Categoria: ESPECIAL COVID-19

  • Cobertura vacinal, retomadas, indivíduos e população

    Texto de Carol Frandsen , Maurílio Bonora Junior e Ana Arnt  

    Temos visto muito debate acerca do avanço da vacinação contra COVID-19, no Brasil e no mundo. O que parece ser, evidentemente, uma ótima notícia! Porém, junto com a esperança renovada de que venceremos esta pandemia que já nos assola há 17 meses, também percebemos que as aberturas de comércio, serviços e espaços públicos (abertos e fechados) se tornam cada vez mais frequentes. Não só aqui, mas em todo o mundo .

    Sim, sabemos que as medidas de isolamento social estão sendo cada vez menos seguidas e estimuladas. Também já cansamos de dizer que as políticas públicas brasileiras nunca possibilitaram um real isolamento e proteção das pessoas no enfrentamento da COVID-19.

    PNI e estratégias de controle de doenças

    O Programa Nacional de Imunizações (PNI) completará 50 anos em 2023. Ao longo de sua história, se consagrou como uma das grandes conquistas no controle de doenças infecciosas em nosso país. Para alcançar este patamar, aliou diferentes ferramentas: vacinações de rotina, dias nacionais de vacinação, campanhas periódicas e vigilância epidemiológica. Isto, claro, levando-se em conta o PNI inteiro – não apenas relacionada à COVID-19.

    desenho de @clorofreela

    Mas o ponto aqui é: a vacinação nunca está sozinha. A ela se aliam outros elementos. Primeiramente, vamos falar aqui de dias nacionais, campanhas periódicas e vigilância epidemiológica. A vacinação da COVID-19 alia estes elementos (ou deveria aliar). Temos datas específicas para vacinar cada parcela da população. Seja por faixa etária, seja por profissão, seja por condição de saúde, dividimos a população em grupos, lançamos datas específicas e divulgamos para que a informação atinja a todos (a princípio). 

    Das campanhas

    A campanha é mais do que a organização das datas e da distribuição de vacinas e profissionais. A campanha é, literalmente, todo o marketing publicitário e informativo, junto da vacinação das pessoas. Neste sentido, a campanha envolve logística, público alvo, mídias pagas (televisão, rádio, redes sociais…) para que a maior quantidade de pessoas possível tenha compreensão de quando vão ocorrer os procedimentos da vacinação para cada grupo que precisa se vacinar.

    A vigilância epidemiológica é outro procedimento. Este diz respeito ao rastreamento de casos confirmados da doença e tentativa de bloqueio, isolamento de pessoas contaminadas e diminuição da circulação do vírus. É uma estratégia complementar e fundamental para o enfrentamento de doenças. Todos nós sabemos e já discutimos há meses como não temos feito vigilância epidemiológica eficientemente sobre a Covid-19 em nosso país. 

    Porém é relevante apontar que nunca é tarde para começar e é emergencial que se faça isto inclusive com a vacinação avançando em nosso país!

    E o que isto tem a ver com o tema de hoje?

    Por exemplo, no dia de hoje (para quem nos lê do futuro, dia 28 de julho de 2021), o Estado de São Paulo anuncia a ampliação do funcionamento de atividades econômicas, aumento da capacidade de atendimento presencial nos comércios e serviços não essenciais (isto inclui os espaços religiosos), e sinaliza interesse no retorno às aulas.

    No entanto, consideramos importante apontar para este aligeiramento das propostas de abertura que temos visto… Elas têm levado em conta tanto melhoras nos índices de saúde (quedas consecutivas nos números de internações e óbitos), mas principalmente vacinação.

    Mas será que isto é a cobertura vacinal que temos preconizado cientificamente?

    Primeiro: “cobertura vacinal” é o termo que usamos para designar a proporção de pessoas que estão com o regime completo para uma vacina específica ou para um conjunto de vacinas, em uma dada população.

    Assim, não é apenas a quantidade de pessoas vacinadas que importa, mas a quantidade em relação à população de um território. As porcentagens e comparações são feitas em relação ao todo e não em números absolutos. E neste momento, a cobertura vacinal se torna, portanto, uma questão fundamental e tão comentada.

    Existe um senso comum que diz que “tomar uma vacina me protege”, e que portanto é uma questão de opção individual para que uma doença não me afete, individualmente. No entanto, não é desta forma que se analisa a questão das vacinas. Quando se trata de uma doença transmissível, combatida por uma medida como a vacinação, estamos falando de um planejamento que precisa atingir as populações em massa.

    Cobertura vacinal, indivíduo e população

    Quando falamos em vacinação de uma massa de pessoas e da relevância da cobertura vacinal, estamos também considerando uma quantidade de pessoas que não estará protegida por não se vacinar (seja lá por que motivo for – por ter alguma alergia, uma doença que a impeça de vacinar, não termos vacinas para aquela faixa etária, ou mesmo por ser antivacinação, …), mas estará protegida por ter muitas pessoas vacinadas ao seu redor. É bem aquele bordão dos três mosqueteiros: “Um por todos.. e todos por um!”

    A cobertura vacinal cria, neste sentido, uma verdadeira barreira para a circulação do vírus entre as pessoas. Quanto mais pessoas estão vacinadas, é mais difícil para o vírus conseguir infectar uma pessoa que não se vacinou (por exemplo, por ser alérgica a algum componente da vacina). Assim, a probabilidade dessa pessoa se infectar e desenvolver uma doença é menor, por (quase) todas as pessoas ao redor dela estarem vacinadas e protegendo-a.

    Cenários imaginários (porém nem tanto)

    Perceba os três cenários acima. Cada pessoa (ou bonequinho) representa 1 pessoa em uma população de 100 (1% portanto). As pessoas em vermelho não estão vacinadas com as duas doses (ou dose única). Isto é: não estão com o esquema vacinal completo e, portanto, não estão plenamente protegidas contra o coronavírus.

    No primeiro cenário nós temos 20 pessoas vacinadas em 100. No segundo, 60 pessoas vacinadas em 100. Por fim, no último cenário temos 75 pessoas vacinadas em 100. Vocês conseguem perceber como as pessoas vacinadas fazem, no último cenário, uma barreira para aquelas não vacinadas?

    Pois é. No Brasil, se todos os adultos se vacinarem contra a COVID-19 teremos um cenário próximo ao último cenário. No atual momento, estamos em uma situação comparável ao do primeiro cenário, pois temos 18,5% da população total (39,1 milhões de pessoas) com o esquema vacinal completo. 

    O Brasil e sua cobertura vacinal

    Hoje, no Brasil, nós temos uma população estimada de 212 milhões de pessoas e uma população adulta (18 anos ou mais) correspondente a cerca de 160 milhões.

    Para termos uma cobertura vacinal razoável da população brasileira deveríamos ter 100% da população prevista no PNI para a COVID-19 vacinada. Isto é: quando TODOS os brasileiros adultos se vacinarem, teremos um total de 75% da população brasileira completamente vacinada, 159 em 212 milhões.

    Pode soar repetitivo, mas veja: hoje temos 39 milhões com o esquema completo.

    Extinguir a pandemia com 75% de cobertura vacinal de toda a população seria possível, em teoria¹. Até lá, as medidas de contenção do coronavírus, como distanciamento e uso de máscaras, diminuir ao máximo a permanência em espaços fechados não ventilados não podem ser abandonadas! Estarmos acelerando a vacinação é uma notícia maravilhosa, mas hoje ainda não é o momento de relaxar as outras frentes de combate à pandemia. Na verdade, era a hora de mantê-las, e assim garantir que teremos a chance de salvar mais e mais vidas enquanto a cobertura vacinal vai se ampliando.

    Esta estimativa, aliada a medidas não farmacológicas contribuiriam significativamente para diminuirmos (talvez controlarmos) a COVID-19. Todavia, bom lembrar, estas medidas incluiriam uma vigilância epidemiológica eficiente, o que não vem ocorrendo desde o início da pandemia. 

    Mas estamos tão mal assim?

    Não é isso que estamos dizendo. Porém, é um pouco também. Nós temos aumentado significativamente a quantidade de pessoas vacinadas. Há muitas pessoas com uma dose de vacina aplicada, aguardando a segunda dose. Entretanto, como temos dito, não é suficiente para segurarmos a circulação do vírus SARS-CoV-2!

    Gráfico das médias móveis de vacinação no país: desde junho, vacinamos mais de um milhão de pessoas todos os dias! E a velocidade só aumenta.

    A pergunta que talvez tenhamos que nos fazer é:
    – Será que já atingimos uma boa cobertura vacinal para a COVID-19?
    A resposta é bem fácil e curta:
    – NÃO.
    E qual o motivo de escrevermos este texto neste momento?

    Para além de preocupações casuais, nós temos noção de que, por vezes, parecemos negativos em relação à pandemia. Isso inclui bater na tecla de que os modos de vida vivenciados nos últimos 500 dias, incluindo a adoção de políticas públicas, “nem sempre” fazem sentido (para combater a COVID-19).

    No entanto, há dois fatores que nos fazem produzir este post:

    1. A variante Delta e tudo o que ela vem “revolucionando” de comportamentos em países com a COVID-19 controlada (voltaremos a este tema em breve, por enquanto vamos só indicar os fios da Mellanie no fim do texto);
    2. Os anúncios de abertura de tudo, marcada para daqui 20 dias, no estado de São Paulo (onde o Blogs Unicamp acompanha de forma mais intensa, em função de ser nossa residência…).

    Sob qual justificativa abriremos tudo?

    É que parece que tudo vai bem aqui em São Paulo com a vacinação da COVID-19…

    Vimos estes anúncios do Governador de São Paulo, apontando a antecipação do término da Vacinação da 1ª dose contra COVID-19 e uma suposta “retomada segura” no Estado.

    Cabe lembrar que, sim, os casos notificados e os óbitos têm registro de queda no Estado de São Paulo. Mas é uma queda estilo usando paraquedas e pensando se vai parar no meio do caminho para tentar subir novamente… Isto quer dizer que estamos, sim, diminuindo casos diários, mas temos redução dessa diminuição nas últimas semanas. É preciso acompanhar estes dados e, mais do que isto, lembrar que temos a variante Delta está chegando e precisamos permanecer atentos e com muito cuidado e manutenção de medidas não farmacológicas.

    O Governador indica que a partir do dia 17 de agosto a população já estará vacinada. Mas será que é desta forma mesmo?

    Retrato da cobertura vacinal no Estado de São Paulo dia 28 de julho:

    No dia 28 de Julho, nós temos 23,2% da população com mais de 18 anos vacinada completamente (regime de duas doses ou dose única). Nós temos neste momento 58% da população com mais de 18 anos com ou nenhuma ou uma dose apenas.

    Parece redundante…

    É redundante e não nos importamos, inclusive, em insistir na redundância: não dá para falar em “população vacinada” quando estamos falando de uma parcela da população. Ou seja, uma parte da população que é inferior à proporção que seria aconselhável para as pessoas começarem a circular de forma segura.

    Além disso, falar em “população vacinada” um dia depois de terminado o cronograma de vacinação seria supor que ao tomar a primeira dose estamos imediatamente protegidos. E não é verdade. Temos um tempo necessário para produzir a proteção em nosso organismo – cerca de 15 dias após a SEGUNDA dose (ou 30 dias em casos de dose única).

    Se formos levar em conta que a data indicada pelo governo de São Paulo apenas considera a primeira dose: não faz sentido apontar que a população está protegida.

    Parece redundante, é redundante e não nos importamos em insistir na redundância…

    Não há proteção contra a COVID-19 que se faça por mágica em uma seringa. Nosso corpo precisa de um tempo para se proteger individualmente. Nossa população precisa de cobertura vacinal para se proteger em massa.

    E cobertura vacinal é regime completo no braço, com tempo para o corpo desenvolver a proteção contra o vírus.

    Não há protocolo diferente deste em local algum do mundo: não haverá nada que barre um vírus por decreto de governantes dizendo que estamos em retomada segura. Os casos no mundo inteiro estão subindo e “vida normal” não pode ser retomada com mais e mais mortes do que já tivemos até agora.

    Então é o fim da esperança?

    Longe de nós apostar em algo tão dramático assim. Mas seguimos apontando a linha de análises que PRECISAM de políticas públicas que levem em conta o que a ciência vem debatendo como protocolo, cobertura vacinal e vigilância epidemiológica desde os primórdios de tudo isto.

    Precisamos manter a esperança, sim. Mas isso significa que precisamos colocar em prática comportamentos e cobranças políticas reais e efetivas para voltarmos a um ritmo de vida saudável – e isto deveria ser o alvo da normalidade.

    Por fim, para não deixar dúvidas, usamos os números e casos de São Paulo como exemplos. Não é o único estado que tem ações nesta direção.

    Agradecimento especial deste post para Isaac Schrarstzhaupt que ajudou com os gráficos.

    Para Saber Mais:

    ¹ Bartsch, Sarah M et al (2020) “Vaccine Efficacy Needed for a COVID-19 Coronavirus Vaccine to Prevent or Stop an Epidemic as the Sole Intervention” American journal of preventive medicine vol 59,4 (2020): 493-503.

