Categoria: ESPECIAL COVID-19

  • Coronavírus no Brasil, o que fazer?

    Postagem publicada originalmente em 26 de fevereiro de 2020.

    599px-2019-nCoV-CDC-23312_without_background


    Em 25 de Fevereiro tivemos o primeiro caso de coronavírus confirmado no Brasil. E 26 de fevereiro foi marcado como o primeiro dia em que a OMS registrou mais novos casos fora da China do que dentro dela, o que indica que a epidemia está se espalhando. Estamos entrando no momento onde a doença se espalha para o mundo.
    O que fazer a respeito? Atualizo meu Twitter e meu Instagram constantemente com novas informações. E segue um texto com o material a respeito. Se você prefere vídeos, aqui vão dois episódios e uma live de 1h sobre o tema:
    https://www.youtube.com/watch?v=e-JaQOeFxtI
    https://www.youtube.com/watch?v=X1IamY2uTbo
    https://www.youtube.com/watch?v=xARmN9qurAY
    Essa live foi gravada dia 26/02 e é a mais atualizada.
    Aqui também tem um vídeo que você pode baixar e compartilhar.

    O que é o coronavírus?

    O coronavírus ou SARS-CoV-2 (nome oficial) é um vírus respiratório que provavelmente saltou de morcegos para humanos e começou a circular em Wuhan, na China. E causa a infecção respiratória por coronavírus, com o nome oficial de COVID-19. Suspeitamos que ele tenha vido de pangolins, mas pelas adaptações que o vírus que encontramos em pangolins já tem, é um vírus que está muito bem adaptados para humanos e possivelmente veio de outra fonte. Não temos nenhuma evidência de que é uma arma biológica nem escapou de um laboratório.

    Quem é afetado pela COVID-19?

    Severidade dos casos de acordo com a idade. Dados do Centro de Controle de Doenças da China.
    Severidade dos casos de acordo com a idade. Dados do Centro de Controle de Doenças da China.

    A mortalidade do vírus é relativamente baixa, entre 2% e possivelmente menos de 1% se o número de pessoas infectadas sem sintomas for grande. Isso é menor do que a SARS de 2003 (que chegou a 10%), mas é uma mortalidade maior do que a gripe anual (menos de 0,1%) que pode se tornar séria se o número de infectados chegar aos milhões como acontece com a gripe. A maioria das pessoas que pega o vírus não tem sintomas ou tem sintomas leves (81% dos casos). Essa estimativa é bem sólida e foi feita com base nos 72 mil casos analisados pelo CDC Chinês.
    O tratamento prevê internação e cuidado dos sintomas. Não temos remédio ou vacina contra o vírus ainda, precisamos cuidar da dificuldade respiratória e prevenir pneumonia ou complicações para dar tempo do próprio corpo cuidar do vírus. O mais preocupante são os outros 19%, que precisam ser internados. Essa severidade e a mortalidade também dependem da idade e de condições pré-existentes. São dois grupos mais preocupantes. Idosos, como o gráfico de cima mostra, e pessoas com problemas crônicos como doenças cardíacas, hipertensão, doenças respiratórias como asma e diabetes a mortalidade pode chegar a 10%.
    Apesar de quase o mesmo número de homens e mulheres infectados, quase o dobro de homens morreram. Levantam a possibilidade de isso ter a ver com fumo, já que mais da metade dos homens chineses fumam, enquanto só 2% das mulheres têm esse hábito.

    Quais os sintomas?

    Segundo o estudo com o registro médico de 1100 pacientes chineses, os sintomas mais comuns foram febre (89%), tosse (68%), náusea ou vômito (5%) e diarréia (4%). O período de incubação foi de 2 a 7 dias, com uma mediana de 4. Cerca de 5% deles precisaram de internação na UTI.

    O que muda se novos casos aparecerem por aqui?

    Fases de Emergência da COVID-19, em 25 de fevereiro entramos no 3º nível.
    Fases de Emergência da COVID-19, em 25 de fevereiro entramos no 3º nível.

    Como disse o Ministério da Saúde, em 25 de fevereiro, entramos na fase de Emergência de Saúde Pública, onde temos um caso confirmado no país. Caso a transmissão aconteça dentro do Brasil, entre pessoas que não estão voltando de outros países, entraremos na fase seguinte, que é a de contenção.
    Segundo o plano de contingência, se passarmos de 100 casos confirmados no país, entra a fase de mitigação. Onde não tentamos mais impedir que o vírus entre, mas sim que ele circule. O ponto dessa fase é tomar medidas que fazem a doença se espalhar o mais lentamente possível, para que todos possam ter atendimento médico.
    Sua empresa tem um plano para como deixar as pessoas trabalharem remotamente? Qual a equipe que precisa estar presencial? A creche ou a escola dos seus filhos vai fechar? Quem vai ficar com as crianças se seu trabalho não deixar você em casa? Sua faculdade terá aulas suspensas? Seu maior preparo não é comprar máscara ou estocar comida, ao que tudo indica só em algumas regiões da China chegaram a esse extremo. A preocupação é: vou trabalhar de casa? A faculdade vai fechar? A escola vai parar? Isso tudo acontece muito antes. Nos outros países como Itália e Coréia do Sul, que já estão nessa fase, nas regiões afetadas comércios não essenciais fecham, escolas e creches fecham, o transporte público fica restrito ao essencial. Muitas companhias mandaram os funcionários trabalharem de casa. Se quiser se prevenir, pense em como vai ser se o mesmo acontecer aqui.

    Como não se contaminar? E o caso de pessoa reinfectada?

    É um vírus transmitido por saliva e muco. Limpar bem as mãos, lavar constantemente e usar álcool gel, proteger o rosto quando for espirrar e evitar aglomerações.
    Sobre os possíveis casos de reinfecção pelo vírus e a japonesa que pegou coronavírus mais de uma vez, os próximos passos são descobrir o que tem de extraordinário aí, se a imunidade dela (incompleta) ou o vírus. Se for algo particular dela ou de algum grupo de infectados, menos mal. Se for o vírus, e pelo genoma dele podemos ter uma noção, vamos descobrir conforme mais casos de reinfectados aparecerem (aguardemos). Pode ser que o vírus não desperta uma imunidade protetora o suficiente ou que ele já mudou o suficiente para escapar (daí olhar pro genoma). Só temos um caso registrado e alguns relatos ainda, não dá para se ter uma noção do tamanho do problema. Se reinfecção se tornar algo comum, o potencial de infectados pela doença se mantém enorme e a vacina provavelmente vai encontrar dificuldades. Pesquisadores chineses publicaram um artigo sobre algumas pessoas que continuam testando positivo para o coronavírus depois de dispensadas da quarentena, até 2 semanas depois. Elas não transmitiram o vírus para ninguém, mas parecem continuar produzindo um pouco de vírus no pulmão, o que explicaria a impressão de que foram infectadas de novo.

    Tem tratamento?

    É bem difícil de ter um remédio contra vírus, porque a maior parte do que eles usam para se reproduzir vem das nossas células. Então, mesmo os compostos que agem contra um vírus como o HIV geralmente agem só contra ele. Algumas vezes damos sorte e o uso é mais geral. Esse é o caso do remdesvir. Um composto desenvolvido contra o Ebola que atrapalha polimerases que copiam RNA. Nós não copiamos RNA, só fazemos ele a partir do nosso DNA, então esse tipo de droga não nos afeta. Como o coronavírus também é um vírus de RNA que copia o próprio genoma, o remdesvir pode atrapalhar ele nessa fase. É um resultado que já corta muito caminho, pois esse composto foi um dos mais eficientes contra o coronavírus e já havia sido testado para uso em humanos. Estão avançando os testes para tratar coronavírus agora. O irônico é que temos pesquisa no Brasil com compostos parecidos com o remdesvir contra zika e dengue, potencialmente melhores até, mas faltou a grana para mais testes por aqui.

    Quer mais informação? Participei de vários podcasts discutindo o coronavírus:

    Dragões de Garagem
    Mamilos
    Nerdcast
    Xadrez Verbal (com um pouco de coronavírus e muito sobre minha trajetória)

    Material de referência

    Estudo falando da Origem do SARS-CoV-2 e como não parece ser pangolim:
    The Proximal Origin of SARS-CoV-2 – http://virological.org/t/the-proximal-origin-of-sars-cov-2/398
    Dúvidas sobre diagnóstico e tratamento: https://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/coronavirus
    Notificação de casos suspeitos e conformados no Brasil: http://plataforma.saude.gov.br/novocoronavirus/
    Acompanhamento dos casos confirmados no mundo: https://gisanddata.maps.arcgis.com/apps/opsdashboard/index.html#/bda7594740fd40299423467b48e9ecf6
    Boletim do CDC Chinês sobre os 72 mil primeiros casos: http://weekly.chinacdc.cn/en/article/id/e53946e2-c6c4-41e9-9a9b-fea8db1a8f51

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • O isolamento social está funcionando? Os memes respondem

    No último dia 20 de março, a Unicamp já completava sua primeira semana de isolamento social enquanto vários setores da indústria e do comércio, incluindo escolas públicas e privadas, ainda estavam em funcionamento (no estado de São Paulo, a quarentena seria decretada apenas 2 dias depois).

    Enquanto eu me encontrava numa situação de assimilar essa nova realidade, recebi, na mesma tarde, três memes bastante semelhantes entre si.

    Todos os três viralizaram rapidamente, entrando para ranking de postagens mais populares nos grupos das famílias, dos pais da escola, do bairro e da garotada.

    Ao analisar os memes, parece que a intenção é muito boa: convencer as pessoas a ficarem em casa. Porém, a estratégia de convencimento é duvidosa: o medo.

    Estes infográficos não são muito diferentes de quando eu já estava cansada de correr atrás do meu irmão menor e dizia para ele não entrar no quarto porque lá tinha um fantasma assustador (tadinho, morria de medo).

    Estes memes apresentam uma narrativa mais ou menos assim: compare os números de casos no Brasil e na Itália no mesmo momento da epidemia (23° e 24° dias) e extrapole o número de casos no Brasil, tomando-se a Itália como modelo. Quantos mortos teremos?

    E foi assim, convencidos pelo medo de um futuro incerto, que os cidadãos de São Paulo talvez tenham iniciado sua quarentena.


    Fantasmas existem

    Conforme meu irmão foi crescendo, ele começou a adquirir coragem de ir dar uma “espiadinha” no quarto para ver o tal fantasma. Depois de algumas vezes, ele concluiu o óbvio: vinha sendo enganado.

