Categoria: ESPECIAL COVID-19

  • De água sanitária à radiação: você já ouviu falar em sanitização?

    Texto escrito por Cyntia Almeida, Gian Carlo Guadagnin e Gildo Girotto Júnior

    Imaginem que vocês, em futuro próximo, sentados em um restaurante (ou indo às compras em um mercado), sejam informados “Este restaurante conta com um sistema de sanitização ambiente por meio de substâncias que eliminam vírus e bactérias”, ou ainda, “este ambiente conta com um sistema de sanitização por meio de radiação ultravioleta”. Pois é. Este procedimento já tem ocorrido em alguns locais.

    Após o período em isolamento social, a maior parte dos estados brasileiros e muitos países do mundo seguem para a abertura do comércio. Mais do que isso, começam a traçar planos de retorno das atividades com a flexibilização do isolamento. O estado de São Paulo, por exemplo, propôs um plano de retorno do setor educacional, o qual envolve a ocupação gradual das instituições de ensino. Para além disso, outros espaços como o transporte coletivo, bares, restaurantes e demais estabelecimentos, num futuro próximo e ainda na presença do coronavírus, começarão a ser novamente ocupados. A preocupação que nos aflige é, portanto, como se preparar para evitar uma nova onda de disseminação do coronavírus?

    Nos diferentes projetos de retorno, muito se fala sobre ações que visam evitar a propagação do vírus. Isto levando-se em conta desde aquelas mais comuns, como lavar frequentemente as mãos, manter o uso do álcool gel e da máscara, até outras ainda pouco comentadas como a sanitização dos ambientes. Sobre este último ponto é que buscamos trabalhar algumas ideias neste texto. Trazemos, principalmente, esclarecimentos sobre como se dá este processo e quais procedimentos têm sido propostos e estudados para sua realização.

    Contextualizando um pouco 

    No mês abril deste ano, um estudo realizado por pesquisadores do Centro de Controle e Prevenção de Doenças de Guangzhou, China, foi publicado. O objetivo foi estudar as possíveis causas da contaminação, por COVID-19, de 10 pessoas provenientes de 3 famílias distintas. Estas pessoas estavam presentes em um mesmo ambiente mas que se encontravam distantes umas das outras1. Levantou-se então a questão de que a circulação do ar (direcionada pelo aparelho de ar condicionado) teria propagado o vírus ou que os filtros de ar do aparelho pudessem estar servindo para o acúmulo do mesmo. 

    Os dados do estudo apontaram que a proximidade relativa das famílias durante o almoço e o forte fluxo de ar no ambiente, foram o fator crucial para a propagação do vírus a partir do paciente inicial, que na época não sabia estar contaminado. Isso ocorreu devido ao fato de as gotículas de saliva do primeiro doente terem sido levadas pelo fluxo de ar, a uma distância maior do que a esperada. A figura abaixo ilustra a contaminação ocorrida sendo A1 o sujeito inicialmente infectado. As datas indicam para a descoberta da contaminação dos demais sujeitos presentes no local.

    Ou seja, não apenas o maior distanciamento mostra-se necessário como é perceptível que partículas do vírus podem se deslocar. Isso devido ao fluxo de ar, se espalhando por uma grande área do ambiente. Este e outros estudos levantam questões sobre medidas que se tornarão necessárias, quando os estabelecimentos públicos voltarem a funcionar. Além disso, traz indagações referentes aos novos protocolos de limpeza e desinfecção. Quais produtos utilizar? Os processos realmente isentam o ambiente do vírus?  Seria possível realizar a sanitização em ambientes com a presença de pessoas? Trazemos aqui algumas considerações em relação ao processo de sanitização de ambientes.

    O processo de sanitização

    Antes mesmo da publicação do estudo citado, algumas cidades haviam adotado o uso da desinfecção ou da limpeza das ruas. O intuito era combater a contaminação dos indivíduos que por ali transitavam. Tal ação deve ser promovida apenas em lugares com maior fluxo de pessoas. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), ao realizar esse processo em lugares com poucas chances de contágio, corre-se o risco de fortalecer o vírus, tornando-o imune aos saneantes usados2. Nesse cenário, um primeiro ponto a se compreender é a diferença entre limpeza e desinfecção. 

    Segundo Nota Técnica2 da ANVISA, LIMPEZA é a remoção de microrganismos, sujeiras e impurezas das superfícies sem, no entanto, ter por objetivo a degradação dos microrganismos. É, portanto, uma remoção física que diminui o risco de propagação de infecções e doenças. Já o processo de DESINFECÇÃO utiliza substâncias capazes de matar microrganismos presentes nas diferentes superfícies. Esse processo não limpa necessariamente superfícies sujas ou remove fisicamente os microrganismos. Mas, ao degradá-los em uma superfície antes ou após a limpeza, pode reduzir ainda mais o risco de propagação de infecções (o uso do álcool gel por exemplo, desinfeta uma superfície). 

    Na desinfecção, como visto, uma substância é responsável por degradar o organismo causador ou transmissor da doença ou infecção. No caso de bactérias, a degradação ocorre quando a membrana exterior da célula do organismo é quebrada e seu material genético e constituinte se dispersa, impedindo-o de funcionar. É como se tivéssemos a cabeça ou o coração arrancados. No caso dos vírus, a desinfecção tende a romper a camada de proteínas e/ou gorduras que constituem sua parte externa.

    Em todos esses casos, a substância desinfetante interage com uma estrutura molecular rompendo ligações que manteria a estrutura do micro-organismo. A limpeza posterior retira “os restos mortais” que sobraram do processo. Recentemente (mas não muito), outros processos, sem o uso de substâncias, têm sido testados. É o caso da utilização de radiação ultravioleta (UV)3. A ideia neste caso é que a radiação UV, por carregar grande quantidade de energia, possa interagir com micro-organismos fazendo com que as ligações químicas que compõem as suas moléculas sejam degradadas. Uma analogia que pode ser feita é a ação do sol em nossa pele. A radiação solar é composta por diferentes ondas, dentre elas o UV, principal responsável por “queimar” a pele. A ideia é semelhante, só que o procedimento consiste em utilizar aparelhos que emitam apenas este tipo de radiação diretamente aplicado a superfícies.

    Mas então, onde aplicar e que substâncias ou métodos utilizar?

    Bom, antes é preciso saber o que vamos desinfectar, se existem pessoas ou animais no local, se o local é grande ou pequeno, qual seu uso e o que queremos eliminar. Nem todas as substâncias destroem vírus e também bactérias, vide os medicamentos, que em geral são específicos: antiviral ou antibiótico.

    Para o coronavírus, em especial, o Ministério da Saúde (MS) recomenda, para desinfecção de superfícies, o uso dos produtos autorizados pela Anvisa, como o quaternário de amônia (NR4+, onde R é uma cadeia de carbonos e hidrogênios); alvejantes contendo hipoclorito (de sódio ou cálcio); peróxido de hidrogênio e ácido peracético4. O Quaternário de amônio é o que chamamos de cátion, isto é, uma substância com carga, neste caso positiva pela deficiência em elétrons. Por ser positiva, essa substância é atraída por espécies negativas sendo reativa e atuando na oxidação da matéria com a qual está em contato, quebrando as moléculas da camada protéica do vírus, ou então rompendo as ligações da membrana da bactéria.

    Entretanto, segundo a ANVISA, quaternários de amônio podem causar irritação na pele e nas vias respiratórias e pessoas expostas podem desenvolver reações alérgicas, afinal, o cátion “ataca” a matéria sem muita distinção, podendo, portanto reagir com componentes da nossa pele.

    As outras recomendações para superfícies, e que funcionam quimicamente de forma semelhante, são o próprio hipoclorito de sódio (comum na desinfecção de alimentos), o peróxido de hidrogênio (comercializado em solução na forma de água oxigenada) e o ozônio ( utilizado no tratamento de água em piscinas). Para estes, é importante observar sua periculosidade uma vez que são fortemente irritantes e podem causar lesões severas.

    Seria possível sanitizar um ambiente com pessoas presentes? 

    Mesmo com o conhecimento dos riscos de irritação e a possibilidade de envenenamento, muitos estabelecimentos e até mesmo alguns estados brasileiros estão utilizando a técnica de sanitização de pessoas, como afirma reportagem de junho deste ano5. O ato ocorre por meio de uma cabine que pulveriza desinfetante por sujeitos que passam por ela sendo a estrutura batizada com o nome de “cabine de desinfecção”. Nestas cabines são utilizadas algumas das substâncias mencionadas anteriormente, como o hipoclorito de sódio, o quaternário de amônio, e outros sanitizantes que já citamos em nosso texto.

    Uma revisão especializada da ANVISA com bases internacionais não encontrou recomendações ou exemplos sobre a possível eficácia de desinfecção de pessoas com uso de câmaras, cabines e túneis.  Essa revisão incluiu informações de fontes como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Agência de Medicamentos e Alimentos dos Estados Unidos (FDA), o Centro de Controle e Prevenção de Doenças/EUA (CDC) e a Agência Europeia de Substâncias Químicas (ECHA)5

    A Anvisa ainda recomenda que se escolhido o procedimento de desinfecção, o mesmo não seja realizado com pessoas presentes. Isto porque os saneantes recomendados apresentam características que podem causar, além das irritações e lesões citadas, intoxicação e problemas respiratórios quando inalados. Portanto, a realização da desinfecção de um ambiente com indivíduos presentes (ou à  desinfecção direta de indivíduos) NÃO é recomendada.  No caso da radiação UV, a mesma recomendação pode ser feita, uma vez que ao direcionarmos uma fonte de radiação de alta energia a uma pessoa, danos a estrutura celular de sua pele podem ser gerados.

    Por fim, quanto tempo o ambiente sanitizado fica isento de microorganismos?

    De modo geral, não existem estudos conclusivos sobre a sanitização de ambientes e espaços uma vez que há diferentes variáveis. O ar, a movimentação e dispersão de organismos, vírus e partículas em áreas abertas e espaços com grande movimentação de pessoas (como restaurantes, hospitais, escolas, lojas e academias ou no transporte público) são conjuntos complexos e amplos de estudo, com muitas variáveis e, por isso, dependem de tempo para respostas mais completas. O novo coronavírus ainda é recente e não o compreendemos totalmente. As recomendações para a diminuição da contaminação e do contágio são, grandemente, as medidas para outros vírus já conhecidos como os que causam a SARS ou a MERS e a família influenza.

    Assim, além da sanitização e limpeza de ambientes, teremos que usar máscaras e fazer os diversos protocolos de distanciamento por um bom tempo, pelo menos até novas e mais acalentadoras informações sejam apresentadas. Vale lembrar que ações de sanitização são maneiras a mais de minimizar a contaminação. Isto é, não eliminam os cuidados pessoais diários e a higienização de mãos e roupas sempre que possível. Até o momento, o álcool 70% e a boa e velha água e sabão são as formas mais eficazes e menos agressivas à saúde que conhecemos de fato.

