Categoria: Checagem de Fatos

  • Estudos preliminares, vacinas, políticas públicas e eventos cardiovasculares

    Texto escrito por Mellanie Fontes-Dutra, Ana Arnt e Rafael Lopes Paixão

    Semana passada fez barulho uma notícia que nos preocupou bastante pela repercussão que tomou, mesmo que por algumas horas apenas, os assuntos do momento nas redes sociais. O barulho se deu pela suspensão da vacina Janssen em território Francês, por conta de um suposto aumento leve no risco de infarto em adultos abaixo de 75 anos, nas primeiras duas semanas após a vacinação.

    Nosso compromisso, aqui no Blogs Unicamp, em parceria com o Todos Pelas Vacinas, sempre foi com a responsabilidade em relação ao modo como trabalhamos as informações científicas que vemos circulando – e, também, em relação às notícias que aparecem.

    A começar pelo título da reportagem, já ligamos o nosso radar e fomos buscar os artigos que estavam embasando a tomada de decisão francesa e, também, a reportagem no UOL Notícias.

    O texto de hoje é para apontar o que aconteceu e qual a base técnica que gerou esta decisão. Também achamos interessante comentar sobre a importância de ligarmos o sinal de alerta com notícias bombásticas e alarmistas, que podem gerar insegurança, dúvidas e (por de tudo) hesitação vacinal. Reiteramos aqui, portanto, que não consideramos este um bom momento de “ganhar cliques” com manchetes que podem desinformar a população ou causem qualquer tipo de receio em relação à vacinação. Especialmente de forma injustificada! Essa técnica, tida como clickbait, além de não ajudar a entender o problema, ainda pode trazer danos exatamente por não serem todas as pessoas que abrem os links e leem as reportagens inteiras.

    Então já vamos soltar o spoiler do final da reportagem:

    E agora…

    Vamos aos estudos!

    “França limita uso da vacina Janssen, que sugere leve aumento do risco de infarto”

    Aqui no Brasil vimos primeiramente no Uol Notícias, mas também foi noticiado em veículos franceses. A primeira ressalva já é para o “leve aumento do risco”.

    Lembremos que “risco de alguma coisa” é uma medida, com base em estudos populacionais, de algo acontecer. Além disso, nos salta aos olhos o estudo ser “PRELIMINAR”. O que isto quer dizer?

    Estudo preliminar é aquele que necessita mais estudos para confirmar os dados encontrados.  Neste sentido, gostaríamos de ressaltar aqui uma das frases que consideramos importante.

    “Para o risco de infarto do miocárdio após a vacina Ad26.COV2.S [Janssen] a estimativa é mais incerta devido ao baixo número total de casos.”

    Um pouco sobre os dados técnicos: Intervalos de confiança na incidência relativa

    Mas não é só isso, há mais elementos ainda. Vejamos também os intervalos de confiança na incidência relativa. Esta é uma medida que pode oferecer vislumbres do quanto um fator ocorre em uma população durante um  período analisado. Isto é: um evento, em um grupo de pessoas, em um tempo definido pelo estudo.

    Esta parte é chatinha mesmo, pois é parte da compreensão dos dados do artigo em si, e têm alguns detalhes que são fundamentais para sabermos se podemos ou não afirmar enfaticamente (spoiler: nunca podemos) os resultados (e utilizá-los para compor uma política pública, por exemplo)·

    Pois bem, estes intervalos de confiança na incidência relativa foram muito amplos, o que adiciona um grau de incerteza sobre a verdadeira incidência desses eventos, nesse caso.

    O que isso quer dizer?

    O Intervalo de Confiança diz quanto da medida que estamos usando é observada em uma amostra. Por exemplo, o Brasil tem uma amplitude de temperaturas que vai de 0ºC até 40ºC. Mas isso não quer dizer que essas temperaturas são frequentes, ou acontecem todas na “mesma quantidade”. Não quer dizer, também, que a “média de temperatura observada no país é de 20ºC”.

    Pois existe uma faixa de temperatura que é mais frequente – e esta faixa pode estar mais próxima dos 30-40ºC do que do 10-20ºC. Sem mais dados coletados, ou maior precisão das informações, não temos segurança em afirmar muita coisa sobre a temperatura, ou variação de temperatura média, em nosso país. O mesmo é para o Índice de Confiança (IC), se vc tem um IC largo, sem mais informações coletadas, significa que vc tem pouca certeza sobre essa medida que você observou. Ou que sua amostra não é representativa do fenômeno que se quer observar.