    Nas últimas duas semanas, muitos estão repetindo o mesmo raciocínio em relação à COVID-19. A diminuição da adesão ao isolamento social já é medida e observável. Por necessidade, ou por curiosidade, muitos foram “dar uma espiadinha” e, por falta de evidências de corpos empilhados nas ruas, construíram suas hipóteses, dentre elas:

    • a COVID-19 não é um monstro;
    • ela é só uma invenção de uma irmã maldosa.

    Temos então uma boa e uma má notícia.

    A boa notícia é que, ao alcançarmos o 49° dia da pandemia no Brasil, nossos números oficiais registram cerca de metade das mortes previstas pelo agourento meme (na verdade, essa é uma notícia excelente!).

    A má notícia é que fantasmas existem.

    O paradoxo do isolamento social é que, se ele funciona, as pessoas acham que ele não é necessário.


    Por que o meme errou?

    Para tentar responder essa pergunta, vamos fazer a seguinte brincadeira:

    1. Vamos voltar no tempo no tempo 7 dias (mais precisamente no dia 6 de abril);
    2. Faremos uma projeção pessimista e uma projeção otimista da evolução dos casos;
    3. Voltamos ao presente e verificamos como nos saímos.

    Vamos repetir a brincadeira para os 5 estados brasileiros com maior número de casos de COVID-19: Pernambuco (5°), Amazonas (4°), Ceará (3°), Rio de Janeiro (2°) e São Paulo (1°).

    Nos gráficos abaixo, o cenário pessimista é pintado de vermelho. Ele pressupõe que a evolução dos casos seguiria, ao longo da última semana, um crescimento exponencial.

    o cenário otimista, é pintado de verde. Este modelo, “enxerga” um achatamento da curva em qualquer queda da taxa de crescimento de um dia para outro (regressão logística).

    Os pontos em azul, representam a trajetória real do que aconteceu na última semana.

    4° e 5° lugares – Pernambuco e Amazonas

    Pernambuco e Amazonas experimentaram uma taxa de crescimento acelerada na última semana. Como resultado, suas trajetórias de evolução de casos não apresentaram nenhum esboço de achatamento da curva. Assim sendo, não foi possível nem mesmo projetar o cenário otimista. Os gráficos mostram apenas o cenário pessimista com base numa projeção exponencial.

    A triste notícia é que, em ambos os estados, o crescimento do número de casos se mostrou mais acelerado que o cenário pessimista, na maioria dos dias.

    Amazonas e Pernambuco tiveram uma semana de crescimento acelerado dos casos de COVID-19

    2° e 3° lugares – Rio de Janeiro e Ceará

    Ainda que estejam com taxas aceleradas de crescimento do número de casos da COVID-19, o Rio de Janeiro e Ceará conseguiram escapar do fantasma do cenário pessimista e terminaram a semana com um número de casos menor que o previsto neste cenário.

    Rio de Janeiro e Ceará mostram sinais de desaceleração ao longo da última semana, ainda que estejam numa forte ascendente

    1° lugar – São Paulo

    Dos 5 estados brasileiros com maior número de casos de coronavirus, São Paulo é o estado que mais se aproximou do cenário otimista na última semana. Infelizmente, isso está longe de ser motivo de orgulho para o estado que se aproxima da marca dos 10.000 casos confirmados de COVID-19.

    Em resumo, sendo São Paulo o principal contribuinte para o número de casos de COVID-19 no Brasil, o meme basicamente errou porque São Paulo não seguiu curvas de crescimento no número de casos tão velozes quanto as italianas. De alguma maneira, conseguimos desacelerar esta curva.

    São Paulo se aproximou do cenário otimista na última semana.


    O vírus se espalhou até numa sauna

    Ainda que já tenhamos sido bombardeados por informações sobre porque o isolamento social nos ajuda a conter o número de mortos pelo coronavirus, estes gráficos por si só não provam que a quarentena seja a principal responsável pela aparente desaceleração do número de casos em São Paulo.

    Mas podemos argumentar em cima de algumas perguntas e hipóteses que circulam:

    O Brasil não é a Itália em termos de clima, logo não teremos tantas mortes quanto eles. Estudos sobre a COVID-19 e como ela é afetada por parâmetros climáticos ainda estão em andamento. Alguns estudos pequenos não conseguiram mostrar que o clima mais quente e úmido pode enfraquecer a transmissão da doença. Neste artigo por exemplo, eles analisam o caso de pacientes que foram infectados por terem frequentado uma sauna, ambiente com temperaturas entre 25°C e 41°C e umidade 60%. Ainda que o efeito climático possa existir, aparentemente ele não é tão relevante a ponto de frear fortemente a evolução da doença, por exemplo, no Amazonas, estado brasileiro de temperaturas altas e clima úmido. Por outro lado, é um fato que estamos caminhando para o inverno, período onde o número de doenças respiratórias comprovadamente aumenta no Brasil, principalmente no Sul e Sudeste.

    A Europa é um continente de idosos, por isso não temos que nos preocupar com tantas mortes quanto países europeus. Esta hipótese talvez já tenha sido enfraquecida pelo cenário triste que estamos observando nos Estados Unidos, com mais de 20.000 mortos pela COVID-19 (vamos escrever por extenso? vinte mil mortos). Porém, vale mencionar que apesar de um dos principais fatores de risco da COVID-19 ser a idade, existem outros fatores de risco ainda pouco estudados no caso do coronavirus: a pobreza, a má-nutrição, a falta de saneamento básico (ou seja, uma torneira para lavar as mãos), entre outros. Brasil e África certamente fornecerão dados para o resto do mundo sobre esta questão ao longo das próximas semanas.


    A hora do sacrifício

    De alguma maneira, parece que muitos estão com menos medo do coronavirus hoje, do que há 50 dias atrás.

    Talvez seja o medo de monstros (menos discretos e mais visíveis que os fantasmas), tais como: as dificuldades financeiras, a perda do emprego, a fome.

    Apesar dos memes agourentos do início deste post terem errado a data, infelizmente, em breve, eles terão acertado o número de mortos.

    O nosso terror diante desse número não deveria ter mudado…Algo de ruim aconteceu conosco nos últimos 50 dias que fez com que passássemos a relativizar a morte de mais ou menos pessoas em função de outros interesses.

    Como sociedade, deveríamos atuar como irmãos que apoiam uns aos outros, que protegem o mais fraco incondicionalmente, que abraçam o irmão que está em pânico e o ajuda a ter coragem. Não deveríamos nos comportar como o irmão que empurra o mais fraco para dentro de um quarto com fantasma…

    É hora do sacrifício. É hora de todos abrirmos mão de alguma coisa, incluindo convicções equivocadas.


    Uma descrição detalhada da análise de dados que gerou os gráficos deste artigo pode ser encontrada aqui. Os gráficos mudam diariamente, conforme novos casos são reportados. Este trabalho é o resultado do esforço conjunto de alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC), do Instituto de Computação (IC) , Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (IMECC) e Faculdade de Ciências Médicas (FCM). A força tarefa também conta com a parceria do Prof. Dalton Martins, da Faculdade de Ciência da Informação (FCI) da Universidade de Brasília (UnB).

    Para saber mais:

    Luo C, Yao L, Zhang L, et al. Possible Transmission of Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2) in a Public Bath Center in Huai’an, Jiangsu Province, China. JAMA Netw Open. 2020;3(3):e204583. doi:10.1001/jamanetworkopen.2020.4583

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Pandemia acelera produção e acesso a preprints

    Cães e gatos podem transmitir o Covid-19? Descoberto anticorpos com ação eficaz contra o novo coronavírus. Droga contra HIV tem ação animadora contra Sars-Cov-2. Estas são algumas notícias que devem ter chegado a você, todas baseadas em artigos ainda sem avaliação por especialistas. São os chamados preprints, que são disponibilizados para acelerar o acesso à informação científica, o intercâmbio e as chances da ciência achar respostas rápidas contra o novo coronavírus.

    No Brasil, a pandemia mobilizou editores de revistas científicas a disponibilizarem, o quanto antes, artigos relacionados ao Covid-19. A urgência do atual momento é incoerente com o período médio de 6 meses (sendo otimista) para que um artigo seja submetido, avaliado e publicado. 

    Pensando nisso e atendendo uma demanda de editores científicos, a SciELO (Biblioteca Científica Eletrônica Online) acaba de lançar seu repositório, que já conta com 10 preprints submetidos pelos próprios autores. E, em breve, a Associação Brasileira de Editores Científicos (Abec) e o Instituto Brasileiro de Informação de Ciência e Tecnologia (Ibict) lançarão a EmeRI (Emerging Research Information), plataforma de preprints com o diferencial de ser alimentada por editores, com o aval dos autores. 

    “Muitas revistas do Brasil e de países hispano-lusófonos não têm condições de manter cada uma seu repositório de preprints. Além disso, a dispersão dessa alternativa seria enorme e os trabalhos difíceis de serem recuperados”, descreveu um dos idealizadores do repositório, Piotr Trzesniak, Secretário-Geral da Abec e professor da Universidade Federal de Pernambuco(UFPE).

    Ritmo frenético

    Dentre as plataformas mais importantes de preprints estão o  BioRxiv e o MedRxiv, voltados para as áreas de ciências biológicas e medicina, respectivamente e que juntos já disponibilizam mais de 1.700 preprints sobre a Covid-19 ou o vírus Sars-Cov-2. Em março deste ano, o BioRxiv bateu record de publicações (3.037 submetidas) e de downloads (mais de 3 milhões), desde que o repositório foi criado em novembro de 2013. Essa frutífera fonte de informação científica foi também a fonte das notícias que abrem esta matéria. 

    Com a facilidade de acesso online, jornalistas de ciência, generalista que ou comunicadores que cobrem a pandemia, encontram ali pesquisas que trazem pistas, tratamentos potenciais e respostas para o grave momento em que vivemos. Mas essa agilidade vem atrelada à maior chance de erros, fraudes e pesquisas de baixa qualidade. 

    De acordo com o editor da revista centenária revista de medicina tropical Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, Adeilton Alves Brandão, o momento de urgência por informações científica demanda processos éticos mais ágeis, e cuidados que todo cientista – e jornalista – deveria tomar diante de qualquer: “duvidar e verificar”. 

    Adeilton critica o fato de, frequentemente, a mídia consultar os autores de preprints ou mesmo de artigos para comentar sua própria pesquisa. “Isto não oferece perspectiva interessante de análise, pois há conflito de interesses (nenhum pesquisador jamais apresentará as limitações de seu próprio trabalho!)”, enfatiza.

    “A ciência é um aliado importante dos tomadores de decisão, em primeiro lugar, e da sociedade de um modo geral, pois é a única atividade que gera dados, evidências baseados (idealmente!) no conceito de que serão sempre postos à prova, questionados, criticados”, afirma o editor científico da Memórias. Apesar da aparente contradição, ele explica que faz parte do próprio processo de construção do conhecimento científica que a robustez de dados seja posta à prova através de questionamentos e contraprovas que possam diminuir as incertezas.

