Categoria: ESPECIAL COVID-19

  • Se o coronavírus é um vírus pulmonar, como ele infecta outros órgãos? (parte 1)

    Há mais de 8 meses, um novo vírus surgiu na China e espalhou-se pelo mundo em poucos meses gerando uma pandemia em um nível que não víamos há mais de um século. O SARS-CoV-2 logo foi identificado e os sintomas de sua doença, nomeada de Coronavirus Disease 2019 (Covid-19) foram descobertos, com toda a comunidade científica se voltando para ele e avaliando os problemas respiratório que causava.

    De lá para cá, muitas coisas foram descobertas tais como a porta de entrada do vírus nas nossas células, a chave que ele usa, sua possível origem e até sintomas que não esperávamos que ele pudesse causar a primeira vista.

    Por exemplo, vocês já devem ter lido ou ouvido falar de pessoas que apresentam infecções renais ou no fígado por causa da Covid-19. Além disso, há relatos de problemas neurológicos, vasculares, no intestino… Se olharmos “de fora”, muitas vezes não parece haver qualquer sentido em um vírus que causa Síndrome Respiratória afetar estes órgãos e sistemas, correto?

    Para entendermos melhor estas relações, na verdade, temos que entender um pouco mais sobre a fisiologia do nosso organismo.

    No post de hoje eu vou falar um pouco sobre alguns hormônios e proteínas que estão relacionados à entrada do SARS-CoV-2, o novo coronavírus, nas nossas células, para em uma próxima postagem falarmos sobre como isso afeta diferentes órgãos no nosso corpo.   

    Como se dá uma infecção viral em uma célula?

        Tudo começa com um vírus no ambiente, seja no ar, água, terra, ou alimentos. Nós ingerimos ou respiramos esse vírus e ele acaba entrando em contato com nossa mucosa (aquela parte do corpo que reveste o nosso interior) respiratória, gastrointestinal ou até mesmo urinária. A partir daí, o vírus tem um único objetivo: invadir nossas células. Mas fazer isso não é fácil, pois nossas células tem um controle rígido do que elas permitem entrar e sair. Dessa forma, cada vírus precisa desenvolver uma chave para uma fechadura das nossas células. 

    E essas chaves são as proteínas, um dos tijolos fundamentais que permitiu que a vida – como conhecemos – pudesse existir. Existem milhares de proteínas no nosso corpo, cada uma especializada em uma função diferente: transporte de oxigênio (a Hemoglobina), quebra do açúcar (chamado de Glicose) para a produção de energia (as chamadas Enzimas), contração muscular (Actina e Miosina), defesa contra patógenos (os Anticorpos), entrada e saída de substância pela membrana das células (os Transportadores), recebimento e envio de sinais químicos (os Receptores) e muitas outras funções.

    Muito bem, uma vez que o vírus consegue desenvolver uma proteína que é reconhecida por uma célula, ele começa todo o processo de entrar nessa célula. Um detalhe que precisa ser dito aqui é que os vírus (assim como as células) não tem consciência própria e não desenvolve proteínas por que quer. Usamos esse vocabulário aqui simplesmente para conseguir explicar melhor. É preciso deixar claro que é por causa da Evolução que os vírus – e outros patógenos – desenvolvem formas de invadir nossas células e nosso corpo, assim como é pela evolução que nosso sistema imune desenvolve formas de combatê-lo. Todo esse processo é chamado Co-evolução.

    Mas voltando para esses invasores microscópicos, quando eles conseguem ter uma chave para uma fechadura da célula, ele a invade. Algumas vezes ele deixa a sua “casca” para trás, injetando somente seu material genético (como aqueles famosos vírus com forma de aranha, os Fagos), enquanto outros fundem sua membrana com a da célula e liberam seu material genético e proteínas dentro da célula. Pois é nesse momento que o vírus começa a escravizar a célula para ela produzir milhares de novas cópias deles, até que a célula estoura e libera essas novas cópias no ambiente, para infectar novas células. E todo o ciclo recomeça.

    Mas peraí, se um um vírus precisa desenvolver uma chave específica para entrar em uma célula de um tipo, como as células do pulmão, como ele pode entrar em outros tipos celulares, como as células do rim, intestino e cérebro?

    A verdade é muitas das nossas proteínas são compartilhadas, a maioria delas. Assim, isso faz com que uma célula do pulmão expresse um mesmo conjunto de proteínas de uma célula do cérebro, ou do intestino. E isso abre porta para um vírus (ou outro patógeno) acabar se espalhando de um órgão para o outro, como o SARS-CoV-2.   

    Se os vírus precisam de portas de entrada para as células, quais são as chaves? 

    A principal porta de entrada para o SARS-CoV-2 é um receptor celular chamado ACE2, ou, Enzima Conversora de Angiotensina 2. Mas calma! Eu sei que este é um nome muito estranho! No entanto, o que esta molécula faz é muito “simples”: o ACE2 converte um hormônio em outro.

    Resumidamente, esses dois hormônios – a Angiotensina 1 e Angiotensina 2 – são responsáveis por controlar a contração e dilatação dos vasos sanguíneos, o nível de fibrose, inflamação e trombose. Enquanto a Angiotensina 1 aumenta todos esses efeitos (levando a um quadro mais pró-inflamatório), a Angiotensina 2 diminui eles (levando a um quadro mais anti-inflamatório).

    O que se sabe atualmente é que com o vírus se ligando ao ACE2, ele acaba retirando essa molécula da membrana das células, impedindo que ela cumpra sua função. Dessa forma, a Angiotensina 1 não é convertida em Angiotensina 2. Com um aumento da Angiotensina 1, o seu efeito no corpo prevalece: aumentando a vasoconstrição, risco de trombose e favorecendo um cenário mais pró-inflamatório. Assim, todos estes acontecimentos acabam levando à forma mais severa da Covid-19.

    Além disso, há outros dois fatos interessantes e que foram descobertos recentemente: além do ACE2, o SARS-CoV-2 necessita de uma outra molécula para entrar nas células. (Respira que lá vem mais nomes estranhos!!!) O TMPRSS2 é uma sigla complicada para designar uma proteína simples: ela é como uma tesoura, que literalmente corta ao meio outras coisas. Como assim? Você já deve ter escutado sobre a famosa e tão falada Spike. A Spike é cortada após se ligar ao ACE2, o que acaba coincidindo com a liberação do material genético do vírus dentro da célula 1,2.

    Mas ainda tem mais: a segunda descoberta é referente ao ACE2 e os famosos interferons (quem é mais velho por aqui pode reconhecer esse nome como um dos primeiros antivirais usados no combate ao HIV). Comparando informações de bancos de dados moleculares de camundongos, primatas e humanos, pesquisadores descobriram que um tipo de interferon liberado pelas células de defesa durante o combate ao coronavírus aparentemente é capaz de estimular as células a expressarem mais o ACE2, tornando elas mais suscetíveis à entrada do vírus e consequente contaminação 3.

    Com esses conhecimentos em mãos, vários pesquisadores se perguntaram se o ACE2 também seria expresso em outras células. Assim, com essa ideia, viu-se que esse receptor era expresso em vários outros órgãos tais como o coração, rim, fígado, intestino, muitas vezes em níveis mais altos do que no pulmão 4-7.

    E assim surgiu a grande pergunta: se o SARS-CoV-2 usa essa molécula para entrar nas células do pulmão que a expressam, ele seria capaz de infectar células de outros órgãos que também expressam o ACE2? É esta a pergunta que vou responder a vocês, leitores, na próxima postagem! Segue lá!

    Referências Bibliográficas:

    1. M. Hoffmann; H Kleine-Weber; S Schroeder; N Krüger; T Herrler; S Erichsen; T-S Schiergens; G Herrler; N-H Wu; A Nitsche; M-A Müller; C Drosten; S Pöhlmann (2020) SARS-CoV-2 cell entry depends on ACE2 and TMPRSS2 and is blocked by a clinically proven protease inhibitor. Cell 181, 271–280.e8
    1. S Matsuyama, N Nao, K. Shirato, M. Kawase, S. Saito, I. Takayama, N. Nagata, T. Sekizuka, H. Katoh, F. Kato, M. Sakata, M. Tahara, S. Kutsuna, N. Ohmagari, M. Kuroda, T. Suzuki, T. Kageyama, M. Takeda, (2020) Enhanced isolation of SARS-CoV-2 by TMPRSS2-expressing cells. Proc. Natl. Acad. Sci. U.S.A. 117, 7001–7003
    1. Ziegler, CG, Allon, SJ, Nyquist, SK, Mbano, IM, Miao, VN, Tzouanas, CN, & Feldman, J (2020) SARS-CoV-2 receptor ACE2 is an interferon-stimulated gene in human airway epithelial cells and is detected in specific cell subsets across tissues. Cell.
    1. Kuba K, Imai Y, Ohto-Nakanishi T, Penninger JM (2010) Trilogy of ACE2: a peptidase in the renin-angiotensin system, a SARS receptor, and a partner for amino acid transporters. Pharmacol Ther; 128:119–28. 
    1. South AM, Diz D, Chappell MC (2020) COVID-19, ACE2 and the cardiovascular consequences. Am J Physiol Heart Circ Physiol 318(5):H1084–90. 
    1. Varga, Z, Flammer, AJ, Steiger, P, Haberecker, M, Andermatt, R, Zinkernagel, AS, & Moch, H (2020) Endothelial cell infection and endotheliitis in COVID-19 The Lancet, 395(10234), 1417-1418. https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S0140-6736%2820%2930937-5
    2. https://www.proteinatlas.org/ENSG00000130234-ACE2/tissue

    Outros textos do Especial Covid-19

    A Joia da Coroa

    Coronavírus: Conhecendo o vilão, combatendo a infecção

    Glossário Covid-19

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e que são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • COVID-19 e impactos na pesquisa

    Sem dúvidas, todos nós fomos pegos de surpresa com essa pandemia e com os impactos dela em nossa rotina diária. E qual foi o impacto de todas essas mudanças na sua pesquisa e na sua forma de fazer ciência?

    Um grupo de pesquisadores, em sua maioria de Harvard, resolveram investigar como os pesquisadores estavam respondendo às mudanças ocasionadas pela pandemia e, para isso, distribuíram um questionário para diversos pesquisadores e professores universitários no dia 13 de Abril. A ideia deles foi espalhar esse questionário para cientistas de diversas áreas nos Estados Unidos e na Europa um mês após a declaração de pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Eles tinham o intuito de comparar o desempenho desses profissionais pré e pós pandemia, e identificar quais características estavam afetando mais o desempenho desses pesquisadores.

    Com 4.535 respostas, durante a análise dos resultados eles identificaram um grande impacto na quantidade de horas trabalhadas, que foi reduzida de 61h para 54h semanais. Mas é preciso considerar que 55% dos participantes indicaram uma redução, e que uma parcela relativamente significante (18%) apresentou um aumento nas horas trabalhadas.  

    Com isso em mente podemos nos perguntar em seguida se as pessoas que estão nesses grupos têm alguma característica em comum. Quais foram as áreas mais afetadas? Qual foi o gênero mais impactado pela pandemia quando falamos em horas de pesquisa? Em qual desses grupos você se identifica?

    Eles observaram nesse trabalho que as pessoas que mais tiveram redução no tempo dedicado à pesquisa (30% e 40%) foram cientistas que precisam estar em laboratório físico, englobando principalmente áreas de ciências biológicas, bioquímica, química e engenharia química. Enquanto áreas de economia, matemática e ciências da computação apresentaram uma redução menor. 

    Mas a parte mais interessante, na minha opinião, é que analisando esses dados eles identificaram que o trabalho de pesquisadores com dependentes jovens em casa (pelo menos um dependente de até 5 anos de idade) foi muito mais afetado pela pandemia, com uma redução de 17% de horas dedicadas a pesquisa quando comparados com outros grupos. E ao levarmos isso para a discussão de gêneros, as mulheres apresentaram um redução maior (~5%) nas horas dedicadas a pesquisa quando comparadas aos homens. 