    Para saber mais

    1. Jianyun Lu, Jieni Gu, Kuibiao Li, Conghui Xu, Wenzhe Su, Zhisheng Lai, Deqian Zhou, Chao Yu, Bin Xu, and Zhicong Yang. COVID-19 Outbreak Associated with Air Conditioning in Restaurant, Guangzhou, China, 2020. Emerging Infectious Diseases, Volume 26, Number 7—July 2020.

    2. Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Nota técnica No 34/2020/SEI/COSAN/GHCOS/DIRE3/ANVISA.

    3. USP. Equipamentos desenvolvidos no IFSC/USP descontaminam superfícies. Assessoria de Comunicação IFSC/USP.

    4. Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Nota Técnica

    5. Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA.  Nota técnica No 34/2020/SEI/COSAN/GHCOS/DIRE3/ANVISA.

    Os Autores

    Gildo Girotto Junior é Licenciado em Química (UNESP), Doutor em Ensino de Química (USP) e atualmente é professor e pesquisador no Instituto de Química da Unicamp

    Gian Carlo Guadagnin é estudante de graduação em Licenciatura em História (UNICAMP)

    Cyntia Almeida é estudante de graduação em Licenciatura em Química (UNICAMP)

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Blog Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Isolamento social muda a dinâmica do meio ambiente durante a pandemia

    Por Caroline Marques Maia, Luciane Borrmann e Vinícius Nunes Alves

    Benefícios momentâneos ao meio ambiente durante a pandemia não indicam, necessariamente, que a natureza está sendo restaurada dos estragos causados por humanos

    Diminuição da poluição atmosférica em grandes cidades, águas mais limpas, passagem incomum de animais silvestres em centros urbanos, praias vazias com tartarugas desovando em massa. Essas e outras consequências da redução da circulação humana e o seu impacto no meio ambiente têm sido noticiadas durante a pandemia e são importantes para reflexões sobre as questões ambientais no planeta. Mas será que apenas efeitos benéficos estão ocorrendo no meio ambiente em função do distanciamento social? “Alguns animais podem se beneficiar de forma mais imediata, como aves voltando a nidificar em certas áreas ou peixes reocupando canais outrora poluídos, mas mesmo a natureza dando mostras de reparos, isso não significa dizer que esteja se recuperando”, pondera a bióloga Lilian Hoffmann.

    Pela primeira vez em cerca de 80 anos, a montanha Dhauladhar, que faz parte da cordilheira do Himalaia, pôde ser avistada novamente na Índia. Esse fenômeno ocorreu devido à queda da poluição atmosférica pela diminuição da produção nas fábricas e o trânsito reduzido na quarentena. Na China, essa redução chegou a 25% desde o início da pandemia, sendo que o isolamento social no país pode ter salvo entre 50 e 75 mil pessoas da morte devido à poluição, de acordo com a Universidade Stanford

    Para Evangelina Vormittag, médica e doutora em patologia e saúde ambiental da Universidade de São Paulo (USP), conhecida como “Dra. Poluição”, essas reduções de poluição ilustram o quanto se polui o ar diariamente e como o menor consumo favorece um futuro mais saudável e mais sustentável. A médica afirma que “o benefício de um ar menos poluído é imediato para a saúde da população, não apenas para aqueles com doenças respiratórias, mas também para doenças cardiovasculares, principalmente quando se trata de grupos mais sensíveis como crianças e idosos”. 

    Segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2018, a poluição do ar foi responsável por 320 mil mortes nas Américas e 51 mil no Brasil por ano. “Enfermidades como asma e infarto são acentuadas pela baixa qualidade do ar e isso tem custos econômicos (perda de produtividade e custo de internação) que podem ser mensurados em estudos científicos de poluição atmosférica sobre a saúde”, avalia Evangelina.

    A poluição atmosférica em centros urbanos, como na imagem, caiu consideravelmente com a redução nas atividades industriais e no trânsito pelo isolamento social. Crédito: Unsplash

    E não é apenas a poluição atmosférica que reduziu nos últimos meses. As águas do rio Ganges no Norte da Índia – um dos rios mais poluídos do mundo – estão ficando mais limpas, como noticiou em abril o jornal indiano India Times.  Mesmo os canais de Veneza na Itália, famosos por seu mau cheiro, estão com as águas mais claras e nítidas por falta de circulação de barcos, fenômeno que foi relatado pelo G1 em março. Até as vibrações que as atividades humanas diárias causam na crosta terrestre diminuíram com o isolamento social, permitindo que os dispositivos sísmicos detectem outros movimentos menores com sinais mais claros, noticiou a revista científica Nature

    Vantagens para a fauna

     Locais antes dominados pela presença humana agora estão dando passagem para animais silvestres como onças-pardas, coiotes e perus nos Estados Unidos, javalis na Espanha, leopardos em vários locais da Índia, cervos no Japão, todos exemplos das recentes aparições registradas em área urbana. E não é apenas a visita desses animais em locais bem urbanizados que tem sido notada. Em Fort Lauderdale, em Miami, a Veneza americana, as águas mais claras possibilitam que os caranguejos no seu habitat natural possam ser observados. 

              Bodes caminhando em bando no País de Gales. Crédito: Conta pública da @bbcbrasil no Twitter

    A fauna ainda está se beneficiando de outras formas por causa da redução na circulação de pessoas durante a pandemia. Um bom exemplo são as notícias, como da revista Veja, sobre tartarugas marinhas desovando em massa nas praias vazias, inclusive no Brasil. Até mesmo animais cativos estão sendo favorecidos. Depois de quase 10 anos de tentativas de acasalamento sem sucesso, o zoológico vazio de Hong Kong registrou esse ato ocorrendo naturalmente entre um casal de pandas, algo que pode ser vantajoso para a conservação dessa espécie. 

    Depois de quase uma década sem reproduzir, pandas acasalam em zoológico sem visitação em Hong Kong. Crédito: HKFP

    Apesar desses efeitos aparentemente otimistas para a fauna, resta a dúvida se todos eles são mesmo saudáveis para os animais. “Muitos animais que visitam as ruas podem estar atrás de comida, por exemplo, entrando em contato com resíduos descartados, e podem acabar se contaminando”, aponta Lilian, que é doutora em Biologia Animal e bolsista do Programa Arquipélago e Ilhas Oceânicas.

    Só impactos positivos?

    Existe também um outro lado sobre as consequências da pandemia atual para o meio ambiente. Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), se grandes empresas petrolíferas e políticas econômicas usarem o atual recesso econômico como pretexto para desacelerar a transição para a energia limpa, a redução das emissões globais de carbono que estão ocorrendo neste ano não ajudarão a combater as mudanças climáticas. Por exemplo, na Arábia Saudita houve grandes quedas nos preços do petróleo, o que está fazendo o país aumentar sua produção em parceria com a Rússia. 

    O próprio isolamento social, apesar de diminuir o consumo de energia no segmento industrial, tende a aumentar as contas de energia nas residências. Segundo a Agência Brasil, a despesa do consumo residencial de energia elétrica pode aumentar em até 20%, e as estimativas do Ministério de Minas e Energia indicam que os gastos com o gás natural podem subir até 23%.

    Em um período que os holofotes estão voltados principalmente para a crise da saúde, o Brasil está caminhando para “compensar” a queda na emissão de gases de efeito estufa pela redução de atividades de transporte e de indústrias com uma tendência de aumentar o desmatamento. Como a própria vegetação “sequestra” gás carbônico, o desmatamento resulta em mais gás carbônico (CO2) na atmosfera. 

    Segundo relatório recente do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg) realizado pelo Observatório do Clima,as emissões de carbono devem aumentar até 20% em 2020 devido ao grande aumento do desmatamento”. Isso ocorre principalmente na Amazônia desde 2019, com a gestão do ministro do meio ambiente Ricardo Salles, já denunciado por improbidade administrativa, tanto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo quanto pela Associação dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Asibama-DF) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). 

    “Alguns políticos e outros tomadores de decisão se aproveitam do momento de dificuldade de acompanhamento da sociedade para executar ações maléficas ao coletivo, tais como aumento na exploração de minérios, aprovação de legislação inadequada ou ainda destituição de decretos e portarias de proteção de biodiversidade, culturas indígenas e quilombolas. Isso acaba desfazendo resultados de grandes lutas passadas para a proteção de ecossistemas, biodiversidades e culturas”, destaca Camila Domit, bióloga do Centro de Estudos do Mar (UFPR). 

    Há ainda a ameaça de aumento de ações ilegais que prejudicam o ambiente e a fauna quando o foco da população e dos governantes está na manutenção das necessidades básicas e na busca de soluções para a pandemia. “Atividades ilícitas proliferam em épocas de pouca ou nenhuma fiscalização, e pode-se ver isso em atividades como desmatamento, garimpo, tráfico de animais silvestres, caça e pesca ilegal”, aponta Lilian. Um exemplo disso é a associação criminosa voltada para o desmatamento e o garimpo ilegais em terra indígena no Mato Grosso, que foi descoberta e apreendida pela Polícia Federal recentemente com mandados de prisão dos envolvidos, e busca e apreensão das ferramentas.

    Aumento no volume de descartáveis

    Outro impacto negativo é o aumento da quantidade de lixo descartável usado em alimentos e, principalmente, em hospitais. A Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) calculou em março que no país poderia ter um expressivo aumento de geração de resíduos sólidos domiciliares (15 a 25%) e de hospitalares em unidades de atendimento à saúde (10 a 20 vezes). 

    No Brasil, a capital paulista recentemente suspendeu a lei de proibição de materiais plásticos para comercialização de alimentos, supostamente pelas embalagens ajudarem na higienização e na prevenção da doença. Além disso, máscaras e luvas usadas pelas pessoas para proteção estão sendo descartados incorretamente à céu aberto nas ruas, gerando ainda mais poluição no ambiente, inclusive nos próprios oceanos. “A maior parte do lixo que chega às praias vem das cidades e como continua sendo produzido muitas vezes sem destino adequado, continua um problema, afetando negativamente a biodiversidade”, conclui Camila.

    Máscaras usadas para proteção contra o coronavírus são descartadas muitas vezes nas próprias ruas, gerando assim mais poluição no ambiente. Crédito: Pixabay

    A experiência globalizada do isolamento social ilustra que a cultura de produção e consumo têm impactos sobre meio ambiente e fauna. E mesmo os efeitos positivos da pandemia podem ser apenas um alento temporário, mas não a solução para os problemas que a civilização humana causa na natureza, como superexploração e poluição ambientais, e extinção em massa de espécies.