    Brasil, Ministério da Saúde (2003) Programa Nacional de Imunizações, 30 anos

    de Moraes, José Cássio, de Almeida Ribeiro, Manoel Carlos Sampaio, Simões, Oziris, de Castro, Paulo Carrara, & Barata, Rita Barradas (2003) Qual é a cobertura vacinal real?. Epidemiologia e Serviços de Saúde, 12(3), 147-153. 

    São Paulo (2021) SP amplia funcionamento de atividades econômicas até 0h a partir de domingo | Governo do Estado de São Paulo (saopaulo.sp.gov.br)

    Vaccine registration to open for those aged 16 and 17 (rte.ie)

    Textos de Divulgação

    Fios de Mellanie Fontes-Dutra

    Nosso normal: variantes, festas e aumentos de casos

    Vacinas: uma ação de Saúde Pública

    Estratégias de vacinação: o que se leva em conta?

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Do movimento antivacina ao Zé Gotinha

    Texto escrito por Marina Fontolan e Dayane Machado

    A Volta do Movimento Antivacina

    O texto de hoje pretende apresentar a atual configuração do movimento antivacina no Brasil. É importante destacar, antes mesmo de aprofundar a discussão, que a hesitação vacinal, sobretudo na atual pandemia de Covid-19, está também ligada à atitude do governo federal. Este insistiu por muito tempo em ineficazes práticas de combate à pandemia e acabou criando hesitação vacinal em parte da população.

    Além disso, reconhecemos aqui que as ineficazes práticas de combate à pandemia de Covid-19 indicadas pelo governo federal são disfuncionais desde o princípio. Por exemplo, incluindo o uso do kit covid, do isolamento vertical, da imunidade de rebanho. A tudo isto soma-se o compartilhamento de desinformação em relação a vacinas, que abordaremos no próximo texto. Sobre isso, destacamos que existe a constante sugestão, por parte da esfera federal, da falta de segurança ou sua irrelevância para o controle da pandemia.

    Para que o objetivo dessa apresentação seja cumprido, dividimos nosso texto em duas partes. Hoje abordaremos as definições acerca do movimento antivacina e da hesitação vacinal.

    É importante notar, no entanto, que esse fenômeno não pode ser totalmente medido no país. Uma vez que ainda não possuímos acesso à vacina para toda a população. Depois, apresentamos um breve histórico de hesitação de vacinação no país, mostrando que essa hesitação está atrelada à políticas públicas.

    No próximo texto analisaremos o caso da pandemia de Covid-19. Bem como os discursos do governo federal atrasaram a vacinação do país e criaram o atual estado de hesitação.

    Movimento Antivacina e Hesitação

    De acordo com Dayane Machado , há uma diferença fundamental entre pessoas hesitantes às vacinas e as pessoas que podem ser consideradas antivacinação.

    As que são hesitantes em vacinação são aquelas que recusam a tomar apenas algumas vacinas. Com isto adiam o calendário vacinal ou que até obedecem ao calendário, mas que não se sentem totalmente seguras. A hesitação e os níveis de insegurança em relação às vacinas podem variar ao longo do tempo.

    Pessoas que são antivacinas normalmente não se consideram como tal. Assim, vão recusar esse tipo de rótulo e são pessoas que criam e usam boatos para gerar desconfiança nas vacinas.

    Aliás, o movimento antivacinação é tão antigo quanto as próprias vacinas.

    Mas tem ganhado força por causa do crescimento do acesso à internet e às redes sociais. O apelo a diversos discursos que esses grupos fazem tem potencial de alcançar e influenciar pais. Com isso, acabam deixando de vacinar os filhos e passando a fazer parte do movimento antivacina. 

    Na atualidade, essas pessoas se utilizam muito da tática do discurso de liberdade individual para dizerem que elas não são contra as pessoas se vacinarem. Assim, essa é uma maneira de apresentar a rejeição a vacinas como algo mais razoável. Simultaneamente a isto, é uma tentativa de evitar possíveis responsabilizações. Dessa forma,, relacionam a escolha de não se vacinar e não vacinar seus filhos à defesa das liberdades individuais.

    Todavia, quando falamos em movimento antivacina, precisamos ser cuidadosos. Isso acontece por já existirem muitos espectros e posicionamentos relacionados a esse assunto. Isto é, o espectro vai das pessoas que aceitam todas as vacinas com confiança, até as pessoas que rejeitam todas elas. No meio, em um espaço bem grande, há vários posicionamentos que classificamos como hesitação vacinal

    Da Revolta da Vacina ao Zé Gotinha

    O Brasil não possui um movimento antivacina estruturado como nos Estados Unidos. No entanto, há momentos em que a hesitação vacinal se torna mais latente na nossa história. É importante notar que a vacinação no país é obrigatória para as crianças desde 1837 e para adultos desde 1846. Isso mostra que a obrigatoriedade da vacinação no país remonta à época do império no Brasil. Essa prática ganhou força em 1884, quando o Rio de Janeiro – na época a capital do país – começou a ter algum tipo de produção industrial (saiba mais aqui).

    Quando o país se tornou uma república, em 1889, várias mudanças começaram a ocorrer no país. Na época, a cidade do Rio de Janeiro (como outras no país), possuía sérios problemas estruturais, incluindo o saneamento básico. Isso levou o país a ganhar fama mundial de ‘hospital’. Pois, sofria constantemente de pandemias como lepra, sífilis, varíola e febre amarela eram constantes no país. Na época, o presidente da república criou um plano para modernizar a cidade do Rio de Janeiro. Como consequência, várias reformas na cidade expulsaram boa parte da população de suas casas. 

    A revolta não era só pela vacinação em si

    O presidente também indicou o médico sanitarista Oswaldo Cruz para cuidar das pandemias do país e criar um plano de vacinação. Na prática, o médico criou um batalhão no Rio de Janeiro para vacinar a população à força. Nesse ponto, o discurso de liberdade individual vem à tona e tem-se, então, a Revolta da Vacina, que perdurou por quatro dias em novembro de 1904. É importante notar, aqui, que essa revolta está ligada à população não aceitar as atuais políticas impostas à força pelo governo republicano. Assim, a Revolta da Vacina vai além da questão da população não ter acesso à informação sobre as vacinas e estar sendo violentamente obrigada a se vacinar. Essa movimentação antivacina também possui um caráter de resistência às políticas republicanas.

    Zé Gotinha: a personagem que conquista os brasileiros

    A partir dessa revolta, o país continuou tendo campanhas de vacinação, mas estas eram muito esparsas e sem grande adesão. Com a redemocratização do país em 1985, o Brasil criou o Sistema Único de Saúde. Além disso, firmou um acordo com a Unicef para erradicar a poliomielite em até 10 anos. Para isso, contrataram o artista plástico Darlan Manuel Rosa para fazer o logo desta campanha de vacinação. O resultado disso foi mais do que um logo para a campanha, foi a criação de um mascote: o Zé Gotinha. A entrevista com o artista (abaixo) mostra o processo de criação e da relação dos brasileiros com a vacinação na época.

    Como nasceu o Zé Gotinha?

    Essa entrevista mostra que a hesitação vacinal por causa da brutalidade na forma da aplicação das vacinas, que também era alimentada por desinformação em relação ao papel das vacinas e de sua importância. O uso do Zé Gotinha como mascote das campanhas de vacinação permitiu criar uma imagem mais amigável para as campanhas de vacinação, fazendo com que crianças se informassem sobre as vacinas e as datas de aplicação.

    Finalizando

    É a partir deste cenário de campanhas específicas para a população, bem como da implementação das políticas públicas de compra e produção de vacinas que o Brasil se torna, ao longo das décadas seguintes, em um dos países com uma das maiores coberturas vacinais do mundo.

    O Programa Nacional de Imunizações completará, em 2023, 50 anos com um histórico de ser uma política pública de massa e muito eficiente, que esperamos ver retomada como princípio dentro de nosso país.

    Para Saber Mais

    Brasil, Ministério da Saúde (2003) Programa Nacional de Imunizações, 30 anos

    Eve Dubé, Maryline Vivion & Noni E MacDonald (2015) Vaccine hesitancy, vaccine refusal and the anti-vaccine movement: influence, impact and implications, Expert Review of Vaccines, 14:1, 99-117.

    Lazarus, J.V., Ratzan, S.C., Palayew, A. et al.A global survey of potential acceptance of a COVID-19 vaccine. Nat Med27, 225–228 (2021).

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • As vacinas Astrazeneca e Coronavac nos protegem contra a variante Alfa? [Spoiler: sim]

    Alfa Texto escrito por Mariene Amorim, Maurílio Bonora Junior e José Luiz Proença-Modena

    Cá estamos nós de novo para falar de variantes (especificamente a Alfa) e de mais um estudo que saiu em pré-print recentemente, realizado por pesquisadores aqui da Unicamp. [vamos lançar um spoiler aqui para já ler o post inteiro sem alarmismos, ok?]. Esse estudo analisou a capacidade da variante Alfa (conhecida também por B.1.1.7, do Reino Unido) em se transmitir em ambientes fechados. Todavia, a análise levou em conta, também, o fato de a população estudada ter sido vacinada com a primeira dose de Astrazeneca ou as duas doses de Coronavac. 

    A partir dos resultados, apareceram também algumas evidências que a variante Alfa do SARS-CoV-2 é capaz de infectar e ser transmitida por pessoas imunizadas com a primeira dose da vacina da Astrazeneca e ambas as doses da CoronaVac.

    “Quer dizer que não valeu de nada eu ter tomado a vacina?”

    CALMA! Como diria Chapolin Colorado “Não priemos cânico”! Isso não quer dizer que se você tomou alguma dessas duas você está desprotegido. Vem conosco entender um pouco melhor essa pesquisa.

    Primeiro de tudo, precisamos entender que a infecção e a transmissão por indivíduos vacinados é algo comum já mostrado para muitas das vacinas corriqueiramente usadas em humanos. Além disso, isso não quer dizer que a vacina tenha baixa eficácia ou que não proteja contra o desenvolvimento da doença. De fato, o estudo mostra que a taxa de internação e de manifestações clínicas graves foi bem abaixo do esperado para pessoas dessa faixa de idade infectados com a variante alfa do SARS-CoV-2.

    Ademais, nesse estudo os autores mostraram que a detecção de SARS-CoV-2 e a presença de sintomas não foi correlacionada com os níveis de anticorpos neutralizantes, aqueles capazes de inativar o vírus e fazer com que ele não seja mais capaz de infectar uma nova célula.

    Isto é  muito relevante em tempos em que vemos muitas pessoas fazendo testes posteriormente às vacinas para averiguar se estão com anticorpos neutralizantes ou não! Esta pesquisa reforça cientificamente que este teste não faz sentido!

    Isso provavelmente se dá em consequência da complexidade da resposta imune protetora induzida pelas vacinas. Além disso,  precisamos entender que o nosso sistema imune é um conjunto de ferramentas muito diferentes, específicas e redundantes. Isto é, nós temos vários mecanismos e modos de se combater um patógeno, seja este um vírus, uma bactéria ou um fungo. Um desses mecanismos são os anticorpos, que tanto falamos no último ano. E mesmo os anticorpos não possuem somente a função de neutralização. Ou seja, eles podem agir de várias outras formas. Além disso, como disse, o sistema imune possui vários outros modos de combater ameaças, assim como células especializadas em combater vírus como o SARS-CoV-2 (vocês podem conferir isso aqui e aqui).

    Um segundo ponto que é necessário dizer aqui é: esses baixos níveis de anticorpos neutralizantes para algumas variantes de SARS-CoV-2 em pessoas que receberam algumas vacinas contra COVID-19 não é uma notícia nova. Cada vez mais temos visto publicações que apontam para dados como estes. Aqui no próprio Especial Covid-19 já escrevemos alguns textos falando sobre pesquisas daqui da Unicamp que apontavam para dados assim (aqui e aqui). E notem que usamos a palavra redução e não ausência de eficácia. Dessa forma, isso quer dizer que nós ainda geramos anticorpos e estes ainda são capazes de nos proteger. A diferença é que no caso dessas novas variantes, a quantidade que vemos não é tão alta quanto nos testes. Por quê? Justamente por não haver essas variantes durante a época dos testes, ou elas estarem começando a aparecer na população.

    Tá, mas e o artigo? O que descobriram então?

    Falando da pesquisa em si, os autores estudaram a dinâmica de transmissão de SARS-CoV-2 em duas populações de indivíduos vacinados e avaliaram se os níveis de anticorpos neutralizantes poderiam se correlacionar com a ausência de infecção ou da presença de sintomas clínicos. E eles observaram que não. Na verdade as maiores quantidades de anticorpos neutralizantes foram observadas em indivíduos sintomáticos. Tá, mas então estamos perdidos? NÃO. Calma lá….

    Os autores descobriram que apesar da variante alfa infectar e ser transmitida por indivíduos vacinados, a proteção contra a forma severa da Covid-19 e a chance de morte permanece semelhante com o que foi visto nos testes para a CoronaVac e Astrazeneca.

    Como assim?

    O fato dos indivíduos vacinados sintomáticos terem maiores níveis de anticorpos neutralizantes contra a variante alfa de SARS-CoV-2 do que os indivíduos vacinados assintomáticos ou não infectados, indicam que alguma “outra coisa” na resposta imune que nos mantém protegidos. O quê poderia ser? Possivelmente a resposta imune celular, como já comentada e explicada em outros textos.