    O trabalho apresenta diversos pontos fracos a serem considerados, que impedem a sua utilização para conclusões mais gerais acerca de quais grupos realmente tiveram sua pesquisa mais impactada, mas ao mesmo tempo, ele abre caminho para diversos outros questionamentos, inclusive sociais.

    Nessa pesquisa, só foi considerado o impacto em pesquisadores e professores, mas qual o impacto que atingem os estudantes? Quantos moram longe da família e foram mantidos afastados totalmente de um convívio social? Quantos arriscam suas vidas todos os dias para desenvolverem pesquisas em COVID-19 nas bancadas? Quantos estão em desespero por terem prazos a cumprir ou por não saberem se terão bolsas no próximo ano? Como medir o real impacto causado pelo estresse e pela ansiedade da situação na pesquisa? 

    As perguntas são sempre muitas, e pra mim, a única que realmente devemos considerar nesse momento, é “Como reduzir os danos da pandemia na nossa saúde mental e na nossa rotina de trabalho dentro da pesquisa?”. 

    É preciso aprender a definir as nossas prioridades (de trabalho e pessoal) e a distribuir o nosso tempo de acordo com elas. É preciso nos olharmos com mais ternura e compaixão e entendermos que nós também somos humanos. É preciso buscar ajuda quando não damos conta. É preciso dizer não quando não nos fará bem. E é preciso decidir sempre, com consciência e com sabedoria, afinal, a única pessoa a arcar com a consequência das suas escolhas, será você mesmo. O lado maravilhoso disso? Ao decidirmos o que fazer com a nossa vida, nós podemos escolher o que nos faz feliz e o que nos faz bem, e ninguém NUNCA saberá mais o que você precisa, do que você mesmo. 

    E se eu puder dar algum conselho: Agarre essa oportunidade com unhas e dentes, decida tudo que você puder decidir, descubra quem está com você independente de quem você seja ou de que decisões você tome, divirta-se fazendo a sua pesquisa, agradeça sempre, ame muito e seja feliz, só por hoje.

    Referências:

    Myers, K.R., Tham, W.Y., Yin, Y. et al. Unequal effects of the COVID-19 pandemic on scientists. Nat Hum Behav (2020). https://doi.org/10.1038/s41562-020-0921-y

    Este Texto foi produzido originalmente no Blog Terabytes of Life

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Uma pandemia impulsionando outra – Parte 2: Resistência bacteriana a antimicrobianos: por que se preocupar?

    Esse texto é continuação do post: Uma pandemia impulsionando outra – Parte 1: O uso de antimicrobianos durante a pandemia da covid-19

    A resistência a antimicrobianos (RAM) é conhecida como um problema que não tem fronteiras e é um problema global. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a OMS, uma pandemia é caracterizada por sua disseminação e não necessariamente pela gravidade da doença. Indiscutivelmente, a RAM também pode ser considerada uma pandemia que embora seja mais insidiosa e com menos efeitos imediatos na vida cotidiana, possui impactos negativos potencialmente mais amplos. Vamos entender por que isso acontece nesse post. Vem com a gente!

    Como falamos anteriormente, o uso de antimicrobianos está aumentado pelo uso dessas drogas no tratamento e na “prevenção “ da covid-19 tanto no ambiente hospitalar quanto na comunidade. Curiosamente, a resistência das bactérias aos antimicrobianos, que é sempre uma preocupação no meio hospitalar, parece não estar recebendo a devida atenção nesse momento. É por isso que muitos cientistas da área estão tentando chamar a atenção para a importância de um potencial agravamento da pandemia global de RAM.

    As UTIs, locais onde concentram os pacientes mais graves da covid-19, são epicentros comuns para o desenvolvimento da RAM. O uso exacerbado de antimicrobianos pode, portanto ter grandes consequências em hospitais que já apresentam elevada prevalência de bactérias resistentes a múltiplas drogas, levando a um aumento de mortalidade devido ao reduzido arsenal de antibióticos para tratar as infecções ou coinfecções adquiridas. Portanto, há comprometimento também de pacientes pós-cirúrgicos, transplantados ou quimioterápicos, por exemplo. Como terminamos falando no post anterior, não estamos falando que não se deve usar antimicrobianos nem que as coinfecções devam ser subestimadas. Mas os profissionais de saúde devem considerá-las num plano integrado para limitar o fardo da morbimortalidade durante a pandemia da covid-19 e, ao mesmo tempo, evitar um possível agravamento da RAM.

    Uma medida muito disseminada de proteção contra o novo coronavírus (SARS-CoV-2) é a higienização das mãos… medida excelente, funcional e simples! Porém, muitas vezes realizada com o uso de sanitizantes ou sabões antibacterianos, que contém agentes químicos que, apesar de não adicionar muita coisa em termos de proteção, podem dar gatilho para a resistência antimicrobiana. E isso acontece porque um dos mecanismos de resistência das bactérias são bombas de efluxo que literalmente jogam os antimicrobianos para fora da célula. Muitas vezes, as bombas que conferem resistência a esses sanitizantes são as mesmas daquelas necessárias para conferir a RAM.

    Esses agentes biocidas caem na rede de esgoto e chegam ao ambiente, onde acabam elevando as concentrações dessas drogas. Claro que no caminho essas drogas são diluídas, mas temos que considerar a concentração final desses agentes… Se muito elevadas, muitas bactérias vão morrer, isso pode impactar negativamente os ecossistemas e, ao mesmo tempo, evitar o desenvolvimento da RAM. Porém concentrações baixas (sub-inibitórias) podem aumentar a pressão seletiva e promover oportunidades para o surgimento e a seleção da RAM. De forma muito simplificada, concentrações sub-inibitórias dessas drogas ativam vias de respostas ao estresse que, por sua vez, aumentam a ocorrência de mutação nas bactérias. Isso está relacionado a uma maior taxa de variabilidade entre entre as células bacterianas e, portanto,  a maiores possibilidades do surgimento e seleção de indivíduos resistentes daquela população. O fenômeno da seleção sub-inibitória é muito bem estudado para antibióticos, mas pouco para biocidas. Não podemos, portanto, desconsiderar os efeitos ambientais, uma vez que níveis aumentados de antimicrobianos são liberados no ambiente aumentando os níveis de resistência em animais (selvagens e de corte), na agricultura e nos ambientes naturais.

    [atualização 27/07]: É importante ressaltar que resíduos dos antimicrobianos que tomamos são eliminados pelas fezes e pela urina, caindo na rede de esgoto e, consequentemente, no ambiente. É tudo um ciclo, uma grande bola de neve! É algo que, realmente, deve nos preocupar!

    Falamos brevemente da ocorrência da RAM em hospitais e no meio ambiente. Mas por que devemos nos preocupar tanto!?

    Nos últimos anos a RAM já é citada com a maior ameaça global à saúde pública e à economia global, mas agora está não só eclipsada pela covid-19, como também corre risco de ser agravada por essa nova pandemia. Ou seja: muitos especialistas agora temem que o esforço global para manter a RAM sob controle possa enfrentar um revés durante a pandemia

    Vamos falar com números:

    A RAM já mata cerca de 700.000 pessoas por ano. Numa estimativa grosseira, e considerando-se que a covid-19 mantenha as taxas de mortalidade pelo restante do ano, estima-se que a RAM resultará em 130.000 morte a mais neste ano. As mortes por COVID podem superar as mortes por RAM neste ano de 2020 e o uso de antimicrobianos em pacientes com COVID também pode até reduzir o aumento na mortalidade por COVID em curto prazo mas, por outro lado, a consequência é um provável aumento na mortalidade por RAM a longo prazo. Estima-se que até 2050, a mortalidade associada a RAM será aumentada para 10 milhões de mortes por ano!  Tudo indica que que a covid-19 será controlada em um tempo consideravelmente menor.

    A movimentação dos pesquisadores é para que os princípios da administração de antibióticos não sejam relaxados mesmo nesses tempos de pandemia. A necessidade do tratamento com antibiótico deve ser avaliada rapidamente e interrompida se não for necessária. Observe que não estamos advogando em favor do uso profilático (preventivo) desses medicamentos! Além disso, quem deveria informar o antibiótico de escolha é o laboratório de microbiologia e baseado no micro-organismo e no padrão de resistência observado.

    Falamos anteriormente que a OMS já se manifestou contra o uso de antibióticos durante o tratamento inicial de covid-19. Essa cautela deve-se principalmente em relação a dois pontos: 1) o uso inapropriado e exacerbado de antimicrobianos pode contribuir para a emergência da RAM, daí a necessidade de se reduzir o uso inapropriado e exacerbado de antimicrobianos (sim, a repetição aqui foi intencional!) e; 2) o uso de antimicrobianos no tratamento da covid-19 pode levar à população a assumir que todos os antibióticos são elegíveis para o tratamento de infecções virais.

    A ocorrência de infecções por patógenos resistentes pode ser significantemente mitigada pela administração de antimicrobianos baseada em evidência em todos os setores (agricultura e medicina veterinária e humana). Embora tenhamos tempo, a RAM não será contida sem o desenvolvimento de novas vacinas, medicamentos e testes rápidos (assim como na COVID!).

    Curiosamente, as estratégias de utilizadas para reduzir a transmissão da covid-19 (distanciamento social, lock-down, fechamento de fronteiras, lavar as mãos com água e sabão) podem, também, reduzir o espalhamento da RAM! Detalhe que a redução das viagens (fechamento de fronteiras) diminui a movimentação de genes de RAM entre países!  Seria muito interessante ver estudos que comparem dados de prevalência de infecções causadas por bactérias RAM antes e depois da pandemia de covid-19, bem como dos perfis de resistência que estão surgindo…

    Essa tabela aqui (modificada de Nieuwlaat et al., 2020) ajuda a comparar as duas pandemias:

    Finalizando:

    • A resistência a antimicrobianos é uma pandemia que já preocupa cientistas e profissionais da saúde há um tempo, tem impactos relevantes e estima-se que nos próximos anos será ainda mais preocupante.
    • Ainda não sabemos o real impacto da pandemia da covid na pandemia da RAM, mas estamos preocupados e alerta para seu provável agravamento e suas possíveis consequências.
    • É importante uma estratégia multifacetada contra os organismos RAM que envolva: a) estudos prospectivos sobre coinfecções na covid-19 para orientar o tratamento com antimicrobianos; b) monitoramento e relato transparente dos padrões de RAM nas UTIS para guiar o uso adequado de antimicrobianos; c) esforço global coordenado para estabelecer uma estrutura de governança, vigilância e relatos de RAM, tanto agora como depois da pandemia da covid-19.
    • É comum pessoas acreditarem que antibióticos podem ser utilizados para infecções virais (gripe). Usar termos como antivirais pode ajudar a entender que existem diferentes tipos de medicamentos para diferentes tipos de infecção.

    Referências:

    • Antimicrobial resistance in the age of COVID-19. Nat Microbiol. 2020;5(6):779. doi:10.1038/s41564-020-0739-4
    • Bengoechea JA, Bamford CG. SARS-CoV-2, bacterial co-infections, and AMR: the deadly trio in COVID-19?. EMBO Mol Med. 2020;12(7):e12560. doi:10.15252/emmm.202012560
    • Hsu J. How covid-19 is accelerating the threat of antimicrobial resistance. BMJ. 2020;369:m1983. Published 2020 May 18. doi:10.1136/bmj.m1983
    • Murray AK. The Novel Coronavirus COVID-19 Outbreak: Global Implications for Antimicrobial Resistance. Front Microbiol. 2020;11:1020. Published 2020 May 13. doi:10.3389/fmicb.2020.01020
    • Nieuwlaat R, Mbuagbaw L, Mertz D, et al. COVID-19 and Antimicrobial Resistance: Parallel and Interacting Health Emergencies [published online ahead of print, 2020 Jun 16]. Clin Infect Dis. 2020;ciaa773. doi:10.1093/cid/ciaa773
    • Rawson TM, Ming D, Ahmad R, Moore LSP, Holmes AH. Antimicrobial use, drug-resistant infections and COVID-19 [published online ahead of print, 2020 Jun 2]. Nat Rev Microbiol. 2020;1-2. doi:10.1038/s41579-020-0395-y
    • Rawson TM, Moore LSP, Castro-Sanchez E, et al. COVID-19 and the potential long-term impact on antimicrobial resistance. J Antimicrob Chemother. 2020;75(7):1681-1684. doi:10.1093/jac/dkaa194
    • Rossato L, Negrão FJ, Simionatto S. Could the COVID-19 pandemic aggravate antimicrobial resistance? [published online ahead of print, 2020 Jun 27]. Am J Infect Control. 2020;S0196-6553(20)30573-3. doi:10.1016/j.ajic.2020.06.192
    • Yam ELY. COVID-19 will further exacerbate global antimicrobial resistance [published online ahead of print, 2020 Jun 13]. J Travel Med. 2020;taaa098. doi:10.1093/jtm/taaa098

    Aproveite e nos siga no Twitter, no Instagram e no Facebook! E se for fazer comprinhas na Amazon, use nosso link!