    Lab-19, projeto de divulgação científica de um grupo de alunos do curso de especialização em jornalismo científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor-Unicamp), engajados, como tantos, em contribuir para a disseminação de informações corretas e confiáveis sobre a epidemia de covid-19 para públicos diversos.

    Caroline Marques Maia é bióloga, mestre e doutora em zoologia. Comanda o Blog ConsCIÊNCIA Animal e é gestora-diretora do Clube Ciência e do Writing Center do Instituto Gilson Volpato de Educação Científica (IGVEC).

    Luciane Borrmann é jornalista e educadora ambiental.

    Vinícius Nunes Alves é biólogo, com mestrado em ecologia e conservação de recursos naturais. É colunista do jornal Notícias Botucatu.

  • Podemos comparar estas duas cidades? Exercícios complexos para uma pergunta simples (parte 3)

    No dia 26 de maio me perguntaram sobre a relação entre os casos confirmados e quantidade de óbitos de duas cidades, Porto Alegre e Hong Kong. A ideia geral da pergunta era: estes números são semelhantes?

    Ao tentar responder a pessoa ao que parecia uma pergunta simples, me vi envolta a inúmeras questões importantes sobre todo o fenômeno da COVID-19 e o quanto, também, temos apresentado dados sem que necessariamente as pessoas saibam não apenas receber a informação, mas questioná-las e compreendê-las de maneira menos apressada. 

    A pergunta gerou uma pesquisa que foi se estendendo, se estendendo e cá estamos, no segundo texto da série!

    O primeiro texto pode ser lido aqui. Em resumo, no dia 26 de maio, Porto Alegre tinha 1049 casos confirmados e 32 óbitos. Hong Kong tinha 1066 casos confirmados e 4 óbitos. No primeiro texto, eu busquei analisar algumas questões relacionadas à população total das duas cidades e, também, densidade populacional. No segundo texto, que pode ser lido aqui, eu fiz uma comparação com as datas de 26 de maio e 09 de Junho, mostrando as diferenças entre os números neste meio tempo.

    A outra questão que surgiu ao longo deste debate é sobre a subnotificação e as testagens, que é o que eu discuto hoje!

    Antes de falar dos testes

    Apenas para atualizar os dados das duas cidades

    Porto Alegre

    • 01 de Julho: 3.624 casos confirmados; 1.309 casos recuperados; 94 óbitos; 8.971 casos em análise.
    • 09 de Junho: 1.712 casos confirmados, 45 óbitos, 619 casos recuperados e 4.753 casos suspeitos em análise (aguardando o resultado).

    Hong Kong

    • 01 de Julho: 1.243 casos confirmados; 117 casos ativos; 1.120 casos recuperados; 07 óbitos;
    • 09 de Junho: 1.108 casos confirmados da doença, segue com 4 óbitos, 55 casos ativos (3 destes em estado crítico) e 1049 recuperados.

    Agora vamos à questão dos testes…

    E em que a quantidade de testes nos ajuda?

    Basicamente, testar em massa nos possibilita não apenas aferir quem está doente em situação grave ou gravíssima. Os testes em massa, mesmo em casos em que as pessoas apresentam sintomas muito leves da doença, nos dá condições para um manejo muito mais eficaz da doença e dos doentes.

    Se temos sintomas leves e temos a confirmação, podemos rastrear nossos contatos, testar estas pessoas e sinalizar a necessidade de isolamento (nosso e das pessoas ao nosso redor) até que a fase infecciosa da doença acabe. Podemos compreender melhor a quantidade de pessoas que já foi infectada em nosso município, possibilitando analisar com mais precisão quantos recuperados já temos e a segurança para flexibilizarmos os distanciamentos sociais e de que forma retomaríamos a vida em nosso espaço urbano.

    Além disso, conhecendo melhor a quantidade de infectados – doentes leves, moderados, graves e críticos – poderíamos nos planejar melhor em relação às compras e instalações de equipamentos hospitalares, leitos, contratações de profissionais de saúde em modo emergencial, etc.

    E estes dados são suficientes?

    Bom, eu achei prudente também olhar outros dados, uma vez que muito têm se falado sobre a subnotificação aqui no Brasil. A subnotificação se dá, entre outras coisas, pela quantidade de testes feitos na população. Quanto mais testes fazemos, mais conhecemos realmente quantas pessoas foram infectadas, e conseguimos rastrear melhor os lugares em que a infecção está mais presente, para propor um distanciamento social mais eficaz, correto?

    Eu não achei as testagens totais feitas em Porto Alegre, então eu analisei a partir da média de testes populacionais no Brasil. Como Hong Kong é uma “cidade-estado” estes números absolutos estão nos registros oficiais mundiais. Vale a pena observar que eu consegui apurar estes dados hoje (9 de Junho de 2020) e é a partir deles que eu vou fazer a próxima análise (como se fosse equivalente aos dias anteriores). Vamos dar uma olhadinha nestes números:

    • Hong Kong estava com uma média de 27.082 testes para cada 1 milhão de habitantes no dia 09 de Junho; no dia 01 de julho apresenta uma média de 42.883 para cada 1 milhão de habitantes e fez um total de 321.498 de testes no país;
    • O Brasil estava com uma média de  4.706 para cada 1 milhão de habitantes no dia 09 de Junho; agora apresenta uma média de 15.184 para cada 1 milhão de habitantes e fez um total de 3.227.591 de testes no país.

    Como eu não encontrei o número exato de testes realizados em Porto Alegre (várias cidades não apresentam estes dados, ou não são fáceis de serem encontrados), eu vou supor que obteremos o total de testes diagnósticos feitos na cidade de Porto Alegre somando-se a quantidade de negativos, positivos e em análise.

    Ao analisar o Boletim Epidemiológico de Porto Alegre lançado no dia 26 de maio de 2020, havia registrado um total de 4.105 testes (casos confirmados + casos negativos), enquanto ainda estavam em análise 2743 casos, totalizando 6.848 testes diagnósticos no dia 26 de maio

    Se olharmos o Boletim Epidemiológico de Porto Alegre, lançado no dia 09 de Junho de 2020, observamos os seguintes números: 1.712 casos confirmados; 4.753 casos em análise e 4.614 casos negativos, isto somado teríamos o total de 11.079 testes realizados desde o início da pandemia no dia 09 de Junho.

    Já o Boletim Epidemiológico de Porto Alegre, lançado no dia 02 de Julho de 2020 há um total de 16.410 testes (3.624 confirmados + 12.786 negativos), enquanto ainda estão em análise 8.971, totalizando 25.381 testes diagnósticos no dia 01 de Julho de 20220.

    Hong Kong fez o total de 202.930 de testes diagnósticos até o dia 09 de Junho, o que nos dava uma quantidade de testes 18,31 maior. No dia 01 de Julho, a cidade completou o número de 321.498 testes diagnósticos totais, o que relacionado à Porto Alegre nos dá uma quantidade de testes 29,02 maior.

    Se formos fazer relativo à quantidade de testes por 1 milhão de habitantes (que é a comparação padrão internacional), Hong Kong neste momento está com 42.883 e Porto Alegre com 7.467 testes. Neste sentido, Hong Kong está fazendo 5,74 mais testes por milhão de habitante do que Porto Alegre.

    E a subnotificação?

    O Ministério da Saúde divulgou, no dia 24 de Junho, que os casos suspeitos com sintomas leves começariam a ser testados no SUS. Pois bem, há muito se fala sobre a questão da subnotificação. Um dos dados acerca disto é, exatamente, a falta de testagens em massa na população – ainda estamos longe disto. No mundo, relativamente a testagens por milhão, estamos em 112º lugar. 

    Em artigo publicado dia 24 de Junho, os pesquisadores apontam uma notificação em 9,2% dos casos no Brasil. Neste sentido, o nosso número atual de 1,456,969 de casos, se corrigido seria cerca de 15.836.619 pessoas contaminadas (no Brasil). Outro dado que indica que estamos subnotificando são os casos de Síndrome Gripal e Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG).

    Em Porto Alegre, temos registrados em Pronto Atendimento, em Junho de 2018 um total de 261 casos de Síndrome Gripal. Este número em 2020 foi de 1.274 casos registrados (4,88 vezes mais casos do que dois anos antes). Em Unidades de Atenção Primária temos 289 casos em junho de 2018 e 2.141 casos em junho de 2020 (7,41 vezes mais casos em 2020).

    Se olharmos os números no Brasil, o Painel Coronavírus do Ministério da Saúde aponta este comparativo

    Gráfico retirado do Painel Coronavírus do Ministério da Saúde, no dia 02 de Julho de 2020.

    A SRAG tem sido apontada como um importante indicador de subnotificação por diversos centros de pesquisa, cientistas e divulgadores de ciência (eu mesma já falei sobre isto neste texto aqui). 

    Finalizando…

    Não há muito o que falar sobre a abertura de espaços comerciais, tanto em Porto Alegre, quanto em outras capitais do país. Ao que parece, os planos de abertura estão em andamento com os casos subindo, óbitos batendo recordes e uma alarmante subnotificação ainda presente. As políticas públicas que poderiam estancar a reabertura seguem a passos lentos (quase parados) e a pressão de grandes empreendimentos parece ser maior do que um conjunto de análises científicas em meio à grave crise sanitária. 

    Ainda estamos longe de superar a crise sanitária e de mortes e estamos longe de alcançar um bom plano de abertura, especialmente enquanto a quantidade de testes esteja tão baixa e a subnotificação siga tão presente em nosso cotidiano.

    Mais do que traçar planos sobre a volta às atividades presenciais, deveríamos estar debatendo seriamente planos de manutenção da vida e minimizações de desigualdades sociais que só se acentuam nestes momentos.

    Todavia, esta pauta é de uma vida inteira – e não apenas desta crise sanitária – e ainda temos muito o que fazer, lutar, trabalhar, para as novas distopias, não tão árduas como as que estamos passando agora. 

    😉 Contamos com vocês, inclusive. 

    Encerro estes conjuntos de postagens comparando duas cidades…

    Inúmeras questões foram se abrindo com estas 3 postagens que fiz, comparando Porto Alegre e Hong Kong. Agradeço imensamente às revisões, questionamentos e inquietações que provocaram e a possibilidade de entender mais sobre aspectos que pareciam simples. Ainda há muito o que estudar, em breve apresentarei estas outras arestas que foram se fazendo contundentes ao longo da escrita destas postagens…

    Para escrever este texto, assim como o primeiro, eu contei com a leitura, revisão e boas conversas com uma galera da Divulgação Científica e da Unicamp, que eu faço questão de agradecer aqui:Marco Henrique, do blog zero (que além da revisão e das mil ideias, fez as imagens e corrigiu todos os cálculos! hehehe), o Samir Elian, do blog Meio de Cultura A Erica Mariosa, do blog Mindflow, o Roberto Takata, do blog Gene Reporter e o Professor Hyun Mo Yang, do Instituto de Matemática, Estatística e Ciências da Computação (IMECC) da UNICAMP.

