade. E se aqueles que não o fazem ainda te incomodarem muito: “dê um toque” para eles, comente sobre a necessidade de fazermos nosso papel e mostrarmos toda a potência de uma universidade pública!

    Nosso foco eram os tempos pandêmicos né? Mas tivemos que nos estender um pouco na explicação para vocês entenderem melhor. E como tudo isso funciona na quarentena fica para um próximo post!


    Para saber mais:

    [1] Rede pública do RS alcança primeiro lugar no ranking do Enem

    [2] [3] Dados INEP: Sinopse Estatística da Educação Superior 2018.

    [4] MOITAL, F, Maria GSC; ANDRADE, FCB (2009) Ensino-pesquisa-extensão: um exercício de indissociabilidade na pós-graduação, Revista Brasileira de Educação, vol14, nº41, Rio de Janeiro, maio/ago.  

    [5] KUENZER, AZ, MORAES, MCM (2005) Temas e tramas na pós-graduação em educação, Revista Educação e Sociedade, v26, nº93, Campinas, set/dez/2005

    [6] Dados da Academia brasileira de ciências sobre produção científica no Brasil

    As autoras

    Lavínia Schwantes – Biológa, formada no século passado na UFRGS; atua como professora na área há mais de 20 anos. Encantada pela educação em ciências, trabalha formando professores de Ciências e Biologia. Pesquisa a ciência, sua produção e sua filosofia, e como pode ser ensinada, tendo aí concentrado seus estudos, projetos, publicações científicas, leituras e orientações de graduação e pós-graduação junto ao Grupo PEmCie no CEAMECIM na Universidade Federal do Rio Grande-FURG.

    Ana Arnt – Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB), do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM) e do Programa de Pós-Graduação em Genética e Evolução. Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência!

    Este texto foi escrito originalmente no para o Blog Pemcie

    Texto 2 da série

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Plasma Convalescente: tratamentos a partir de anticorpos

    Já vimos o que são os anticorpos em um texto anterior, como eles são formados, quais as suas funções, mas resta uma dúvida: será que podemos usá-los como alguma forma de tratamento? E a resposta é sim!

    Toda a ideia por trás de usar anticorpos no combate a doenças infecciosas gira em torno do conceito de Imunidade Passiva e Plasma Convalescente. Assim, por causa disso, precisamos entender tais conceitos.

    A imunidade passiva (já comentada no texto sobre vacinas) é aquela que ocorre quando há somente a transferência de anticorpos de uma pessoa para outra. Dessa forma, o segundo indivíduo consegue melhorar da infecção, mas acaba não gerando uma memória imunológica contra o patógeno. Usa-se como indivíduo doador alguém que já foi infectado pelo patógeno em questão, pois ele já teve tempo de montar toda uma resposta imune adaptativa, o que inclui os anticorpos. Assim, esse conceito já é antigo, ele usado desde o final do século XIX, no combate a toxinas bacterianas, em uma era pré-antibióticos(1). 

    Mas aí podemos perguntar: por que então não damos o patógeno ou a toxina para todo mundo e todos montam essa resposta imune? Nesse caso, estamos falando de uma vacina, que leva a um processo de imunidade ativa, aquela que gera uma memória imunológica (já falamos de vacina, e você pode conferir aqui). Contudo, nesse momento aparecem alguns problemas para essa ideia, como as dificuldades em criar uma vacina: todo o processo é muito caro, difícil e demorado.

    Sobre o Plasma Convalescente

    Em momentos como o que estamos passando agora, cada minuto e hora que se passa é essencial para salvar uma vida. Apesar de ser necessário desenvolver vacinas para gerar uma memória imunológica na população, é também preciso usar de métodos para ajudar aqueles que já foram infectados e podem desenvolver a forma grave da doença. Pois, em muitos casos, a severidade da doença pode ser grande, com um alto grau de letalidade, ou ela pode ser muito contagiosa e tem a chance de causar uma forma agravada que pode levar a complicações (como a Covid-19).

    É nesse momento que entramos no uso do Plasma Convalescente. Em palavras mais simples, esse termo se refere a parte líquida do sangue, que não inclui hemácias e células de defesa, de pessoas que já ficaram doentes e se recuperaram. Dessa forma, é justamente nessa parte do sangue que estão os anticorpos neutralizantes contra o patógeno que queremos combater – no caso da Covid-19, o vírus SARS-CoV-2.

    Essa técnica já é usada há um século e os primeiros estudos do uso de plasma convalescente em uma infecção viral datam da gripe espanhola em 1919 e 1920(2). Um outro momento que o uso de plasma convalescente foi tido como uma possibilidade foi durante os recentes surtos de Ebola na África, uma doença altamente infecciosa e letal, que infelizmente até hoje não possui vacina ou medidas terapêuticas muito eficientes(3). E, é claro, atualmente tem se falado muito sobre esse procedimento no tratamento dos casos graves da Covid-19, enquanto não há uma vacina ou medicamento totalmente seguro e 100% eficiente para ela.

    Outras técnicas

    Um ponto que também precisamos citar aqui é o uso de anticorpos monoclonais no combate ao SARS-CoV-2 até uma vacina ficar pronta. Anticorpos monoclonais são um conjunto de anticorpos produzidos em laboratório que são exatamente iguais uns aos outros e que se ligam a uma única parte do patógeno, escolhida a dedo pelos cientistas, e dessa forma, sendo essencial para o patógeno. Mas além de combater vírus, bactérias e outros patógenos, essa ferramenta é tão poderosa que tem sido usada até mesmo no tratamento de diferentes tipos de cânceres e doenças autoimunes. Contudo, diferente do uso de plasma convalescente (que usa uma mistura de anticorpos – chamados policlonais – e moléculas contra diferentes partes do vírus), essa abordagem é muito mais cara e complexa de se manejar, levantando a questão (4): países e pessoas mais pobres vão ter condições de pagar por esse tipo de tratamento enquanto uma vacina não sair?