    Este post foi publicado originalmente no blog Meio de Cultura

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Uma pandemia impulsionando outra – Parte 1: O uso de antimicrobianos durante a pandemia da covid-19

    Em cerca de 8 meses a covid-19 surgiu, espalhou por todo o mundo e se tornou uma pandemia de efeitos devastadores… O que talvez você não saiba é que, paralelamente à covid-19, uma outra pandemia vem ganhando cada vez mais importância trazendo muita preocupação dos cientistas da área. A relação entre as duas é importante, sendo um caso de uma pandemia impulsionando outra. E quando falamos de pandemia impulsionada não estamos falando da covid-19, mas sim da pandemia que já estava em andamento, a das bactérias multidroga resistentes (também chamadas de superbactérias).

    Ainda não temos uma terapia licenciada ou uma vacina para o tratamento da covid-19 e cujo alvo seja o SARS-CoV-2 (o novo coronavírus). Essa situação tem levado diversos médicos a considerarem e testarem drogas baseadas na modulação da resposta imunológica (reduzindo a inflamação) observada em testes in vitro (como falamos no post anterior “Antibiótico contra vírus?”). Muitas vezes, esse hype prematuro em torno de possíveis terapias para a covid-19 é associado a relatos da mídia e de líderes políticos que amplificam o possível uso dessas drogas — apesar da falta de evidências clínicas de sua eficácia. Isso pode contribuir, ainda, para a escassez dessas drogas para quem efetivamente precisa; como, por exemplo, aconteceu com a cloroquina aqui no Brasil.

    Sabemos que infecções respiratórias causadas por vírus podem fazer com que pacientes tenham mais chances de serem acometidos por coinfecções causadas por fungos e/ou bactérias. Da mesma forma, infecções prévias podem atuar agravando o quadro da infecção respiratória. Apesar de ainda estarmos aprendendo sobre a progressão da covid-19, acredita-se que esses cenários que envolvem coinfecção piorem o quadro da doença. Por exemplo, sabe-se que a infecção pelo vírus SARS-CoV-2 pode aumentar a colonização e a adesão bacterianas ao tecido, e que as infecções combinadas podem resultar no aumento da destruição tecidual que, por sua vez, pode facilitar a disseminação sistêmica dos patógenos, aumentando o risco de infecções da corrente sanguínea e sepse.

    É relevante considerarmos essas questões, pois, além dos riscos relacionados aos vários efeitos colaterais, ao reduzirem a resposta imunológica, essas intervenções podem acabar aumentando o risco de infecções bacterianas secundárias e potencialmente fatais. Por isso, é sempre importante ressaltar a necessidade de se realizar análises cuidadosas acerca das dosagens e da forma de administração das drogas, além da importância de os pacientes estarem sendo acompanhados de perto pele uma equipe médica.

    E aonde queremos chegar com isso tudo?

    Apesar dos poucos dados disponíveis sobre o assunto, o que está sendo observado é que há um aumento considerável na prescrição de antimicrobianos, ainda que não seja observado um aumento proporcional no número de coinfecções durante as internações por covid-19. Só para você ter uma ideia, as estimativas sugerem que cerca 60-70% dos pacientes são tratados com antimicrobianos, ainda que de 1% a 10% tenham apresentado coinfecção fúngica ou bacteriana.  Esses pacientes podem, portanto, estar recebendo desnecessariamente antibióticos com eficácia questionável ou ainda não comprovada. Sem contar que, inclusive, em alguns lugares, as terapias com antimicrobianos fazem parte do protocolo de tratamento clínico inicial ou até “preventivo”

    Orienta-se que a administração de antimicrobianos seja feita, sempre que possível, com um antibiótico de espectro curto e direcionado ao patógeno primário, ou seja, aquele a que se quer combater. No caso da covid-19, os principais sintomas observados são tosse e febre – que já estão associados a um maior uso de antibióticos nos hospitais e na comunidade. E, além disso, quando os médicos não possuem todas as informações necessárias para entender realmente o que está acontecendo ao paciente, eles tendem a utilizar mais antibióticos —situação que parece ter se agravado ainda mais com os atendimentos remotos, que ocorrem a distância, via chamada pelo celular ou computador (telessaúde).

    Claro que temos que lembrar que os hospitais estão lotados e que pacientes em estado crítico são, geralmente, intubados e ficam hospitalizados por semanas em UTIs. Essa situação cumpre praticamente todos os requisitos necessários para a ocorrência de infecções relacionadas à assistência à saúde (IRAS – esse é o nome chique do que chamávamos simplesmente de infecção hospitalar). E, ainda por cima, dados hospitalares mostram um aumento lento e constante da resistência a múltiplas drogas pelas bactérias Gram-negativas, que podem ser potencialmente mortais quando associadas  à covid-19. Mais preocupantemente, existem evidências clínicas que sugerem que o uso empírico e inadequado de antibióticos de amplo espectro pode estar associado a maior mortalidade, pelo menos em casos de sepse.

    Além de tudo isso que falamos, preocupa o fato de que é frequentemente observado o uso de antibiótico de amplo espectro (que são desenvolvidos para matar uma grade variedade de bactérias) nesses tratamentos. Isso é preocupante uma vez que o uso excessivo e inapropriado dessas drogas (uma vez que as terapias não são focadas para a eliminação de um único patógeno primário) podem acabar agravando os quadros de resistência a antimicrobianos.

    Para terminar, é importante ressaltarmos que a Organização Mundial da Saúde, a OMS, desencoraja o uso de antibióticos para casos leves de covid-19, ainda que recomende o uso em casos graves com risco aumentado de infecções bacterianas secundárias e morte.

    Vamos falar sobre resistência e porque pensar sobre ela é tão importante. Veja na continuação desse post!

    Clique para ler: Uma pandemia impulsionando outra – Parte 2: Resistência bacteriana a antimicrobianos: por que se preocupar?

    Resumindo o que falamos até agora:

    • Antimicrobianos estão sendo comumente prescritos para prevenção ou tratamento da COVID-19, mesmo sem a ocorrência de coinfecção bacteriana presumida ou confirmada diretamente relacionada ao covid-19, ou que coocorrem no momento da infecção, ou que seja associada aos cuidados de saúde (internação prolongada em UTI)
    • Evidências atuais sugerem que a coinfecção não-viral (bacteriana ou fúngica) em pacientes com covid-19 é baixa (1 a 10%). Contudo, as taxas de prescrição e uso de antimicrobianos de amplo espectro são altas (60 a 70%).
    • A utilização de antibióticos, principalmente de amplo espectro, pode contribuir para o agravamento da pandemia já em curso das superbactérias, que são resistentes a vários antibióticos e, portanto, difíceis de serem mortas.

    Referências:

    • Antimicrobial resistance in the age of COVID-19. Nat Microbiol. 2020;5(6):779. doi:10.1038/s41564-020-0739-4
    • Bengoechea JA, Bamford CG. SARS-CoV-2, bacterial co-infections, and AMR: the deadly trio in COVID-19?. EMBO Mol Med. 2020;12(7):e12560. doi:10.15252/emmm.202012560
    • Hsu J. How covid-19 is accelerating the threat of antimicrobial resistance. BMJ. 2020;369:m1983. Published 2020 May 18. doi:10.1136/bmj.m1983
    • Murray AK. The Novel Coronavirus COVID-19 Outbreak: Global Implications for Antimicrobial Resistance. Front Microbiol. 2020;11:1020. Published 2020 May 13. doi:10.3389/fmicb.2020.01020
    • Nieuwlaat R, Mbuagbaw L, Mertz D, et al. COVID-19 and Antimicrobial Resistance: Parallel and Interacting Health Emergencies [published online ahead of print, 2020 Jun 16]. Clin Infect Dis. 2020;ciaa773. doi:10.1093/cid/ciaa773
    • Rawson TM, Ming D, Ahmad R, Moore LSP, Holmes AH. Antimicrobial use, drug-resistant infections and COVID-19 [published online ahead of print, 2020 Jun 2]. Nat Rev Microbiol. 2020;1-2. doi:10.1038/s41579-020-0395-y
    • Rawson TM, Moore LSP, Castro-Sanchez E, et al. COVID-19 and the potential long-term impact on antimicrobial resistance. J Antimicrob Chemother. 2020;75(7):1681-1684. doi:10.1093/jac/dkaa194
    • Rossato L, Negrão FJ, Simionatto S. Could the COVID-19 pandemic aggravate antimicrobial resistance? [published online ahead of print, 2020 Jun 27]. Am J Infect Control. 2020;S0196-6553(20)30573-3. doi:10.1016/j.ajic.2020.06.192
    • Yam ELY. COVID-19 will further exacerbate global antimicrobial resistance [published online ahead of print, 2020 Jun 13]. J Travel Med. 2020;taaa098. doi:10.1093/jtm/taaa098

    Aproveite e nos siga no Twitter, no Instagram e no Facebook! E se for fazer comprinhas na Amazon, use nosso link!

    Este post foi publicado originalmente no blog Meio de Cultura

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • “Programa Nutrir Campinas: impactos em época de pandemia do COVID-19”

    Texto produzido por Ana Clara Duran e pesquisadoras do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Alimentação da Unicamp (NEPA/UNICAMP)

    Em abril de 2020 foi confirmado que a pandemia do COVID-19 havia atingido todos os estados do Brasil (1). Porém, em um cenário em que as principais medidas de prevenção são o isolamento social e medidas de higiene, as populações mais vulneráveis são as mais afetadas, incluindo uma maior dificuldade de aquisição de alimentos (2).

    Essas populações com dificuldades econômicas e sociais são as que apresentam maiores índices de Insegurança Alimentar e Nutricional (IAN), ou seja, apresentam maiores dificuldades de acesso a alimentos de qualidade de forma adequada (3), o que aumenta o seu risco de desenvolver ou agravar doenças como obesidade, diabetes, hipertensão, depressão e doenças mentais (4). Ademais, evidências recentes demonstram um maior risco de complicações quando o paciente diagnosticado com COVID-19 apresenta obesidade ou diabetes. 

    O Programa Nutrir Campinas

    Em Campinas, um terço dos domicílios apresentavam IAN previamente a pandemia do COVID-19, o que pode ser ainda mais intensificado durante essa época de crise, exigindo medidas emergenciais (5). Assim, a Prefeitura de Campinas, através da Lei no 15.892 de 30 de março de 2020, declarou a expansão do Programa Nutrir Campinas para até 26 mil famílias(6). O Nutrir Campinas é um Programa Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) implementado em 2016 para auxiliar famílias em vulnerabilidade no município. Estas famílias recebem um cartão alimentação que pode ser utilizado em estabelecimentos de vendas de alimentos credenciados no valor mensal de R$94,00 (7, 8).

    O Programa, que substituiu a entrega de cestas básicas – ação conhecida por ser menos eficiente e custo-efetiva do que transferência diretas de renda –  ainda apoia o comércio local, já atendia até início de 2020 cerca de seis mil famílias, o que equivale a mais de 30 mil pessoas em situação de pobreza (7). Os novos cartões, distribuídos a partir de abril, podem ser utilizados por até 90 dias na compra de, além de gêneros alimentícios, produtos de higiene pessoal e limpeza, essenciais para a diminuição da disseminação do vírus (8). A extensão deste programa emergencial em mais três meses está atualmente em fase de discussão.