    Mas é segura mesmo essa tal vacina de adenovírus?

    Sim! No mundo inteiro foram mais de 38 milhões de doses de Janssen aplicadas. A própria reportagem da UOL reitera que com todas estas aplicações, não houveram efeitos colaterais que justificassem uma interrupção do uso desta vacina!

    Já o relatório – que foi a base desta notícia – cita outros estudos que estariam de acordo com estes resultados benéficos da vacina Janssen. Isto é, todos os estudos citados ressaltam que:

    • Os riscos pela COVID-19 são muito maiores do que qualquer risco oferecido pela vacinação, OU
    • Os benefícios da vacina superam riscos de eventos mais raros

    Sabemos, inclusive, que comparando com a infecção pelo vírus SARS-CoV-2, há um risco maior de problemas cardíacos do que eventos relacionados à vacinação, segundo este estudo aqui. Além disso, também existem indícios de que podem existir fatores de confusão quanto a estes riscos relacionados com a vacinação. Para os autores do estudo, os resultados precisariam ser confirmados com mais estudos e qualquer análise a partir dos resultados obtidos precisaria ser vista com muita cautela. Outro estudo nessa direção fala ainda que existe uma limitação para a generalização dos resultados e, de qualquer forma que olhemos, os benefícios da vacinação é maior.

    Ainda sobre o relatório, vacina Janssen e a França

    O relatório usado como base para a notícia do UOL e para a interrupção da vacinação com a Janssen, no entanto, têm mais uma questão importante a ser observada. Os dados foram analisados a partir do risco “ultraindividual”, como eles citaram. Neste caso, os dados não poderiam ser extrapoláveis para uma população. Com isso, reitera-se a necessidade de mais estudos confirmatórios, reforçada pelos próprios autores. 

    Aliás, é importante também lembrar do contexto da França. Temos um país com uma cobertura vacinal relativamente alta (~80% para a primeira dose e 77,3% para a segunda dose). Além disso, a limitação da vacina da Janssen é temporária e, talvez, não tenha um efeito efeito significativo sobre o andamento da vacinação. 

    Sobre as publicações, extrapolações de dados e políticas públicas

    Como falamos no início deste texto, nos preocupa muito a análise alarmista e descuidada dos dados de artigos e pesquisas, especialmente com dados que indicados como “preliminares”.

    Desde o início da pandemia temos falado sobre dados preliminares (que precisam de mais pesquisa para confirmarem-se), estudos em preprint (não avaliados por pares) e pesquisas feitas com uma amostra pequena da população. E veja, de modo algum estamos dizendo que estes estudos não são importantes. O que queremos dizer é: eles são estudos que precisam de mais análise e, portanto, cautela nas interpretações.

    E a atenção deve-se redobrar para tomadas de decisões em políticas públicas e notícias em grandes veículos! Isto porque estudos assim precisam confirmar dados com mais análises, replicação de experimentos, coleta de dados em populações maiores. Tomar decisões apressadas – ou jogar manchetes sensacionalistas pode ter um efeito negativo no que temos chamado de hesitação vacinal.

    Isto é, causar um efeito de receio frente à vacinação, sem que tenhamos dados realmente relevantes sobre o que estamos falando.

    E, novamente, não estamos de modo algum dizendo que os estudos não foram bem conduzidos ou os resultados não são reais ou bem analisados. Estamos ressaltando o que os próprios autores falam: “é preciso mais dados que confirmem”; “precisamos de cautela para não termos conclusões precipitadas”; “seria importante replicar experimentos”, dentre outras falas são indícios bem importantes de dados preliminares e amostras pequenas

    Por fim

    Sobre este estudo reportado, especificamente, precisamos entender até onde esse “leve aumento de risco” seria maior do que o risco que a própria doença oferece, durante sua fase aguda E APÓS essa fase. Este dado é fundamental para tomadas de decisão no escopo de uma política pública, por exemplo. Portanto, o intuito desse texto é trazer um pouco da discussão sobre os achados em si, na perspectiva de política de saúde pública, e alertar para a forma como esses dados são compartilhados, para não fomentar uma hesitação vacinal que não faz sentido no contexto atual, e que pode prejudicar a adesão à vacinação em outros locais.