    Um ponto interessante que os pesquisadores observaram, foi que a quantidade de anticorpos que a pessoa possui não está diretamente relacionada com a possibilidade de desenvolver sintomas. Pessoas com muitos anticorpos podem ou não ter sintomas, assim como pessoas com menos anticorpos também podem ou não desenvolver sintomas. Ou seja, existem outros fatores envolvidos na resposta imune que cada corpo vai gerar. 

    Dessa forma, os cientistas viram que a quantidade de anticorpos no sangue não importava caso quisessem prever se uma pessoa, que pegar a variante Alfa da Covid-19, teria uma doença mais leve ou mais branda. A lógica por trás disso é que usualmente pode-se pensar que as pessoas com maiores níveis de anticorpos deveriam ter uma doença mais leve. No entanto, não é bem assim que acontece sempre e, neste caso, foi justamente o oposto do observado.

    Mas pode isso, em nosso corpo (e na ciência?)

    Sim! A ciência é dinâmica e estamos sempre aprendendo mais e, quando necessário, revendo conhecimentos que produzimos ao longo do tempo. Dessa forma, embora seja comum pensar que pessoas com maiores níveis de anticorpos tenham a doença mais leve ou assintomática, foi observado que o oposto também pode acontecer. Ou seja, indivíduos com níveis mais baixos de anticorpos foram assintomáticos, enquanto alguns com altos níveis de anticorpos, desenvolveram sintomas.

    Isso nos mostra que, mesmo compreendendo muito sobre nosso corpo e seu funcionamento, sempre há mais para entender e pesquisar. A COVID-19 têm nos mostrado isso bastante e, mais do que questionar a ciência, ela nos demonstra exatamente como a ciência funciona: sempre buscando encontrar respostas para os fenômenos naturais e sociais de nossos tempos…

    Entretanto, é necessário lembrar – novamente – que mesmo com um menor nível de anticorpos contra a variante Alfa, a chance de desenvolver Covid-19 severa não foi modificada e as vacinas continuam protegendo as pessoas contra essa forma da doença, e a morte na grande maioria dos casos, tal como indicavam os testes clínicos (fase 3 dos testes).

    Os dois surtos ocorreram em locais parcialmente restritos, onde a maioria das pessoas tinham idade avançada!

    Em março de 2021, a Vigilância Epidemiológica de Campinas começou a investigação de dois surtos, um em um convento e outro em um lar de idosos, em parceria com o LEVE, do Instituto de Biologia da Unicamp. Foram coletadas amostras de todos, incluindo moradores e funcionários, sendo um total de 26 pessoas do convento e 52 pessoas do lar de idosos. No convento, 14 pessoas testaram positivo para SARS-CoV-2, e já haviam recebido a primeira dose da vacina AstraZeneca. Enquanto no lar de idosos, 22 pessoas que já haviam recebido duas doses da vacina CoronaVac testaram positivo.

    A média de idade dessas pessoas variou de 73 (convento) a 77 (lar de idosos) anos. Foi possível, por meio de sequenciamento do genoma do vírus na amostra de swab de algumas dessas pessoas, detectar a variante Alfa. Nesses dois surtos, 12 pessoas tiveram sintomas leves, enquanto 26 pessoas foram assintomáticas. Felizmente, o nível de gravidade foi semelhante ao que já havia sido descrito nos estudos das vacinas. São informações importantes para todos nós, que estamos preocupados com a disseminação de variantes pelo mundo e pelo Brasil. 

    Este caso do surto, analisado via sequenciamento genômico, é importante exatamente por dois motivos. Em primeiro lugar, por conseguirmos rastrear as variantes que estão circulando em nosso país. Em segundo lugar, pelo modo como as vacinas respondem às variantes – um estudo que o mundo inteiro está fazendo!

    Tá, mas porque tão falando tanto dessa variante Alfa?

    Muitos dos estudos recentes avaliando a efetividade das vacinas vêm focando no impacto das variantes na imunidade justamente pelo fato delas poderem escapar da nossa imunidade. A variante Alfa foi uma das primeiras a aparecer e rapidamente tomar conta de vários países. É nesse contexto que se divide as variantes em duas categorias: as VOI ou Variantes de Interesse (Variants of Interest) e as VOCs ou Variantes de Preocupação (Variants of Concern). 

    Finalmente,

    A mensagem deste trabalho é mostrar que apesar das novas variantes (especialmente a variante Alfa, observada no trabalho) serem capazes de escapar do efeito neutralizante de parte dos anticorpos induzidos pelas vacinas, podendo nos infectar e serem transmitidas para outras pessoas, esta resposta imune ainda é capaz de nos proteger contra a forma grave da Covid-19.

    Entretanto, não é só a vacina que vai nos salvar. Assim como surgiram variantes que escapam da proteção conferida pelos anticorpos, em um cenário em que as campanhas de vacinação são lentas, as pessoas não fazem distanciamento social e não usam máscaras, a chance para o aparecimento de uma variante que pode escapar TOTALMENTE da proteção das vacinas é significativa. Atualmente as variantes Gamma (P.1), predominante no Brasil, e a Delta, têm gerado preocupação pelo tanto de mutações acumuladas, e capacidade maior de transmissão!

    Por isso, seguimos insistindo no investimento científico, para detectar as variantes, controlá-las e perceber a efetividade das vacinas nestes casos! A ciência brasileira segue buscando meios de se manter produzindo conhecimento técnico e científico de ponta, para combater a pandemia da COVID-19.

    Por fim, a mensagem que fica é que precisamos continuar nos protegendo, seguindo as medidas recomendadas pelos órgãos competentes, mesmo que nós e pessoas do nosso círculo já estejam vacinadas, até que toda a população esteja vacinada e quebrarmos a transmissão do SARS-CoV-2.

    Referências:

    de Souza, William M. (…) Proenca-Modena, Jose Luiz, Clusters of SARS-CoV-2 Lineage B.1.1.7 Infection After Vaccination With Adenovirus-Vectored and Inactivated Vaccines: A Cohort Study. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=3883263 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3883263            

    WHO (2021) Tracking SARS-CoV-2 variants

    Outros Materiais do Especial COVID-19:

    O que são Anticorpos?

    Imunidade Celular: um exército de soldados invisíveis

    Covid-19: um exército invisível combatendo a doença!

    E aqueles resultados das vacinas? – Parte 2: Memória Imunológica

    Anticorpos Monoclonais! Quê?

    Diversidade viral e surgimento de novas variantes do SARS-CoV-2

    P.1 e a CoronaVac: é verdade que não precisa mais vacinar? (Spoiler, precisa sim!)

    Anticorpos neutralizantes e a variante P.1 Gamma

    Este texto foi escrito originalmente para o blog EMRC

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

    Nossos sites institucionais:

    Força Tarefa da Unicamp

    Unicamp – Coronavírus

  • A plataforma Brainly e as exposições da educação brasileira

    Texto escrito por Matheus Naville Gutierrez

    O que o ensino não-presencial e o Brainly tem nos acrescentado no debate sobre a nossa estrutura educacional.

    Caso você esteja atuando como professor desde abril de 2020, tentando se adaptar, de forma rápida e sem preparo, a um ensino remoto improvisado e pouco estruturado, com certeza você conhece o novo arqui-inimigo dos professores, que tem deixado toda a organização escolar de cabelo em pé: o site Brainly.

    Brainly?

    Não está familiarizado com esta plataforma? Pois bem, ela funciona da seguinte maneira: aos moldes do finado Yahoo respostas, o estudante coloca a sua questão no site do Brainly, esperando que alguém da comunidade responda. Sabemos que muitas questões utilizadas pelos professores são recicladas de banco de dados, vestibulares e sites de exercícios, os estudantes encontram com facilidade as respostas. Dessa forma, muitas vezes, o estudante copia a questão, cola-a na barra de pesquisa do Google e encontra a resposta em menos de 1 minuto.

    Essa nova relação escolar forçada pela pandemia da COVID-19 expõe diversos fatores que nos levam a repensar a própria estrutura da escola. Por exemplo, podemos refletir sobre a estrutura escolar e a forma como organizamos e trabalhamos nas escolas atualmente. Trago aqui algumas reflexões específicas, que poderiam ser exploradas e expandidas.

    Sobre a escola e sua estrutura

    Iniciemos com a reflexão sobre a importância da estrutura escolar, a partir do que Michael Foucault coloca em sua obra “Vigiar e Punir”. Nela, o autor descreve a estrutura escolar como uma forma de poder disciplinar e que transforma os corpos em dóceis. Assim, a estrutura de avaliação tradicional, com prova escrita, sem consulta, sentado em seu lugar imóvel, com pessoas separadas geometricamente de você, é um instrumento que reforça a escola como local de poder disciplinar. 

    Ao tirar o estudante deste local quase inóspito e colocarmos ele com o acesso à internet e comunicação, essa estrutura tradicional perde o seu sentido. Ou seja, não está mais se ensinando ao estudante sentar, olhar recurvado para baixo, apenas uma caneta em mãos, respeitar e obedecer a autoridade das estruturas de poder colocadas na escola. Assim, organização do tempo e do espaço disciplinar, tanto quanto a imposição dos ritmos comumente exercidos no ambiente da escola se ressignificam no ensino remoto.

    Cabe a nós, docentes, essa reflexão. Eu realmente espero que a minha aula, o espaço que posso construir, debater e transformar os meus estudantes, seja apenas um momento de repetição de um tradicionalismo avaliativo? Essa pergunta já permeia o debate acerca dos processos de ensino-aprendizagem e avaliação há muitos anos. Contudo, neste momento específico ganha força e precisa ser retomado.

    O debate não se restringe a um tempo escolarizado subutilizado

    Além disso, aqui entramos em outra problemática exposta e piorada durante o período de ensino remoto: a desvalorização do trabalho docente como um trabalho reflexivo, que demanda tempo. Tempo para refletir, experienciar, conhecer, desenvolver técnicas e instrumentos, escolher e adaptar formas avaliativas. Os professores, que assumem um número de aulas exagerado para conseguir compor um mínimo de um salário decente, precisaram assumir outras funções durante esse período. 

    Dessa forma, além de aprender a usar novas ferramentas para as aulas, os professores também começaram a ultrapassar os horários para conseguir garantir um mínimo de presença e interação com seus estudantes. O que já era de extrema dificuldade para os professores, durante as aulas remotas se tornou praticamente impossível. Logo, a única forma rápida e que cabe no horário disponível aos professores é continuar com a avaliação tradicional. Obviamente, os estudantes aproveitam todas as respostas no banco de dados da plataforma do Brainly. Essa prática pode perpetuar um ciclo de pouco aproveitamento avaliativo nas escolas.

    Os dois fatores anteriormente citados são apenas pedaços de uma vivência complexa e difícil que os professores têm passado durante esse período.

    Existem soluções para eles?

    É importante reforçar que o instrumento, por si só, não é o causador de todo o mal que analisamos. O potencial da internet como ferramenta de ensino é muito valioso. Ela pode ser adicionada e utilizada em desenvolvimentos críticos educacionais. Mas essa mudança precisa acontecer nas estruturas de poder e de organização escolar, e não apenas na cobrança solitária do professor. 

    A reflexão e as possíveis mudanças sobre essa problemática precisam acontecer em um momento anterior. Vamos iniciar com a reflexão da estrutura geral das escolas. Conhecer e entender que a escola é um ambiente de docilidade dos corpos é importante. Todavia, a sua superação depende não somente de uma mudança prática dos professores. Isto é, isso compõe um trabalho social, de percepção da função da escola e do conhecimento que será trabalhado. E isso podemos continuar discutindo futuramente.

    Acredito que podemos focar neste próximo ponto. O que precisamos, primeiramente, é fornecer possibilidades reflexivas sobre a própria prática para os professores. Permitir que os professores pensem e escolham sobre as suas aulas, métodos e instrumentos avaliativos. Atualmente, a estrutura geral da educação não permite essa prática, e os professores acabam forçados ao que é, supostamente, cômodo e ágil, sem que se permita que o professor tenha experiências pedagógicas, possibilidades reflexivas e condições para escolhas pedagógicas.

    Finalizando

    O que a plataforma Brainly fez foi escancarar algo que já se tornou historicamente problemático no ambiente escolar, e que continuará mesmo se o ensino tradicional presencial retorne a sua normalidade anterior a COVID-19. Os estudantes estarão sempre a um passo da internet e de todas as respostas de uma prova tradicional. Por outro lado, os professores sempre atolados e desmotivados para utilizar de outros pensamentos e modelos educacionais e avaliativos.

    Em suma, essas mudanças precisam ser repensadas, levando-se em conta a organização da sociedade. O poder disciplinar, tal como descrito em Foucault, acontece dentro do espaço escolar, é produtivo (como diz o autor), mas não necessariamente precisa acontecer de forma apenas a partir da reprodução contínua de atos e ritmos: é preciso que ensinemos mais do que a repetição automatizada de respostas.

    Para saber mais

    FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.

    Este texto foi elaborado originalmente no Blog PEmCie

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os a produção de textos acontece a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e possui revisão por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Minhas impressões: “Contágio”, de David Quammen

    Divulgado como o livro que previu a pandemia da COVID-19, livro “Contágio: Infecções de origem animal e a evolução das pandemias”, escrito em 2012 David Quammen, chegou ao Brasil em setembro de 2020, pela editora Companhia das Letras. E sim, todo o hype em cima do livro é entendível.