    Para saber mais

    AAA INOVAÇÃO. Linha do Tempo do Coronavírus no Mundo [31/12/19 até 10/06/2020]. Acesso em 09/06/2020.

    BOFF, Thiago (2020) Passageiros e motoristas de linhas que podem ser suspensas afirmam que ônibus circulam lotados em Porto Alegre Gaúcha ZH, Porto Alegre, 26 de Maio de 2020. Acesso em 15/06/2020

    CRONOLOGIA DA PANDEMIA COVID-19. Wikipedia. Acesso em 09/06/2020.

    DIHL, Bibiana. Porto Alegre é a primeira cidade do país a ter decreto de emergência reconhecido pelo governo federal. Gaúcha ZH Porto Alegre, 02/04/2020. Acesso em 09/06/2020.

    GONZATO, Marcelo (2020). Porto Alegre tem a quarta menor incidência de coronavírus entre as capitais. Gaúcha ZH Saúde.

    HONG KONG. (2020a) Coronavirus  Acesso em 15/06/2020

    HONG KONG (2020b) Latest Situation of Novel Coronavirus infection in Hong Kong Acesso em 15/06/2020

    HONG KONG NÃO TÊM (2020) Hong Kong não tem novos casos de coronavírus pela 1ª vez em quase 2 meses. Valor Econômico. Acesso em 09/06/2020.

    LIMA, Lioman. (2020). Coronavírus: 5 estratégias de países que estão conseguindo conter o contágio. BBC Brasil, 18/03/2020. Acesso em 09/06/2020

    MINISTÉRIO DA SAÚDE (2020) Coronavírus Brasil. Acesso em 09/06/2020.

    MOTA, Renato. Países asiáticos voltam a ver seus números da Covid-19 crescerem. Olhar Digital, 07/04/2020. Acesso em 09/06/2020.

    PORTO ALEGRE. Secretaria de Saúde (2020a). Boletim COVID-19 nº 65/2020. Acesso em 09/06/2020.

    PORTO ALEGRE. Secretaria de Saúde (2020b). Boletim COVID-19 nº 78/2020. Acesso em 09/06/2020.

    PORTO ALEGRE. (2020c) Prefeitura prorroga decreto de isolamento social e libera mais alguns setores. Acesso em 09/06/2020.

    PORTO ALEGRE (2020d). Vigilância do novo coronavírus mobiliza área de saúde da Capital. Acesso em 15/06/2020

    PORTO ALEGRE (2020e). Saúde Municipal se mobiliza para vigilância do coronavírus

    PORTO ALEGRE (2020f). Boletim COVID-19 n.101/2020.

    Prado, Marcelo Freitas do, Antunes, Bianca Brandão de Paula, Bastos, Leonardo dos Santos Lourenço, Peres, Igor Tona, Silva, Amanda de Araújo Batista da, Dantas, Leila Figueiredo, Baião, Fernanda Araújo, Maçaira, Paula, Hamacher, Silvio, & Bozza, Fernando Augusto. (2020). Análise da subnotificação de COVID-19 no Brasil. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, Epub June 24, 2020.https://doi.org/10.5935/0103-507x.20200030

    ROCHA, Camilo. (2020). Os estudos que mostram o impacto positivo do isolamento social.   Nexo Jornal, 21 de abr de 2020. Acesso em 09/06/2020.

    SORDI, Jaqueline (2020). Lupa na Ciência: Estudos mostram eficácia do isolamento social contra Covid-19 e projetam cenários. Agência Lupa, 20 de abril de 2020. Acesso em 09/06/2020.

    YUGE, Claudio. (2002). Países que já haviam controlado a COVID-19 confirmam a 2ª onda de infecções. Canal Tech, 06 de Abril de 2020. Acesso em 09/06/2020.

    WORLDOMETERS. Coronavírus. Acesso em 09/06/2020.

    ZUO, Mandy; CHENG, Lilian; YAN, Alice e YAU, Cannix. (2019). Hong Kong takes emergency measures as mystery ‘pneumonia’ infects dozens in China’s Wuhan city.South China Moorning Post,  31 dezembro de 2019. Acesso em 09/06/2020.

    Este post foi escrito para o Especial COVID-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Especial Covid-19: 100 dias

    O Brasil e a Universidade em Março

    Lançamos o Especial Covid-19 dia 20 de março de 2020. No dia 27 de junho, completamos 100 dias de trabalho dedicado no Blogs de Ciência da Unicamp. O que aconteceu neste meio tempo (ou um pouco antes do lançamento)?

    O primeiro caso confirmado no Brasil data de 26 de Fevereiro. No dia 20 de março, dia de lançamento do Especial Covid-19 no Blogs, tínhamos 977 casos confirmados da doença, com 11 óbitos. Aos 100 dias do especial, tivemos 1.313.667 casos confirmados, 57.070 óbitos.

    Tela do Painel Coronavírus em 27.06/2020

    A Universidade Estadual de Campinas interrompeu as atividades presenciais no dia 14 de março. O anúncio sobre a parada foi feito um dia antes. Outras universidades foram parando suas atividades nos dias seguintes e as escolas até o final do março estavam praticamente todas com as aulas suspensas também.

    A equipe do Blogs já vinha estudando temas específicos sobre a Covid-19 e o Novo Coronavírus. Alguns blogs individuais iniciaram suas publicações entre os dias 18 e 19 de março. Entre os dias 14 e 19 de março, o comitê editorial do Blogs reuniu-se e decidiu elaborar um especial dedicado integralmente à Covid-19. Neste sentido, o Especial Covid-19 priorizou atualizações técnico-científicas sobre a doença e seus efeitos na sociedade, conhecimentos básicos para entender melhor os números, tabelas e gráficos que vem sendo veiculados, as notícias, além de materiais para crianças, entrevistas, arte, etc.

    Um trabalho coletivo

    Não há o que comemorar nestes tempos. Em 100 dias de Covid-19 nós temos um balanço de nosso trabalho e reflexões sobre o que consideramos o papel da Divulgação Científica no enfrentamento da doença em nosso país…

    Foram 100 dias de trabalho. O que fizemos neste tempo? Investigamos os acontecimentos diariamente, analisando artigos publicados em modo “pre-print”, conversando com especialistas, elaborando pautas, combatendo fake news, participando de entrevistas, lives, podcasts em vários canais de divulgação científica. Neste meio tempo, também integramos a Força Tarefa da Unicamp, na Frente de Comunicação. Um esforço feito por toda a equipe do Blogs de Ciência da Unicamp, que inclui vários blogueiros e colaboradores, para que a compreensão desta doença se faça mais acessível possível.

    100 dias de Especial Covid-19

    100 dias de Especial Covid-19

    Foram 103 postagens, com 43 autores. Destes, 63% são mulheres, 37% homens. Cientistas que já atuavam como Divulgadores Científicos, ou que iniciaram seu trabalho neste campo, para o nosso Especial. Para os novos escritores, também incluímos um breve treinamento e conversas sobre as primeiras publicações. Além disso, todas as postagens do especial passam por uma revisão técnica e científica, tudo para a Divulgação Científica cumprir seu propósito. Isto é: a preocupação de comunicar informações corretas e linguagem acessível.

    Também ressaltamos, neste aspecto, que o Especial Covid-19 tem diferenças, comparadas com os outros três especiais já lançados pelo portal. Inicialmente por não ter um tempo delimitado de publicações. Optamos por deixar o especial no ar, com postagens atualizadas pelo tempo que for necessário. Outra diferença é a presença de autores convidados, além dos blogueiros do portal. Por fim, também contamos atualmente com os blogueiros do ScienceBlogs Brasil, que desde março integraram o Blogs da Unicamp.

    Desde o dia 20 de março, ao completar 100 dias de Especial no dia 27 de Junho, tivemos 218 mil visualizações ao material elaborado pelos autores, além de 301 mil e 386 mil acessos via Facebook e Twitter, respectivamente. Destes acessos, temos uma faixa etária predominante entre 25 e 34 anos e 54% dos leitores são mulheres e 46% homens. Nestes 100 dias, nosso portal geral alcançou a marca de 807 mil acessos. Também ressaltamos, neste meio tempo, um crescimento expressivo de seguidores em todas as mídias sociais.

    Um balanço geral

    A Divulgação Científica proposta pelo Blogs de Ciência da Unicamp é feita a muitas mãos, grande parte em um trabalho voluntário presente tanto na equipe administrativa e técnica, quanto na produção de conteúdos pelos blogueiros. Todo este coletivo de pessoas tem, como princípio, o compromisso com o desenvolvimento de propostas que articulem ciência e sociedade por meio da comunicação.  

    No Especial Covid-19, esse compromisso fica ainda mais evidente, dado o impacto das informações sobre a pandemia não apenas na saúde pública, mas em todas as áreas da sociedade. Quando iniciamos tudo em 20 de março, não imaginávamos que seriam tantos dias em isolamento (para quem conseguiu se manter em isolamento). Ainda conhecíamos muito pouco sobre a doença. Hoje conhecemos mais, mas temos conosco que ainda há muito o que aprender (com e sobre a doença).

    Nesse meio tempo, crescemos. Ampliamos não apenas nosso trabalho, mas a nossa compreensão do papel da divulgação científica em um mundo que enfrenta uma de suas maiores crises dos últimos anos (e certamente a maior crise de grande parte das pessoas que nos lê…). O conhecimento, para nós, é ferramenta para viver e entender a sociedade. Dessa forma, a divulgação científica é um dos modos de traçar este diálogo, entre o que é produzido dentro de centros de pesquisa (e aqui no Brasil, majoritariamente dentro de Universidades Públicas, como a UNICAMP) e as pessoas de uma sociedade.

    O Especial Covid-19, e toda a equipe que vem trabalhando neste especial, seguirá neste propósito de diálogo enquanto esta divulgação se fizer necessária, agradecendo a todos que escrevem, estudam, publicam, lêem, compartilham, comentam e nos ajudam a tornar nosso trabalho possível a cada dia.

  • As não intermitências dos leitos de UTI

    Desde janeiro deste ano, estou participando de um clube de leitura com alguns amigos. Escolhido há meses, o livro da vez é As intermitências da morte”, de José Saramago.

    Nesse livro, num belo dia, a morte simplesmente resolve tirar um período sabático e ali, naquele país, ninguém mais morre. Maravilha né? Na verdade, nem tanto. Um caos é instalado naquele lugar, com direito a crise religiosa, crise funerária… E, claro, crise no sistema hospitalar…

    E era sobre isso que eu queria falar com vocês. Mas antes, leia abaixo um trecho que fala da crise que se instaura nos hospitais. Se você não conhece o livro, não se preocupe, não é spoiler e é um trecho pequeno e do início do livro – ah, e o texto é em português de Portugal!