    Mas voltemos ao Plasma Convalescente

    Recentemente, a Food and Drug Administration (FDA) – uma agência dos Estados Unidos responsável pela proteção e promoção da saúde pública – aprovou o uso de plasma convalescente para o tratamento de pacientes com a forma grave da Covid-19(5). Assim, foi permitido o início de testes clínicos para analisar a eficiência do procedimento em diferentes aspectos da doença. Até agora cinco testes clínicos já foram começados na tentativa de verificar a eficácia de plasma convalescente nos seguintes aspectos(6): 

    • prevenção dos sintomas após contaminação; 
    • tratamento de casos sintomáticos leves para evitar complicações e a hospitalização; 
    • casos moderados de pacientes hospitalizados para prevenir a entrada na UTI e uso de equipamentos de ventilação;
    • última alternativa (chamada de “terapia de resgate”) em pacientes graves que estão sendo ventilados;
    • casos pediátricos.

    Por fim…

    O uso do plasma convalescente vem se provando uma poderosa ferramenta que poderemos adicionar em nosso arsenal para combater a Covid-19. Mas é claro que ela tem seus prós e contra. A favor dela temos a provável eficiência clínica, a disponibilidade quase que imediata de doadores (visto os mais de 2 milhões e meio de brasileiros recuperados e 15 milhões de pessoas ao redor do mundo). Ademais, temos o custo relativamente mais baixo do que o desenvolvimento de novos antivirais, ou mesmo o reposicionamento de fármacos (que já mencionamos nestes textos aqui e aqui).

    Além disso, o uso de plasma convalescente pode se provar uma ótima medida preventiva, principalmente para os agentes de saúde que ficam na linha de frente, combatendo a infecção e se expondo a contaminação. Já os contras se concentram principalmente na parte administrativa e logística, focando na identificação, consentimento, coleta e teste dos possíveis doadores (7). Assim, os prós e contras devem ser pesados, analisando principalmente o que a literatura irá falar nos próximos meses, caso novas pesquisas corroborem o uso de tal medida ou descubram problemas.

    Ciência Brasileira

    Rabelo-da-Ponte, FD; Silvello, D, Scherer, JN, Ayala, AR, Klamt, F (2020) Convalescent Plasma Therapy on Patients with Severe or Life-Threatening COVID-19: A Metadata Analysis, The Journal of Infectious Diseases

    Artigos Citados:

    1. Casadevall A, Dadachova E, Pirofski LA (2004) Passive antibody therapy for infectious diseases. Nat Rev Microbiol; 2(9):695-703

    2. Brown, BL, & McCullough, J (2020) Treatment for emerging viruses: convalescent plasma and COVID-19, Transfusion and Apheresis Science, 102790.

    3. World Health Organization (2014) Use of convalescent whole blood or plasma collected from patients recovered from Ebola virus disease for transfusion, as an empirical treatment during outbreaks. Interim guidance for national health authorities and blood transfusion services; Geneva: World Health Organization

    4. Leford, H (2020) Antibody therapies could be a bridge to a coronavirus vaccine — but will the world benefit? Nature, 

    5. Tanne JH (2020) Covid-19: FDA approves use of convalescent plasma to treat critically ill patients. BMJ 2020;368:m1256. 

    6. Bloch EM, Shoham S, Casadevall A, et al (2020) Deployment of convalescent plasma for the prevention and treatment of COVID-19 J Clin Invest; 130(6):2757-2765. 

    7. Sullivan, HC, & Roback, JD (2020) Convalescent plasma: therapeutic hope or hopeless strategy in the SARS-CoV-2 pandemic Transfusion Medicine Reviews.

    Para saber mais

    Marano, G, Vaglio, S, Pupella, S, Facco, G, Catalano, L, Liumbruno, G. M, & Grazzini, G (2016) Convalescent plasma: new evidence for an old therapeutic tool? Blood Transfusion, 14(2), 152.

    Center for Biologics Evaluation and Research, USF and DA (2020) Recommendations for investigational COVID-19 convalescent plasma

    Duan, K, Liu, B, Li, C, Zhang, H, Yu, T, Qu, J, … & Peng, C (2020) Effectiveness of convalescent plasma therapy in severe COVID-19 patients. Proceedings of the National Academy of Sciences, 117(17), 9490-9496.

    Rojas, M, Rodríguez, Y, Monsalve, DM, Acosta-Ampudia, Y, Camacho, B, Gallo, JE, … & Mantilla, R D (2020) Convalescent plasma in Covid-19: Possible mechanisms of action; Autoimmunity Reviews, 102554.

    Expanding access to monoclonal antibody-based products: a global call to action. Wellcome; 2020 August. Avaliable at: https://wellcome.ac.uk/sites/default/files/expanding-access-to-monoclonal-antibody-based-products.pdf

    Outros textos do Blogs

    Vacinas: de onde vêm e para onde vão

    Se o coronavírus é um vírus pulmonar, como ele infecta outros órgãos?

    Pandemia Covid-19: 150 dias

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Blog Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

plugins premium WordPress