    Disclaimer: A editora Companhia das Letras me enviou uma cópia do livro para resenhar aqui no blog. Não é uma publicidade paga.
    Para adquirir uma cópia, você pode utilizar o nosso link da Amazon, clicando na imagem do livro abaixo!

    (Assim, você ajuda o blog e não gasta nada a mais por isso).

    CONTÁGIOinfecções de origem animal e a evolução das pandemias

    David Quammen – Companhia das Letras

    544 páginas

    Em 2020 um balde de água fria caiu sobre a gente nos jogando no meio de uma pandemia desenfreada. No Brasil, mais de 1 ano e meio depois, ainda continuamos enfrentando a pandemia de forma muito ruim: corrupção, desinformação, kits de medicamentos sem eficácia sendo distribuídos e receitados, estabilidade em um patamar elevado de casos e mortes. Os divulgadores de ciência acho que nunca trabalharam tanto e de forma tão unida em favor de uma única causa. Uma causa que provavelmente não poderíamos fugir. E que provavelmente enfrentaremos novamente, com uma nova carinha (talvez mais fofa, talvez bem mais feia).

    E ainda pior, parece que essas novas doenças surgem do nada(!) para assolar a espécie humana. Coitados de nós, tão injustiçados nesse mundo tão grande então cheio de espécies diferentes. Mas é justamente mostrando que as coisas não acontecem bem assim (“do nada!”) que Quammen começa e termina seu livro.

    Epidemias sempre assolaram nossa população…. mas não só a nossa!. Só que, pra gente, claro, as pandemias que nos afetam trazem em si um interesse muito maior, afinal, não é estranho que tenhamos uma vigilância e preocupação maior com doenças que nos afetam diretamente.

    O título original de Contágio é “SPILLOVER”, termo em inglês utilizado “para denotar o momento em que um patógeno passa de uma espécie hospedeira para membros de outra espécie”. Em português o termo utilizado é “transbordamento zoonótico”. Convenhamos, um termo nada chamativo para um livro de jornalismo científico! Olhando no GoodReads, vi que geralmente o livro é traduzido com o título de “Zoonoses” ou “Contágio”, sendo este último o escolhido para a edição Brasileira. Apesar de não carregar em si o mesmo significado que Spillover, considero uma alternativa muito boa.

    No livro, Quammen faz uma descrição profunda de diversas zoonoses – que são infecções que afetam tanto a espécie humana quanto outras espécies de animais. Mas, mais do que falar como se dá o processo de contaminação (contágio) pelo microrganismo, o jornalista investiga e descreve como se deu o processo de spillover/transbordamento zoonótico – ou seja: como e quando o microrganismo “saltou” de uma espécie animal para a espécie humana.

    E faz isso de maneira fantástica! O autor narra seu percurso em busca de personagens que participaram de alguma forma dessas epidemias zoonóticas: cientistas, médicos, fazendeiros, veterinários, guias e moradores dos locais. E em meio a essa narrativa histórico-investigativa e científica, Quammen introduz conceitos que hoje estão ganhando espaço entre nós: reservatório, vetor, hospedeiro intermediário, R0, taxa de transmissão, supertransmissor, mutação, vírus de RNA e DNA. Em alguns momentos o texto é bem denso, mas em outros somos envolvidos como se estivéssemos lendo um livro de aventura e cheio de mistério… E, para isso, Quammen usa como pano de fundo algumas epidemias zoonóticas como: Hendra, Ebola, Malária, SARS, Febre Q, Psitacose, Influenza (gripe), Nipah e HIV/Aids.

    O que aprendemos com isso? Que geralmente esses saltos de patógenos que passam a infectar humanos (os transbordamentos) ocorrem de maneira acidental e nós mesmos criamos as condições para que isso aconteça, afinal: “Invadimos florestas tropicais e outras paisagens selvagens, que abrigam tantas espécies de animais e plantas — e dentro dessas criaturas, tantos vírus desconhecidos. Cortamos as árvores; matamos os animais ou os engaiolamos e os enviamos aos mercados. Destruímos os ecossistemas e liberamos os vírus de seus hospedeiros naturais. Quando isso acontece, eles precisam de um novo hospedeiro. Muitas vezes, somos nós.

    Quammen é autor de 15 livros (alguns lançados no Brasil também pela Cia. das Letras, como: “O canto do dodô”, “Monstro de Deus”, “As dúvidas do sr. Darwin”) e já escreveu para grandes publicações estadunidenses, como a National Geographic. Ele conseguiu, com um livro publicado inicialmente em 2012 – ou seja, que possui informações de quase 10 anos atrás –,  manter-se bem atual. A importância desse livro é inegável.

    Recomendo demais o livro Contágio, destrancando os capítulos 4- Jantar na fazenda de ratos (onde o autor traça as origens da epidemia de SARS em 2003, e conseguimos ver muitas semelhanças e diferenças com a pandemia atual da Covid-19, afinal ambas são causadas por coronavírus) e o 8- O chimpanzé e o rio (sobre a origem e a disseminação mundial do vírus do HIV/Aids)

    Finalizo com a citação de um trechinho do epílogo* do livro, “se você acha que financiar a preparação para uma pandemia é caro, espere até ver o custo final do nCoV-2019”.

    *O epílogo é um artigo publicado em 28/07/2020, no New York Times. A denominação nCoV-2019 para o coronavírus causador da Covid-19 justifica-se pois o artigo é anterior à atual denominação como SARS-CoV-2.

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    Este texto foi escrito originalmente para o blog Meio de Cultura

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • O estágio de docência na educação a distância: desafios encontrados

    Um texto escrito por Mélany Santos e Peterson Kepps

    No texto de hoje, vamos falar de educação. Abordaremos uma experiência de estágio de docência na graduação EAD em Pedagogia segunda licenciatura. Isso significa, claro, que nós somos licenciados e, além disso, ainda atuamos como professores em sala de aula. 

    Em função de já termos uma formação inicial e vivenciado na primeira licenciatura os estágios de modo presencial, buscamos, nas linhas a seguir, apontar nossas percepções no que concerne a esta vivência de estágio na modalidade a distância.

    Neste contexto, entendemos a importância do estágio nos cursos de licenciatura, enquanto um momento fundamental para a formação, experiência e vivência do professor. Assim, acreditamos que o estágio “[…] possibilita o contato com elementos indispensáveis para a construção da identidade profissional docente”.

    Deste modo, o texto está organizado em dois momentos. Isso se deu porque nós, autores, embora tenhamos vivenciado o estágio nesta modalidade e na mesma universidade, realizamos em momentos diferentes da pandemia de Covid-19. O que acarretou num formato diferente de desenvolvimento do estágio docência. 

    Primeiras reflexões

    Antes de começar esse relato, é necessário que eu me apresente a vocês. Meu nome é Mélany Santos, sou professora de matemática das séries finais do Ensino Fundamental, da rede municipal de Pelotas/RS. Sempre tive o desejo de fazer uma licenciatura em Pedagogia, e iniciei em 2020.

    No curso EAD em Pedagogia segunda licenciatura, os estágios de regência eram de forma presencial nas escolas. Contudo, devido ao início da pandemia do coronavírus, os estágios tiveram que  ser modificados.

    No início de 2021, mais especificamente em março, tive que realizar os meus estágios de Educação Infantil e do Ensino Fundamental. A forma encontrada pela Universidade foi desenvolver um plano de estágio que pudesse ser apresentado em forma de vídeo aos alunos e publicado no youtube. 

    Organização das aulas e atividades

    Criei então dois planos de aula, um para cada nível. Em seguida, gravei essas aulas, de no máximo 10 minutos. Que ficaram organizadas em: um momento de apresentação enquanto professora deles; vídeo para o momento da história; outro vídeo para que eles pudessem cantar uma música; depois tiveram que manipular massinha de modelar; posteriormente fariam desenhos e teriam que pintar.

    Por fim, a última atividade consistia em que eles gravassem um vídeo e me devolvessem,  respondendo algumas perguntas. Dentre elas, como estava sendo para eles o período de aula online, o que eles sentiam mais falta da escola e perguntas relacionadas a atividade. 

    Postamos essas duas aulas no youtube, já que não teríamos como aplicar em sala de aula, em função das escolas estarem fechadas. Quando postadas, encaminhei o link para que conhecidos pudessem ver e mostrassem aos seus filhos. 

    Em uma semana o vídeo “A Dona Aranha” teve 30 visualizações, e o vídeo “A Lenda do Saci-Pererê” teve 31 visualizações. Assim, realizei o relatório de dados de repercussão, apresentando o alcance que os vídeos tiveram. E por fim, os relatórios de estágios. 

    Estágio simulação

    Inicio esse subtítulo um tanto provocador, mas foi assim que me senti ao final dos estágios, estando em uma “simulação”. Desde o planejamento eu sabia que não teria nenhuma interação com os alunos, com o ambiente escolar. 

    Formular essas aulas foi uma experiência muito estranha, já estou acostumada a trabalhar em sala de aula, tendo o contato com os alunos, e receber esse retorno deles. Esses pontos são fundamentais para nos formar enquanto professores. 

    Tive que simular que estava falando com os alunos, e ficar imaginando nas respostas e nos questionamentos que eles iriam propor em aula. Além de ter que pensar em recursos que fossem atrativos e divertidos para ensinar.

    Contatos de corredor 

    Não ter este contato com os alunos, não experienciar isso em sala de aula, e não ver a reação de cada um deles é bastante difícil, pois todos esses momentos são fundamentais em um estágio. 

    Na aula (fictícia) pedi no final que os alunos gravassem um vídeo e me retornassem com as respostas das perguntas, contudo esse retorno não existiu, dado que ele não foi aplicado diretamente aos alunos. Em decorrência disso, vejo o quanto isso se torna prejudicial para a (re)elaboração dos planos de aula, e reflexão das atividades que deram certo ou não. 

    Neste modelo de estágio não pude vivenciar o contato com a realidade escolar, com os outros professores, nem promover discussões ou ideias para atividades em sala de aula. Essas são situações vivenciadas no estágio presencial, e que contribuem muito para o desenvolvimento e formação pessoal.

    Penso o quanto toda essa readaptação dos estágios foi prejudicial para nossa formação enquanto pedagogos, pois o que é o estágio sem o retorno e experiência dos alunos? Como refletimos as nossas práticas enquanto professores?

    Outras reflexões…

    Antes de iniciar o relato da minha experiência, preciso me apresentar. Me chamo Peterson e sou professor de Ciências da educação básica. Diferentemente do estágio da Mélany, o meu se deu por meio do ambiente escolar. Isto é, pude estagiar em uma turma de 1° ano do Ensino Fundamental, de uma escola pública do município de Pelotas/RS, neste ano, 2021. 

    Embora com essa possibilidade de atuação mais direta com alunos, professora regente e coordenadora pedagógica da escola, os trâmites que envolvem o processo de estágio foram extremamente comprometidos. Digo isso por alguns motivos que vou apontar a seguir.

    Destaco, ainda, que as aulas para os alunos, nesta escola em que realizei o estágio, se deram através do whatsapp. Em meio a isso, eu tinha de enviar em formato de imagem a aula do dia.

    Acessos ao material

    Nesta situação, a interação com os alunos passou a ser inexistente, tendo em vista que estava atuando numa turma de 1° ano, com alunos ainda não alfabetizados e, muitos, sem acesso a celular ou computador.

    Foi então por intermédio apenas da família que busquei estabelecer alguma relação com os alunos. O envio de vídeos poderia ser uma possibilidade de interação com eles. Entretanto, a coordenação da escola informou que o uso destes deveria ser evitado. Isso se justifica porque o pacote de internet de muitas famílias não comportaria acessar todas as aulas.

    Diante de uma situação como essa é impossível, ao menos para mim, não pensar no caos que estamos vivendo. Não pensar na falta de acesso a serviços que, em 2021, acredito que já teríamos de ter superado/avançado.

    Sei que aqui o texto vai por um caminho espinhoso, que pode nos desassossegar e provocar sentimentos e reações não tão boas. A frase “a pandemia de coronavírus escancara desigualdades brasileiras” para muitos de nós, pode ter se tornado repetitiva ou até mesmo naturalizada. Mas vivenciar esta falta de acesso, a incapacidade de desenvolver um trabalho minimamente razoável é extremamente desanimador e revoltante.

    Interrogações

    Em meio a tudo isso, outra questão que surge é o feedback dos alunos. Há, no grupo de whatsapp da turma, quase que diariamente uma chamada da professora titular com mensagens e animações/figuras que buscam estimular o envio das tarefas solicitadas nas aulas. O retorno é escasso. E o que fazer?

    Além disso, pensemos na própria elaboração dos planos de aula. Os professores que aqui nos leem sabem que nossos planos são sempre reajustados de acordo com as potencialidades e dificuldades da turma. Com baixo número de responsáveis que retornam as atividades dos alunos, o que podemos fazer para, ao menos, suprimir estes impactos?