    Impacto dos preprints

    Uma análise, que acaba de ser publicada no Quantitative Science Studies, demonstra que os preprints geram mais citações para os artigos depois de publicados em revistas científicas, do que artigos que não tiveram preprints disponibilizados. A explicação, segundo artigo liderado por Nicholas Fraser do Leibniz Information Centre for Economics e co-autores, é que muitos cientistas citam preprints em seus trabalhos. A análise, verificou que os artigos ainda sem revisão por pares também são amplamente citados no Twitter e em blogs, o que pode influenciar na divulgação, visibilidade e consequente aumento nas citações. 

    Talvez esses resultados sejam um importante chamariz para convencer autores e editores sobre a importância dos preprints. mais importante que citações (sempre!) é a agilidade, a transparência e o acesso aberto às pesquisas científicas em andamento. A atual urgência deverá deixar importantes legados para cientistas e jornalistas.

    Tão rápida quanto a velocidade de publicação dos preprints é a reação e olhar crítico e as reação de especialistas. Especialistas já colocam em dúvida os resultados, ainda preliminares, do preprint sobre a infecção de cães e gatos pelo novo coronavírus. “Precisa de uma quantidade significativa de trabalho extra antes que [os resultados] sejam interpretados como evidência de infecção pelo [vírus] Sars-CoV2. Como está, [o preprint] deve ser melhor visto como um texto opinativo”, avaliou Mick Bailey, professor de imunologia comparativa da Universidade de Bristol, sobre o preprint para o Science Media Centre

    “O impacto de preprints no discurso e na tomada de decisão da referente a atual pandemia de Covid-19 sugere que temos que repensar como recompensamos e reconhecemos as contribuições da comunidade científica durante a atual e futura crise da saúde pública”, sugerem Maimuna Majumder, Kenneth Mandl da Faculdade de Medicina de Harvard em artigo para a revista The Lancet.

    • Este artigo foi produzido dentro das atividades da Oficina de Jornalismo Científico II do curso de Especialização em Jornalismo Científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor)/Nudecri, da Unicamp.

    Mais leituras sobre o tema você encontra em:

    Adesão ao acesso aberto é chave no acesso a informações científicas sobre Covid-19. De Germana Barata para Associação Brasileira de editores Científicos (Abec), março de 2020.

    Mudanças à frente em direção ao acesso aberto de revistas científicas, postagem que publiquei neste blog em 2017.

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Da pandemia à solidão: a distância física entre nós

    A pandemia causada pelo COVID-19 impôs estado de calamidade pública. A medida comprovadamente mais eficaz para frear o espalhamento do vírus é o isolamento físico. Confinados nos lares, nos sentimos sós. Nesta reportagem conversamos com Paulo Sérgio Boggio, professor e pesquisador em neuropsicologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, sobre a diferença entre estar só e sentir-se só, os efeitos negativos do isolamento e como transpor a solidão caso ela bata à porta.

    A pandemia de COVID-19 começou em Wuhan, China, em 12 de dezembro de 2019. A partir daí o espalhamento do vírus foi rápido. Em abril de 2020, a doença já é realidade para 179 países. A infecção de quase um milhão de pessoas ao redor do mundo vem lotando hospitais que sofrem com a falta de insumos, equipamentos e pessoal, mesmo nas nações mais ricas e desenvolvidas. Na falta de alternativas tecno-científicas para combater a doença, resta a população se resguardar, lavando as mãos com água e sabão frequentemente e evitando o contato físico através do isolamento.

    Estabelecimentos antes lotados, agora fechados; ruas dominadas por carros e transeuntes, esvaziadas; escolas e universidades presenciais, agora em modo digital para os mais privilegiados; conhecidos tratados como desconhecidos, sem as cortesias do contato físico; e o silêncio dominical invadindo os dias da semana representam grandes mudanças no cotidiano. Confinados dentro dos lares e ilhados por informação (de qualidade ou não), as emoções negativas podem dominar, entre elas confusão, ansiedade e, principalmente, solidão.

    Diante de um inimigo invisível, muitas pessoas buscam por explicações que julgam estar à altura da calamidade pública. Muitas vezes, o refúgio para o medo está nas desinformações, notícias falsas (fake news) e teorias conspiratórias. Ficamos vulneráveis ao espalhamento das notícias negativas, tão contagiosas quanto o próprio vírus, e os temores se amplificam. Nessa hora, o distanciamento social pode exacerbar a alienação, desumanização, discriminação e violência subjacentes à vida contemporânea na era da informação (ou digital).  

    Felizmente, fatos e realidade se impõem e o combate à pandemia com medidas drásticas, como os full lockdowns (bloqueios ou fechamento total de regiões), deletérias economicamente, se mostram eficazes para salvar vidas. O contato social remoto nessa hora é estratégico para promover a coesão e a cooperação entre pessoas e estimular proatividade e resiliência exigidas de cada um de nós. 

    Crédito imagem: Sofia Garza no Pexels

    Como espécie, humanos são seres sociais e, em boa medida, sociáveis. Recorremos aos afetos para aliviar as tensões e dividir angústias. Definidos pela nossa rede de relacionamentos, afastados ficamos fracos e opacos. A imposição do afastamento físico é, por isso, um martírio frente à tantas incertezas. A grande pergunta agora é como lidar com uma situação física e mentalmente extenuante?

    “O isolamento social ou a quarentena podem ter efeitos psicológicos importantes, caso esse isolamento signifique solidão. Apesar de parecerem a mesma coisa, estar só não necessariamente significa sentir-se só. Em vez de usarmos o termo isolamento social, deveríamos usar isolamento físico ou distanciamento físico”, explica Paulo Sérgio Boggio, professor e pesquisador em neuropsicologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em entrevista concedida para esta reportagem.

    Estar só não é sentir-se só

    A frase pode parecer um contra-senso. No entanto, na psicologia a regulação emocional da solidão é complexa e subjetiva, atrelada a forma individual como percebemos e julgamos nossas interações com os outros.

    “Recentemente, publicamos um estudo mostrando que o toque humano afetivo (tocar as mãos dos outros) tem um efeito positivo na percepção de cenários negativos. Ser tocado por outras pessoas ajuda a diminuir a percepção negativa de situações negativas. Veja então o tamanho do problema: temos um isolamento das pessoas e uma recomendação para diminuirmos o toque físico”, alerta Boggio.

    Apesar do toque físico ser uma balsamo para a alma, a conexão em rede usando a tecnologia garante que as relações se mantenham com certa normalidade e regularidade, sejam elas pessoais ou profissionais. Conversar cara a cara e partilhar atividades e interesses mútuos, mesmo quando distante fisicamente, ajuda a manter o bem-estar do corpo e da mente.

    “Outros estudos têm mostrado que o simples fato de você saber que alguém está simultaneamente assistindo ou acompanhando algum evento faz com que as pessoas percebam os estímulos como mais positivos. Temos visto nesse momento várias ações coordenadas com características semelhantes à desses estudos: desde pessoas nas janelas em um mesmo horário para cantar, bater panelas, aplaudir equipes médicas até ações como a da Netflix de promover sessões conjuntas entre assinantes. Essas atividades aumentam o nosso senso de conexão com os outros, nos ajudando a cruzar esse momento de crise”, comenta o pesquisador.

    Crédito imagem: Matthias Zomer no Pexels

    A solidão durante a quarentena parece ser mais uma opção do que uma imposição. Infelizmente, não para todos, como explica Boggio. “Vários grupos são mais vulneráveis nesse momento e merecem maior acompanhamento como, por exemplo, pacientes com quadros depressivos. Daí a importância do uso da tecnologia para atendimentos psicológicos e médicos a distância. Os efeitos da solidão também podem agravar outros aspectos além da saúde mental, como o sistema imunológico e cardiovascular. Estar isolado e não receber contato de outros (algo semelhante ao ostracismo ou exclusão) impacta as chamadas necessidades básicas: autoestima, significado de existência, noção de pertencimento e de controle. Fizemos no laboratório um experimento sobre isso anos atrás e mostramos que uma simples sala de bate-papo na qual alguém é excluído da conversa seguidas vezes abala essas necessidades básicas.”

    Como evitar a solidão?

    “Para lidar com a solidão é importante usar as várias tecnologias de conexão de duas vias, que permitam encontros simultâneos entre as pessoas. A forma como interagimos tem origem na sincronização de movimentos, de sons, etc. Nesse momento, muito disso está restrito pelo isolamento. Mas o velho e bom telefone assim como as salas de conversa, como Zoom e Google Hangouts, podem ajudar bastante”, enfatiza Boggio e acrescenta, “A solidão também pode ser combatida com atividades em que as pessoas se sintam coletivamente engajadas tanto em ambientes virtuais (por exemplo, aulas de meditação online, clubes de leitura e conversa, apresentações musicais), quanto por atividades reais (por exemplo, rodízio de pessoas entregando medicamentos e alimentos àquelas que fazem parte dos principais grupos de risco).”

    Belos exemplos de solidariedade, cooperação, altruísmo, empatia e compaixão também transbordam mundo afora seja entre familiares, vizinhos ou desconhecidos. Simples atitudes como ajudar com compras, entregar correspondências e falar ao telefone ganham novos contornos e significados em uma sociedade antes magnetizada e hibernada pelos smartphones, mesmo em meio ao convívio social intenso.

    Crédito imagem: Andrea Piacquadio no Pexels

    No entanto, o uso da tecnologia digital pode ser um desafio para os idosos, mais suscetíveis aos sentimentos de solidão e desconexão com o mundo. O isolamento, físico e/ou social, pode ser ainda mais danoso em tempos de pandemia, por elevar os níveis de estresse e afetar negativamente o sistema imune e cardiovascular.

    “A situação dos idosos é preocupante. Muitos já estavam isolados socialmente por diferentes motivos. Para eles, as alternativas tecnológicas não necessariamente serão fáceis de implementação. Nesses casos, os familiares terão um papel fundamental para auxiliá-los a usar esses recursos. Mas esse papel deve se estender inclusive para além dos contatos sociais; a preocupação deve estar em garantir alimentação, cuidados com a casa e com a saúde, dando condições para que os mais idosos de fato fiquem protegidos em casa”, finaliza o pesquisador.

    Hoje é imperativo a manutenção dos afetos e da sensação de pertencimento à um grupo para o enfrentamento do COVID-19. A distância física entre nós pode ser uma barreira, mas pontes são facilmente erguidas com auxílio da tecnologia da comunicação disponível. Cuidar dos mais vulneráveis nesse momento é um ato de amor imensurável.