    Também os directores e administradores dos hospitais, tanto do estado como privados, não tardaram muito a ir bater à porta do ministério da tutela, o da saúde, para expressar junto dos serviços competentes as suas inquietações e os seus anseios, os quais, por estranho que pareça, quase sempre relevavam mais de questões logísticas que propriamente sanitárias. Afirmavam eles que o corrente processo rotativo de enfermos entrados, enfermos curados e enfermos mortos havia sofrido, por assim dizer, um curto-circuito ou, se quisermos falar em termos menos técnicos, um engarrafamento como os dos automóveis, o qual tinha a sua causa na permanência indefinida de um número cada vez maior de internados que, pela gravidade das doenças ou dos acidentes de que haviam sido vítimas, já teriam, em situação normal, passado à outra vida. A situação é difícil, argumentavam, já começámos a pôr doentes nos corredores, isto é, mais do que era costume fazê-lo, e tudo indica que em menos de uma semana nos iremos encontrar a braços não só com a escassez das camas, mas também, estando repletos os corredores e as enfermarias, sem saber, por falta de espaço e dificuldade de manobra, onde colocar as que ainda estejam disponíveis. – As intermitências da morte. José Saramago, Companhia das Letras.

    Quando li esse trechinho não tive como não comparar com a situação que observamos em vários hospitais do país… Situação agravada pela COVID. Quando pensamos em leitos de enfermaria e UTI, pensamos em rotatividade: um fluxo contínuo de entrada e saída de pacientes. No caso dessa história contada por Saramago, as pessoas chegam doentes, às vezes em estado grave. Alguns provavelmente se curam e deixam os hospitais, mas outros com certeza chegam em estado muito grave, tão grave, que esses pacientes deveriam morrer – mas não morrem (afinal, a morte deu uma trégua). Assim, os leitos passam a ser ocupados por esses pacientes e acabam não são liberados… A consequência é que a ocupação, por esse motivo, atinge seu máximo em pouco tempo e pronto: está instaurado o caos descrito no trecho.

    Voltando a nossa realidade, o que observamos na Itália (em março) e estamos vendo agora em alguns estados do Brasil é que, além de um grande influxo de pacientes ao mesmo tempo (pacientes estes que não estavam sendo esperados, afinal pacientes com COVID não estavam no fluxo dos pacientes hospitalares até três meses atrás) nos hospitais, o período de internação, inclusive nas UTIs é bem maior. De acordo com a AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira) um paciente na UTI permanece internado, em média, por cerca de 6 dias, enquanto para um paciente com COVID a duração da internação na UTI é de aproximadamente 14-21 dias. Soma-se a isso os profissionais da saúde que acabam se contaminando e devem ser afastados e os leitos ocupados pelos pacientes do fluxo normal (afinal derrames, acidentes, câncer e outras emergências continuam acontecendo mesmo com a pandemia!).

    Em reportagem do dia 19/06/2020, a BBC Brasil apresentou a figura abaixo com as taxas de ocupação de leitos de UTI nos Estados Brasileiros, com dados das secretarias de saúde dos estados até o dia 17/06. Alguns estados (n=14) apresentaram sinais de queda devido às medidas de distanciamento social adotadas (AM, AP, CE, ES, MG, PA, PB, PE, PI, RJ, RN, SC, SP e TO), seis estados estão com as taxas de internação estabilizadas ou com sinais de estabilização (AC, AL, BA, GO, MA, RR) e 6 estados (MS, MG, PR, RS, RO, SE) + o Distrito Federal (DF) estão com taxas em ascensão ou com sinais de alta.

    Apenas como exemplo, de acordo com a reportagem, o principal hospital de Roraima (HGR) em uma semana teve um pulo de 71% para 110% da capacidade. Aqui, em Belo Horizonte (onde moro), estamos vendo um aumento relativamente rápido das ocupações de leitos após a abertura de quase todo o comércio; a Santa Casa BH, por exemplo, está se preparando para, nos próximos dias, dobrar de 50 para 100 os leitos de UTI. Isso nos leva a inferir que alguns locais ainda não entraram em colapso por estarem conseguindo abrir novos leitos em tempo de atender à população.

    Essas taxas de ocupação de leitos são um dos principais indicadores para os dirigentes tomarem as decisões sobre abrir ou não os comércios locais. Mas pela dinâmica da infecção, geralmente esses dados refletem as taxas de infecção com 2 semas de atraso. Assim, as decisões devem ser tomadas com cautela e previsão estimada da situação da contaminação em cada cidade individualmente. Comparar dados de cidades diferentes, em momentos diferentes da curva, e de países diferentes talvez não seja uma boa ideia. A Ana Arnt faz uma reflexão sobre isso nesse post: “Podemos comparar estas duas cidades? Exercícios complexos para uma pergunta simples” (parte 1) e (parte 2).

    DICA DE LIVRO!

    Para terminar, queria voltar na indicação do livro As intermitências da morte”, de José Saramago. Neste livro, Saramago, laureado com o prêmio Nobel de Literatura em 1998, parte de uma premissa simples para escrever um livro fantástico: e se as pessoas parassem de morrer?

    Uma pergunta que parece irrelevante, mas que quando analisada mais a fundo traz consigo grandes questões… Economia, saúde e até mesmo a religião são afetadas. O que parece ser um grande acontecimento feliz, a vida eterna se transforma, em pouco tempo, numa situação de difícil resolução.

    Apesar de estar esgotado na editora em sua versão física, o livro pode ser comprado em ebook. Clicando e comprando por este link você é direcionado para a Amazon e pode ajudar o blog: As intermitências da morte”, de José Saramago.

    REFERÊNCIAS:

    Reportagem da BBC Brasil: Coronavírus: 14 Estados têm queda de internações após isolamento social; DF e outros 6 Estados enfrentam alta.

    Comunicado da AMIB, disponibilizado no site da SOMITI: COMUNICADO DA AMIB SOBRE O AVANÇO DO COVID-19 E A NECESSIDADE DE LEITOS EM UTIS NO FUTURO

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Ciência para crianças! Distância da família

    O isolamento social é a forma mais eficiente para evitar a disseminação da pandemia de Covid-19. Com isso, muitas vezes precisamos ficar longe de familiares e amigos muito queridos, para o bem-estar e segurança de todos. 

    Neste quadrinho, Dragonino está enfrentando a saudade de sua mãe, que é médica e trabalha na linha de frente do combate à Covid-19, e de seus avós, que são velhinhos e podem ficar doentes facilmente. Hoje ele veio conversar um pouco com a gente sobre como está se sentindo e porque precisamos permanecer fortes!

    Dragonino sente muita falta do contato físico e da convivência com as pessoas, mas ele também está aprendendo que a internet e a tecnologia podem ajudar a manter o contato com quem amamos, o que pode aliviar um pouco a solidão e a saudade! E depois que tudo isso passar, ele não vê a hora de poder voltar a abraçar todo mundo!

    Quadrinho "Ciência para crianças!" com o tema distância da família.

    Fontes:

    https://coronavirus.saude.gov.br/

    https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019

    Equipe: 

    • Design: Giovanna S. Veiga
    • Pesquisas e roteiro: Edilaine C. Guimarães e Carla R. de Souza
    • Supervisão: Vinicius Saragiotto, Verônica Dos S. Sales, Bianca B. De M. Fonseca
    • Orientação e revisão: Carolina S. Mantovani e Lúcia E. Alvares.

    English version

    Translation: Allan Cavalcante and Giovanna S. Veiga

    Quadrinho "Ciência para crianças!" com o tema distância da família, traduzido para o inglês.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • A joia da coroa

    Texto escrito por Prianda Rios Laborda

    “SARS-CoV-2 é um vírus RNA fita simples com cerca de 29 kb que codifica 29 proteínas”. Estas são as credenciais genéticas do nosso atual inimigo número 1, o famigerado coronavírus da dinastia SARS, o segundo de seu nome, afinal, estamos falando de coroas. Em uma única frase, residem todas as informações que o vírus precisa para promover a infecção de seus hospedeiros e a sua própria replicação. Em uma única frase, reside também um arsenal de informações que nós, os hospedeiros, podemos usar para combater o vírus. Levantemos, portanto, nossas armas contra a coroa. E, se vamos nos rebelar contra um reinado, bem fazemos conhecer e, quem sabe, atacar a sua joia, o cerne que mantém coesas famílias reais (e reais): seu material genético.

    ONDE VIVEM OS GENES: DNA x RNA

    Material genético é uma expressão para designar o conjunto de moléculas onde estão codificadas informações que orientam a constituição e a conformação física dos organismos. Este material é organizado em cadeia, como um colar, em que se enfileiram contas de quatro diferentes cores. A essas contas damos o nome de nucleotídeos. Na maior parte das vezes, esse colar é o nosso antigo conhecido DNA. Porém, em alguns casos ele é o menos divulgado RNA. DNA e RNA têm muitas semelhanças e não por acaso dividem o N e o A de seus nomes. O N é de “nucléico”, uma vez que são sintetizados no núcleo das células. O A é de “ácido”, pois são moléculas que contêm átomos de fósforo arranjados em ácidos fosfóricos. DNA e RNA são, portanto, chamados “ácidos nucléicos”, onde vivem os genes.

    Uma das principais diferenças químicas entre os dois tipos de material genético está no contraste entre D, de “deoxi-ribo”, e R, de “ribo”. DNA – ácido desoxirribonucléico – é a versão deoxi do RNA – ácido ribonuclécio –, uma versão sem (= de) um oxigênio (= oxi).

    “Unidos na acidez e no núcleo, até que um oxigênio os separe”: estrutura dos nucleotídeos de DNA e RNA com indicação da diferença entre eles (seta verde). Quadradinhos pretos representam os átomos de carbono do açúcar.

    Este é um dos grandes contrapontos entre nossos ácidos nucléicos: a presença de um átomo de oxigênio na composição de uma das partes dos nucleotídeos, o açúcar, também conhecido como “ribose”. A localização deste átomo de oxigênio extra nos nucleotídeos de RNA e o fato de estar junto a um átomo de hidrogênio tornam as cadeias de RNA mais propensas à reação com outras moléculas, o que implica instabilidade química. RNA, ao contrário de DNA, é um polímero que degrada facilmente.

    Outra diferença entre DNA e RNA está no conjunto de bases nitrogenadas usado por cada ácido nucléico. A base nitrogenada é a parte variável da estrutura dos nucleotídeos. DNA usa as populares bases adenina (A), citosina (C), guanina (G) e timina (T). RNA também usa A, C e G, porém não usa T e, em seu lugar, existe a uracila (U).