    O Núcleo de Estudos e Pesquisa em Alimentação da Unicamp

    Considerando que a identificação de populações mais vulneráveis em tempos de crises devem ser prioridade nos esforços para reduzir a fragilidade e o tempo de recuperação após a crise (9), o monitoramento de estratégias como o Programa Nutrir Campinas é essencial. Assim, pesquisadores, alunos de graduação e pós-graduação do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação (NEPA) da UNICAMP desenvolveram um projeto de pesquisa e extensão para avaliar os comportamentos de compra de alimentos com o cartão-alimentação do Programa Nutrir Campinas entre os beneficiários convencionais e emergenciais, além de avaliar, em uma sub-amostra de beneficiários, a situação de IAN durante e após a pandemia do COVID-19.

    O desenvolvimento do projeto

    O projeto de extensão e pesquisa está sendo realizado em parceria com a Secretaria Municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos de Campinas e utilizará informações socioeconômicas e de participação dos beneficiários fornecidas pela Secretaria e também dados dos estabelecimentos onde as compras de alimentos são realizadas, fornecidos pela empresa que gerencia os cartões-alimentação. 

    Assim, verificaremos os locais de compra dos beneficiários previamente cadastrados no Programa e analisaremos a distância que os beneficiários percorrem para comprar alimentos. Após essa etapa, compararemos os comportamentos de compra (valor de compra, tipo e distância percorrida até os estabelecimentos) antes, durante e após a pandemia. Essa mesma avaliação será realizada entre os beneficiários emergenciais que serão comparados aos beneficiários do Programa Nutrir Campinas que já recebiam o benefício antes da pandemia da COVID-19. Ademais, em uma subamostra de participantes, avaliaremos por meio telefônico o estado de segurança alimentar e nutricional durante o período de isolamento social e seis meses após sua finalização no Município de Campinas. Estes beneficiários também receberão informações acerca de como melhor utilizar seus benefícios de acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira (10). 

    Os resultados serão discutidos com a Secretaria Municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos. A parceria entre o NEPA/Unicamp e a Prefeitura de Campinas tem o potencial de contribuir para o aprimoramento do Programa Nutrir Campinas, auxiliando no manejo do programa e na tomada de decisões futuras acerca de proteção social dessa população.

    Força Tarefa Unicamp: a pesquisa em tempos de pandemia

    [Nota do Editorial] Este é o primeiro texto produzido por uma das pesquisas já em andamento da Força Tarefa da Unicamp – que além dos trabalhos de diagnóstico tem produzido pesquisa em várias áreas de conhecimento. Em breve traremos mais textos e debates sobre a ciência em tempos de pandemia, realizados pela Força Tarefa da Unicamp.

    Para saber mais

    1. El País (2020) Evolução dos casos de coronavírus no Brasil.

    2. Lima J (2020) Por que as periferias são mais vulneráveis ao coronavírus, Nexo Jornal.

    3. Bezerra TA, Olinda RAd, Pedraza DF (2017) Insegurança alimentar no Brasil segundo diferentes cenários sociodemográficos, Ciência & Saúde Coletiva, 22:637-51.

    4. Gundersen C, Ziliak JP (2018) Food Insecurity Research in the United States: Where We Have Been and Where We Need to Go, Applied Economic Perspectives and Policy;40(1):119-35.

    5. Souza BFdNJd, Marin-Leon L, Camargo DFM, Segall-CorrÊA AM (2016) Demographic and socioeconomic conditions associated with food insecurity in households in Campinas, SP, Brazil, Revista de Nutrição, 29:845-57.

    6. Campinas (2020) Lei nº 15.892 de 30 de março, altera a Lei nº 15.017, de 26 de maio de 2015, que “institui o Programa Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional `NUTRIRCAMPINAS`, estabelece critérios de inclusão, interrupção e exclusão, e dá outras providências”.

    7. Campinas (2019) Prefeitura de Campinas. Programa Nutrir Campinas entrega mais 900 cartões em Dezembro 2019.

    8. Campinas (2020) Prefeitura de Campinas. Prefeitura disponibiliza cartões Nutrir emergenciais a partir do dia 17.

    9. Dixon N (2019) Identification and inclusion of vulnerable populations during emergency planning: A real-world application.

    10. Brasil, Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica (2014) Guia Alimentar para a População Brasileira 2ª edição.

    Outros Textos do blogs

    Alguns questionamentos sobre governo, um vírus e a fome

    As Autoras

    Ana Clara da Fonseca Leitão Duran é pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação (NEPA) da UNICAMP e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva na área de concentração de Epidemiologia da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Também é pesquisadora associada do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (NUPENS/USP).

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Casos assintomáticos e a transmissão da COVID-19

    Os casos assintomáticos são um grande problema quando falamos em combater a pandemia do novo coronavírus, que já infectou quase 10 milhões e matou quase 500 mil pessoas. Aquelas pessoas que têm sido chamadas de “assintomáticas” são um complicador a mais, pois elas são as transmissoras silenciosas do vírus. Mesmo sem qualquer sintoma, ainda são capazes de transmiti-lo, apesar de haver uma grande dúvida ainda se todos os casos assintomáticos são capazes de fazer isso. 

    Um paciente assintomático é aquele que tem resultado positivo em testes de RT-qPCR para o SARS-CoV-2, mas sem demonstrar qualquer sintoma ou anormalidade em exames de imagens. Ou seja, uma pessoa que foi infectada pelo vírus, mas não ficou doente (não teve sintoma algum). Na maioria das vezes, por causa da falta de sintomas e pouca consciência de como se prevenir, essas pessoas não procuram ajuda médica e acabam sem nem saber que estão infectados, contribuindo assim para a rápida disseminação do vírus dentro da população.

    Mas assintomáticos realmente transmitem a doença?

    Recentemente, uma pesquisa de um grupo de pesquisadores chineses, publicada na revista Nature Medicine estudou a fundo uma série de características sobre 37 casos assintomáticos. Nesta pesquisa, foram avaliados diferentes fatores como: características demográficas, exames laboratoriais e radiológicos, propagação do vírus e quantidades de anticorpos específicos contra o vírus. 

    Os cientistas viram que o tempo médio que pacientes assintomáticos podem disseminar o vírus é de 19 dias, enquanto pacientes com a forma leve da doença tem esse período reduzido para 14 dias. Mas calma… O estudo deixa claro que ser capaz de disseminar o vírus não quer dizer que ele pode infectar eficientemente outra pessoa. Então, o que significa este resultado? Primeiramente, que é preciso mais estudos para compreender a capacidade de infecção do vírus nestas condições, pois simples detecção do material genético do vírus não quer dizer que ele está realmente presente no trato respiratório do organismo. 

    E os anticorpos?

    Além disso, uma outra conclusão da pesquisa foi em relação à quantidade de anticorpos IgG e IgM de pacientes com sintomas leves e pacientes assintomáticos. Recapitulando rapidamente o que explicamos no texto de anticorpos, em um primeiro contato com um patógeno, nós produzimos somente IgM. Já em um segundo contato OU um primeiro contato mais demorado e prolongado (como é o caso da infecção pelo SARS-CoV-2), nós passamos a produzir mais IgG do que IgM, pois esse anticorpo IgG é muito mais eficiente no combate ao vírus. 

    Focando agora nos resultados dessa pesquisa, os autores viram que durante a fase aguda da infecção (aquela em que podemos sentir os sintomas e contaminar outras pessoas), os pacientes sintomáticos possuem mais IgG do que pacientes assintomáticos. Já na fase convalescente (aquela que ocorre após o fim da infecção e que você não pode mais infectar alguém), os níveis de anticorpos e principalmente de IgG diminuem mais nos pacientes assintomáticos do que em pacientes com sintomas leves. Mas o que todos esses termos complicados significam afinal?

    Em outras palavras, tudo isso significa que a duração da imunidade contra o SARS-CoV-2 pode ser menor do que para outros coronavírus (algo que já foi abordado no texto sobre Cenários Pós-Pandemia). Exemplificando um pouco melhor: a imunidade contra outros coronavírus como o SARS-CoV-1 (causador do surto na China em 2002) e o MERS-CoV (causador do surto no Oriente Médio em 2012) dura por aproximadamente 1 ano1, 2, com alguns artigos dizendo que níveis de IgG se mantém por até dois anos para a SARS 3, 4, enquanto para a MERS a resposta por anticorpos pode durar até 34 meses 5. Contudo, como visto no artigo, os níveis de anticorpos neutralizantes para o SARS-CoV-2 já começam a baixar entre 2 e 3 meses após o fim da infecção, uma ideia que também está sendo proposta por vários outros estudos 6, 7.

    Nossa, o que isso pode significar para nós? Quer dizer que eu posso pegar COVID-19 de novo? 

    Calma! Não é bem assim. Como foi dito no texto sobre anticorpos, após uma infecção nós criamos células de memória que, entre outras coisas, passam a produzir anticorpos continuamente e que ajudam a combater de forma mais rápida e eficiente uma próxima infecção. Então a princípio, se você possui anticorpos contra o SARS-CoV-2 e se contaminar novamente, até onde sabemos atualmente, você não terá mais do que os sintomas leves da COVID-19.

    Contudo, não conhecemos ainda a duração dessa imunidade, assim não sabemos se essa doença funciona como a gripe comum (que todo ano nos infectamos ou tomamos a vacina) ou alguma outra doença que uma vez que nos infectamos não pegamos mais (como a catapora). E é justamente por causa dessas dúvidas, quanto a duração da imunidade contra o SARS-CoV-2, que precisamos considerar melhor sobre os “passaportes de imunidade” da COVID-19 8, 9. Para os que não conhecem o termo, seria uma espécie de documento afirmando se você está infectado ou não, ou se já se infectou e está recuperado. Alguns países como a China já estão usando esse tipo de estratégia para a flexibilização da quarentena. 

    Por causa de todas essas dúvidas, caso a duração da imunidade do SARS-CoV-2 seja realmente de curta duração, o uso dos passaportes de imunidade pode ser arriscado e acarretar em novas ondas de infecção. Dessa forma, será necessário pensar em outras estratégias de saúde pública como novas intervenções, novos períodos de isolamento social, higiene, isolamento de grupos de risco e testes em larga escala. 

    Mas, novamente, para respondermos essas dúvidas precisamos de mais pesquisas e testes, para realmente saber a duração da imunidade contra o vírus e a eficácia dos anticorpos gerados em casos assintomáticos e leves. Enquanto isso, o isolamento social (mesmo nos casos de pessoas já infectadas e recuperadas) continua sendo estritamente necessário! Não só nos protegemos como também protegemos todas as pessoas que estão em volta. 

    Para saber mais

    Artigo Original: Long, Q. X., Tang, X. J., Shi, Q. L., Li, Q., Deng, H. J., Yuan, J., … & Su, K. (2020). Clinical and immunological assessment of asymptomatic SARS-CoV-2 infections. Nature Medicine, 1-5.