    Por fim

    Para fechar, questiono, também, a formação de professores neste período. Que professores, o que de certa maneira também me inclui, serão formados diante de um estágio docência em que não há troca com os alunos? Que professores se constituirão sem ter a experiência de readaptar, (re)planejar, reinventar suas metodologias de ensino e atuação de acordo com os acontecimentos diários de sala de aula?

    O estágio de docência não pode ser tomado como a cereja do bolo, o momento que vai apenas coroar o estudante de licenciatura enquanto professor. Assim, o estágio é muito mais que um trabalho final, é aprendizado na prática, na vivência do espaço escolar, que perpassa desde a sala de aula com os alunos até a sala de café com a conversa com outros colegas professores.

    É no estágio que vemos entrar em operação aquelas teorias fortemente faladas na seara acadêmica, discutidas nos trabalhos e cobradas nas provas de graduação. Tomando a escola como local onde professores aprendem a ser professores, concluo, claro, repetindo esta indagação: que professores estão sendo formados?

    Para saber mais…

    Ester Maria de Figueiredo Souza & Lúcia Gracia Ferreira. Ensino remoto emergencial e o estágio supervisionado nos cursos de licenciatura no cenário da Pandemia COVID 19. Disponível em: https://doi.org/10.20952/revtee.v13i32.14290.

    Mélany Silva dos Santos. A Dona Aranha. Disponível em: https://youtu.be/orvQy4T9fuE. Acesso em: 10 jul. 2021.

    Mélany Silva dos Santos. A Lenda do Saci-Pererê. Disponível em: https://youtu.be/mpD27Z8Fkrw. Acesso em: 10 jul. 2021.

    Os autores

    Olá! Meu nome é Mélany Santos. Sou licenciada em Matemática. Mestre em Educação Matemática. Doutoranda em Educação em Ciências. Graduanda no curso de Pedagogia; e professora de Matemática da Educação Básica.

    Olá! Meu nome é Peterson. Sou graduado em Ciências Biológicas licenciatura. Graduando no curso de Pedagogia. Doutor em Educação em Ciências e professor de Ciências da Educação Básica.

    Este texto foi elaborado originalmente no Blog Pemcie

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, pares da mesma área técnica-científica da Unicamp revisaram o texto. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Nosso normal: variantes, festas e aumentos de casos

    Talvez vocês tenham visto a notícia de um evento na Holanda, com 20 mil pessoas, “todos os protocolos” e resultou em, pelo menos, 1000 casos confirmados para COVID-19. Ao me deparar com esta manchete, fui ver alguns dados: como está a vacinação na Holanda, casos diários, entre outras coisinhas.

    Outra pergunta que me fiz foi: será que nunca mais poderemos fazer festivais ou grandes aglomerações, mesmo vacinados? E com a vacinação andando aqui no Brasil, estaremos finalmente a salvo? (a vacina não era, afinal, a solução que todos os divulgadores da ciência e cientistas nos venderam?).

    [pausa para recomendação de leitura com trilha sonora]

    Muitas perguntas… Sem embromação, vamos a alguns dados.

    O que podemos falar sobre a Holanda, neste momento da pandemia?

    • cerca de 17 milhões de habitantes;
    • 874 testes por milhão de habitantes;
    • 1.766.102 de casos totais;
    • 1.035 mortes por milhão de habitantes;
    • 17.773 mortes totais;
    • 67,38% da população tomou pelo menos 1 dose de vacina;
    Pessoas vacinadas com 1 dose, por país. Our World in Data

    Com base nestes dados, temos que 0,1% da população faleceu por COVID-19 e 10% da população contraiu COVID-19 ao longo de 2020 e 2021. Só a título de comparação, no Brasil temos 9% da população infectada e 0,25% de óbitos (em relação à população total do país). Isto levando-se em consideração que temos 253 mil teste por milhão de habitantes (próximo de 35% do que a Holanda faz de testes em sua população). Ou seja, temos dados bem mais complicados que estes e os testes e rastreios seguem sem serem feitos em nosso país, de forma adequada.

    O festival e as medidas de proteção

    A Holanda, desde 26 de junho (20 dias atrás, portanto) aboliu grande parte das medidas de proteção contra o coronavírus e isto envolvia grandes eventos no país.

    No dia 27 de junho foi o dia com menor quantidade de casos, desde meados de setembro de 2020 – registraram 499 casos no país. Além disso, dez dias depois da abertura, no dia 6 de julho, foram 2.209 casos registrados. Por fim, em 10 de julho, 10.299 casos novos de COVID-19.

    Dados compilados por SCHRARSTZHAUPT, Isaac e BRAGATTE, Marcelo. Painel Casos, óbitos e taxa de crescimento. Rede Análise Covid-19/Serrapilheira. Acessado em 16/07/2021. Disponível em: http://bit.ly/Rede_CasosObitosTaxa

    20 mil pessoas participaram do festival noticiado e somente pessoas vacinadas ou com o teste negativo poderiam entrar no local. Ele era em local aberto e aconteceu nos dias 3 e 4 de julho. Já tínhamos cerca de 40% da população holandesa vacinada com 2 doses. O que poderia ter dado errado, afinal?

    É bom apontar, antes de seguirmos no texto, que todas as vacinas têm indicado que a contaminação, mesmo com duas doses, é possível de ocorrer e há (nestes casos) uma diminuição da gravidade da doença. Isto é fundamental termos em mente: a vacinação protege em massa, é segura e é eficiente. Mas sempre corremos o risco de nos contaminarmos (em qualquer vacina da história, isto não é uma exclusividade destas vacinas de COVID-19).

    Sobre os testes de detecção do vírus SARS-CoV-2

    Não que seja recente este tipo de discussão, mas sempre é bom retomar. Cada vez que um evento como este ocorre, parece que temos que voltar lá para as primeiras postagens, textos e discussões que fazíamos em 2020 (parece tão longínquo, porém necessário!).

    Voltemos então

    Entre a exposição ao vírus (o dia que nos infectamos) e o momento em que conseguimos detectar a infecção em testes de PCR (que detectam material genético de vírus) ou testes de antígeno (que detectam proteínas do vírus) existe um tempo em que não conseguimos averiguar exatamente se estamos ou não contaminados.

    Em geral, para as linhagens de SARS-CoV-2 no início da pandemia, falávamos de um intervalo entre 5 a 7 dias para detectar o vírus, com teste de PCR (para testes de antígeno falamos deste mesmo intervalo mais ou menos).

    A Mellanie Fontes-Dutra lançou ontem um fio explicando que para a variante Delta este tempo pode cair para 4 dias, em função da alta carga viral desta variante… Recomendo fortemente a leitura

    Ao passo que a Delta é detectada mais cedo que as variantes anteriores ou a cepa original, ela também é mais transmissível. Há três dias atrás o diretor geral da OMS afirmou que a Delta está presente em 104 países e se tornará a variante predominante em breve.

    Esta onda de contágios na Holanda – assim como em outros países cuja vacinação está mais avançada e a pandemia parecia controlada – é, ao que tudo indica, consequência desta variante.

    Entretanto, voltando aos testes, uma questão fundamental aqui é relembrarmos algo fundamental: existe um intervalo de tempo sem sintomas e com muita transmissão do vírus.

    No caso da variante Delta, que causa uma carga viral tão alta a ponto da detecção acontecer no 4º dia após a exposição, a transmissão também está acontecendo de forma intensa. Dessa forma, repito: sem sintomas aparentes (ou discretos demais para nos protegermos e isolarmos).

    O que eu gostaria de frisar sobre testes é: o teste é um retrato do passado (entre 4-9 dias do contágio).

    Isto é importante pois temos falado o tempo inteiro sobre testes e rastreios desde o início da pandemia. E talvez neste momento alguém possa perguntar:

    – Mas Ana, se é um retrato do passado, o que adianta fazer testes?

    Ora… é fundamental para conseguirmos isolar pessoas, comunicar a possibilidade de contágio para quem tivemos contato e isolar estas pessoas também (e possíveis contatos destas pessoas neste meio tempo).

    Além disso, em casos em que pessoas têm se exposto no ambiente de trabalho, por exemplo, os testes frequentes permitem ir acompanhando e conseguem minimizar o impacto de uma infecção em todo um grupo que atua junto. 

    Teste e rastreio são uma das medidas mais importantes de controle, pois sua constância permite monitorar a situação de um grupo de pessoas.

    Nem começarei a falar aqui das medidas não farmacológicas como máscaras, distanciamento e evitar espaços fechados e sem ventilação, afinal todos sabemos que elas são super eficientes para diminuirmos a circulação do vírus, né?

    O festival, as vacinas e os intervalos dos resultados negativos

    Retomando: pois é. Aglomerar com medidas de segurança não funcionou. Quem poderia prever que “todos os protocolos” não funcionariam? 5% das pessoas do festival positivaram. Isto nos mostra que este “olhar para o passado” que os testes nos proporcionam não nos assegura de muitas coisas – a não ser quando feito de maneira frequente e com rastreios constantes. Sem o monitoramento frequente através dos exames, vacinação completa e em massa população e os protocolos de prevenção seguidos à risca (máscara, distanciamento, espaços ventilados, sem aglomeração) não há garantias de não infecção, principalmente com o surgimento de novas variantes…

    Nós temos visto as discussões acerca da variante Delta, sua transmissibilidade é altíssima, já falei isso anteriormente. Todavia, embora ela não escape da imunização das vacinas atuais, ao que tudo indica é fundamental termos as duas doses aplicadas. Mas retomemos os dados: 63,38% de pessoas com uma dose aplicada, 40% das pessoas têm as duas doses.

    E os casos na Holanda? Subindo – como o primeiro gráfico deste texto nos mostrou.

    Até quando? Até quando seguiremos dando estas oportunidades repetidas às variantes, exercendo pressão seletiva sobre as variantes e possibilitando mais e mais infecções por uma suposta volta à normalidade?

    Estes passaportes imaginários para adentrar em mundos seguros e livres de Covid precisam de muito mais estrutura, mudanças de comportamentos e, principalmente, levar a sério a noção de que nosso mundo mudou.

    Temos nos perguntado sobre o “novo normal” há 16 meses. Também perguntamos sobre quando voltaremos ao nosso normal.

    O que é normal?

    É um mundo que segue acreditando que a única possibilidade de felicidade, extravasar energia, viver bem é juntando-se com 20 mil desconhecidos. Tanto quanto um mundo com gente que frequenta restaurantes caros. Isto tudo dividindo o espaço com profissionais nos servindo ganhando pouco mais do que o suficiente para sobreviver. Além disso, claro, estas pessoas não tem outra alternativa a não ser aglomerar em metrôs e ônibus lotados para chegar ao nosso espaço de lazer. Nosso normal tem quase 8 bilhões de pessoas, com grande parte da população passando fome e sem condições mínimas de saúde. Isto em um mesmo lugar que alcançamos vacinas em menos de um ano contra uma doença avassaladora.

    Estamos em um mundo que passa fome e explora o espaço defendendo sua democratização para quem pode pagar fortunas difíceis de caber em ideias mundanas.

    Simultaneamente, nosso normal segue pensando um mundo que os protocolos de um país o isolaria dos demais que não estão seguindo os protocolos. Enquanto isso, as variantes circulam, aumentam, e a preocupação é quando poderemos, afinal, voltar ao normal.

    Caso estejas no Brasil (como grande parte dos que leem o Blogs da Unicamp estão), vivemos como se nossos escassos vacinados possam segurar variantes que chegam em campeonatos impensados ou em férias que não podiam ser reagendadas. Talvez os vacinados segurem estatísticas que não cessam de emergir e políticos que ignoram o que este vírus têm nos mostrado de maneira didática:

    Doenças são sociais, mesmo quando são um conjunto de sintomas fisiológicos causados por um agente viral.

    Uma doença como a COVID-19 nos esfrega na face, diariamente, que nosso normal não era aceitável e não sabemos o que fazer, frente à urgência de mudarmos – como indivíduos, sujeitos, coletivos, populações, humanidade.

    Dessa forma, podemos olhar dados passados e constatar que antes da pandemia, os metrôs paulistanos transportavam cerca de 200 milhões de pessoas por mês. Isto é, o equivalente a um país inteiro como o Brasil circulava em linhas de uma das maiores metrópoles do mundo. Como estamos neste momento? Cerca de 96 milhões de pessoas mensalmente. A pandemia diminuiu a mobilidade nos metrôs para pouco menos da metade, ainda assim, é como se fosse Vietnã inteiro andando de metrô mensalmente.

    Assim, me pergunto: o centro de São Paulo representam quantos festivais de Amsterdã diariamente? De pessoas sem vacinas suficientes, nem testes possíveis, o que dirá rastreios de nossas mazelas?

    O nosso normal nos trouxe ao descaso com vidas e desapreço pelas possibilidades de a ciência ser exercida com empatia para todos e por todos (no Brasil e no mundo).

    Pensando sobre Humanidade em tempos de pandemia

    Krenak diz que “nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida” (p.26). Esta passagem (o livro todo) nos propõe a pensarmos em Ideias para adiarmos o fim do mundo que se vinculam a novos conceitos de humanidade para podermos viver. Uma humanidade que se pense não como produto para consumo, não como objeto para trocas, não como idealizações que culminam em mortes em massa. É preciso repensar o que nos trouxe até aqui, antes de querermos voltar ao que, supostamente, existia antes.