    “A, C e G com T ou U”: as bases nitrogenadas de DNA (área salmão) e RNA (área verde). Quadradinhos coloridos representam os átomos que diferem entre as bases: vermelho – nitrogênio; amarelo – hidrogênio; preto – carbono; rosa – oxigênio.

    Na estrutura das duas moléculas, detectamos mais um ponto de distinção: DNA é um molécula maior e normalmente ocorre no formato dupla hélice, onde duas fitas torcidas formam uma espiral com as bases voltadas para dentro, respeitando o pareamento A com T e C com G; RNA pode ter extensões variáveis, mas, se comparada ao DNA, é muito menor e, na maior parte das vezes, tem estrutura de fita simples.

    “Colar simples ou duplo”: as conformações das cadeias de RNA (fita simples) e DNA (dupla hélice). Adaptado de https://www.diferenca.com/dna-e-rna/.

    Para termos referências de tamanho: o cromossomo I humano tem cerca de 249 milhões de bases (Mb) de DNA (249 milhões de nucleotídeos enfileirados!) enquanto o RNA do vírus da hepatite C tem aproximadamente 9600 bases (9,6 kb). Esta é a Natureza: um ambiente tão variável na sua diversidade macroscópica quanto nas suas dimensões microscópicas.

    As diferenças entre DNA e RNA também se estendem a suas funções intracelulares. O DNA é o cânone do armazenamento e da replicação das informações hereditárias, um material genético em sua essência. Contém os genes que codificam as proteínas de que o organismo precisa e tem a estrutura perfeita para replicar o conteúdo genético e garantir a sua transmissão ao longo das gerações. O RNA, entretanto, executa a função de material genético apenas em alguns vírus. Nos organismos vivos (as definições mais clássicas de “vida” não incluem os vírus, apesar do estrago que fazem…), ele está incumbido de várias outras tarefas biológicas: mensageiro entre DNA e proteínas; transportador de nucleotídeos, facilitador da síntese proteica, regulador das atividades de expressão do DNA, catalisador de reações, defensor contra invasores celulares, sensor de sinais ambientais etc. Para cada uma destas tarefas, ele assume diferentes conformações tridimensionais, tamanhos, composições em termos de sequência de nucleotídeos. A versatilidade funcional do RNA é digna de um texto próprio!

    GEMA PRECIOSA

    Voltemos à primeira frase de nossa conversa. “SARS-CoV-2 é um vírus RNA fita simples com cerca de 29 kb que codifica 29 proteínas”. Parece menos complexo agora que vimos um pequeno exposed do RNA no seu papel de material genético? A sentença descreve de maneira sucinta o genoma – conjunto total de genes, a sequência dos nucleotídeos – do novo coronavírus. Genoma é a gema preciosa onde está entalhado o livro das instruções biológicas, um diamante em seu valor.

    Menos de dois meses após o registro dos primeiros casos de COVID-19 na China, as primeiras sequências de nucleotídeos do RNA responsável pela pandemia já eram de domínio público. Agora sim, um grande exposed do RNA. Esta informação representou um salto de conhecimento, pois a partir dela pudemos começar a compreender a origem do SARS-CoV-2 e quais são as estruturas e artimanhas moleculares que lhe permitem ser um vírus tão bem sucedido na arte da infecção. Os primeiros genomas sequenciados foram apenas um pontapé inicial do jogo que hoje conta com outras dezenas de milhares de sequências de diferentes amostras virais coletadas no mundo todo. O escalonamento da aquisição de genomas revela quais são as rotas traçadas pelo vírus e o impacto da adoção de medidas não farmacológicas durante sua propagação e possibilita sabermos como ele está evoluindo, i.e., quais são as mutações que está sofrendo e se isso traz algum tipo de consequência para a dinâmica da pandemia.

    O sequenciamento de genomas expõe a ordem dos nucleotídeos de cada um dos genes. Com as sequências dos genes, temos as sequências das proteínas – as moléculas executoras da cartilha gravada no material genético – sem a necessidade de identificação e isolamento de cada uma delas. Isto é possível porque comparamos essas sequências com as existentes em grandes bancos de dados biológicos, onde estão disponíveis informações como, por exemplo, função. A partir da sequência de um gene, podemos inferir qual a função da proteína que ele codifica. Saber a função das proteínas é a chave para começarmos a desvendar onde e como elas agem.

    Os quase trinta mil nucleotídeos do genoma do novo coronavírus codificam proteínas de três tipos: estruturais, não estruturais e acessórias.

    “A coroa e sua joia”: SARS-CoV-2 e seu genoma, com indicação da localização e dos tamanhos relativos dos genes (caixas coloridas em laranja, vermelho e azul) e dos tipos de proteínas codificadas.

    As proteínas estruturais são responsáveis pelo reconhecimento das células do hospedeiro (“spike“), pela cobertura que envolve o material genético (“envelope” e “membrana”) e pela estabilidade do RNA (“nucleocapsídeo”). As proteínas não estruturais desempenham funções voltadas principalmente à replicação do RNA viral para confecção de novas partículas e à inibição das iniciativas da célula hospedeira de eliminar o invasor. As proteínas acessórias auxiliam o escape das partículas virais recém produzidas e impedem a célula de sinalizar sua infecção para o sistema imunológico. Não podemos negar uma reverência à sofisticação das estratégias naturais próprias de agentes etiológicos como esse vírus. Paralelamente, não podemos negar aplausos à capacidade do sistema imunológico de conseguir, muitas vezes, virar o jogo apesar de todas as boas cartadas do vírus. Sobretudo, guardemos aplausos, uma grande salva deles, para nossa habilidade de empregar esta cadeia de detalhes ao nosso favor.

    O PARAÍSO ESTÁ NOS DETALHES

    Detalhes aparentemente intangíveis, não? Por que a Ciência se dedica tanto a conhecer e entender minúcias tão pequenas que nem mesmo alguns microscópios podem mostrar? O motivo que mais nos convém agora é o fato de estes detalhes determinarem como devemos agir, da prevenção à cura. Pavimentam nosso êxodo rumo a um lugar melhor. Cada quina de informação pode determinar quais são as melhores ações profiláticas e é um ponto elegível para desenvolvimento de métodos diagnósticos, tratamentos e vacinas. O perfil das moléculas e suas características nos guiam na otimização de todas estas etapas. Alguns exemplos:

    1. Para nos defendermos de uma infecção viral, é impreterível conhecer a biologia do vírus (modo de transmissão, estrutura tridimensional, mecanismos usados para infectar as células do hospedeiro, formas de recrutamento do maquinário celular para sua replicação, estratégias de evasão do sistema imunológico etc); como vimos, grande parte destas informações está codificada no material genético do vírus;
    2. Ao precisarmos coletar amostras de um vírus RNA, conhecendo sua menor estabilidade, temos de tomar cuidados específicos para que o material coletado permaneça viável até a chegada ao laboratório;
    3. Para utilizarmos o material genético de um vírus RNA como alvo de um teste diagnóstico, precisamos incluir uma etapa extra, a síntese de moléculas de cDNA (DNA complementar à molécula de RNA, por meio da técnica de transcrição reversa), antes de podermos detectar sua presença na amostra;
    4. Ao identificarmos paralelos entre moléculas e modos de ação (e as consequentes manifestações clínicas) de um vírus emergente e de um outro já conhecido, para o qual temos um tratamento, podemos avaliar o uso de estratégias pré-existentes; isso representa um caminho muito menos longo do que a concepção de um novo fármaco a partir do zero;
    5. Ao verificarmos a existência de proteínas próprias do vírus, que não existem nas células do hospedeiro, podemos priorizá-las como alvos de ataque, diminuindo o risco de toxicidade do tratamento;
    6. Ao conhecermos as proteínas virais que são alvos do sistema imunológico, podemos produzi-las no laboratório, com base nas sequências dos genes, e usá-las como vacinas;
    7. Ao conhecermos as sequências dos genes virais, podemos usar, como estratégia vacinal alternativa, fragmentos de ácidos nucléicos sintéticos com as mesmas sequências dos genes do vírus; uma vez dentro das células, esses ácidos nucléicos levarão à produção das proteínas e à ativação do sistema imunológico.

    LANTERNAS E ARMAS DE GUERRA

    Não nos faltam motivos para investir constantemente na Ciência, a única capaz de incrementar nosso arsenal contra inimigos de sempre ou emergentes. Não é por acaso que, nas etapas iniciais de desafios causados por agentes desconhecidos, haja equívocos. São consequências diretas das lacunas no conhecimento. Na ausência do conhecimento, reverbera a conveniência das soluções mágicas, na maior parte das vezes, inúteis, quando não nocivas. Na ausência do conhecimento, ficamos reféns da passividade que deveria dar lugar à mobilização preventiva. Na sua presença, acendem-se as lanternas de emergência que apontam os caminhos de saída.

    A caminhada evolutiva das espécies não atende a demandas democráticas; é uma força que eventualmente testa nossa capacidade de reação. Nosso tempo será retratado como aquele em que a Evolução alçou ao trono uma nova coroa, monarca tão diminuta quanto impiedosa. Mostrará um governo de coação, uma fase de desconforto e de perdas dos mais diferentes tipos. No desfecho da narrativa, porém, estará a rebelião dos súditos. O ataque à casa imperial é inevitável, talvez até iminente. Ouço o barulho das indumentárias de guerra, ornadas com a sofisticação das armas científicas ora em construção à base do conhecimento de minúcias como essas que hoje vimos. Observo a disciplina no ensaio de táticas que já nos renderam vitórias em outros combates. Conhecemos cada faceta da joia que empodera a coroa. Derrubá-la é questão de tempo.

    Leia mais…

    …sobre ácidos nucléicos:

    https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK21514

    …sobre o genoma do SARS-CoV-2:

    https://www.nytimes.com/interactive/2020/04/03/science/coronavirus-genome-bad-news-wrapped-in-protein.html

    https://brasil.elpais.com/brasil/2020/05/13/ciencia/1589376940_836113.html

    Este texto foi escrito originalmente no blog DNA Explica

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Impactos psicossociais da pandemia são severos em profissionais da saúde

    Por João Pedro Broday

    Segundo o Ministério da Saúde já são mais de 32 mil profissionais da saúde contaminados pelo novo coronavírus. Além dos impactos diretos da doença, os trabalhadores da linha de frente ao combate à doença são também os mais vulneráveis aos impactos na saúde mental. 

    Estudo realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), liderado por Felipe Ornell e Silvia Chwartzmann Halpern, divulgado na última edição da revista Caderno de Saúde Pública, utilizou epidemias anteriores para desenvolver um cenário para a pandemia atual. O trabalho indicou que durante a epidemia de Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave), em 2003, 18 a 57% dos profissionais da saúde tiveram sérios problemas emocionais e psiquiátricos. Já em 2015, durante a epidemia de Mers (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), também causada pelo coronavírus, estresse e fadiga também foram observados. 