    Referências

    Dong, E.; Du, H.; Gardner, L. An interactive web-based dashboard to track COVID-19 in real time. The Lancet Infectious Disease, 2020. doi: 10.1016/S1473-3099(20)30120-1

    Van Bavel, J. J. et al. Using social and behavioural science to support COVID-19 pandemic response. PsyArXiv Preprints, 2020. Disponível em: https://psyarxiv.com/y38m9 Acesso em 31 mar. 2020. doi: 10.31234/osf.io/y38m9

    Wingenbach, T. S. H. et al. Evaluations of affective stimuli modulated by another person’s presence and affiliative touch. Emotion, 2019. doi: 10.1037/emo0000700

    Donate, A. P. G. et al. Ostracism via virtual chat room – effects on basic needs, anger and pain. PLoS ONE, v. 12, n. 9, p. E0184215, 2017. doi: 10.1371/journal.pone.0184215

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Morte pela Covid-19 ou pela fome, será esta a questão?

    Ante a atual crise de saúde mundial provocada pela disseminação do vírus da gripe Covid-19, entidades políticas, mídia e setores da sociedade civil em diversos países, e inclusive no Brasil, têm considerado que, para enfrentar a crise sanitária e econômica provocada pela pandemia, haveria apenas uma entre duas possíveis opções. A primeira seria atender às recomendações dadas pela maioria dos órgãos de saúde pública nacional e internacional(1), realizando o chamado isolamento horizontal em que escolas, universidades, órgãos estatais, negócios e serviços não essenciais são fechados e eventos públicos são proibidos. Esta opção, dada a estrutura de economia de mercado em que vivemos, tem como consequência a ruptura de um grande número de relações econômicas entre fornecedores e consumidores de produtos e serviços. Simplificando, podemos afirmar que um número considerável de trocas comerciais e financeiras efetuadas entre indivíduos e empresas fica paralisada, limitando um fluxo de valores que, em grande medida, garante a renda da sociedade em termos de salários, lucros, juros e etc. Esta alternativa, como demonstra a experiência em outros países e conforme reiterados estudos estatísticos(2), tem a perspectiva de reduzir consideravelmente o número de mortes pelo vírus já que permitiria ao sistema público e privado de saúde manter condições mínimas de atendimento aos casos graves da doença. Em termos econômicos, sem considerar qualquer outro elemento, o isolamento horizontal levaria a uma queda acentuada do consumo e da atividade produtiva, podendo-se conjecturar um cenário de recessão profunda durante e depois do pico da epidemia(3).

    A segunda opção para o problema, que excluiria o isolamento amplo, seria a de isolar apenas pessoas consideradas mais vulneráveis. Neste caso, o contato social deveria ser restringido para os idosos, pessoas com outras doenças ou com defesas imunológicas deficientes. Situações de grande aglomeração também poderiam ser proibidas, mas o restante das atividades funcionaria normalmente. Neste caso, espera-se que o impacto na demanda e na oferta dos setores produtivo e de serviços seja muito menor, que as demissões se reduzam e que a recuperação da economia aconteça de maneira mais rápida após os efeitos da pandemia se atenuarem. Conforme um estudo estatístico do Imperial College do Reino Unido, o número de mortes para o Brasil para uma restrição precoce e intensa ao trânsito de pessoas seria por volta de 44 mil. Uma restrição moderada, porém intensa somente para os idosos, semelhante ao isolamento vertical, levaria a aproximadamente 472 mil óbitos em função da doença(4).

    Esta dicotomia, em que a sociedade haveria que escolher, de um lado, a depressão econômica e o empobrecimento das pessoas, sobrevivendo ao vírus e, de outro, o sacrifício de maior número vidas para que a renda das empresas e os empregos sejam mantidos é, no mínimo, desumana. A situação de pandemia mundial, com rápidos e elevados índices de mortalidade, não pode ser tratada de uma forma tão vulgar como esta. A solução deve estar acima dos dois problemas, tendo como foco um elemento que é fundamental, a manutenção da vida de todos em termos de saúde pública e de garantia de renda. A melhor maneira de tratar a saúde pública, conforme as experiências recentes e os estudos científicos realizados até o momento, seria mediante o isolamento horizontal, sendo esta a opção mais adequada para que o número de vidas salvas frente ao vírus seja o maior possível. A renda das famílias e das empresas, pequenas e médias principalmente, também é uma questão de sobrevivência para as pessoas, pois o organismo físico de todos cidadãos depende de produtos básicos a serem consumidos.

    O pior do problema econômico é que, além dos altos níveis de desemprego já existentes mesmo antes da crise, soma-se com esta um novo contingente de demitidos e um adicional de autônomos impedidos de trabalhar que estariam no limite de seu sustento e de suas famílias(5). Não possuem reservas para manterem-se minimamente nos meses de quarentena. As empresas, por sua vez, principalmente as de pequeno porte, não sobreviverão a esse período sem o retorno financeiro mensal de seus negócios. São elas também responsáveis por grande número de empregos que deixarão de existir. Portanto, um colapso no consumo das famílias pode levar a um colapso nos negócios mais frágeis financeiramente, afetando inclusive as grandes empresas que possuem maiores recursos para sua sobrevivência. Esta calamidade econômica também não será resolvida pelo automatismo das forças de mercado como pregam os economistas liberais. Em situações de crise, quase inexistem empresas que se proponham a assumir riscos e investimentos suficientemente capazes de impulsionar grande conjunto de setores produtivos.

    Pois bem, eis que o Estado, aquele que economistas da grande mídia costumam demonizar como entrave à economia de mercado, é o único ente institucional adequado para o tratamento da situação sanitária e econômica ao mesmo tempo. Além de já ser uma representação institucionalizada da sociedade é o único com capacidade de mobilização econômica, social e política para enfrentar a situação nas duas frentes. No Brasil, já existe uma proposta em termos de saúde em andamento, a de isolamento horizontal. Em função dos números verificados acima, não seria recomendável desmontá-la, mas sim partir para o enfrentamento do problema econômico no sentido de minimizar todos os efeitos negativos da pandemia sobre a economia ao máximo.

    Assim, se o problema agravado pela pandemia é o que interfere na cadeia de fornecimento e consumo, o governo deve imediatamente trabalhar para a recuperação dos laços transacionais de compra e venda, planejando e criando iniciativas para a manutenção da renda dos assalariados no sentido de manterem o consumo, por um lado, e para o reequilíbrio das finanças das empresas para que sobrevivam a redução de suas vendas e mantenham o fornecimento necessário no período de dificuldade, por outro. É nesse sentido que ações para a transferência de recursos governamentais para que assalariados e autônomos, que vem ocorrendo em muitos países, são fundamentais(6). Mas, além disso, as empresas, compromissadas com dívidas, tributos e salários, no curto prazo, necessitam de medidas governamentais para respaldar seus débitos, suspender seus impostos temporariamente e facilitar o crédito para que não demitam. Sustentar a demanda e a oferta agregadas é fundamental. O Estado, deve, além disso, manter a expectativa de que esses laços serão mantidos após a crise sanitária. Seria, dessa maneira, oportuno que o governo viesse a compor com empresários iniciativas para concentração de recursos para o enfrentamento da pandemia, convertendo linhas de produção, ampliando a utilização de tecnologias de informação e apoiando internamente setores importantes como o de saúde, alimentos, higiene, limpeza, logística e outros capazes de se manterem operantes nesse momento. Adicionalmente, o governo pode planejar e mobilizar recursos no sentido de realizar investimentos que permitiriam o estabelecimento de condições mínimas de recuperação depois de atenuada a crise. O foco, portanto, seria o de manter o consumo no nível mais elevado que a situação permitisse ao mesmo tempo em que novos empreendimentos pudessem apresentar perspectivas mais promissoras de recuperação para o setor privado. Países como China, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos já deram início a medidas semelhantes que caminham nesse sentido. Estes governos compreenderam a gravidade da situação econômica e não estão realizando tais ações por altruísmo, mas vislumbram estas medidas como ações para a sobrevivência do sistema econômico e para a manutenção da condição civilizada da sociedade contemporânea. No Brasil, o componente da ação econômica que exigiria maior coragem política por parte dos gestores do Estado é justamente o de enfrentar as contrariedades internas e escapar da imposição da doutrina econômica vigente assentada em preceitos neoliberais. Há setores sociais que fazem forte oposição a uma maior intervenção do governo no âmbito econômico. Não consideram, porém, a experiência passada, como a do período que vai da Grande Depressão dos anos 1930 aos anos do pós Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, o Estado foi o único capaz de mobilizar instrumentos de intervenção e coordenação econômica que permitiram superar a crise em favor de empresas e da sociedade civil e conduzi-los a patamares de desenvolvimento mais elevados. Manter não só um nível mínimo de operação na economia, mas talvez aproveitar a situação para mobilizá-la e melhorá-la em termos de organização e inovação pode ser tanto uma solução, quanto talvez um novo caminho para uma economia já anteriormente debilitada. O problema da Covid-19 pode nos mostrar, pelos falsos extremos que se apresentam – o de escolher entre morrer enfermo ou morrer de fome – que não devemos acentuar aqui e no resto do mundo um sistema de economia liberal que sempre nos leva a medidas extremas em que a vida valeria menos do que a riqueza acumulada. O Estado que hoje, na maioria dos países, é em grande medida uma representação da população deve, dessa maneira, em primeiro lugar, zelar pela proteção dos cidadãos para secundariamente avaliar e ajustar perdas econômicas do setor produtivo.

    Notas:

    (1) Ver recomendações da Organização Mundial de Saúde: WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO) et al. Consideration for quarantine of individuals in the context of containment for coronavirus disease (COVID-19). Disponível em: https://apps. who. int/iris/bitstream/handle/10665/331497/WHO-2019-nCoV-IHR_Quarantine-2020.2-eng. Pdf. Acessado em: 12 de abr. 2020.

    (2) Para maiores informações, recomendamos a reportagem da BBC Brasil: “Coronavírus: por que é fundamental ‘achatar a curva’ da transmissão no Brasil”, 13 de março de 2020. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51850382. Acessado em: 12 de abr. de 2020.

    (3) O ministro da economia, Paulo Guedes, chegou a afirmar a congressistas sobre a perspectiva de redução de 4% no PIB caso o pico da pandemia chegue até o mês de julho de 2020. LEMOS, Iara. “Guedes diz a senadores que PIB pode recuar até 4% se isolamento passar de julho”. O Estado de São Paulo. São Paulo, 10 de abril de 2020.