    1. Cao, W. C., Liu, W., Zhang, P. H., Zhang, F. & Richardus, J. H. Disappearance of antibodies to SARS-associated coronavirus after recovery. N. Engl. J. Med. 357, 1162–1163 (2007).
    1. Choe, P. G. et al. MERS-CoV antibody responses 1 year after symptom onset, South Korea, 2015. Emerg. Infect. Dis. 23, 1079–1084 (2017).
    1. Guo, X., et al. Long-term persistence of IgG antibodies in SARS-CoV infected healthcare workers. Preprint at https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.02.12.20021386v1 (2020).
    1. Wu, L. P. et al. Duration of antibody responses after severe acute respiratory syndrome. Emerg. Infect. Dis. 13, 1562–1564 (2007).
    1. Payne, D. C. et al. Persistence of antibodies against middle east respiratory syndrome coronavirus. Emerg. Infect. Dis. 22, 1824–1826 (2016).
    1. Wang, X., et al. Neutralizing antibodies responses to SARS-CoV-2 in COVID-19 inpatients and convalescent patients. Preprint at https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.04.15.20065623v3 (2020).
    1. Kissler, S. M., Tedijanto, C., Goldstein, E., Grad, Y. H. & Lipsitch, M. Projecting the transmission dynamics of SARS-CoV-2 through the postpandemic period. Science 368, 860–868 (2020).
    1. Entrevista: o passaporte da imunidade do coronavírus é uma ideia perigosa. Acessado em: 25/06/2020. Disponível em: https://saude.abril.com.br/medicina/passaporte-da-imunidade-do-coronavirus-ideia-perigosa/
    1. Faz sentido pensar em um passaporte de imunidade para Covid-19? Acessado em: 25/06/2020. Disponível em: https://saude.abril.com.br/blog/com-a-palavra/faz-sentido-pensar-em-um-passaporte-de-imunidade-para-covid-19/

    Outras Leituras:

    Gao, Z., Xu, Y., Sun, C., Wang, X., Guo, Y., Qiu, S., & Ma, K. (2020). A systematic review of asymptomatic infections with COVID-19. Journal of Microbiology, Immunology and Infection.

    Este post foi escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Como a Economia Social e Solidária pode ser a solução para esses novos tempos pós pandemia!

    Com mais de 8 milhões de casos confirmados de Covid-19 no planeta [1], passar por essa pandemia acelerou discussões que não giram em torno apenas da saúde e a busca pela cura do vírus, mas promoveu também discussões que, até então, circulavam apenas em bolhas sociais [2]

    A pandemia deixou claro os problemas da falta de investimento nos sistemas de saúde e ciência, além da avalanche de informações duvidosas recebidas diariamente (a chamada infodemia).

    A pandemia também evidenciou as deficiências sociais e econômicas vigente que insiste em seguir o raciocínio da Revolução Industrial (1760 – 1840) – com suas devidas atualizações – mas, mantendo seu principal compromisso com o maior lucro em decorrência da menor despesa possível. 

    Vimos explodir nas mídias sociais e na imprensa demonstrações, protestos e cobranças de uma situação que não era igual para todos, principalmente, advindas  dessa nova geração [3] que veio a público mostrar como a Covid-19 e seus efeitos foram sentidos de forma muito diferente (e a custo de vidas) nas minorias, como: mulheres, povos indígenas, pessoas com deficiência, comunidades marginalizadas, jovens e pessoas com contratos de trabalho precários ou da economia informal, por exemplo.

    E ao identificar essas problemáticas evidenciadas pela pandemia, às Nações Unidas [4] montou uma Força-Tarefa Interinstitucional sobre Economia Social e Solidária (TFSSE) promovendo assim a discussão e a garantia da coordenação dos esforços internacionais, aumentando sua visibilidade (da Economia Social e Solidária – SSE) como solução na recuperação pós-crise do COVID-19.

    “A pandemia expôs muitas fragilidades em nossas economias e aprofundou as desigualdades existentes, destacando a necessidade de resiliência, inovação e cooperação. Os problemas pré-crise, incluindo a quantidade e qualidade insuficientes de emprego, as crescentes desigualdades, o aquecimento global e a migração, a insustentabilidade do atual sistema industrial de alimentos, vão piorar significativamente como conseqüência das medidas tomadas para combater a emergência sanitária”.

    Documento emitido pela TFSSE em 11/06/2020.

    Nós tivemos o privilégio de conversar com o Leandro Pereira Morais que é economista, Representante do Brasil no OIBESCOOP, Consultor Sênior da OIT, Membro Suplente da Força Tarefa das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária (E mais um tantão de coisas [5]) sobre como essa iniciativa funciona e como podemos contribuir para que o futuro pós – COVID-19 ofereça condições melhores a nossa sociedade.

    Objetivos de Desenvolvimento Sustentável [6]

    Como a Força Tarefa das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária contribui para a recuperação pós-crise do COVID-19?

    R: Esse trabalho ganhou muitas conexões com outras agências das Nações Unidas e foi se transversalizando os temas relacionados a Economia Social e Solidária com outras áreas como a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), nos assuntos relacionados a segurança alimentar, orgânicos, na geração de trabalho e renda para famílias vulneráveis, promovendo, por exemplo, o acesso a alimentação mínima diária, repercutindo, inclusive em melhores condições de saúde.

    Essa transversalização se formou no que chamamos de Força Tarefa das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária.

    É importante dizer, que essas discussões já eram desenvolvidas antes da pandemia, como: os objetivos do desenvolvimento sustentável – a agenda 20/30 e às ODS.

    A economia social e solidária é uma ferramenta importante para a formação e implementação das ODS e sua relação com seu ambiente/território onde essas ações são desenvolvidas. Do ponto de vista da conexão do econômico (gerar renda e trabalho), com o social (emancipação de vulneráveis, governança democrática participativa  nas políticas públicas) e com o ambiental (com práticas sustentáveis, agricultura familiar). Essa, então, se transforma na tríade do desenvolvimento econômico, sócio-político e ambiental.

    Assim, a partir desse momento de pandemia, voltamos os trabalhos e a articulação governamental internacional para a questão de enfrentamento da pandemia e suas consequências econômicas, sociais e ambientais.

    Muitas das experiências da economia solidária podem ser utilizadas para situações emergenciais, como a disponibilização de alimento, associações de costureiras para a confecção de máscaras, por exemplo. Assim, como às de médio e longo prazo, propondo revisões e reflexões do atual modelo de desenvolvimento que vivemos. Esse modelo bastante potente do ponto de vista material e da produção, de padrões tecnológicos avançados, a chamada 4ª revolução, mas que cobra um preço alto das relações de trabalho, de espaço, produção, de consumo, sociais e ambientais.

    Portanto, todo um mundo de discussões que já perfilava antes da pandemia e que agora intensifica essas tendências e exige soluções, coloca urgência na discussão.

    E como esse padrão econômico citado reflete na sociedade nesse momento de pandemia?

    R: Pois é, como estávamos conversando esse padrão econômico, produtivo e altamente potente do ponto de vista material e de produção, que nos permite conforto, enfrentamento de momentos adversos e de acesso, por exemplo, relógios que medem sua saúde, controle de temperatura do ambiente, viagens através do continente, comunicação em tempo real e com pessoas do outro lado do mundo, enfim… não podemos negar que é fantástica essas evoluções. Por outro lado, os frutos dessa produção material não são para todos. Nem todos são convidados nesta festa!

    Ainda há pouca facilidade de acesso a essas produções materiais e inovações tecnológicas, é para quem pode pagar.

    Essa facilidade é elitista e exclusiva! Ao mesmo tempo, percebemos nesse cenário de produção material e tecnológica o aumento na concentração de renda, exclusão, desigualdade e miséria.

    A pandemia veio para desnudar de forma intensa essa realidade e não é um problema do Brasil mas no mundo todo. O sistema atual é incoerente, nós temos uma produção mundial de alimentos de 10 bilhões e um planeta com 7 bilhões, como mais de 1 bilhão e meio de pessoas passa fome diariamente? 

    Então, do ponto de vista de médio e longo prazo, talvez essa pandemia nos dê a oportunidade de rever esse padrão econômico vigente, do lucro pelo lucro. E esse não é papo de esquerda ou direita mas de reflexão e discussão para aqueles que têm o mínimo de sensatez.

    Mas, isso seria uma mudança profunda, não só de padrões mas de consciência, certo?

    Sim, essa é uma mudança estrutural, de conceitos, de sentimentos. Não é simples, mas é preciso que às pessoas pensem sobre e essa discussão tem várias facetas, das relações de consumo, trabalho, etc.

    Nas relações de consumo, já vemos mudanças. As pessoas estão repensando e tomando atitudes de mudança.

    Primeiro que vivemos em um momento que as pessoas não tem como sair de casa frequentemente, devido a possibilidade de contaminação da Covid-19 e a incerteza de ter condições financeiras e de emprego, que já era um problema antes da pandemia. 

    Hoje às pessoas repensam sua necessidade de consumo. E isso gera um olhar crítico para a compra.

    A economia, na verdade, foi se distanciando da realidade da sociedade e isso aparece nesse momento de adversidade que estamos passando. Esse diálogo que tem aparecido sobre termos que escolher entre a vida e o trabalho não é justa, é uma equação obscena, é uma guerra de narrativas e isso é muito sério!

    A base originária da estrutura da ciência econômica precisa ser revista!

    Essa ciência é organizada pelos nexos de mercado, é essa ideia do “homem econômico”, ou seja, uma caricatura tosca que se move por ideais maximizantes, portanto, o produtor maximiza o lucro, em decorrência do prejuízo ao meio ambiente, precarização o trabalho e até a aceitação do trabalho escravo.

    Já pelo ponto de vista do consumidor é a maximização do conforto, bem estar, ou seja, quando sua renda, que é limitada, maximiza o seu consumo em demandas ilimitadas. 

    Dessa forma, a economia vem se afastando da realidade e essa pandemia só desnudou essa questão. Se por um lado, se tem pessoas que podem pagar pelo acesso a saúde, alimentação e ficar em casa, por outro, temos pessoas que não tem acesso a água, o que dirá álcool em gel e no meio pessoas que lutam pendendo de um lado e do outro. 

    Então, já vivíamos uma crise estruturante e o “corona” pega carona nessa crise e foi sendo escancarado pelas minorias nas mídias sociais ao mostrar o empregado que pegou o vírus da patrão e morreu e a patrão que teve acesso a condições de saúde e alimentação digna e sobreviveu.

    E quais são os direcionamentos práticos que a economia social e solidária recomenda para que essa ideia de produção e consumo maximizante mude? 

    É importante deixar bem claro que é um processo, não é uma receita de bolo ou mágica! Mas ações individuais, apesar de serem de menor alcance, já ajudam muito a promover mudanças:

    1- Fazer a comunicação e sugestões de assunto na imprensa, sites de comunicação, compartilhar conteúdo em suas redes sociais, por exemplo, sempre de forma não agressiva mas que sensibilize e informe às pessoas sobre a economia solidária, seus princípios e discussões. 

    2- Discutir e pensar sobre o assunto – como nós fazemos aqui no curso de Economia na Unesp, colocando em discussão os conceitos da economia solidária e pensar em um mundo diferente desses padrões que estamos vivendo, como mudanças na relação do trabalho, o não haver emprego para todos e seus efeitos.

    3- Participar, financiar e divulgar ações coletivas (trabalho, social e ambiental) – Dar visibilidade para grupos de minorias e suas reivindicações, dar preferência para atividades de pequenos comerciantes, empresários, artesãos, trabalhadores informais. Não consumir produtos que vem de empresas que degradam o meio ambiente ou funcionam em situações degradantes de trabalho.

    4- Escolher governante e exigir deles após às eleições que implementem políticas públicas para que o pequeno negócio tenha melhores chances de sobrevivência, acessos a créditos e impostos justos, a relação que vivemos hoje é completamente desigual para aquele que concorre com grandes indústrias. No Brasil, a micro e pequena empresa gera 80% da capacidade de renda do país, isso sem condições mínimas, é preciso que haja políticas mais favoráveis.

    Entende-se que o Consumo Consciente não é só um ato econômico mas político também, quando eu consumo de uma marca que sabidamente precariza o trabalho, não paga impostos ou degrada o meio ambiente, eu estou sendo conivente com o processo. Claro que o consumo dos pequenos ainda é mais caro, produtos orgânicos, por exemplo, mas ao investir comprando desse pequeno produtor geramos impactos macro na sociedade.

    A ideia que vimos aumentando durante a pandemia como “compre do pequeno” ou “compre no seu bairro” sempre foi uma bandeira da economia social e solidária. E essa é uma consciência que começou aumentar não só com as pessoas comuns, mas vemos empresários e empresas também começando a mudar sua atitude.

    E como a divulgação científica pode contribuir com essa mudança estrutural?

    A ciência em si tem um papel fundamental nisso, fazendo ciência em prol da maioria. 