    “Estudos prévios mostram que eventos de contaminação podem ser seguidos por impactos drásticos na saúde psicossocial individual e coletiva, tornando-se, eventualmente, mais danosos que a própria pandemia”, alertam os pesquisadores. 

    Os autores verificaram que, com o alta demanda por serviços de saúde, há o aumento da jornada de trabalho que, aliada com a infraestrutura precária, a falta de equipamentos de proteção individual (EPI) e a preocupação com a auto inoculação, aumentam a sobrecarga emocional nesses profissionais, trazendo consequências psíquicas com sentimento de solidão, estresse, irritabilidade, fadiga mental e física, insônia, desespero e até mesmo estresse pós-traumático (TEPT). 

    “Estudo recente com profissionais da saúde no tratamento da Covid-19 encontraram altas incidências de estresse e ansiedade, com maiores índices em mulheres e enfermeiras, quando comparadas com homens e médicos, respectivamente. Isto pode ser explicado pelos longos turnos e contato intenso com pacientes por parte das enfermeiras”, enfatizam os autores.

    A imagem de super-herois

    “Uma tendência que é mais desencadeada na Covid-19 é dar aos profissionais de saúde um status de super-heróis e, se por um lado isto agrega valor, por outro há pressão adicional, porque os super-heróis não falham, não desistem ou ficam doentes”, afirmam Felipe e co-autores.  

    De posse dessas informações, o estudo indicou que o cuidado psicológico dos profissionais da saúde deve ser ampliado, especialmente para aqueles que apresentam doenças crônicas, ou vivem com crianças ou idosos. Os sintomas somáticos também devem ser avaliados, bem como ser fornecido tratamento psicológico a esses profissionais, como foi feitos em RenMin Hospital e no Centro de Saúde Mental, em Wuhan, na China, primeira cidade onde a Covid-19 foi diagnosticada. Nesses locais, foram criados guias e consultas online com equipes multiprofissionais, permitindo uma melhor psicoeducação e a identificação de sintomas nos próprios integrantes das equipes médicas.  

    “No Brasil, onde há uma escalada no número de casos, estratégias de saúde para profissionais de linha de frente precisam ser intensificadas. Se eles não forem priorizados, além do possível colapso do sistema de saúde, teremos o colapso emocional dos profissionais”, afirma o estudo. O trabalho também indica que tal colapso influenciará diretamente na disponibilidade humana e de recursos durante a pandemia e pode ser solucionado com a criação de centros médicos em áreas mais distantes e o desenvolvimento de programas governamentais de escala regional e municipal, visto que cada região apresenta peculiaridades no enfrentamento à doença.

    “Uma estratégia complementar é o estabelecimento de parcerias com instituições da sociedade civil e implementação de sistemas de assistência remota. Atualmente, diferentes iniciativas estão sendo desenvolvidas por universidades e centros privados de saúde mental com objetivo de prover suporte online e de telefonia a profissionais da saúde”, sugerem os autores do artigo.

    Acesse o artigo completo

    ORNELL, Felipe et al . The impact of the COVID-19 pandemic on the mental health of healthcare professionals. Cad. Saúde Pública,  v. 36, n. 4,  2020.   Epub Apr 30, 2020. 

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • O que são Anticorpos?

    A partir da expansão da COVID-19, temos visto muitos comentários sobre o sistema imune e seu funcionamento. A imunologia é uma das áreas das ciências da saúde e biológicas mais amplas e cheias de detalhes difíceis de compreender. Hoje eu vou falar um pouco sobre o tema, enfatizando os anticorpos. Você sabe o que são os anticorpos?

    Também chamados de Imunoglobulinas (ou simplesmente Igs), os anticorpos são proteínas do sistema imune, sendo os principais atores na chamada resposta imune humoral. A resposta imune humoral é o braço da resposta imunológica que está nos líquidos extracelulares, como por exemplo o plasma do sangue. A principal atuação da resposta imune humoral é contra patógenos extracelulares, como bactérias e protozoários.

    Todos os anticorpos são iguais?

    Os anticorpos não são todos iguais. Além de haver pequenas diferenças na sua estrutura física, cada tipo é especializado para uma função. Existem 5 tipos:

    • IgA: estão presentes no sangue, nos fluídos extracelulares, no leite materno e tem uma grande importância na proteção das mucosas;
    • IgD: é o primeiro tipo de anticorpo produzido pelas células. Não se entende muito bem qual é sua função até hoje;
    • IgE: muito importante na defesa contra vermes e nas alergias;
    • IgG: é o tipo de anticorpo mais presente no sangue e em fluidos extracelulares, é capaz de efetuar todas as funções dos anticorpos (que explicaremos melhor neste texto), e são capazes de atravessar a placenta;
    • IgM: é o segundo tipo de anticorpo produzido pelas células, muito presente no início das infecções, posteriormente é trocado para um tipo mais específico de Ig (dos tipos A, E ou G).

    Como são produzidos?

    Os anticorpos são produzidos por células chamadas linfócitos B, mais especificamente por um tipo muito especial dessa célula, os chamados Plasmócitos.

    Indo um pouco mais a fundo nesse tópico, nós temos distribuídos por todo o nosso corpo os chamados linfonodos, órgãos do sistema imune responsáveis por fazer a drenagem de líquido e antígenos dos nossos tecidos. Um antígeno nada mais é do que qualquer partícula capaz de se ligar a um anticorpo ou ao receptor específico do linfócito T. São nestes linfonodos que estão armazenados os nossos linfócitos T e B.

    De uma forma simplificada e focando especificamente nos linfócitos B, quando essas células encontram um antígeno de origem externa (ou seja, que não foi produzida pelo nosso corpo), ou mesmo de um patógeno como uma bactéria, elas internalizam esse antígeno (ou o patógeno inteiro) e o digerem. Internalizam? Como assim?!? Em outras palavras: elas literalmente comem esse patógeno ou antígeno.

    Depois disso, esses linfócitos B começam a sofrer algumas modificações que levam a diferenciação dessas células em plasmócitos, que nada mais são do que as fábricas de anticorpos dos organismos. Ao fim de uma infecção, a maioria desses plasmócitos irão morrer. Existe aí um porém bem importante! É que algumas poucas células vão se tornar células de memória, migrando para a medula óssea e morando lá por vários anos (alguns tipos podem chegar a durar a vida toda do organismo). Assim, constitui-se a chamada memória imunológica.

    Maior, mais rápida, mais forte, mais ágil: O que é memória imunológica?

    Para falar sobre memória imunológica, precisamos entender dois conceitos muito importantes: a resposta imune inata ou natural e a resposta imune adaptativa ou adquirida.

    Resposta imune inata

    A resposta imune inata é aquela que já nasce conosco, e que nos permite gerar uma resposta imune desde o momento em que chegamos a esse mundo. Essa resposta imune está sempre em atuação, não importando se a resposta imune adaptativa começa a ocorrer ou não. Dessa forma, podemos dizer que ela atua (temporalmente falando), antes da resposta imune adquirida. Além disso, há duas outras características muito importantes dela: ela não tem memória e é capaz de reconhecer somente algumas partes específicas de patógenos, os chamados Padrões Moleculares Específicos de Patógenos – ou PAMPs para os mais íntimos.

    Resposta Imune Adaptativa

    Já a resposta imune adaptativa, é aquela que desenvolvemos com o passar da vida, ao entrar em contato com diferentes tipos de patógenos e substâncias. Quem já ouviu da avó “deixa a criança brincar na terra que vai ficar mais saudável” sabe do que estamos falando! Pelo solo ter milhares de bactérias e outros microrganismos, ao entrarmos em contato com todos esses microrganismos acabamos por estimular nossa imunidade adquirida, que ainda não é muito desenvolvido quando somos muito jovens. É por isso que é tão comum bebês e crianças muito novas ficarem doentes tantas vezes, por exemplo, quando começam a ir para a creche.

    Falando sobre as características da resposta imune adaptativa, ela começa a ocorrer alguns dias após a exposição a um patógeno persistente, assim, temporalmente esse tipo de resposta acontece mais tarde, alguns dias após o início da resposta imune inata. Com isto queremos dizer que a resposta imune adaptativa precisa reconhecer que algo que é “de fora do nosso corpo” é um patógeno. Ao fazer isso, ele produzirá uma defesa específica para este patógeno (um vírus, uma bactéria, por exemplo), para combatê-lo.

    Além disso, esse tipo de resposta usa as famosas células imunes chamadas Linfócitos T e B, que têm a capacidade de reconhecer praticamente qualquer partícula de um patógeno de forma muito específica a partir de seus receptores. E isso é o que garante a característica mais importante da resposta imune adquirida: a memória imunológica. Ela é o que dá a capacidade do sistema imune de lembrar de um antígeno já encontrado e responder mais rápido, mais especificamente e com maior intensidade nas próximas exposições ao mesmo microrganismo. Ao lado dos linfócitos T de memória, os anticorpos e plasmócitos de memória são os principais componentes da memória imunológica.

    Quais são as funções de anticorpos?

    Como eles atuam no organismo? Mas o que os anticorpos fazem para serem tão especiais? Essas proteínas possuem 4 funções bem definidas:

    Neutralização:

    os anticorpos se ligam a antígenos dos patógenos bloqueando a ação dessas moléculas, por exemplo, impedindo que uma proteína essencial para a entrada de um vírus se ligue ao receptor das nossas células, impedindo assim a entrada desse vírus;

    Opsonização:

    apesar do nome complicado, uma metáfora que podemos usar para essa palavra seria “temperar”. Quando um anticorpo se liga no antígeno de um patógeno, isso facilita que outras células do sistema imune enxerguem esse microorganismo, facilitando para tal célula comer o patógeno (se esse for por exemplo uma bactéria). E daí que vem a metáfora! Pois com o anticorpo ligado nesse microrganismo, a célula “acha ele mais gostoso” facilitando que ele seja engolido e destruído;

    Citotoxicidade Dependente de Anticorpo:

    um outro nome muito complicado, mas que em poucas palavras pode ser explicado como um auxílio a alguns tipos celulares como células Natural Killers, um tipo específico de Linfócito T e Eosinófilos, ao combate de vermes, células infectadas e tumorais.

    Ativação do Complemento:

    por fim, os anticorpos também podem ajudar a iniciar o Sistema Complemento, um grupo de proteínas muito importantes do plasma que também atuam na resposta imune humoral e que ajudam a estourar e comer microrganismos, como as bactérias.