    (4) “The Global Impact of COVID-19 and Strategies for Mitigation and Suppression”, Walker, P.G.T., et. al. Imperial College COVID-19 Response Team, 2020. Disponível em: https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/medicine/sph/ide/gida-fellowships/Imperial-College-COVID19-Global-Impact-26-03-2020v2.pdf

    (5) Conforme o IBGE o índice de desemprego para o último trimestre de 2019 era de 11% da população economicamente ativa. Painel de Indicadores. IBGE. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/indicadores#desemprego. Acesso em: 12 de abr. 2020.

    (6) Um auxílio emergencial de R$600,00 está sendo liberado pelo governo federal, todavia este valor ainda não chega a um salário mínimo (R$1.045,00), o que significa que, em termos totais, dificilmente se aproximará de um patamar mínimo de consumo de toda a economia em uma situação como esta.

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • COVID-19 e os riscos da modernidade: modernização como causa e como consequência

    Na sociologia contemporânea, principalmente na obra de Ulrich Beck, as pandemias já eram identificadas como um dos principais riscos da modernização. O caso atual da COVID-19 veio para confirmar isso, e mais que isso, é fácil identificar como o processo de modernização aparece como causa, mas também como consequência da pandemia. O difícil é vislumbrar quais serão os impactos das mudanças nos processos sociais no período pós-pandemia.

    A modernização como causa se apresenta a partir de duas transformações fundamentais vivenciadas pela humanidade no último século: degradação ambiental e desenvolvimento de meios de transportes, principalmente aéreo. A degradação ambiental, com redução das áreas de floresta, expansão das cidades, presença do homem em áreas de vida selvagem, propiciou o chamado spillover, isto é, o vírus deixou de ser hospedado apenas pelo morcego, migrando para outras espécies de hospedeiros. A alteração do meio natural é fruto direto do processo de modernização, e um fator importante para a ocorrência de epidemias, como da dengue, malária, zyca, etc.

    A modernização do sistema de transporte possibilitou intenso deslocamento de sujeitos por entre diversos territórios. O grande volume de voos, que passavam dos 250 mil voos diários no período pré-COVID-19, e o barateamento do transporte aéreo, sem dúvida foram fundamentais para a disseminação tão rápida da COVID-19 por praticamente todos os países do mundo. Em outros tempos, quando os meios de transporte não eram tão rápidos e acessíveis, as epidemias se restringiam a determinados territórios, como foi o caso da peste negra, que se desenvolveu ao longo da rota da seda.

    Ao analisarmos as rotas aéreas e a propagação do vírus entre as diversas localidades, percebemos que nas áreas com maior número de voos houve maior número de casos. As pessoas se deslocam entre países e com isso facilitam a propagação. A África e América do Sul, regiões com menor volume de tráfego aéreo, também tem apresentado até o momento menor número de casos. Obviamente, numa segunda fase, o contágio ocorre a partir da mobilidade dos indivíduos dentro do próprio país, e já não é possível traçar paralelo com o transporte aéreo. 

    Imagem: World Airline routemap 2009. Wikipedia.org

    Imagem: Genomic epidemiology of novel coronavirus. Nextstrain.org

    A situação atual ilustra perfeitamente a afirmação de Ulrich Beck “é o fim dos ‘outros’”. Todos os habitantes do planeta se veem ameaçados pela pandemia e, nesse momento, categorias tradicionais de análise sociológica, como as classes sociais, se veem fragilizadas, afinal a pandemia é, aparentemente, mais democrática, no sentido de ameaçar e atingir a todos, porém situações de vulnerabilidades podem potencializar a pandemia. Se dinheiro não impede a contaminação, a falta dele fragiliza ainda mais a população. Se todos somos igualmente atingíveis, o pobre, o negro, a mulher, o morador de rua, tem seus riscos amplificados.

    Essa situação é típica de países que ainda não solucionaram problemas da primeira modernidade, e num momento de modernização comprimida, tal qual o que vivemos agora, temos os riscos da modernidade intensificados, pois eles são cumulativos: não resolvemos o problema da distribuição de renda, da igualdade de gênero (problemas da 1ª modernidade) e temos novos problemas surgindo, como as pandemias, os riscos ecológicos, o desemprego por robotização (problemas da 2ª modernidade). Os países do sul global, de maneira geral, vivenciam essa tal de modernização comprimida, o que dificulta ainda mais a solução dos problemas atuais. 

    E dentro dessa ideia de modernização comprimida é que precisamos analisar a noção de modernização como consequência. Nas últimas semanas temos vivenciados uma modernização forçada em diversas esferas da nossa vida: seja pela obrigatoriedade do ensino à distância, pelo home office ou pelas teleconsultas médicas ou psicológicas. Por tantos anos essas atividades foram barradas pelos conselhos de classe, e ,de repente, nos vemos impelidos a executar.

    Essa modernização forçada ocorre sem infra-estrutura necessária (afinal, quantos lares possuem um computador para cada criança e cada adulto? Quantos dispõe de internet em velocidade adequada?) e sem formação adequada (quantos professores sabem usar as ferramentas para propiciar um ensino adequado? Quantos realizaram cursos para isso?). As empresas foram obrigadas a passarem por uma revolução digital que vinha sendo protelada ao longo das últimas décadas e o resultado disso é incerto. Será que o desemprego vai aumentar? O desenvolvimento de novos softwares para facilitar o trabalho remoto irá impactar no cotidiano das empresas e na maneira como estamos habituados a trabalhar? 

    A pandemia do COVID-19 forçou a modernização digital e se antes a internet era vista como responsável pelo distanciamento das pessoas, hoje ela é salvação para o encontro semanal entre amigos ou para a conversa com os pais. As relações sociais estão passando por uma profunda reestruturação, e essa mudança em um curtíssimo período de tempo pode estar repleta de efeitos adversos. Saberemos lidar com a depressão e ansiedade? Substituiremos bem o contato pessoal pelo encontro virtual? Como ficarão as relações quando a pandemia passar?

    A modernização como consequência nos traz dúvidas e ela materializa a noção de sociedade de risco. Estamos imersos em incertezas, ambiguidades, complexidades. O risco é invisível e ele só se materializa quando se confirma. A COVID-19 é um risco invisível, mas potente o suficiente para mudar as relações sociais e de trabalho, impactando tantas esferas de nossa vida, que é capaz de criar um novo mundo, uma nova ordem social – e não se sabe se ela será melhor ou pior que a atual.

    E por se tratar de um impacto global, já se discute a necessidade de uma governança global, o que coloca em questão as fronteiras geográficas, as respostas políticas locais, assim como os processos de individualização. A humanidade pode estar entrando em um novo momento e a imaginação sociológica deve estar aflorada entre nós, para que possamos captar essas mudanças, analisando-as com criticidade, propondo alternativas e soluções possíveis aos novos problemas que surgirão. 

    Para saber mais: 

    BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.

    NEXTSTRAIN. Real-time tracking of pathogen evolution. Novel coronavirus (2019-nCoV). Disponível em https://nextstraing.org

    QUAMMEN, David. Spillover: animal infections and the next human pandemic. New York: W. W. Norton & Company, 2012. 

    RICHARDS, Sarah Elizabeth. Como mutações do coronavírus podem ajudar a traçar rota de propagação e refutar conspirações. National Geographic, 3 de abril de 2020. Disponível em https://www.nationalgeographicbrasil.com/ciencia/2020/04/como-mutacoes-do-coronavirus-podem-ajudar-tracar-rota-de-propagacao-e-refutar

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Sobre o período de incubação da doença e suas relações com a quarentena…

    A doença da Covid-19 vem nos impondo uma série de desafios cotidianos. Para nós, no sentido individual, já temos percebido que a doença no Brasil não são apenas números que se somam dia a dia. Já são nomes de conhecidos, amigos e familiares que viram estatística, ou não – dependendo da gravidade dos sintomas e se é necessário hospitalização. Nos casos mais severos, acompanhamos apreensivos internações e, muitas vezes e infelizmente, a despedida de longe dessas pessoas – por medidas sanitárias. 

    Por outro lado, cientificamente, temos tentado compreender a doença em uma velocidade recorde, sem o tempo comum para revisar estudos e debatê-los com colegas da nossa área.

    Período de incubação, o que é isso?

    Um dos artigos que nos chegou às mãos recentemente (publicado no dia 10 de março), aponta que “Nosso entendimento atual do período de incubação do COVID-19 é limitado”. Este estudo analisou o contágio e aparecimento de sintomas de 181 pessoas com infecção confirmada para SARS-CoV-2, ou também conhecido como Novo Coronavírus, antes de 24 de fevereiro deste ano, fora da província de Wuhan (China).

    O período de incubação é o tempo entre o momento em que alguém se infecta pela doença, até o patógeno iniciar sua replicação (e a pessoa tornar-se infecciosa também). No caso da COVID-19, o período de incubação em média é de 5,1 dias.

    Mas este período varia! Segundo a Organização Mundial da Saúde, o período de incubação da Covid-19 ocorre entre 1 e 14 dias. Este estudo, publicado por Lauer e colegas, mostrou que 2,5% das pessoas analisadas apresentaram sintomas em 2,2 dias após a infecção pelo vírus e 97,5% das pessoas apresentam sintomas em 11,5 dias. 

    Qual a relevância deste debate para o combate à transmissão da doença?

    Em geral, ao apresentar os sintomas da doença, o que temos chamado de estar sintomático, é associado à transmissão do patógeno (neste caso o vírus SARS-CoV-2). Entretanto, as evidências mais recentes de transmissão do novo Coronavírus por pessoas levemente sintomáticas e, até mesmo, assintomáticas, foi possível observar que o período de incubação pode ser menor que o período de incubação estimado nos estudos. E isto tem implicações importantes tanto para a dinâmica de transmissão da doença, quanto para a implementação de estratégias de contenção de seu espalhamento na sociedade.

    Se formos compreender que a partir do dia 1 de infecção (isto é: algumas horas após termos sido expostos ao vírus) nós já estamos, potencialmente, transmitindo esta doença até 15 dias após esta exposição, a projeção de isolamento preventivo seria 15 dias, no mínimo. 

    Como assim, 15 dias no mínimo?

    Sim. Considerando, por exemplo, que eu me infectei hoje, dia 10 de abril, e em 15 dias eu não apresentei qualquer sintoma, tudo indicaria que eu passei do período de incubação e, não serei mais um agente transmissor do vírus a partir do dia 25 de abril (aproximadamente e de acordo com o que temos de dados neste momento).