    “Assim como nós estamos hoje vivendo o desastre do nosso tempo ao qual algumas seletas pessoas chamam de Antropoceno. A grande maioria está chamando de caos social, desgoverno geral, perda de qualidade no cotidiano, nas relações, e estamos todos jogados neste abismo” (p.72)

    Em suma, pergunto: queres voltar ao nosso normal?

    Nosso normal nos trouxe até aqui. 

    Para saber mais

    DW (2021) Quase mil pessoas se infectam em festival de música na Holanda e Premiê da Holanda se desculpa por relaxar medidas anticovid

    El Pais (2021) A variante delta do coronavírus, mais contagiosa, se espalha por países da América Latina

    Dados mundiais sobre vacinação, testes, casos e óbitos: Worldometer Coronavírus, Our World in Data

    Krenak, Ailton (2020) Ideias para adiar o fim do mundo, São Paulo: Companhia das Letras.

    Textos do Blogs sobre o tema:

    Solidariedade: saúde para todos

    Sobre o período de incubação da doença e suas relações com a quarentena…

    Passaporte Nacional de Imunização e Segurança Sanitária – Faz sentido isso?

    Este texto é original e foi produzido com exclusividade para o Especial COVID-19

    Agradecimento especial ao Isaac Schrarstzhaupt que debateu sobre os dados e ajudou a organizá-los para este post, Erica Mariosa, Carolina Frandsen e Graciele Oliveira que revisaram o texto, e minha mãe, que falou “nosso normal nos trouxe até aqui” (obrigada por tudo sempre, inclusive).

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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  • Anticorpos neutralizantes e a variante P.1 Gamma

    Texto escrito por Mariene Amorim, Ana de Medeiros Arnt, Marcelo Mori, Alessandro Farias e José Luiz Proença-Modena

    Hoje nós vamos falar sobre um estudo que saiu quentinho do forno de pesquisadores aqui da UNICAMP! Como é um tema difícil e cheio de nuances, vamos começar aos poucos. Primeiro falaremos de conceitos do estudo. Após isso, vamos abordar sobre a metodologia. Só depois disso, vamos falar dos resultados em si.

    Nosso corpo e suas defesas: o nosso sistema imunológico

    Nosso corpo possui um sistema de defesa sofisticado e complexo, composto por diferentes tipos de barreiras, células e proteínas. Todos esses componentes juntos formam o nosso sistema imunológico, nosso sistema de defesa frente a invasores.

    Nosso sistema imune sempre está vigilante a tudo que entramos em contato. Quando algo considerado não-próprio (isso é, que não pertence ao nosso corpo) entra em contato conosco, o sistema imune identifica aquilo como “externo”, buscando destruir e algumas vezes guardando uma memória dessa ameaça. Mas algumas vezes precisamos de reforços. Nesses casos, além do sistema imune chamar mais células de defesa, este induz a liberação de várias proteínas que vão ajudar a combater a ameaça, resultando em uma Inflamação. 

    Entretanto, nosso corpo tem limites. Um longo período de inflamação (por exemplo, combatendo um patógeno) pode resultar em dano às células e órgãos do nosso corpo. Em outras palavras, podemos “exagerar” enquanto estamos tentando proteger nosso corpo de elementos externos (como vírus ou bactérias). Assim, acabamos gerando respostas que em certa medida também dão uma “bagunçada geral” no sistema. Como vocês podem ver a imunologia (e já temos falado disso em nossos textos) é bem complexa. Ao longo dos anos, esse tem sido foco de estudos e tem se desvendado mais e mais sobre o tema. Isto para a nossa melhor compreensão e para que possamos combater muitas doenças.

    Ensinando o corpo a se proteger

    Entender o sistema imunológico e como ele funciona não é algo fácil para compreendermos. No entanto, graças a muitos estudos, muitas noites sem dormir e experimentos sem fim, aprendemos um pouco mais sobre como o sistema imune funciona. Mas melhor do que isto, hoje também somos capazes de “ensinar” ao nosso sistema imune sobre um patógeno. Ou seja, quando, ou se, entrarmos em contato com este patógeno, ele não consegue se espalhar abundantemente e causar muitos danos. É o que fazemos quando tomamos vacinas!

    Quando a humanidade ainda estava desvendando as doenças e como preveni-las, há muito tempo atrás (século XVIII e antes), na tentativa de combater a varíola, pessoas eram inoculadas com uma versão mais branda da doença (uma varíola de vacas) e se tornavam imunes ao desenvolvimento da varíola humana, que era mais grave. A história das doenças e vacinas é fascinante, mas não é o que vamos discutir nesse texto!

    Hoje, já existem diversas maneiras de elaborar uma vacina, de forma que sejam muito mais seguras. A depender da técnica utilizada na produção de uma vacina, nós vamos apresentar ao nosso corpo o patógeno inativado, ou uma pequena parte do patógeno, para que o nosso sistema imune reconheça e guarde aquela informação em forma de memória imunológica.

    Vacinas, vírus e variantes

    Atualmente existem diversas vacinas contra vírus, que ajudaram a extinguir doenças em várias partes do globo. Porém, não é um processo fácil e não funciona para todas as doenças. Se um vírus, por exemplo, sofre muitas modificações genéticas (mutações) e consequentemente estruturais, à medida que ele se espalha em uma população, se torna difícil, produzir uma vacina eficiente, como é o caso do vírus da imunodeficiência humana HIV. É como se esse vírus fosse mudando com o tempo, de forma que a memória gerada pelo nosso sistema imune não irá reconhecê-lo mais. Além de outros fatores relacionados ao desenvolvimento da doença, que podem inviabilizar o uso de uma vacina. 

    Para nossa sorte, muitas doenças são causadas por vírus que não sofrem tantas mutações com muita rapidez, para as quais já temos vacinas eficientes, como a varíola, a rubéola, a poliomielite, entre outras. No cenário atual da pandemia de COVID-19, nos deparamos com um vírus de RNA que não sofre tantas mutações como outros vírus com genoma de RNA, como HIV e influenza. Entretanto, essa história não é tão simples como parece, como podemos ver com as notícias de surgimento de tantas variantes.

    Então não têm tanta mutação assim o tal do Corona??

    Mas o SARS-CoV-2 não é, de fato, um vírus que muta tanto assim. Todavia, ele se espalha muito rapidamente e o número gigantesco de pessoas infectadas juntamente com a alta taxa de transmissibilidade, tem favorecido não somente o aparecimento de mutações nesse vírus, como também a seleção de mutações mais favoráveis à infecção fixando-as na população. Ao longo da história da pandemia, foram surgindo variantes virais com mudanças significativas em algumas de suas estruturas, preocupando pessoas no mundo inteiro.

    Novamente, graças a conhecimentos acumulados ao longo de décadas de estudos, a humanidade conseguiu produzir não só uma, como vários tipos de vacinas contra esse vírus, e é claro que o aparecimento das novas variantes colocou o mundo inteiro em estado de alerta. A pergunta que não quer calar é:

    As vacinas ainda irão funcionar?

    Temos pesquisado muito a fim de desvendar como acontece a nossa resposta imune frente ao SARS-CoV-2, e as variações que têm aparecido. Será que produzimos memória imunológica quando entramos em contato com esses vírus? Por quanto tempo? Podemos pegar um tipo de vírus e depois pegar novamente uma variante? Como podemos investigar se temos alguma proteção?

    São muitas perguntas, pouco tempo para desenvolver os estudos e obter respostas enquanto tem muita gente adoecendo, muita gente morrendo, variantes surgindo… Mas vamos lá, temos muito ainda a percorrer sobre o tema!

    O que podemos fazer no âmbito científico para obter algumas respostas?

    Muita coisa tem sido feita. Primeiramente, nunca tivemos tanto sequenciamento de genoma completo de um vírus anteriormente na história. Temos conseguido acompanhar a evolução desse vírus em muitos países, identificar o surgimento das variantes e acompanhar seu desenvolvimento epidemiológico, inclusive no Brasil.

    Segundo, nós podemos isolar as partículas virais de uma amostra de paciente infectado, para que possamos estudar o vírus em cultura de células no laboratório (in vitro). Conseguimos fazer isso com as diferentes linhagens do SARS-CoV-2, as mais antigas e as novas variantes.

    Os vírus isolados podem ser utilizados, por exemplo, para investigar a presença de anticorpos neutralizantes circulando no sangue de pessoas que já tiveram algum contato com o vírus, seja por infecção natural ou vacinação. Um desses ensaios se chama PRNT, do Inglês Plaque reduction neutralization test. Nesse ensaio, utilizamos amostras de soro ou plasma, para investigar a presença de anticorpos capazes de neutralizar o vírus. Ou seja, anticorpos capazes de fazer com que o vírus não seja mais capaz de se replicar numa célula e causar dano no organismo.

    Como fazemos isso? Em nossa pesquisa, realizamos uma diluição seriada de uma amostra de soro ou plasma. Logo depois, incubamos as diferentes diluições com uma quantidade fixa de partículas virais viáveis. Ressaltamos este ponto aqui, pois é uma questão metodológica importante:

    Há diferentes concentrações de soro, mas com a mesma quantidade de partículas virais.

    Depois de um tempo, colocamos essas misturas em pocinhos contendo células que são facilmente infectadas pelo vírus. As partículas virais que ainda continuam viáveis em cada mistura de vírus+soro/plasma, serão capazes de infectar as células. Caso o soro/plasma da pessoa contenha anticorpos neutralizantes, estes irão neutralizar (ou seja, bloquear a capacidade do vírus infectar) as partículas virais que não serão capazes de infectar as células nos pocinhos. As células infectadas acabam morrendo depois de um tempo, formando uma pequena plaquinha no fundo do poço. Parece mais uma história triste essa parte né? Mas na verdade são estas plaquinhas que nós conseguimos contar, montar gráficos e realizar testes estatísticos.

    E o quê elas representam?

    Estas plaquinhas são exatamente o que nos indicam a quantidade de células que foi infectada e morreu. Portanto, indicam que o meio em que elas estavam (a mistura com soro/plasma) tinha poucos (ou nenhum) anticorpos neutralizantes. Assim, não houve bloqueio da ação dos vírus.  

    Nosso estudo sobre Neutralização da linhagem P.1 por anticorpos 

    Recentemente um estudo realizado pelo grupo do professor José Luiz Módena, aqui da UNICAMP, analisou diferentes amostras de pacientes para realizar exatamente este tipo de ensaio que comentamos anteriormente, com a variante P.1 – também conhecida como variante Gamma. 

    O estudo foi publicado ontem na revista The Lancet Microbe! Sim! Como dissemos, recém saído do forninho da publicação!

    Neste estudo, analisou-se a quantificação de anticorpos neutralizantes presentes em amostras de soro/plasma de pessoas previamente expostas ao SARS-CoV-2. Quando falamos em “previamente expostas” estamos falando de “exposição natural” (pessoas que se infectaram pelo vírus) ou por vacinação com vírus inativado – no caso, Coronavac.

    Ao analisar estas amostras, percebeu-se que a neutralização por anticorpos diminui quando incubadas com essa variante em relação à linhagem mais antiga do vírus. O que isto quer dizer?

    Resumidamente, observou-se diminuição da capacidade de neutralização dos anticorpos em relação à variante P.1 Gamma. Ou seja, percebemos que houve uma menor capacidade de bloquear a infecção em relação à variante P.1 Gamma, quando comparamos as mesmas amostras usando as linhagens originais de SARS-CoV-2.

    Então a vacina não funciona, e isto que vocês estão me dizendo?

    Calma lá! Longe disso… Estamos dizendo que uma das defesas estimuladas por esta vacina, tanto quanto por infecção natural de linhagens “originais” – que é a produção de anticorpos neutralizantes – diminui sua capacidade de nos defender quando encontra a P.1 Gamma pela frente.

    Mas há um porém, vamos a eles…

    Primeiramente, os anticorpos neutralizantes não são a única defesa do nosso sistema imune. Existem outras defesas, como a imunidade celular, que também atuam no combate à infecção. E a imunidade celular não foi testada e analisada nesta pesquisa!

    Em segundo lugar, diminuir a capacidade de anticorpos neutralizantes não é “não ter ação alguma de anticorpos neutralizantes”. É, como a palavra diz: diminuir. Além disso, os anticorpos podem atuar por outros meios que não a neutralização, como a indução de fagocitose de partículas virais recobertas de anticorpo e a indução de morte celular em células infectadas. Isto é, existe resposta imune produzida pelo nosso corpo.

    E as outras vacinas?

    Outros grupos de pesquisa, em outros países, têm realizado testes semelhantes em relação aos diferentes tipos de vacinas que temos disponíveis atualmente, frente às diferentes variantes de SARS-CoV-2. E temos observado que algumas variantes tem maior capacidade de escape de anticorpos do que outras. Vamos detalhar este tema em um próximo texto, aguarde!

    Enquanto isso, 

    É fundamental este tipo de pesquisa ser feita e ser divulgada, sempre! Tal como é sempre fundamental apontar que sua divulgação precisa ser feita com cautela e sem alarmismos. Precisamos compreender a ação das vacinas em relação às novas variantes e, sim, pode ser que em algum momento existam escapes das variantes. As vacinas precisam (e provavelmente precisarão) ser “atualizadas” para conseguir nos defender das variantes que forem surgindo.