    O cientista precisa colocar seu esforço em, além de desenvolver aquela área e realizar descobertas, para que sua pesquisa tenha uma ação social e não fique apenas no seu meio, que tenha uma utilidade pública, social e que não privilegie o sistema econômico e de mercado vigente. 

    Um exemplo, é essa busca pela vacina para o Covid-19. Será que essa vacina terá um direcionamento de bem de mercado e o acesso será restrito a quem possa pagar por ela? Ou terá um direcionamento social que independentemente da condição financeira, cor, credo, opção sexual, por exemplo, possa ter acesso a ela?

    Acho que todo cientista tem esse papel de rever a ciência de forma crítica, porque ela não está desconectada desse padrão que discutimos aqui, a disponibilização das informações sobre ciência, inclusive.

    A ciência, sua evolução e suas descobertas também foram disponibilizadas pela lógica de mercado, ou seja, para quem podia pagar. É claro, que existe o problema de financiamento, mas o que é possível se fazer, como cientista, é pensar na ciência como coletivo e disponibilizar seus frutos para que todos tenham acesso, para o bem comum.

    Por fim, nossa ação aqui na Força tarefa é feita, por sua maioria de professores/pesquisadores, de todo os lugares do mundo, dedicando nosso tempo em orientar, construir e reunir uma literatura e arsenal conceitual, teórico e empírico para contribuir para a implementação da Economia Social e Solidária nos governos mundiais, essa é uma das atividades em prol do bem comum que viemos explanando aqui.

    Dica de evento:

    O Fórum Político de Alto Nível, plataforma central das Nações Unidas para o acompanhamento e a revisão da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, prevê a participação plena e efetiva de todos os Estados Membros das Nações Unidas e Estados membros de organizações especializadas.

    A reunião do fórum político de alto nível sobre desenvolvimento sustentável em 2020 será realizada de terça – feira, 7 de julho a quinta-feira, 16 de julho de 2020 , sob o apoio do Conselho Econômico e Social. Isso incluirá a reunião ministerial de três dias do fórum, de 14 de julho a 16 de julho de 2020.

    Acompanhar o evento: ttps://sustainabledevelopment.un.org/hlpf/2020

    Para saber mais:

    [1] Para conferir os dados atualizados da Covid – https://covid19.who.int/ e https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51718755

    [2] “O fenômeno de Bolhas Sociais é conhecido em diversas áreas e pesquisas estão sendo feitas para analisar seu impacto na sociedade. Se caracteriza pela limitação dos indivíduos ao acesso a informações que tem afinidade e a falta de acesso a informações divergentes ou diferentes das de seu interesse.”

    EVANGELISTA, Bruno; BATISTA, Gabriela; DE OLIVEIRA, Jaqueline Faria. Detecção Automática de Bolhas Sociais no Twitter em uma Rede de Usuários de Tecnologia. In: Anais do VII Brazilian Workshop on Social Network Analysis and Mining. SBC, 2018.

    [3] Falamos aqui das gerações Y e Z: A geração, conhecida como Y – nascidos entre 1980 a 1995 – presenciou a plena expansão das inovações tecnológicas, o nascimento da internet e o início da mudança na comunicação e na era da informação, estes foram criados com a preocupação pela segurança e pelo excesso de estímulos, suas ambições estão na prosperidade econômica, ou seja, é movida por resultados, desafios e interesses de ascensão rápida.

    Já a geração Z – nascidos entre 1996 a 2000 – nasce em plena era da informação e da tecnologia na palma da mão, essa é uma geração conectada e informatizada 100% do seu tempo, prefere o consumo rápido e facilitado porém com pouca interação social presencial, uma vez que a conectividade supri suas necessidades emocionais. Essa geração não procura o acúmulo de bens, mas valoriza o dinheiro para que este sustente seu padrão e qualidade de vida, buscando, muitas vezes um perfil empreendedor. 

    Baby Boomer: https://pt.wikipedia.org/wiki/Baby_boomer

    Geração X: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gera%C3%A7%C3%A3o_X

    Geração Y: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gera%C3%A7%C3%A3o_Y

    Geração Z: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gera%C3%A7%C3%A3o_Z

    [4] Para a lista completa de membros e observadores do UNTFSSE, visite: http://unsse.org/ – Para mais informações, entre em contato com: Presidente: Vic Van Vuuren (OIT), vanvuuren@ilo.org; Secretaria Técnica: Valentina Verze (OIT), verze@ilo.org

    Ainda mais informações sobre o assunto:

    Sobre a Divisão de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

    Textos originais sobre a conscientização e contribuição para o corpo de conhecimentos sobre SSE como um meio de implementação dos ODS

    ESS Collective Brain é um espaço interativo virtual que visa enriquecer as atividades da OIT em  Economia Social e Solidária (ESS) – http://ssecollectivebrain.net/?lang=es

    Observatório Ibero-Americano de Emprego e Economia Social e Cooperativa

    [5] Leandro Pereira Morais. Professor Doutor e Pesquisador do Departamento de Economia e Coordenador do Núcleo de Extensão e Pesquisa em Economia Solidária, Criativo e Cidadania (NEPESC) da UNESP – ARARAQUARA, Membro Titular do Conselho Científico Internacional do CIRIEC, Representante do Brasil no OIBESCOOP, Consultor Sênior da OIT nas áreas de Economia Social e Solidária e Cooperação Sul-Sul, Membro Suplente da Força Tarefa das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária. Áreas de Interesse em Pesquisa: Políticas Públicas de Economia Social e Solidária, ODS, Cooperação Sul-Sul e Ecossistema Empreendedor para Economia Social e Solidária

    Ainda mais um pouco sobre o Leandro Morais: https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/38780/leandro-pereira-morais/ e http://lattes.cnpq.br/8472617785156618

    [6] Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) (ou Objetivos Globais para o Desenvolvimento Sustentável) são uma coleção de 17 metas globais, estabelecidas pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Os ODS são parte da Resolução 70/1 da Assembleia Geral das Nações Unidas: “Transformando o nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, que depois foi encurtado para Agenda 2030. As metas são amplas e interdependentes, mas cada uma tem uma lista separada de metas a serem alcançadas. Atingir todos os 169 alvos indicaria a realização de todos os 17 objetivos. Os ODS abrangem questões de desenvolvimento social e econômico, incluindo pobreza, fome, saúde, educação, aquecimento global, igualdade de gênero, água, saneamento, energia, urbanização, meio ambiente e justiça social. https://pt.wikipedia.org/wiki/Objetivos_de_Desenvolvimento_Sustent%C3%A1vel

    Este post foi publicado originalmente no blog Mindflow

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Carlos Nobre alerta que além da pandemia, é preciso conter o aquecimento global


    Por Danila Gabriela Bertin, Felipe Ferreira Naves e Vinícius Nunes Alves

    A colaboração científica global é essencial para vencermos a crise do novo coronavírus, mas também para uma reconstrução sustentável da economia pós-Covid-19

    Quem nega o aquecimento global, 
    vai ver esses efeitos acontecendo daqui há 20 ou 30 anos.
    Quem vai ser afetado, 
    não são as mesmas pessoas que estão negando agora.
    [Átila Iamarino no programa Roda Viva da TV Cultura em 30 de março] 
    

    Nunca antes, na sociedade moderna, houve uma pandemia com esta magnitude. Ao mesmo tempo, há uma união global da ciência em prol de uma solução comum, em proporções nunca vistas antes. Mas Carlos Nobre, um dos maiores cientistas do clima, defende que a ciência se una não só durante a crise de Covid-19, mas também após a mesma para auxiliar a economia a se reconstruir de forma sustentável no mundo.

    No webinar “Futuro Pós Covid-19” promovido pelos Líderes Climáticos da Juventude (YCL, sigla em inglês) em 05 de maio, o climatologista de destaque discutiu meios para uma reconstrução sustentável da economia pós Covid-19. “O ideal é uma colaboração, não é um país brigando com o outro, escondendo ciência, tentando usar a ciência com enorme poder tecnológico e econômico”, ressalta Carlos Nobre, que também apoia essa postura para as mudanças climáticas, outro problema global que as sociedades devem enfrentar.

    Carlos Nobre é um cientista brasileiro de impacto internacional. Atualmente é pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP e Presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, entre outras titulações e funções. Nobre alerta sobre os riscos do aquecimento global formado nas últimas décadas para a humanidade, caso não frearmos as emissões de gases de efeito estufa. A destruição e poluição do meio ambiente podem tornar a manutenção da vida na Terra insustentável para os seres humanos, assim como para 40 a 50% das espécies do planeta.

    Imagem de chamada do Youth Climate Leaders (Líderes Climáticos da Juventude) no Facebook para o webinar com Carlos Nobre.


    Resistência e retomada econômica sustentável

    Tanto na crise de Covid-19 quanto na crise climática há certa resistência da sociedade em mudar o estilo de vida, principalmente pelo impacto na economia. Carlos Nobre fez questão de reconhecer que “a recuperação econômica não é um coelho que sai da cartola do mágico”. É inevitável que grande parte dos recursos para isso saia do bolso do cidadão, assim como aconteceu nas outras recessões. Portanto, é imprescindível o posicionamento da sociedade a favor das soluções sustentáveis e economicamente viáveis, que evitem os limites planetários.

    A energia de fontes renováveis, como a solar e eólica, estão entre as menos custosas. No entanto, os subsídios para a indústria fóssil, a maior responsável pela crise climática, ainda é dez vezes maior do que para a energia renovável. Logo, é urgente a inversão desta prioridade. Carlos Nobre ainda realçou a necessidade da transição para uma agricultura regenerativa, baseada em sistemas agroflorestais, que favoreça a biodiversidade dos países tropicais e os serviços ecossistêmicos.

    “A floresta em pé tem um valor econômico superior para a sociedade em geral do que a floresta derrubada e substituída por pastagem de pecuária ou mesmo grãos. Tanto a ciência quanto o conhecimento tradicional podem valorizar, inclusive culturalmente, uma floresta em pé por milhares de anos”, conta Carlos. Nesse sentido, o projeto Amazônia 4.0 (em referência à quarta revolução industrial) é um exemplo de sucesso na parceria entre ciência, tecnologia e conhecimento tradicional de povos amazônicos que busca o desenvolvimento de uma economia que prioriza a floresta em pé.

    Outra iniciativa recente que tem potencial para alavancar a economia de forma sustentável após a pandemia é a do Fórum Econômico Mundial (2020) que propõe plantar um trilhão de árvores de forma planejada. Isso, além de ser poderoso no combate às mudanças climáticas, pode ser também um instrumento valioso na recuperação econômica, uma vez que gerará empregos e benefícios para a agricultura e qualidade ecológica urbana.


    Crise climática e pandemias no futuro

    As hipóteses mais aceitas para o surgimento do novo coronavírus, o Sars-Cov-2, se relacionam ao tráfico de animais silvestres, ao seu manuseio e consumo. São os famosos mercados molhados. E por que eles trazem risco de epidemias? Os animais silvestres, há milhões de anos, estão em equilíbrio com seu ambiente. Ambiente este que é rico em diversos microrganismos e, quando perturbado, pode desequilibrar o tamanho das populações de microrganismos e de seus vetores (animais que o transportam).

    A savanização da Amazônia também traz consigo riscos expressivos de gerar doenças com potencial pandêmico. Com as florestas tropicais secando e se transformando em fisionomias savânicas, a diversidade de microrganismos é desequilibrada e o fluxo desses muda, ficando mais expostos para a população humana.

    Muitos desses microrganismos podem trazer doenças zoonóticas, se em contato direto com humanos. A Floresta Amazônica, além de sofrer problemas ambientais como desmatamento, queimada e grilagem de terras, já carrega potenciais endemias. “Se perguntarem assim: Poxa, a Amazônia nunca gerou até hoje uma pandemia, né? Eu responderia: pura sorte porque elementos de geração de epidemias e pandemias estão na Amazônia. Existe a leishmaniose que é endêmica. Existem umas hantaviroses que estão se tornando agora um pouco mais disseminadas. É um lugar que tem a maior diversidade de microrganismos do mundo”, destaca o cientista.