    Todavia, a partir do primeiro sintoma – mesmo que muito leve – este tempo de isolamento precisa se prolongar a contar do primeiro dia de aparecimento do sintoma. Alguns estudos apontam evidências, por exemplo, de carga viral alta e um longo período de eliminação do vírus, em pacientes que apresentam sintomas críticos da Covid-19 por muitos dias após início do tratamento da doença (estes são os pacientes que precisam de internação hospitalar com tratamento em UTIs).

    De modo geral, a fase infecciosa se prolonga, para aquelas pessoas que demonstram sintomas, até (no mínimo) 7 dias após o aparecimento do primeiro sintoma e (conjuntamente) 3 dias após cessarem a febre e mais algum sintoma que esteja ocorrendo (coriza, tosse, espirros, falta de ar, dor de cabeça…). O mais prudente, portanto, seria o isolamento total durante esta fase.

    Sobre isolamento social e espacial: qual a relevância disto?

    Já falamos em algumas postagens anteriores e seguiremos apontando esta medida como a principal ferramenta de estancar a transmissão da doença COVID-19! Os estudos sobre a transmissão e o período de incubação apresentados neste post nos mostram que a transmissibilidade do vírus pode iniciar muito brevemente após a infecção e varia entre as pessoas infectadas.

    Estes estudos também apontam que a pessoa infectada segue contagiando outras pessoas por vários dias após os sintomas desaparecerem. Considerando que cerca de 85% das pessoas infectadas apresentam nenhum sintoma, ou sintomas muito leves (muitas vezes não sendo contabilizadas em países que não estão realizando testes em massa), não sabemos quando ou se fomos infectados. Mas neste caso podemos estar espalhando o vírus mesmo assim!

    Dessa forma, o isolamento social e espacial é a medida mais segura, uma vez que prevê que tenhamos pouco contato entre pessoas, diminuindo a possibilidade de nos contagiarmos e contagiarmos outras pessoas. Nosso contato com objetos contaminados e não desinfectados, ou com outras pessoas que estejam infectadas – mesmo sem apresentar sintomas e ou adoecimento aparentes – é a maneira mais rápida do espalhamento do vírus. 

    Infelizmente, o tempo de isolamento é longo e, sim, têm impactos na nossa vida psicológica, financeira e afetiva. Mas não existe outro modo seguro de minimizar os efeitos da disseminação do Coronavírus na sociedade enquanto não entendermos melhor os outros aspectos desse vírus.

    Mais uma vez: fique em casa

    Não cansaremos de falar isto: fique em casa se você puder, diminua a sua exposição em espaços públicos, não visite, cumprimente, beije ou abrace pessoas – especialmente aquelas que não estão cumprindo o isolamento social.

    Se for possível, em sua casa, tente não compartilhar objetos como pratos e talheres. Se você mora com mais pessoas e precisa sair, tome todas as precauções já indicadas em nossas redes sociais para manter as pessoas de sua casa sem contaminação também. 

    Para saber mais:

    LAUER, S. A.; GRANTZ, K. H.; BI, Q.; JONES, F. K. et al. The Incubation Period of Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) From Publicly Reported Confirmed Cases: Estimation and Application. Ann Intern Med, Mar 10 2020.

    Liu, Yang; Yan, Li-Meng; Wan, Lagen; Xiang, Tian-Xin; Le, Aiping; Liu, Jia-Ming; Peiris, Malik; Poon, Leo; Zhang, Wei. Viral dynamics in mild and severe cases of COVID-19. Publicado em 19 de Março de 2020. DOI:https://doi.org/10.1016/S1473-3099(20)30232-2

    Li, Ruiyn; Pei, Sen; Chen, Bin; Song, Yimeng; Zhang, Tao; Yang, Wan; Shaman, Jeffrey.  Substantial undocumented infection facilitates the rapid dissemination of novel coronavirus (SARS-CoV2). Science, 16 Mar 2020, DOI:10.1126/science.abb3221

     

    Figura de capa: Por David S. Goodsell, RCSB Protein Data Bank; 

    doi: 10.2210/rcsb_pdb/goodsell-gallery-019

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • A desinformação azeda sobre o limão na COVID-19

    A simples ingestão de um ou outro alimento poderia nos tornar imune ao coronavírus? Apesar de estranha,  tenho presenciado situações e recebido mensagens diversas sobre o pH dos alimentos e sobre diversos produtos que as pessoas tem utilizado em substituição ao álcool em gel.

    A primeira delas ocorreu logo após o governo de São Paulo decretar a quarentena oficial (anúncio feito dia 20/03 com quarentena a partir de 24/03). Confesso que precisei ir ao mercado para comprar insumos básicos e notei que, além da falta do álcool gel, o limão também era um item ausente nas gôndolas. Ao questionar um dos funcionários sobre o sumiço do limão, ele me informou que as pessoas estavam comprando pois acreditavam que o suco de limão preveniria a COVID-19.

    A segunda situação ocorreu mais recentemente, quando recebi uma mensagem relatando que a ingestão de alguns alimentos poderia proteger nosso organismo devido ao pH do alimento versus pH do vírus. A mensagem afirmava que o pH do limão era 9,9 e o do abacate 15,6, enquanto que o pH do vírus variava entre 5,5 e 8,5. No entanto, alguns estudos mostram que o pH desses dois frutos são respectivamente 2,17 (em uma média de três tipos distintos de limões)1 e 6,59 (na média de duas espécies de abacates)2;

    Bom, vamos buscar na Química o que é, qual a escala e como varia o pH para entender quais as explicações adequadas (se é que existem).

    O que significa o tal do pH?

    A medida de pH é um parâmetro que indica o quanto um sistema é ácido ou básico, algo que é uma das características das soluções químicas naturais ou sintéticas. Você provavelmente já ouviu falar que o limão ou laranja são frutas ácidas. Do mesmo modo, se olhar o rótulo de uma garrafa de água mineral, poderá notar a indicação do pH deste produto. 

    Mas a acidez não é igual em todos os casos. Existem soluções mais ácidas e menos ácidas e essa intensidade é medida por uma escala denominada “escala de pH”, que comumente é nos apresentada variando entre 0 (pH relacionado a uma solução mais ácida) a 14 (pH relacionado a uma solução mais básica – ou menos ácido), sendo o valor 7 um pH de uma substância / solução neutra.

    Assim, quanto mais distante da neutralidade (pH 7) maiores problemas as substâncias poderiam causar se consumidas. Ressalta-se no entanto, que consumimos alimentos ácidos (como algumas frutas cítricas) e alimentos com pH básicos (o leite, por exemplo). No entanto, substâncias extremamente ácidas ou básicas podem apresentar caráter corrosivo. 

    Quimicamente falando, o termo pH significa potencial hidrogeniônico e se representa a capacidade de liberação da espécie química H+ (íon hidrogênio ou próton, de modo simplificado) ou liberação de H3O+ (íon hidrônio) . Essa definição é a utilizada para o desenvolvimento de sistemas que permitem determinar os valores da escala mencionada. Mas de fato, o que nos interessa no momento é entender por que o pH está sendo associado ao combate do corona vírus.

    O pH e nosso organismo?

    No nosso caso, podemos citar o sangue, uma mistura de várias substâncias que circula por quase todas as partes do nosso corpo. Para que as transformações bioquímicas do nosso organismo aconteçam de modo adequado, o pH desse sistema deve estar com valores adequados. 

    No  caso do nosso sangue, o pH varia entre 7,34 e 7,44 unidades, sendo a média aceitável de 7,43. Ressalta-se que dependendo do local em nosso organismo, esses valores podem ser distintos. Nosso organismo se esforça para manter esse valor, e qualquer alteração desencadeia diferentes respostas, com diferentes transformações para corrigir tal alteração. 

    Sim, nosso organismo possui mecanismos para manter o equilíbrio interno existente, de modo que dificilmente conseguimos alterar esse valor. E mais, caso isso ocorra, provavelmente teremos sérios problemas, podendo mesmo levar a morte

    Por exemplo, valores de pH sanguíneo muito baixos, podem gerar o problema denominado acidose (ou acidulose) o qual está associado a sobrecarga respiratória, vasoconstrição renal, entre outros. Enquanto valores de pH elevados estão associados a alcalose, associada a hipocalcemia, ou seja, taxa de cálcio no sangue baixa, hipopotassemia, quantidade menor de potássio do que a recomendada, entre outros.

    Pois bem, o que as mensagens têm recomendado?

    Cabe então comentar a respeito de duas informações / recomendações contidas nessas mensagens.

    Será que  ao passarmos substâncias ácidas na mão (como o limão que estava em falta no mercado) estaríamos nos protegendo contra o vírus? Neste caso, o limão seria um produto anti séptico?

    Se por um lado, para que o vírus sobreviva são necessárias condições adequadas, incluindo o pH, por outro lado: 

    – não se sabe quais valores de pH (ou níveis de acidez) são suportados pelo coronavírus;

    – não existem quaisquer estudos que avaliaram a eficiência de frutas cítricas em contato com a pele no combate ao vírus;

    – não existem produtos a base de limão testados para esta finalidade nem em termos de anti-sepsia, nem em relação possíveis problemas dermatológicos.

    Para além de tudo isso, ao passar limão na pele você corre riscos de desenvolver queimaduras (alguns podem conhecer como queimaduras de limão), uma vez que a pele em contato com substâncias presentes no limão (e em alguns outros alimentos) em presença da luz solar gera o problema conhecido como fitodermatite. Portanto, ao passar limão na pele, você não só não terá certeza de que está protegido como poderá ficar com a pele queimada e manchada.

    A segunda mensagem propagada é a de que ao ingerirmos substâncias ácidas ou básicas, nosso corpo teria seu pH alterado e o vírus então não sobreviveria. Nesse caso, não há muita lógica.

    Qualquer alimento ingerido é metabolizado e passa por diversas transformações até seus nutrientes serem levados aos locais específicos. FELIZMENTE, o equilíbrio presente em nosso organismo faz com que o pH das diferentes partes do corpo se mantenha dentro da faixa adequada. Então, por mais  que você consuma grande quantidade de limão, seu sangue não ficará mais ácido. Na pior das hipóteses você terá uma boa azia causada pelo excesso momentâneo da sua acidez estomacal.

    Portanto, essa receita caseira não funciona. Se você deseja se proteger, as recomendações continuam as mesmas. Lavar as mãos com água e sabão e/ou utilizar álcool gel e manter-se, nesse momento, em distanciamento social.

    Não há soluções mágicas. Os estudos para o desenvolvimento de vacinas e o teste de medicamentos estão sendo feitos e cabe compreendermos que estes envolvem etapas necessárias para que se garanta a qualidade e segurança dos produtos que serão administrados.