    Por isso, claro, vacinar é FUNDAMENTAL, não escolher vacina é primordial – lembrando que a vacinação é um fenômeno de massa e, mais importante do que isto, precisamos seguir protocolos e medidas de segurança mesmo depois de vacinados! Quais medidas? Uso de máscara, distanciamento social, higienização das mãos, diminuir ao máximo a circulação, especialmente em locais não ventilados!

    Por fim,

    É um texto trocando em miúdos os resultados que vocês querem? Pois esperem que vamos fazer também! Este artigo vai ter várias postagens sobre: metodologia, obtenção de resultados, análises e ponderações! Mas é claro que não podíamos deixar passar o tempo e precisávamos conversar com vocês sobre os resultados hoje mesmo!

    Para Saber Mais

    Estudo de referência:

    Souza, Willian … Modena, José Luiz (2021) Neutralisation of SARS-CoV-2 lineage P.1 by antibodies elicited through natural SARS-CoV-2 infection or vaccination with an inactivated SARS-CoV-2 vaccine: an immunological study The Lancet Microbe, 08 de Julho de 2021.

    Primeiro texto feito sobre este estudo:

    P.1 e a CoronaVac: é verdade que não precisa mais vacinar? (Spoiler, precisa sim!)

    Outras referências

    O Que são Anticorpos?

    História das vacinas (em inglês)

    Imunidade Celular: um exército de soldados invisíveis

    E aqueles resultados das vacinas? – Parte 2: Memória Imunológica

    Estudo sobre a CORONAVAC no Chile (Texto de Mellanie Fontes-Dutra)

    Este texto foi escrito originalmente no blog EMRC

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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  • O ensino remoto e pesquisa no pós-graduação sob olhar das mestrandas

    Texto escrito por Priscila Ayres Wonghon e Roseana Passos

    Para falar do assunto que nos propomos neste texto, o ensino remoto e a pesquisa no pós-graduação, é preciso primeiramente dizer como entendemos o ensino, a ideia que entendemos em relação a experiência docente e discente. Entendemos que a experiência formativa de cada um é subjetiva e muitas coisas vão nos subjetivando ao longo da nossa vida.

    Como nos relacionamos com os espaços físicos, que valor atribuímos a ele, como nos relacionamos com os docentes, com os colegas, e com nossos objetos de estudo. Somos tocados, atravessados por discursos, e experiências diversas. E assim como Larrosa acreditamos que a experiência formativa se dá também em voltar-se a si mesmo, uma viagem ao interior.

    Em específico este texto da série envolve esta viagem ao interior, buscando nossas reflexões com o ensino e a pesquisa remotos na pós-graduação. Escrevem aqui uma mestranda  do Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências (PPGEC) que trabalha em sua pesquisa desde antes da entrada do ensino remoto e outra mestranda também do PPGEC que já entrou no curso de pós-graduação  na forma de ensino remoto, e até a sua seleção de entrada no programa de pós foi de forma remota. Cada uma de nós tem visto de forma diferente esse modo de ensinar, aprender, estudar e se comunicar.

    Ensino no pós: do presencial ao remoto

    Seguimos aqui nosso texto sobre o ensino remoto, com a minha escrita. Me apresento primeiro. Sou Priscila, estudante de pós graduação, e este momento pandêmico tem me atravessado enquanto sujeita de diversas maneiras. Eu poderia citar o quanto este momento me atravessa enquanto profissional da área da Educação Infantil, mas, no entanto, não posso fazê-lo, pois com as escolas fechadas e com poucas oportunidades de emprego na área, me encontro afastada de tais atividades.

    É importante marcar aqui que quando cito as escolas fechadas, cito no intuito de contextualização de meu momento profissional, e não com um intuito de crítica ao fechamento das mesmas. Entendo que neste momento pandêmico o fechamento das escolas significa preservar vidas, as vidas das crianças, seus responsáveis e profissionais da Educação, pois muitos podem ser assintomáticos e mesmo assim contaminar outros, levar para a escola o vírus ou da escola para suas casas.

    Hoje já com a vacinação de professores e profissionais da Educação já é possível ver algumas escolas em funcionamento, atendendo de forma reduzida ou em Ensino Hibrido. Ainda é um processo de adaptação na retomada das atividades, mas estamos trilhando o caminho de volta a normalidade.

    O ensino remoto e alguns questionamentos

    Mesmo afastada de minhas atividades, tenho me questionado muito sobre o ensino remoto para a Educação Infantil, como tem se dado as interações com crianças tão pequenas em meio uma tela de computador? Como adaptar as metodologias, como prender a atenção deles em meio aos estímulos de casa? São perguntas que me faço pois também sou aluna, aluna do mestrado num programa de pós-graduação, e a falta dos espaços físicos da universidade tem me tocado muito, mesmo sendo uma pessoa já adulta.

    Pode parecer bobagem para muitos, mas para mim estar dentro dos espaços da universidade sempre foi meu ponto de equilíbrio, de resgate de forças e energia. Minha terapia, assim como também a concretização de um sonho! Por algum tempo depois do término do Ensino Médio, almejar estar dentro da universidade foi o que me deu forças para seguir. Assim, após esta conquista, os espaços físicos se tornaram para mim algo a mais do que apenas paredes de concreto, estes espaços são repletos de significados para mim.

    Estudos sozinha e trocas de experiência

    Estudar, sozinha, no silêncio da biblioteca, e, ao mesmo tempo, ver muita gente, gente diversa. E essa diversidade toda, naquele espaço em comum, naquele momento em silêncio, todos estavam buscando o mesmo: conhecimento, formação. Sem contar o fato da biblioteca ser pública e de imensa qualidade, poder ter a sensação do livro físico em mãos (mesmo que por um tempo curto), livros estes que muitos inclusive eu não poderiam (ou ainda não podem)  adquirir, saber que após minha leitura outros terão a possibilidade de os ler, e assim ter acesso a conhecimentos diversos, tudo isso no ensino remoto perdemos, pois a ida a biblioteca em seu espaço físico já não pode mais ser feita.

    As trocas de experiência nas salas de aula, as conversas com os professores(as) e com os colegas, aquilo que dá sentido à prática, ao debate, à troca de ideias, à circulação de discursos. A partilha do mate, do conhecimento e do afeto. Do café no Centro de Convivência, a janta do Restaurante Universitário em meio a inúmeras aulas diárias, estágio e horas complementares.

    Desafios diários

    O ensino remoto tem sido desafiador, pois dentro das demandas diárias de uma casa, é muito difícil dissociar o espaço, a casa, e seus afazeres, para prestar atenção somente na aula que está sendo dada, ou somente na escrita de minha pesquisa. Este espaço que antes era o do lar, agora se mescla ao do trabalho… São diversos os estímulos que temos que lidar, o cachorro que late, a vizinha que escuta música alta, o marido que chama. Esses são apenas alguns dos exemplos. Sem contar a constante falta das interações e relações humanas.

    O Ensino Remoto tem nos trazido diversos desafios como os ditos no parágrafo acima, e como cita Saraiva, Traversini e Lockmann, tanto para docentes quanto para discentes a insegurança do que há por vir, a ansiedade que nos assola frente as condições sanitárias e econômicas do nosso país tem sido motivos de exaustão.

    Na minha opinião, o que ficará de aprendizado do ensino remoto em meio a pandemia, é a valorização das relações. Destaco, também, o entendimento de que podemos utilizar sim a tecnologia a nosso favor, como por exemplo, no meu caso de estudante de pós-graduação, reuniões e orientações, caso não haja a possibilidade de deslocamento, as próprias reuniões de grupo de pesquisa que passaram a ser virtuais e tem funcionado de forma bastante satisfatória, disciplina como a de seminários onde assistimos aos trabalhos de pesquisa dos colegas do Programa de Pós Graduação e interagimos com os mesmos. Trazendo equilíbrio dentre as metodologias de ensino como formas de estímulo para os estudantes independente da etapa e grau educacional.

    Ensino remoto na pós-graduação: sob o olhar de uma mestranda

    Lendo as observações que a Priscila trouxe ao debate, percebo que há alguns pontos que concordo com ela, pois afinal já fui aluna de aulas presenciais minha vida toda… Bom, mas especificamente agora, na pós-graduação, eu, Roseana, formada em biologia licenciatura, tenho vivido uma infinidade de novos sentimentos e aí vai um pouco deles pra vocês.

    Tentar aprovação em um programa de mestrado é sempre desafiador, mas com uma pandemia acredito que seja um pouco mais complicado…

    Depois de 6 anos parada da vida acadêmica, após muita reflexão e confesso que com muito medo, pensei a hora de voltar a correr atrás dos meus sonhos e fazer meu mestrado, algo que sempre quis desde que saí da graduação (mas a vida me levou a outros caminhos). Obviamente a primeira coisa que me veio à cabeça: Como vou estudar tudo que preciso para entrar no mestrado sem poder pegar um livrinho? Tá, mas peraí, felizmente tudo pode ser online. Ok, lá fui eu: filho pequeno (check), pandemia (check), anos sem escrever (check). Alguns momentos pensei que ia dar uma enlouquecida básica (que todos devem ter quase ou dado) desde abril em isolamento, e, ainda, inventei mais este desafio.

    Enfim, alguns fios de cabelos a menos, muitas lágrimas (muitas mesmo). Um pré-projeto feito, entrevista, lattes e SIMMMMMMMMM! Estou dentro! Agora é comemorar (sem poder aglomerar – que tristeza, mas ok).

    Hoje, quase 6 meses depois da aprovação, penso que entrei num grupo de pesquisa INCRÍVEL, onde conheço pessoalmente apenas duas pessoas, os outros 6 nunca vi pessoalmente. Meu tema de dissertação mudou, a vida mudou, tudo mudou (e a vacina ainda não chegou para minha faixa etária, mas FINALMENTE parece bem próxima), mas me sinto realizada.

    Toda semana temos uma reunião online, onde debatemos sobre alguma leitura realizada pelo grupo. Às vezes é a única interação que tenho com pessoas que não moram comigo, então sempre é um momento alegre e de muito aprendizado. Ainda temos aulas e orientação, tudo online, muitas vezes isso é um desafio. Internet que não funciona, cachorro que late, gato miando, filho chorando. Mas é isso, esse é o nosso novo normal, então nos resta ‘seguir o baile’.

    Parece que conheço meus colegas pessoalmente e somos amigos faz tempo, nesses 6 meses não foram poucas às vezes que surtamos juntas (sempre online, obviamente) e pensamos ‘pelo menos temos umas às outras’.

    Good vibes?

    Não consigo ser ‘good vibes’ e ver o ‘lado bom’ do que estamos vivendo. Isto é, ter um presidente negacionista e ignorante que atrasou a compra da vacina tantas vezes é desesperador. Mesclo o sentimento de esperança e desesperança o tempo todo. Ver mais de 500 mil pessoas morrendo por falta de vacina e muita gente ainda negando a gravidade da situação dá um vazio enorme, todos os dias sabemos de alguma notícia triste e cada vez mais perto de nós.

    Obviamente, consigo enxergar o privilégio de fazer home-office. Bem como, conseguir me manter segura todos esses meses. Além disso, também tive a sorte de encontrar pelo meu caminho pessoas maravilhosas, que dão luz a dias tão escuros. Mas não vejo a hora de conhecer pessoalmente meus colegas, abraçar, conversar e obviamente tomar um chopinho bem gelado, em segurança, sem máscaras, onde todos possamos ver sorrisos novamente.


    Para saber mais…

    SARAIVA, K.; TRAVERSINI, C.; LOCKMANN, K. A educação em tempos de COVID-19: ensino remoto e exaustão docente. Práxis Educativa, v. 15, p. 1-24, ago. 2020. ISSN 1809-4031. Disponível em: https://revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/view/16289. Acesso em: 9 out. 2020.

    Diretor da Pfizer escancara atraso letal do Governo Bolsonaro na compra de vacinas. Jornal EL PAÍS, Brasília 13 de maio de 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-13/diretor-da-pfizer-escancara-atraso-letal-do-governo-bolsonaro-na-compra-de-vacinas.html Acesso em: 3 junho de 2021.

    LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Porto Alegre: Contrabando, 1998.

    As autoras

    Olá! Meu nome é Priscila, sou Pedagoga. Formada pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Atualmente sou mestranda em Educação em Ciências e faço parte do grupo de Pesquisa PemCie.

    Olá! Meu nome é Roseana, sou Bióloga. Formada pela Universidade Federal do Rio Grande – RG. Também sou mestranda em Educação em Ciências e faço parte do grupo PemCie.

    Este texto foi elaborado originalmente no Blog Pemcie

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, o texto foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • A Guerra e a Peste: A Epidemia de Tifo no Gueto de Varsóvia

    Texto escrito por Amanda Tognoli da Silva

    Guerra, Peste e Fome andam sempre juntas. O Tifo, uma doença infecciosa com altas taxas de transmissão, sendo facilmente contraída pela população por meio de pulgas e piolhos infectados, também gosta desta companhia. Não por acaso, o Gueto de Varsóvia, local precário onde milhares de judeus foram presos pelo governo alemão durante a Segunda Guerra Mundial, sofreu uma grande epidemia de tifo. Porém, com a ajuda de toda a comunidade, a epidemia foi debelada. Conhecendo um pouco mais sobre esse triste episódio da história e das medidas sanitárias e políticas que os moradores do Gueto de Varsóvia tomaram, o que podemos aprender?