    Crise climática e injustiça social

    A desigualdade social se torna cada vez mais frequente, em ritmo acelerado nos países em desenvolvimento. As populações com menor capacidade de resiliência aos impactos das mudanças climáticas são justamente as mais vulneráveis e as que menos contribuem para a instalação desta crise. São países africanos, do sul da Ásia e América Latina. Mesmo diante desse contexto, “nós ainda não tivemos a habilidade de implementar um mecanismo de compensação de justiça social”, pondera Carlos Nobre com sua franqueza característica.

    O Fundo Verde do Clima surgiu em 2010, na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, com o objetivo de financiar projetos voltados ao enfrentamento da crise climática nos países mais vulneráveis. Porém, o Fundo se encontra com baixa efetividade de atuação contra a injustiça social, assim como para nos direcionar a trajetórias de menor risco.

    Transações de caráter econômico não sustentáveis ainda estão recebendo prioridade, e um exemplo disso é a crítica iniciativa Belt and Rode da China que pretende vender termelétricas a carvão para a África. Ironicamente, é esse continente que possui o maior potencial de geração de energia solar do mundo com o Deserto do Saara.

    Isso vai na contramão do Acordo de Paris (2015) realizado pelas Nações Unidas que considera “as mudanças climáticas como uma ameaça urgente e potencialmente irreversível para as sociedades humanas e para o planeta e, portanto, requer a mais ampla cooperação possível de todos os países e sua participação em uma resposta internacional eficaz e apropriada, com vista a acelerar a redução das emissões globais de gases de efeito estufa”. Nesse sentido, Carlos Nobre ainda complementa que “se nós não conseguirmos atingir os objetivos do acordo de Paris, nós vamos criar um mundo muito mais impensavelmente injusto do que nós já temos hoje.”

    Poluição atmosférica em cidades – Imagem de Pixabay


    O papel da educação e dos jovens com as mudanças climáticas

    Quando lidamos com crises sanitárias, como a Covid-19, a percepção dos impactos é maior, pois estamos vivenciando as consequências desse problema rapidamente. Mas quando tratamos das graduais mudanças climáticas a percepção de risco é menor. Para mudar essa percepção, não basta só a informação científica, mas precisa essencialmente de uma base educacional sólida que valorize o processo do conhecimento científico sobre problemas ambientais e outros que afetam a sociedade como um todo.

    Os sistemas educacionais formais se concentram na juventude e colocam os jovens como protagonistas iminentes da sociedade. Assim, é a educação de qualidade que pode esclarecer a percepção de risco das mudanças climáticas, tornando a sustentabilidade um valor humano e de cidadania.

    Carlos Nobre enfatizou que os “bons ventos” estão mais nas mãos dos jovens, pois serão os consumidores, empreendedores e políticos de uma sociedade futura. Segundo o pesquisador, a organização de jovens líderes climáticos deste webinar é um emblema disso. São jovens com esse perfil que pensam em medidas inovadoras e em ferramentas criativas da quarta revolução industrial para gerar oportunidades econômicas sustentáveis. A responsabilidade e a oportunidade parecem ainda maiores para as gerações jovens que crescem em países com dimensões continentais e com biodiversidade imensa como o Brasil.


    Danila Gabriela Bertin é bacharel em Ciências Biológicas pelo ICENP/UFU.

    Felipe Ferreira Naves é bacharel em Ciências Biológicas e mestrando em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais pela UFU.

    Vinícius Nunes Alves é licenciado e bacharel em Ciências Biológicas pelo IBB/UNESP, mestre em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais pela UFU. Atualmente é estudante de especialização em Jornalismo Científico pelo Labjor/UNICAMP e colunista do jornal Notícias Botucatu.

    Este post foi escrito originalmente no blog Natureza Crítica

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Antibiótico contra vírus? O curioso caso da azitromicina contra a COVID-19

    Diversas combinações de medicamentos estão compondo o chamado “Kit COVID-19”. Presença quase constante neles, um antimicrobiano utilizado para infeções bacterianas chama atenção: a azitromicina… o que ela está fazendo ali? Existe alguma base científica para essa indicação? Quais seriam possíveis consequências dessa medicação?

    A azitromicina é um antimicrobiano bacteriostático, da classe dos macrolídeos, que atua impedindo a síntese de proteínas nas bactérias. Possui amplo uso na prática clínica, sendo escolhida para o tratamento de infecções do trato respiratório, da pele e de tecidos moles causadas por diversas bactérias Gram-positivas e espécies bacterianas atípicas.

    A gravidade e a mortalidade de infecções virais do sistema respiratório (e aqui a gente também está falando da COVID-19) são associadas a uma resposta inflamatória excessiva caracterizada por uma produção excessiva de citocinas (você pode ter ouvido por aí sobre a tal “tempestade de citocinas).[1]

    E onde esses dois pontos (azitromicina e COVID-19) se encontram?

    De onde surgiu a ideia de usar um antibacteriano no tratamento de uma infecção viral causada pelo SARS-CoV-2?

    Primeiro de tudo, já tínhamos evidências in vitro[2] (que fique bem claro!) de que a azitromicina pode prevenir a replicação de vírus como o influenzavírus humano H1N1 e o zikavírus. Agora, novos estudos também in vitro demonstraram que a azitromicina aumenta o pH das células hospedeiras, o que pode dificultar os processos de entrada, replicação e dispersão do SARS-CoV-2. Além disso, esse antimicrobiano poderia reduzir os níveis da enzima furina das células hospedeiras, o que poderia dificultar o processo de entrada do vírus na célula.

    Ok… mas e em relação à imunologia… será que temos alguma hipótese para sustentar o uso da azitromicina?

    Os macrolídeos (a azitromicinaé dessa classe, falei ali em cima, lembra?) têm demonstrado efeitos imunomodulatórios e anti-inflamatórios, ao atenuarem a produção de citocinas anti-inflamatórias e promoverem a produção de anticorpos (imunoglobulinas). E isso poderia ajudar na redução das complicações decorrentes do estado pró-inflamatório induzido pela infecção pelo SARS-Cov-2.

    Muitas evidências… in vitro… mas elas são o bastante para que a azitromicina seja liberada para ser fornecida como profilaxia ou como tratamento para indivíduos contaminados? Se você tem acompanhado a evolução do uso da cloroquina/hidroxicloroquina deve saber que não é bem assim… É muito importante avaliarmos a eficácia do medicamento in vivo e de forma controlada no contexto da pandemia

    E, nesse contexto, é de grande relevância consideramos, também, os efeitos colaterais do seu uso: distúrbios gastrintestinais, aumento do intervalo QT (observado em eletrocardiograma, indicando alterações cardíacas), problemas para pacientes com problemas hepáticos e renais.

    Ainda carecemos de estudos in vivo para avaliarmos adequadamente a droga. Os estudos que estão disponíveis ainda têm muitos problemas (grupos pequenos, seleção enviesada de pacientes e tratamentos, dentre outros…).

    A ciência é feita a partir do acúmulo de evidências e estudos são validados pelos pesquisadores pela acurácia dos métodos utilizados no estudo. A validação pelos pares acontece pois metodologias adequadas (e aqui incluímos: uso de placebo, testes duplo cego, estudos multicêntricos, quantidade de amostras/pacientes, análise de resultados, dentre outros vários pontos) geram resultados confiáveis!

    Concluindo…

    Ainda não temos tratamentos comprovadamente eficazes para a COVID-19, e há uma busca mundial para o reposicionamento de fármacos já utilizados. Azitromicina está sendo utilizada em todo mundo de forma off-label[3], mas ainda não temos evidências que suportem o uso desse antimicrobiano num contexto de COVID-19 sem coinfecção bacteriana associada. Para a azitromicina, o caminho a ser seguido é, ou pelo menos deveria ser, o mesmo do que aconteceu com a cloroquina: antes de confiar em relatos milagrosos e anedóticos, é necessária a realização de estudos clínicos controlados antes de sair declarando que a droga é mais uma maravilha do mundo. As evidências são limitadas e enviesadas e estudos sistemáticos e controlados poderão mostrar se a droga tem efeito quando utilizada sozinha, se tem efeito sinérgico quando associado a outro medicamento, ou se não tem efeito. Além dos efeitos colaterais que também podem ser aumentado quando em associação com outras drogas.

    Todos queremos um medicamento eficaz contra o SARS-Cov-2, mas que seja identificado pela medicina baseada em evidências!

    No próximo post vamos falar um pouquinho sobre resistência bacteriana no contexto da COVID-19. Vamos falar um pouquinho dos mecanismos e dos riscos envolvidos no uso indiscriminado de antibióticos.

    NOTAS:

    [1]Citocinas e tempestade de citocinas. Citocinas são moléculas reguladoras produzidas por diversas células do sistema imune. Elas atuam modulando nossa resposta imunológica, podendo ser citocinas inflamatórias (p.ex.: TNF, IL-1, IL-2, IL-6, IL-7) ou antiinflamatórias (p.ex.: IL-4, IL-10, IL-13, TGFβ). Na tempestade de citocinas, há uma liberação excessiva das citocinas pró-inflamatórias que resultam no recrutamento de muitas células inflamatórias. O resultado disso são danos ao tecido local. Para mais, consulte o Blog Microbiologando da UFRGS.

    [2] Experimentos in vitro e in vivo: Os experimentos in vitro são aqueles realizados nas primeiras etapas de um estudo. Eles são realizados sem a participação de seres vivos. Geralmente são utilizadas células cultivadas em laboratório ou mesmo órgãos de animais abatidos (p.ex.: córneas de bovinos obtidas de abatedouros). Em etapas mais avançadas, quando se tem evidências da segurança da substância, os experimentos são realizados com seres vivos. Num primeiro momento geralmente utiliza-se invertebrados, peixes ou roedores, para, num momento posterior, utiliza-se humanos. Os ensaios in vitro e in vivo com animais não-humanos são chamados de estudos pré-clinicos. Os ensaios com seres humanos são os ensaios clínicos. Antes de serem iniciados, os ensaios com animais vertebrados devem ser aprovados pela CEUA (Comissão de Ética no Uso de Animais) e os ensaios clínicos  devem ser aprovados pelo CEP (Comitê de Ética em Pesquisa).

    [3] Uso off-label de medicamentos: Todos os medicamentos registrados no Brasil recebem aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para uma ou mais indicações que passam a constar na sua bula. Acontece, porém, que essas podem não ser as únicas indicações possíveis, ou seja: o medicamento pode continuar sendo estudado para outros usos. Quando sua eficácia é comprovada para essas novas indicações, a Anvisa as inclui na bula. A opção de um médico em tratar seus pacientes com um medicamento em uma situação não prescrita na bula (seja por analogia de mecanismo de ação, base fisiopatológica das doenças) é chamada de “uso off-label”. O uso off label de um medicamento é feito por conta e risco do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico, mas em grande parte das vezes trata-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado. Para mais informações, consulte o site da Anvisa.

    Para esse post foram consultadas as seguintes referências:

    • Choudhary, R; Sharma, AK. “Potential use of hydroxychloroquine, ivermectin and azithromycin drugs in fighting COVID-19: trends, scope and relevance.” New microbes and new infections, vol. 35 100684. 22 Apr. 2020, doi:10.1016/j.nmni.2020.100684
    • Gbinigie, K; Frie, K. “Should azithromycin be used to treat COVID-19? A rapid review.” BJGP open vol. 4,2 bjgpopen20X101094. 23 Jun. 2020, doi:10.3399/bjgpopen20X101094
    • Pani, A et al. “Macrolides and viral infections: focus on azithromycin in COVID-19 pathology.” International journal of antimicrobial agents, 106053. 10 Jun. 2020, doi:10.1016/j.ijantimicag.2020.106053

    Aproveite e nos siga no Twitter, no Instagram e no Facebook! E se for fazer comprinhas na Amazon, use nosso link!

    Esse post foi originalmente escrito pelo blog Meio de Cultura

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • É DEXA!!

    Texto de autoria da Olguitcha na Pands publicado no Facebook no perfil pessoal dela, com a devida autorização e convite do blogs Tubo de Ensaio.