    Para saber mais

    1BRIGHENTI, Deodoro. et al. Inversão da sacarose utilizando ácido cítrico e suco de limão para preparo de dieta energética de apis mellifera Linnaeus, 1758. Ciência e Agrotecnologia. Lavras. v. 35. n. 2. p. 297-304. 2011.

    2BORGES, C.D. et al. Características físicas e químicas de abacates das variedades Margarida e Breda. XXV Congresso Brasileiro de Ciência e Tecnologia de Alimentos. Fundação de Apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Gramado. 2016.
    3FURONI, R. et al. Distúrbios do equilíbrio ácido-base. Revista da Faculdade de Ciências Médicas. Sorocaba. v.12. n.1. p. 5-12. 2010. 

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Como se produz um resultado científico e o que isto tem a ver com a Covid-19?

    Vocês já tiveram a impressão de que a ciência é uma bagunça esquisita? Uma hora lemos que o café faz mal, noutro momento, café salva nossos corações… O chocolate então? Passa de vilão para herói ano sim, ano não… Tudo isso faz com que a ciência, os resultados e conhecimentos científicos muitas vezes sejam desacreditados. 

    Em tempos de pandemia da Covid-19, causado pelo SARS-CoV-2 (também conhecido como “coronavírus”), isso possa ser mais difícil de entender ainda! A cada dia são inúmeros artigos publicados, em velocidades que para quem está fora deste universo pode se perder e/ou se confundir facilmente.

    No post de hoje, gostaríamos de falar um pouco sobre o processo de produção de conhecimento acadêmico-científico e sua validação. A ideia é mostrar que a ciência pode parecer sim contraditória, mas é outro o processo que a move… E para isto, vamos falar um pouco da nossa pesquisa (que aparentemente se relaciona muito pouco com a COVID-19, mas ao mesmo tempo, tem tudo a ver com isso!).

    Somos cientistas diferentes! Não usamos jalecos brancos, nem luvas ou máscaras, nem ficamos dentro de laboratórios de pesquisa cheio de estantes com vidrarias e maquinários. Produzimos alguns resultados científicos diferentes daqueles que estes cenários procuram nos mostrar. Nosso “laboratório”, muito frequentemente, é uma sala comum com uma mesa e cadeiras, nosso uniforme pode ser qualquer roupa e nossos maquinários são muitos livros e um computador simples, cujo maior barulho é o das teclas sendo digitadas. Mas como assim? Existem jeitos diferentes de fazer ciência e produzir resultado científico?

    Sim! Existem. Costumeiramente, se explica a ciência como uma série de etapas estanques: pergunta, hipótese, experimentos, resultados e conclusões. Essa série, muitas vezes, é conhecida como o método científico (embora ele seja muito mais do que apenas estas etapas). Mas as coisas não são tão simples e lineares assim… 

    No nosso caso, pesquisamos a própria ciência: como ela é produzida, em que espaços e que sujeitos a produzem e como ela chega na sociedade, por exemplo. E este campo de pesquisa que atuamos nos ajuda a entender que os resultados científicos (os impactos ambientais, o estudo de doenças como a COVID-19 e a H1N1, os alimentos mais ou menos saudáveis, as formas de ensinar melhor conteúdos de ciência etc.) são feitos com base em muitos pontos em comum. E, por isso mesmo, os resultados científicos são temporais, fruto de um contexto e, por isso, variáveis e mutáveis.

    Mas que pontos em comum seriam estes?

    – A necessidade de uma metodologia demonstrada: o que costumamos chamar de “método científico”. Este ponto diferencia um resultado científico de qualquer outro “achismo” ou “crença”. Um resultado para ser considerado científico tem que ter passado por um processo, um conjunto de etapas, com uma análise que deve ser o mais detalhada possível. Esse processo ou metodologia pode ser feita em diferentes ambientes – em laboratório, no campo, em uma biblioteca, uma escola ou outro espaço –; ser feito com a ajuda de diferente instrumentos – computadores, máquinas de PCR, de sequenciamento, livros e outros – e ter um encadeamento de etapas uma após a outra, muito bem demarcadas, para que, se necessário, possa minimamente ser refeito (nas áreas biomédicas e de saúde, das ciências naturais e da terra, chamamos isso de replicação) ou compreendido e validado por outros pesquisadores da área, a partir da análise da coerência entre objetivos, metodologia e discussão dos dados;

    – A necessidade de amparo em outros resultados já publicados: um resultado científico considerado válido, que teve uma metodologia bem detalhada, deve ser amparado por outros resultados também científicos já publicados e livres para o acesso àqueles interessados na área em questão. Todas essas pessoas interessadas e atuantes em uma dada área compõem a comunidade de pesquisadores da mesma. O que chamamos de “amparo” não é apenas confirmação de nossos dados, mas parte dos estudos já existentes para realizar novas perguntas, embasar hipóteses, testar novos experimentos, ou buscar semelhanças ou mesmo diferenças em situações ou fenômenos específicos que estão sendo estudados;

    – A necessidade de respaldo pela comunidade científica de cada área: com o crescimento das pesquisas científicas e a intensa diversificação da ciência por áreas, cada vez mais pesquisadores se envolvem com a produção de resultados científicos. Assim, são essas comunidades de pesquisadores que respaldam estes resultados umas das outras e possibilitam dizer e determinar o que é científico ou não; o que pode ser considerado válido ou não. A análise destes resultados deve seguir determinadas etapas, que são averiguar a coerência entre hipóteses, objetivos de pesquisa, rigor metodológico e, por fim, apresentação dos resultados;

    – Os resultados terem validade: que fique claro que existem diferentes comunidades científicas, diferentes metodologias de pesquisa e, portanto, obviamente, diferentes resultados científicos e modos de apresentar estes resultados. Mas se todos passaram por essas etapas, eles são resultado considerados válidos!!! Quando ressaltamos a palavra “resultados válidos” não quer dizer que eles possuem um “selo de eternidade”, porém são considerados legítimos nesse momento em que foram a público. Isto ocorre até que outro estudo também siga estes passos, traga outras respostas e/ou novos questionamentos. Então, o aceito cientificamente é SEMPRE momentâneo! E o processo de produção de um resultado científico é MUITO variável, pois depende de cada um destes pontos.

    Observem que todas essas etapas são relacionadas umas às outras, são interdependentes; e, portanto, um resultado para ser considerado científico deve passar por todo este processo!

    Quando as pesquisas científicas parecem contraditórias, muitas vezes elas estão fazendo o que consideramos básico na produção de conhecimento: questionando. É a partir da análise de conhecimentos científicos passados, da observação de fenômenos, fatos, situações e, principalmente, do questionamento disto, que conseguimos avançar na ciência. 

    E veja: questionar não é “ter uma opinião diferente” e, por isso, discordar. Questionar nem sempre é discordar… O ato de questionar uma pesquisa (resultado, premissas, metodologias) é uma forma de testar as coerências, limites e novas possibilidades de aquele resultado, muitas vezes, seguir valendo. Também é possível acrescentar fatores que ou não foram pensados anteriormente ou não tínhamos condições técnicas e instrumentais para testarmos. E, claro, também podemos nos contrapor e buscar novas testagens que contradigam alguma pesquisa. 

    Portanto, os conhecimentos produzidos pela ciência são resultados diferentes de uma opinião qualquer baseada em alguma informação aleatória “que ouvimos falar do fulano ou do beltrano” ou que foi postada em twitter/facebook ou encaminhada via whatsapp, ou colada no painel do condomínio. 

    Como confiar no que lemos sobre a ciência se ela muda o tempo inteiro?

    Para podermos responder esta pergunta, é fundamental perceber que a ciência não muda o tempo inteiro… O mais correto seria apenas dizer que a ciência não é algo único e linear; e que os resultados científicos podem mudar o tempo inteiro. Quando falamos “a ciência” estamos falando de coletivos de pessoas que produzem e debatem o conhecimento, buscando o consenso (o tempo inteiro)!

    Além disso, muitas vezes, estes grupos estão analisando aspectos diferentes do mesmo objeto, como o coronavírus, por exemplo (mas isso é pauta para outra postagem, que faremos em breve…). 

    O que acontece agora, de maneira mais específica é que estamos vivendo uma situação que é exceção. Uma doença nova que apareceu e nos desafia a compreendê-la muito rapidamente, pois sua transmissão – o contágio entre uma pessoa e outra e consequente o espalhamento na sociedade – se dá numa velocidade muito grande.

    Estas pesquisas, que costumam se desenvolver com o passar dos anos – e um bocado de investimentos e incentivos governamentais – devem, também, tentar acompanhar as características desta doença que está tirando centenas de vidas em dias, e não em anos. Além disso, essas pesquisas buscam desenvolver estratégias de cura e contenção muito mais rapidamente do que temos condições, e estamos habituados a fazer, normalmente.

    Tudo isto gera, sim, insegurança entre os cientistas. Estamos todos correndo contra o tempo buscando entender essa doença enquanto ela rapidamente nos contamina. A insegurança, no entanto, não é em relação ao conhecimento científico e sua produção. Compreendemos, assim, que não existem milagres e que a ciência se faz colaborativamente. Dialogamos o que vem acontecendo e este diálogo que gera, sim, um pouco de ansiedade pela quantidade de informações e debates sobre tratamento, cura, modos de proteção individuais etc. Este é o modo pelo qual cientistas no mundo inteiro têm produzido conhecimento sobre a COVID-19 e o Coronavírus; e estabelecido comunicação para chegar a um consenso o mais rápido possível

    O conhecimento científico, com todos os seus questionamentos (e exatamente por causa deles!), é neste momento nossa melhor ferramenta para minimizarmos os efeitos avassaladores dessa doença. 

    E como eu posso ajudar?

    É difícil sentir-se impotente frente a tudo isso… A primeira questão que é fundamental é: não espalhe desinformação nem fake news e fique em casa se possível. Só isto já é, realmente, um grande passo.

    Não divulgue receitas milagrosas de cura, que não tenha um embasamento técnico-científico e tente seguir poucos canais de informação, mas confiáveis (aqui no Blogs fizemos uma lista especial para vocês!). Os canais de Divulgação Científica (como este blog e vários outros) têm buscado trabalhar as informações de maneira mais acessível possível, para que todos compreendam melhor todo este processo de pandemia que temos vivenciado…

    Por fim, mas não menos importante, se tiveres condições financeiras, busque coletivos seguros de ajuda a grupos em fragilidade social (cuidado com os golpes, ajude quem você conhece SEMPRE), universidades e centros de pesquisa, por exemplo. Vem sendo dito nas redes sociais, parece clichê, e é clichê, mas é verdade: quanto mais a quarentena funcionar, menos ela parecerá necessária!