    Tifo: uma doença fatal

    O Tifo é o nome genérico de várias doenças causadas pelas bactérias do gênero Rickettsias. Grande parte dessas bactérias se desenvolve num reservatório animal, e é transmitida ao homem pela picada ou contaminação com fezes de insetos infectados, como piolhos e pulgas. Desta forma, a contaminação com as fezes infectadas ocorre através de cortes na pele ou membranas mucosas dos olhos ou da boca.

    Rickettsias vista em microscópio

    Imagem de Rickettsias ao microscópio. As Rickettsias, bactérias microscópicas que causam o tifo epidêmico. Em geral, estas bactérias são carregadas em pulgas, carrapatos e piolhos.

    As bactérias se proliferam nas células endoteliais dos vasos sanguíneos e podem provocar lesões graves. Os sintomas começam cerca de 7 a 14 dias após a bactéria entrar no organismo. Dentre os sintomas identificados estão febre, dor de cabeça intensa, cansaço e erupções cutâneas que geralmente começam no peito e se espalham para os braços e pernas. Se a infecção for grave, a pressão arterial pode baixar, os rins podem apresentar mau funcionamento e pode haver o desenvolvimento de gangrena e pneumonia.

    Charles Nicolle encontra as Ricketsias

    Se não tratado, o tifo pode ser fatal. Atualmente, o tratamento do tifo se faz por meio da administração do antibiótico doxiciclina por via oral. O paciente toma o antibiótico até melhorar e não apresentar febre por 24 a 48 horas. Entretanto, é necessário tomar o antibiótico por pelo menos 7 dias.

    Em 1928, Charles Nicolle recebeu o Prêmio Nobel por ter descoberto o papel do piolho na transmissão do tifo em 1909. Nicolle fez observações e concluiu que os pacientes não eram mais contagiosos após receber tratamento hospitalar, tomar banho e trocar de roupas. Desta forma, ele colocou piolhos sem a bactéria em macacos infectados e depois transferiu os piolhos, agora infectados, para macacos saudáveis, que acabaram desenvolvendo tifo.

    Charles Nicolle

    Charles Nicole, infectologista francês (1866-1936), em seu ambiente de trabalho. ele descobriu o papel do piolho na transmissão do tifo, o que lhe rendeu o Nobel em 1928.

    Os diferentes tipos de Tifo

    Os tipos mais comuns de tifo são o epidêmico e o endêmico. O tifo epidêmico é causado pela bactéria Rickettsia prowazekii e transmitida pelas fezes do piolho do corpo humano, Pediculus humanus. Por outro lado, o tifo endêmico tem como vetores Rickettsia typhi ou Rickettsia mooseri, transmitidas pelas pulgas do rato, Xenopsylla cheopis. Os sintomas do tifo endêmico são menos intensos que os do epidêmico.

    A infecção ocorre principalmente em áreas com más condições sanitárias e de higiene e com grande aglomeração de pessoas. Desta forma, campos de refugiados, prisões, áreas de guerras civis e de extrema pobreza são áreas preferenciais para os surtos de tifo. como se pode ver, há focos dessa doença espalhados pelo mundo todo.

    Epidemias de Tifo na história

    O registro mais antigo de uma epidemia de tifo é a praga de Atenas, do século 15 a.C. Este surto supostamente começou na Etiópia e passou pelo Egito, chegando ao porto de Piraeus. Foi observado tosse, vômitos, diarréia e erupções cutâneas. Contudo, tal descrição do surto está aberta a interpretações e muitas doenças podem ser responsáveis por ele como tifo, catapora e peste bubônica.

    Apesar deste registro, muitos autores acreditam que a primeira epidemia autêntica de tifo ocorreu durante a conquista de Granada, na Espanha, em 1492. A doença que abateu a população foi descrita como uma febre maculosa e se parece muito com a descrição moderna de tifo.

    O tifo reapareceu como epidemia durante a Primeira Guerra Mundial. Nesta época, a doença começou na Sérvia e se espalhou para o Centro e Leste Europeu. Da mesma forma, a Rússia teve surtos recorrentes durante a revolução Bolchevique. por fim, segundo as estimativas, 25 milhões de pessoas contraíram tifo entre 1917 e 1925. O saldo da doença foi de 3 milhões de mortes.

    Posteriormente, já durante a Segunda Guerra Mundial, pesquisadores nazistas infectaram 600 prisioneiros de campos de concentração com sangue de pacientes infectados por tifo para testar a eficácia do fenol como tratamento ou vacinação.

    Bactérias e Piolhos

    No século XX, o tifo está relacionado às guerras, aos movimento populacional em massa, na má higiene e na fome. As epidemias de tifo que ocorreram após a Segunda Guerra Mundial intensificaram as pesquisas biomédicas. Algumas dessas pesquisas incluíam o uso de pesticidas como o DDT para controlar os piolhos em Nápoles entre 1943 e 1944, e também o uso de antibióticos recém descobertos, como o cloranfenicol. Após muito estudo da vida intracelular da Rickettsia prowazekii e seus efeitos na célula hospedeira, seu genoma foi sequenciado por Andersson et al em 1998.

    O Tifo no Gueto de Varsóvia

    O discurso alemão sobre higiene influenciou a ideia de que os judeus carregavam doenças. Assim, na ideologia nazista, isso reforçou o discurso de que os judeus seriam a própria doença. Portanto, seria esperado lidar com epidemias, o que no final das contas significou aniquilá-los.

    Na Alemanha, havia um grande medo do tifo se espalhar para a população e para o exército por causa de seu impacto depois da Primeira Guerra Mundial, matando 5 milhões de pessoas. Com essa desculpa, os alemães realocaram muitos judeus para os guetos e campos de concentração. Posteriormente, os nazistas criaram uma área chamada Seuchensperrgebiet que era, literalmente, uma área restrita para doenças. Esta área se tornaria o Gueto de Varsóvia, na Polônia.

    Crianças famintas e com frio no gueto de Varsóvia

    A crianças foram as que mais sofreram durante a ocupação do Gueto de Varsóvia; 

    Em 5 de Outubro de 1940, os nazistas proibiram os judeus de deixar o território do Gueto. Em 15 de novembro deste mesmo ano, uma parede com arame farpado foi construída em volta desta área. Alguns ainda conseguiram escapar por pequenos buracos ou pelo esgoto.

    O tifo se alastra no Gueto

    O Gueto possuía uma área de 3,4 km², onde foram presos mais de 450 mil judeus.  Um inverno rigoroso e num ambiente de guerra e privações de todo o tipo facilitaram a propagação do tifo epidêmico. No entanto, cerca de 120 mil prisioneiros do gueto infectaram-se pela bactéria, com 30 mil morrendo diretamente por causa da doença e muitos morrendo pela associação da doença com a fome. Assim, a fome no gueto aumentou a epidemia, o que provou aos alemães que os judeus eram portadores de doenças. Para eles, judeus famintos significavam mais comida para o povo alemão. Desse modo, os judeus deveriam ser eliminados, o que pouparia ainda mais comida.

    Contudo , até abril de 1941, o foco dos administradores nazistas do gueto era deixar morrer de fome todo residente que não conseguisse comprar comida. a partir de maio deste ano, os novos administradores planejaram construir uma economia auto sustentável no gueto, para não desperdiçar a força de trabalho. Para estes administradores, alguns residentes deveriam receber o mínimo de alimento e nutrição para que pudessem trabalhar. Assim, até setembro, o gueto começou a trabalhar economicamente aos olhos dos alemães. um programa de cozinhas comunitárias, administradas por voluntários, foram responsáveis por prover nutrição básica para ¼  da população.

    No entanto, em outubro de 1941, Jost Walbaum, o Diretor de Saúde do Governo Geral, disse que  “Os Judeus são, em sua maioria, os portadores e disseminadores do tifo. Há apenas duas maneiras de resolver isso. Nós sentenciamos os Judeus dos guetos à morte ou atiramos neles…Nós temos uma e apenas uma responsabilidade, que o povo alemão não seja infectado e ameaçado por esses parasitas. Para isso, qualquer meio deve ser correto.”

    A epidemia é contida…por quem?

    Neste mesmo mês, contudo, começou um rigoroso inverno e era esperado que as taxas da doença aumentassem. Ao contrário, a curva epidêmica caiu inesperadamente.

    Desta forma, Emanuel Ringelblum, o cronista do gueto, escreveu em Novembro de 1941: “A epidemia de tifo diminuiu apenas no inverno, quando geralmente piora. A taxa epidêmica caiu cerca de 40%. Ouvi isso dos boticários, médicos e do hospital.

    Inicialmente, por meio de análises de documentos históricos e modelos matemáticos, um grupo de pesquisadores descobriu que a comunidade agiu ativamente para erradicar a doença, poupando cerca de 100 mil vidas. Nesta analise, constatou-se que programas de saúde e práticas de distanciamento social por parte da comunidade foram responsáveis pelo colapso da doença. Por outro lado, verificou-se que o gueto possuía muitos médicos e especialistas que ministraram cursos muito bem organizados sobre higiene pública e doenças infecciosas, assim como centenas de palestras sobre o combate ao tifo.

    Fila da refeição no gueto de Varsovia

    Fila para comida no Gueto de Varsóvia

    Da mesma forma, houve também relatos de universidades secretas, onde jovens estudantes de medicina receberam treinamento sobre como lidar com doenças epidêmicas. Além disso, encorajou-se a higiene geral e limpeza das casas, às vezes usando a força. Ademais, o distanciamento social era considerado um senso comum básico e as quarentenas eram comuns. O Departamento de Saúde, do Conselho Judeu, criou neste período vários e complexos programas de Saúde Publica.

    Em síntese, o Gueto de Varsóvia teve inúmeras instituições internas civis, médicas e sociais trabalhando intensamente durante meses para parar a epidemia de tifo. Não obstante o constante esforço da comunidade e de organizações para acabar com a epidemia contribuiu para diminuir a transmissibilidade abaixo do limite crítico, levando a epidemia a uma parada repentina e precoce.

    A “Solução Final” e o fim do Gueto

    Entretanto, em 1942, os nazistas enviaram muitos moradores do gueto para os campos de concentração que estavam construindo.  Posteriormente, em 1943, o Governador Geral Hans Frank alegou que “razões de saúde publica” eram a causa do “inevitável” assassinato de 3 milhões de judeus na Polônia “. Este foi somente um mais caso óbvio de uma doença usada como arma de guerra e pretexto para um genocídio.

    De acordo com Ludwik Hirszfeld, um bacteriologista indicado ao Prêmio Nobel e que viveu no gueto, não tem dúvidas: “No caso da Segunda Guerra Mundial, o tifo foi criado pelos alemães. Iniciado pela falta de comida, sabonete e água, então alguém concentra 400.000 pessoas em um distrito, tira tudo deles e não dá nada, é assim que se cria o tifo. Nessa guerra, o tifo foi trabalho dos alemães.”

    O que a epidemia de tifo no Gueto de Varsóvia pode nos ensinar

    Um povo que não conhece a sua História está fadado a repeti-la”, já dizia o filósofo irlandês Edmund Burke. Uma frase dita há mais de 200 anos nunca foi tão atual.

    Visto dessa forma, a epidemia de tifo no Gueto de Varsóvia e a pandemia mundial de covid-19 possuem muitas similaridades. Contudo, ambas doenças relacionam-se a microrganismos invisíveis, que se espalham rapidamente e podem matar milhões. Além disso, ainda não há remédio efetivo para nenhum deles. Portanto, é possível dizer que estudar a epidemia no Gueto seria um ótimo modo de ver como uma doença altamente transmissível pode ser erradicada se toda a população se comprometer para tal. Ao estudá-la, notaríamos que políticas públicas de contenção, uma boa comunicação com a comunidade e a cooperação geral foram, e são, essenciais para o fim da epidemia. Além disso, perceberíamos que a contenção é possível até mesmo nas piores condições sanitárias e no pior cenário político possível, um regime desumano e assassino.

    Contudo, o que nos impede de nos unirmos para vencer este vírus que já tirou tantas vidas? Uma doença que é propagada pelas pessoas, só pode ser detida pelas pessoas. A contenção de uma doença como o tifo depende, sobretudo, do comportamento humano.

    SOBRE A AUTORA

    Amanda Tognoli da Silva, 24 anos, nascida e criada em Conchal-SP. Estudante de Ciências Biológicas na UNICAMP, apaixonada por astrobiologia e livros de investigação. Grande objetivo como bióloga: a divulgação da ciência.

    Para saber mais:

    New study explains 'miracle' of how the Warsaw Ghetto beat Typhus. in:https://www.eurekalert.org/pub_releases/2020-07/ru-nse072020.php
    (este texto foi elaborado durante a disciplina Historia das Ciências Naturais, no Instituto de Geociências da Unicamp, no 2º semestre/2020.  Os trabalhos elaborados tinham como tema "As Epidemias e a História da Ciência")

    Este texto foi elaborado originalmente no Blog PaleoMundo

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

    Editorial

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