    Oi, pessoal. Olguitcha na pands aqui. Senta que lá vem história da DEXA.

    Então, como vocês sabem, eu não tenho limites. Vou começar dizendo que a Oxford mais uma vez está sambando na cara das universidades de vocês sabem onde… [a piada é interna, mas eu to rindo]. Mas isso é para outro post. hihihi

    Os dados obtidos para a dexametasona são bem-vindos sim, esse grande estudo demonstrou que a dexametasona melhora a sobrevida de pacientes mais graves da COVID-19 que necessitam de ventilação. No entanto, o estudo ainda não foi publicado ou submetido ao escrutínio científico.

    Isso não impede a polvorosa do galerê, e os trocentos posts que já devem ter saído… Êêêê todos ama ciência agoraaaaaaa. SEUS CARA DE CONCHA.

    https://giphy.com/gifs/w5FTwwiweGqDm

    Desde fevereiro/março, uma iniciativa de ensaios clínicos denominada RECOVERY* está avaliando o potencial uso de um monte de medicamentos para COVID-19 (RECOVERY: Randomised Evaluation of COVid-19 thERapY; é cafona, sim, o que você espera de um monte de nerds recebendo atenção…rsrs). Eles estão revisitando drogas já conhecidas dada a emergência da pandemia, além de intervenções médicas outras. A rede RECOVERY conta com 175 hospitais da rede pública do Reino Unido (NHS-UK), logo tudo mais bem integrado do que a maioria dos trials que vemos.

    Dizem os responsáveis pelo RECOVERY que mais de 10 mil pacientes já participaram de ensaios por lá.

    Digamos com bondade no coração então que tudo isso sugere maior consistência entre os dados observados e, provavelmente, dados melhor/mais bem coletados para a análise. Digo isso porque quem manja de estatística na área clínica sabe, você faz o que quiser com um monte de números… mas se a fonte deles não é padronizada e confiável, esqueça, é xaxixo. Pode ser um xaxixo lindo, mas na beira do leito, não dá pra brincar e dizer que foi uma escolha difícil com ente amado alheio. 😉 Também não adianta ter um número infinito de amostras, para superar a variabilidade natural entre pacientes, se todas foram adquiridas de qualquer jeito e sem coerência.

    No final das contas, as interpretações na ciência dependem e se baseiam em ética e confiabilidade metodológica (percebam que essa é uma crítica razoável que posso fazer a estudos multicêntricos independentes, como aquele que foi retratado na The Lancet, que ganham em randomicidade pelo grande número de amostras/pacientes, mas perdem em robustez e padronização.

    É uma faca de dois legumes, dependendo da droga ou pergunta a ser testada, eu poderia dizer que chega a ser um universo amostral viciado o do RECOVERY, ou seja, um estudo bem britânico, imagine vários Príncipes Charles tomando chá com sorinho no braço… hahaha zoei. A tendência é o resultado ser ótimo para pessoas da família real. Sacaram? Mas não sejamos assim chatonildos e pessimistas, a população de UK que usa o NHS é mais variada, se formos pensar em diversidade, UK toda não é royal assim faz muito tempo.

    Enfim, no RECOVERY não só a dexametasona tem sido avaliada, mas outras drogas como antivirais usados no HIV e anticorpos provenientes do plasma de pacientes convalescentes também, incluindo a aminoquinolona que mais desperta paixões no planeta -hidroxicloroquina – (a qual já foi descartada por esse grupo de Oxford por não ter mostrado benefício *oh shoot*).

    Pois bem, vamos à dexametasona:

    A dexametasona é um antiinflamatório esteroidal bem conhecido, com diversas aplicações, dosagens e formulações farmacêuticas (comprimido, injetável, pomada e o escambau), o que pode mudar completamente sua efetividade e propósito.

    A DEXA (para os íntimos) é vastamente utilizada em inúmeras patologias e intervenções medicamentosas combinadas. A DEXA é mais comumente usada para tratar condições como inflamação, alergias graves, problemas adrenais, artrite, asma, problemas de sangue ou medula óssea, problemas renais, condições da pele e crises de esclerose múltipla.

    Barata e de fácil produção. Espero que ainda a DEXA só possa ser aviada com receita médica e não por live presidencial. Portanto, tem efeitos colaterais que muitos de vocês já talvez até tenham experimentado… vou listar uns que eu lembro de cabeça: retenção de líquidos (danos na circulação e rins), disfunção dos níveis glicêmicos tendendo a hiperglicemia (diabetes), fraqueza muscular, fragilidade de vasos sanguíneos, hipersensibilidade, refluxo gástrico, dificuldade de cicatrização… e tem mais uma cacetada se for uso bem crônico, até distúrbios psicológicos e catarata, e outros que nem citei aqui porque eu tô com preguiça real e oficial.

    E tem um que eu quero destacar: DEXA é imunossupressor, ou seja, deprime o sistema imunológico, reduz nossas defesas. Tem seus vieses se pensarmos em pessoas hospitalizadas utilizando, uma vez que diminuir a inflamação é o objetivo para evitar o progresso do quadro clínico da COVID-19, contudo a DEXA pode tornar o paciente mais suscetível a outras infecções secundárias. Todos sabem que um dos maiores problemas em hospitais são as mortes por infecções hospitalares secundárias à causa que levou o paciente à internação. E tascar um monte de antimicrobianos espartanos no paciente não ajuda muito não…

    Ou seja, DEXA não é bala Xaxá. NADA DE SAIR COMPRANDO ANTIINFLAMATORIO ESTEROIDAL PARA POR NA RECEITA DE BROWNIE. Caray. Já tô braba aqui.

    Pois bem, vamos aos resultados obtidos no ensaio com doses consideradas baixas de dexametasona no RECOVERY.

    Dois grupos de pacientes foram randomizados, ou seja, aleatoriamente selecionados e comparados:

    1 – 2104 pacientes com um tratamento convencional paliativo de COVID-19 com adição de dexametasona 6 mg uma vez por dia (por via oral ou por injeção intravenosa) por 10 dias.

    2- 4321 pacientes apenas para os cuidados habituais.

    Entre os pacientes que receberam os cuidados usuais isoladamente (grupo 2 sem droga), a mortalidade em 28 dias foi mais alta naqueles que necessitaram de ventilação (41%), intermediária nos pacientes que precisaram apenas de oxigênio (25%) e menor entre aqueles que não necessitaram de intervenção respiratória (13%).

    A DEXA reduziu aproximadamente 33% das mortes nos pacientes ventilados (razão de taxa 0,65 [intervalo de confiança de 95% 0,48 a 0,88]; p = 0,0003) e reduziu um quinto em outros pacientes recebendo apenas oxigênio (0,80 [0,67 a 0,96]; p = 0,0021). Não houve benefício entre os pacientes que não necessitaram de suporte respiratório (1,22 [0,86 a 1,75]; p = 0,14).

    Em geral, no grupo 1 com droga, os pacientes que receberam a DEXA, houve redução de 17% a taxa de mortalidade em 28 dias (0,83 [0,74 a 0,92]; P = 0,0007), com uma tendência significativamente alta mostrando maior benefício entre os pacientes que necessitam de ventilação (teste para tendência p <0,001).

    https://giphy.com/gifs/memecandy-ZECL3vwoHHkMrvVEca

    📍📍📍 Os autores do ensaio dizem que é importante reconhecer que não encontraram evidências de benefício para pacientes que não precisavam de oxigênio e que não estudaram pacientes fora do ambiente hospitalar. O acompanhamento está completo para mais de 94% dos participantes.

    PAUSA PIADISTICA 1: não fiquem brabos comigo, estou me estendendo e colocando até os dados estatísticos de valor de p e tudo, porque estão muito lindos demais… se não foram manipulados. hahaha Mas é o que está lá no RECOVERY e os caras colocaram disponíveis só isso aí. 🤘

    PAUSA PIADISTICA 2: pessoal por aí deu uma confundida na tradução. Tá escrito lá: “Dexamethasone reduced deaths by one-third in ventilated patients”, o que em português significa dizer que antes morriam 10 e agora morreriam 6 ou 7 usando DEXA. Redução de um terço. Não a um terço. Teve gente que achou que era milagre. “Reduced by” é pegadinha.

    https://giphy.com/gifs/thegoodfilms-thegoodfilms-lost-in-translation-scarlett-johansson-Tb7jwA6p1sEo0

    Com base nesses resultados, dizem eles, que 1 morte seria evitada pelo tratamento com DEXA a cada 8 pacientes ventilados ou a cada 25 pacientes que necessitavam apenas de oxigênio. Dada a importância desses resultados para a saúde pública, dizem eles “agora estamos trabalhando para publicar todos os detalhes o mais rápido possível.”

    POIS. Não é o feijão mágico ainda, mas bem animador mesmo. YAY 🤘🤘🤘

    Queremos o artigo publicado sim. Mais detalhes. Já tenho uma lista de comentários e perguntas:

    Os pacientes que necessitam de oxigênio ou ventilação geralmente apresentam pneumonia e desenvolvem falta de ar, insuficiência respiratória e síndrome da angústia respiratória aguda (SDRA, do inglês, ou SRAG, sindrome respiratoria aguda grave no português) – quando os pacientes não conseguem respirar porque há inflamação e fluido preenchendo alvéolos de ar nos pulmões. Uma vez que a SRGA se desenvolve, a taxa de mortalidade aumenta significativamente e a necessidade de cuidados intensivos e suporte à vida aumenta.

    Recomenda-se sempre cautela e mais dados antes de introduzir a dexametasona na prática atual.

    Mas, de fato, uso de esteroidais é realmente algo esperado já vendo outros trabalhos: Em março, pessoal de Wuhan na China liberou um estudo no JAMA** – “O tratamento com metilprednisolona pode ser benéfico para pacientes que desenvolvem SRAG.”

    Precisamos dos dados para descobrir o que havia de diferente nos pacientes estudados na China e no tratamento habitual combinado em UK (ou seja, uso de antibióticos empíricos?) O que determinou diferenças de outros grupos? Os dados de UK também nos ajudarão a selecionar melhor os pacientes que mais se beneficiariam.

    O estudo não mostrou nenhum benefício em pacientes que não precisavam de ajuda para respirar. Apenas uma minoria de pacientes com COVID-19 precisa de oxigênio ou ventilação mecânica – este é o único grupo que pode se beneficiar da dexametasona? Não sei.

    Diversidade na população, comentei isso um pouquito, a baixa dose de DEXA pode ser nada eficaz pra alguns grupos étnicos… é algo a se analisar.

    Agora fica a minha crítica PESSOAL. Depois de todas as retrações e PALHAÇADAS nessa pandemia, é inaceitável divulgar os resultados de estudo por meio do comunicado à imprensa sem liberar todos os dados em revistas científicas minimamente sérias antes. Qual o motivo pra isso? Vocês listem aí.

    Era isso, pessoal, se ficar alguma dúvida de entendimento ou técnica, faz um mimimi carinhoso que eu respondo.✌️

    Edit.: esqueci de dizer sobre a quantidade de verba PÚBLICA que financiou esse estudo em hospitais PÚBLICOS. Muitas libras esterlinas. Muitas. 🤑

    Aqui fica o link do press release do Recovery: https://www.recoverytrial.net/news/low-cost-dexamethasone-reduces-death-by-up-to-one-third-in-hospitalised-patients-with-severe-respiratory-complications-of-covid-19

    O paper de Wuhan em março: https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/fullarticle/2763184

    Olguitcha na Pands é project scientist na Farmacologia da School of Medicine na Universidade da Califórnia (EUA). Professora Associada da UFPR (tá de licença sem salário, antes que perguntem). “Vim pra cá convidada pra trabalhar num projeto de glioblastoma. Tenho anos de experiência em Toxinologia (venenos de animais peçonhentos), sou Doutora em Ciências com ênfase em Biomol pela UNIFESP e Mestre em BioCel pela UFPR. Farmacêutica Bioquímica.”

    Este post foi escrito originalmente no blog Tubo de Ensaio, do Blogs de Ciência da Unicamp

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

plugins premium WordPress