    Para saber mais:

    LATOUR, Bruno & WOOLGAR, Steve (1997). A vida de laboratório. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
    SCHWANTES, Lavínia. Ciência: muito se fala, pouco se define. In: MAGALHAES, Joanalira Corpes. Ensino de ciências: outros olhares, outras possibilidades. Rio Grande: Ed FURG, 2014. p. 43-50.WORTMANN, Maria Lucia Castagna (2008) A visão dos Estudos Culturais da Ciência. Com Ciência. Revista Eletrônica de Jornalismo Científico.

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • A Cólera, uma Pandemia Imperialista

    Estamos vivendo uma nova pandemia. A cada pandemia, nossos recursos e nossa capacidade de reagir tem aumentado sensivelmente. Mas os nossos problemas, entretanto, ainda são os mesmos: desigualdade, infraestrutura precária, pouco comprometimento das autoridades públicas. E, da mesma forma, em meio à loucura coletiva que se instala, há muito esforço da população e da sociedade para superar e vencer estes momentos tão dramáticos.

    Doente de Cólera (~1880)

    Nosso exercício aqui é discutir e trazer alguns dados destas pandemias antigas no mundo e no Brasil. É um esforço para que, através do conhecimento histórico trazido por estas outras pandemias, nos ajude um pouco na compreensão do conturbado momento em que vivemos. Conhecer a história, neste caso um pouco de História da Ciência, é necessário para que este conhecimento possa nos ajudar e – por que não? –  nos guiar neste mar revolto que estamos atravessando.

    A primeira pandemia da modernidade

    No rol das grandes pandemias que assolaram a humanidades nos últimos duzentos anos, as pandemias de cólera merecem um lugar de destaque. (adoto aqui cólera, seguindo a professora Raquel Lewinson, pois, segundo ela, a palavra não é masculina). Sua virulência e sua letalidade, assim como a rapidez com que se espalhou por todos os continentes habitados fez dos diversos surtos de cólera que tem nos assaltado ate hoje (!) momentos de grande sofrimento e apreensão.

    A cólera é causada por uma bactéria, o vibrião colérico. Em meados do século XX, além do vibrião colérico “clássico”, os biotipos El Tor e El-Tor-Inaba surgiram para complicar o quadro. Entretanto, o vibrião colérico não tem outros hospedeiros além do homem. Por outro lado, não existem hospedeiros animais conhecidos. O vibrião se encontra nas fezes, tanto de doentes quanto de pacientes assintomáticos. A contaminação das pessoas se dá por ingestão de água ou alimentos contaminados.

    Depois de deglutido, se conseguir sobreviver à acidez do estomago, o vibrião chega ao trato digestivo humano. Lá instalado, o vibrião causa muita diarreia e vômitos, além de cólicas abdominais e espasmos musculares violentos. Quando infectada pela cólera, a pessoa fica rapidamente desidratada e com uma coloração azulada, a pele murcha. Assim, a morte se dá pela violenta perda de água, assim como dos eletrólitos nela dissolvidos. Isto causa desidratação, queda do volume de sangue circulando, hipertensão arterial e arritmias cardíacas, bem como falência das funções de circulação do sangue e dos rins.

    A Cólera e o Império Britânico

    A cólera é originaria da Índia, onde ela é uma doença endêmica, principalmente na região de Bengala. Existem notícias desde 500 a.C., escritas em sânscrito e em grego, relatando doenças parecidas com a cólera. Gaspar Correa, que participou da viagem de Vasco da Gama à Índia, anotou a ocorrência de uma fulminante doença na região do Malabar. Desta forma, Gaspar Correa descreveu uma doença fulminante, uma forte dor de barriga que matava as pessoas em oito horas.  

    Entretanto, quem mais fez para que a cólera virasse uma pandemia foi o Exército Inglês. Pode-se dizer que a cólera foi a primeira grande pandemia imperialista. Viajando em modernos vapores, os soldados ingleses, os “red coats”, espalharam a doença a partir da Índia para quase todos os portos em que fizeram escala no Oceano Índico, até que chegaram às ruas sujas e fétidas da Londres oitocentista. De Londres, a cólera pegou o trem e espalhou-se rapidamente por todo o Reino Unido. De lá, o vibrião colérico atingiu toda a Europa e, pouco mais tarde, as Américas.

    A Pandemia seus tentáculos

    Assim, a cólera se espalhou por todo o mundo no século XIX. Os diversos surtos epidêmicos ocorreram principalmente entre os anos 1817-1823, 1826-1837, 1846-1862, 1864-75 e 1881-1896, chegando mesmo aos dias de hoje. Em sua nova forma, com o vibrião El-Tor, a doença voltou a reocupar algumas áreas da Ásia, África e Américas, de onde parecia ter sido extinta. No Brasil, os anos 1990 foram anos de epidemias muito intensas de cólera do tipo el-Tor-Inaba.

    Durante a grande pandemia do cólera, que experimentou vários pequenos surtos de mais alta intensidade, as populações expostas a sua ação ficavam apavoradas e desnorteadas. Não era para menos. Entretanto, as autoridades públicas responsáveis por este enfrentamento, embora tomassem diversas medidas, não sabiam exatamente o que fazer. Desta forma, havia uma certa noção que a higiene era importante. Mas não se sabia como a cólera se transmitia. Nem qual seria o tratamento mais adequado.

    Pacini e o vacilo de Koch

    Os governos e dos cientistas de todos os países durante este tempo gastaram muito tempo e dinheiro na busca de uma solução para se descobrir as causas da transmissão e também a cura da doença.

    Filipo Pacini, anatomista italiano, descobridor do Vibrião da cólera em 1854
    Filipo Pacini, anatomista italiano, descobridor do Vibrião da cólera em 1854

    O vibrião colérico foi descrito pela primeira vez em 1854 pelo médico italiano Filipo Pacini (1812-1883). O trabalho de Pacini, apesar de muito bem feito e com descrições muito boas do patógeno, foi praticamente ignorado pelos patologistas europeus. Algum tempo depois, pelo alemão Robert Koch (1843 – 1910) que fez o anúncio da descoberta do “comma bacillus” em 1883. Motivo pelo qual o vibrião ficou durante muito tempo conhecido como o “bacilo de Koch”.

    (A gente não aprende que um dos princípios da ciência é a prioridade nas descobertas? Por este singelo motivo, o vibrião devia se chamar Bacilo de Pacini. No entanto, a questão, como mostraram vários pesquisadores da História das Ciências, é que a ciência não é neutra. Ela tem cara, etnia, gênero definidos. A comunidade médica Italiana tanto protestou contra o injusto esquecimento do excelente trabalho de Pacini. Tanto que, em 1965, o Comitê Internacional de nomenclatura Bacteriológica reconheceu a anterioridade de Pacini e o bacilo foi renomeado como Vibrio colerae Pacini 1854.)

    Vibrião colerico, descrito por Pacini, 1854

    Robert Koch e a bacteriologia

    O bacilo (na verdade um vibrião) da cólera foi, portanto, (re)descoberto em 1883-84 pelo Dr Robert Koch (1843 – 1910) e sua equipe. A descoberta do vibrião foi um esforço dos cientistas que construíam a “teoria dos germes”, ou teoria contagionista. Esta teoria pressupunha que as doenças seriam transmitidas através do contato entre as pessoas, que transmitiram os “germes” de uma a outra, provocando o contágio. Entretanto, a aceitação desta explicação, como tudo em ciencia, não era unversal. Existia uma outra teoria, a teoria miasmática, que pressupunha que a doença se espalharia pelo ar contaminado, os “miasmas”. Voltaremos a este assunto em outro post.

    Robert Koch, bacteriologista alemão, foi importante na descoberta dos bacios da difteria, antraz, tuberculose e cólera
    Robert Koch, bacteriologista alemão, foi importante na descoberta dos bacios da difteria, antraz, tuberculose e cólera

    Robert Koch, a partir de seu laboratório em Berlim fez várias descobertas importantes, como as bactérias que causam o antraz, a difteria e a tuberculose. Trabalhando em paralelo com Louis Pasteur e outros, foi um dos criadores da moderna bacteriologia. Desta forma, seu laboratório em Berlim foi um dos primeiros no mundo a desenvolver as técnicas de cultura de bactérias que usamos até hoje.

    Ilustração do vibrião num periódico cientifico do seculo XIX
    Seção de submucosa intestinal de uma mulher vitima de cólera quatro dias após o óbito, com comunidades de bactéria s em forma de bastão (vibriões?)

    Koch conseguiu isolar o seu “comma bacilus” numa viagem que fez ao Egito e à Índia, para acompanhar dois surtos importantes da doença. A carta que escreveu em 1884 de Calcutá foi importante como o início de novas formas de entender e trabalhar coma doença.

    Entretanto, não foi um caminho fácil. Koch ainda teria que provar que o seu “Bacilo” era o transmissor da cólera. Seu embate com o famoso médico alemão Max von Pettenkofer, que defendia uma teoria que mesclava emanações miasmáticas a partir de interações entre o solo e o lençol freático, foram debates importantes neste período.

    Pandemias e Sociedade

    Entretanto, o desenrolar de uma pandemia, como estamos vendo muito bem no presente, não se resume a contendas de ideias ente cientistas. A força da doença e os impactos na saúde das pessoas também acaba por provocar grandes comoções sociais e políticas. Assim, é desta intrincada relação que temos que escolher os fios que guiam a história destes eventos.

    A cólera, juntamente com as outras doenças endêmicas como a tuberculose, a difteria, a febre amarela e tantas outras foi responsável por um grande número de respostas dadas pelas diferentes sociedades para sua erradicação. Entretanto, depois da Pandemia de cólera, a humanidade não seria mais a mesma. Por outro lado, a pandemia não envolveu somente cientistas em seu trabalho de laboratório, por mais importante que este fosse. Envolveu médicos, mas também envolveu engenheiros, arquitetos e políticos.

    Desta forma, a cólera, como qualquer outra epidemia/pandemia,  quando ataca uma sociedade, e tornou evidentes as suas contradições, principalmente as questões de desigualdade social. Assim, as pestes, por mais democráticas que pareçam, tem uma especial predileção pelas populações mais pobres e, portanto, mais vulneráveis. Por isso, pandemias também são quase sempre misturadas aqui e ali por numerosos protestos e revoltas populares.

    Não é à toa que em representações mais antigas a peste esteja sempre associada as suas irmãs, a guerra e a fome.

    Temos muita coisa a discutir.

    Para saber mais:

    Lewinsohn, Rachel. “Três epidemias: lições do passado.” Ed Unicamp, 2003: 318 p.

    Coleman, William. “Koch’s comma bacillus: the first year.” Bulletin of the History of Medicine 61, no. 3 (1987): 315-342.

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

plugins premium WordPress