    Por fim…

    Como vimos, os anticorpos têm muitas funções, algumas delas bem poderosas como a Citotoxicidade Dependente de Anticorpos. Porém, como já foi dito, a resposta imune humoral é muito poderosa contra patógenos extracelulares (aqueles que ficam fora das células). Apesar da função dos anticorpos se resumir a uma só (a neutralização) contra patógenos intracelulares (aqueles que invadem nossas células, como o vírus), esse tipo de resposta imune continua sendo muito importante e eficiente.
    Nesse caso, a principal função dos anticorpos irá se resumir à

    Neutralização, da seguinte forma: quando os vírus infectarem uma célula, eles irão escravizá-la e forçá-la a produzir milhares de cópias de si mesmos. Depois de um tempo, as células ficam tão cheias que podem estourar e liberar esses vírus. De uma outra forma, as células podem começar a liberar os vírus calmamente, envolvendo-os com sua membrana. De uma forma ou de outra, esses vírus acabam no meio extracelular, prontos para invadir novas células e infectá-las. É nesse momento que os anticorpos atuam, se ligando as proteínas da membrana do vírus e muitas vezes impedindo que eles entrem em nossas células. Assim, dizemos que esses vírus foram neutralizados.

    No próximo post eu vou falar um pouco mais sobre o tratamento a partir de anticorpos, especialmente a partir dos conceitos de Imunidade Passiva e Plasma Covalescente. Ficou curioso! Aguarde e já publicaremos sobre o tema.

    Artigos Citados

    1. Casadevall A, Dadachova E, Pirofski LA (2004) Passive antibody therapy for infectious diseases. Nat Rev Microbiol; 2(9):695-703

    2. Brown, BL, & McCullough, J (2020) Treatment for emerging viruses: convalescent plasma and COVID-19, Transfusion and Apheresis Science, 102790.

    3. World Health Organization (2014) Use of convalescent whole blood or plasma collected from patients recovered from Ebola virus disease for transfusion, as an empirical treatment during outbreaks. Interim guidance for national health authorities and blood transfusion services; Geneva: World Health Organization

    4. Tanne JH (2020) Covid-19: FDA approves use of convalescent plasma to treat critically ill patients. BMJ 2020;368:m1256. 

    5. Bloch EM, Shoham S, Casadevall A, et al (2020) Deployment of convalescent plasma for the prevention and treatment of COVID-19 J Clin Invest; 130(6):2757-2765.

    6. Sullivan, HC, & Roback, JD (2020) Convalescent plasma: therapeutic hope or hopeless strategy in the SARS-CoV-2 pandemicTransfusion Medicine Reviews.

    Para saber mais:

    Marano, G, Vaglio, S, Pupella, S, Facco, G, Catalano, L, Liumbruno, G. M, & Grazzini, G (2016) Convalescent plasma: new evidence for an old therapeutic tool? Blood Transfusion, 14(2), 152.

    Center for Biologics Evaluation and Research, USF and DA (2020) Recommendations for investigational COVID-19 convalescent plasma

    Duan, K, Liu, B, Li, C, Zhang, H, Yu, T, Qu, J, … & Peng, C (2020) Effectiveness of convalescent plasma therapy in severe COVID-19 patients. Proceedings of the National Academy of Sciences, 117(17), 9490-9496.

    Rojas, M, Rodríguez, Y, Monsalve, DM, Acosta-Ampudia, Y, Camacho, B, Gallo, JE, … & Mantilla, R D (2020) Convalescent plasma in Covid-19: Possible mechanisms of action; Autoimmunity Reviews, 102554.

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Blog Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Meu teste deu positivo. E agora? Entendendo a sensibilidade e a especificidade dos testes diagnósticos

    Os testes para diagnóstico de doenças são bons? São ruins? Funcionam? Vamos destrinchar um pouco sobre a teoria dos testes diagnósticos de uma forma mais intuitiva sem precisar de fórmulas. Vamos ver que os testes não são livres de erros. Vamos entender o que significa dizer que um teste tem 95% de sensibilidade… E, principalmente, por que isso não te conta a história toda!

    Esse post foi elaborado a partir da série de tweets escrita pelo Felipe Campelo*, com algumas pequenas alterações para se adequar melhor aqui no formato do blog!

    Antes de mais nada: o que explicamos aqui não tem nada a ver com a marca ou o tipo do teste (ao longo do texto você vai entender o porquê), mas sim com a matemática que está por trás do diagnóstico. Isso, porque os testes diagnósticos compreendem uma importante aplicação da teoria da probabilidade. Mas não precisa fugir – como falei antes, prometo que não vamos te pedir para decorar nenhuma fórmula! Vamos lá?

    Para começar a entender o que acontece quando você faz um teste para qualquer doença, vamos pensar que você só tem duas possibilidades: ou está doente, ou está saudável. O teste também só tem 2 possibilidades: ou é positivo, ou é negativo.

    Vamos desenhar para ficar mais fácil!

    Essas duas variáveis resultam em 4 possibilidades:

    – Você está doente e o teste é positivo: verdadeiro positivo (VP).

    – Você está saudável e o teste é negativo: verdadeiro negativo (VN).

    – Você está saudável e o teste é positivo: falso positivo (FP).

    – Você está doente e o teste é negativo: falso negativo (FN).

    Se olharmos para os totais de cada linha e cada coluna, vemos que:

    – as colunas nos dizem quanta gente está doente (ND) ou saudável (NS).

    – as linhas dizem quanta gente testa positivo (N+) ou testa negativo (N-).

    – o último quadro da diagonal nos indica o número total de pessoas na população (N).

    A sensibilidade e a especificidade de um teste dizem respeito às colunas:

    A Sensibilidade do teste é a proporção entre o número de doentes que o teste consegue detectar (VP) e o número total de doentes (ND). Em outras palavras, é a probabilidade de o teste ser positivo para uma pessoa doente: P(Teste+|doente).

    A Especificidade informa qual a proporção entre o número de pessoas saudáveis que o teste detecta como “negativas” (VN) e o número total de pessoas saudável (NS). Em outras palavras, é a probabilidade de o teste ser negativo para uma pessoa saudável: P(Teste-|saudável).

    Até aqui tudo bem, mas tem um probleminha: o que eu quero saber não é a chance do teste dar positivo caso eu esteja doente – o que eu quero saber de verdade é: Se o meu teste deu positivo (N+), qual a chance de eu estar realmente doente (VP)? [é inclusive o nome desse post!] E essas duas coisas normalmente são diferentes. Essa outra coisa que eu normalmente quero saber também tem um nome bonitinho: precisão, que a gente descobre olhando para as linhas do nosso quadro.

    A Precisão (ou valor preditivo positivo) é a relação entre a quantidade de pessoas doentes que testaram positivo (VP) e o número total de testes positivos (N+). Em outras palavras, é a probabilidade de você estar doente, dado que o teste deu positivo: P(Doente|Teste+)

    E é aqui que entra o probleminha que eu mencionei acima. O quadro faz parecer que é muito simples calcular a precisão. E até que é, desde que você tenha uma ideia do quão prevalente a doença é na população. A Prevalência nos indica qual é o porcentual de pessoas que realmente estão doentes (ND) na população (N).

    Vamos imaginar, por exemplo, que a tenhamos um teste de 95% de sensibilidade (95% de chance de dar positivo se você estiver doente) e 95% de especificidade (95% de chance de dar negativo se você estiver saudável). Como podemos fazer para calcular qual a precisão do teste?

    Como falamos ali em cima, precisamos saber da prevalência da doença. Aqui, neste exemplo, vamos estipular que a taxa-base doença seja de 1%, ou seja, a doença afeta 1% da população (100 em cada 10.000). Agora fica bem fácil usar a sensibilidade e especificidade do teste para calcular os testes positivos e negativos em cada coluna. Vamos lá!?

    Repara direitinho nos valores da tabela… É aí que vem a coisa curiosa!

    Embora esse teste de faz-de-conta tenha 95% de sensibilidade e de especificidade, a maioria das pessoas que testa positivo seria de falsos positivos (495), simplesmente porque teria muito mais gente saudável do que doente.

    Além disso, a precisão, nesse caso hipotético, seria de só 16,1% – em outras palavras: você teria chance de 16,1% de estar doente caso seu teste dê positivo!

    Assim, se o teste dá positivo, a sua chance de estar realmente doente ainda seria relativamente baixa, embora seja 16 vezes maior do que a taxa-base da população (que é de 1%).

    É um pouco, confuso… mas é assim mesmo quando vemos isso pela primeira vez. Se precisar, dê mais uma olhadinha antes de prosseguir para olhar a próxima tabelinha!

    Aqui, vamos usar dados mais realistas (ainda que antigos)! Vamos considerar um teste para COVID com especificidade de 99% (mais comum) e para a prevalência da doença, vamos utilizar 10,6% (a estimativa de COVID em Manaus no relatório do Imperial College do dia 08/05). Considerando esses dados, a fazendo as contas igual fizemos ali em cima, temos a precisão do teste seria de 91,8%.

    Agora, para efeitos de comparação, se considerássemos esse mesmo teste, mas com a prevalência estimativa para São Paulo na mesma data teríamos: Prevalência de 3,3%, Sensibilidade de 95% e Especificidade de 99%. Fazendo os cálculos, a Precisão seria de 76,6%.

    Bom… Isso quer dizer que se a prevalência for baixa e você testar positivo pode sair por aí felizão? NÃO!

    Quando fizemos esses cálculos, dessa forma, estamos considerando que uma pessoa aleatória fazendo o teste. Porém, geralmente quando você é testado, você provavelmente tem ou teve sintomas (ou morreu de causa suspeita), ou entrou em contato com alguém que teve COVID. Isso tudo impacta no cálculo e deve ser levado em consideração. Por exemplo, a prevalência entre pessoas com sintomas é MUITO maior do que na população em geral.

    OUTROS PONTOS RELEVANTES !
    – A interpretação do resultado de um teste diagnóstico depende de qual parcela da população está sendo avaliada (é um indivíduo qualquer ou de um grupo de risco?).
    – Situações prévias (sejam subjetivas ou objetivas) influenciam o cálculo. Esse tipo de estatística que fizemos aqui, recebe o nome de cálculos bayesianos ou lógica bayesiana.
    – Os cálculos apresentados aqui servem para qualquer tipo de teste. Usamos exemplo da COVID por ser o que estamos passando no momento. Mas pode ser um teste de gravidez, um teste para detecção de HIV, etc.
    – Em Estatística chamamos os falsos positivos de erro tipo I, e os falsos negativo de erro tipo II.

    *Felipe Campelo é professor da Escola de Engenharia da UFMG (Departamento de Engenharia Elétrica) e trabalha com a integração entre modelagem estatística e otimização, e com aplicações de aprendizado de máquina para (entre outras coisas) priorização de alvos na investigação de exames e vacinas. Além disso, faz divulgação científica no Twitter.

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    BIBLIOGRAFIA

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