    Para saber mais

    Botton, J, Jabagi, MJ, Bertrand, M, Baricault, B, Drouin, J, Le Vu, S, Weill, A, Farrington, P, Zureik, M, Dray-Spira, R (2022) Evaluation du risque d’infarctus du myocarde, d’accident vasculaire cérébral et d’embolie pulmonaire suite aux différents vaccins anti-COVID-19 chez les adultes de moins de 75 ans en France, Epi-Share Rapport complet

    HAS (2022) Covid-19 : la HAS rend trois nouveaux avis pour actualiser la stratégie de lutte contre le virus

    Sidik, SM (2022) Heart-disease risk soars after COVID — even with a mild case, Nature 602, 560

    Tanne, JH (2022) Covid-19: Even mild infections can cause long term heart problems, large study finds, BMJ

    UOL (2022) França limita uso da vacina Janssen; estudo sugere leve aumento do risco de infarto

    Xie, Y, Xu, E, Bowe, B et al (2022) Long-term cardiovascular outcomes of COVID-19, Nat Med (2022).

    Outros textos do Especial

    Reações Adversas, vacinação e desinformação

    Políticas Públicas em Saúde e Vacinas

    Todos Pelas Vacinas

    Os Autores

    Ana Arnt é licenciada em biologia, doutora em educação, professora do Instituto de Biologia da Unicamp, coordena os projetos Blogs de Ciência da Unicamp e o Especial COVID-19.

    Mellanie Fontes-Dutra é biomédica, doutora em neurociência e pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Divulgadora Científica na Rede Análise COVID-19. Autora convidada no Especial COVID-19 e parte do projeto Todos Pelas Vacinas.

    Rafael Lopes Paixão da Silva é doutorando em física. Ele estuda dados de saúde pública e sua dinâmica e relações com o clima é Físico. Pesquisador no Observatório Covid-19 Brasil e convidado pelo editorial para escrever no Especial COVID-19.

    Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19.

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • As informações e a responsabilidade dos dados em nossas mãos: o caso das vacinas vencidas

    Texto escrito por Ana de Medeiros Arnt, Beatriz Ramos, Erica Mariosa Carneiro, Flávia Ferrari, Marina Fontolan, Mellanie Fontes-Dutra

    A cada notificação viralizam informações e tudo acontece em uma velocidade maior do que conseguimos processar. São tempos delicados e, além da sobrecarga de trabalho que muitos de nós temos enfrentado, acompanhamos os calendários de vacinação, avisamos amigos, familiares e conhecidos. Organizamos documentos, textos, vídeos, postagens e – no meio de tudo isto – respondemos às notificações que pipocam em nossas redes sociais.

    A cada dia que se passa, em nossos coletivos de divulgação científica, temos debatido estas informações. Assim, antes de publicar qualquer coisa, buscamos alguma consulta – mesmo que seja mais um “calma lá, vamos pensar juntos” do que a precisão da informação ou conhecimento técnico em si. O tempo da informação que sobrecarrega nossos espaços é maior do que o tempo que temos para averiguar tudo. É sempre preciso parar, ponderar e analisar como aferir estas notícias que nos chegam. Isto para conseguir responder as perguntas que começam a aparecer direcionadas em nossas redes.

    Hoje foi um destes dias: logo no início da tarde começaram a chegar mensagens sobre vacinas vencidas sendo aplicadas. Começamos a debater sobre como isto seria possível (vencer vacinas em um cenário em que faltam doses nos pareceu assustador). Dessa forma, resolvemos que era uma boa hora para conversarmos sobre responsabilidade com os dados que recebemos e como agir frente às avalanches de mensagens.

    Vale a pressa da notícia?

        Entre a pressa por termos algo não apenas importante – mas que sobressalta nos tempos que estamos vivendo – e os impactos que isto pode gerar (previstos ou não), há um limbo em que residem as ponderações. Algumas das perguntas que sempre são boas de serem feitas:

    • Eu preciso publicar AGORA este material?
    • Têm como aferir mais uma vez estes dados?
    • Existe outro modo de eu chegar a esta informação, para uma segunda, terceira ou quarta conferência das fontes?
    • Vale a pena esperar ou isto requer uma urgência em que estas questões não devem nem ser cogitadas?

    Bom, supondo que nós conferimos tudo e realmente consideramos que é importante publicar a informação: como fazê-la? Click-baits, ou seja, manchetes criadas de forma sensacionalista, podem criar pânico, medo e confusão desnecessários numa população.

    Não estou entendendo onde vocês querem chegar…

    A notícia de pessoas sendo vacinadas com vacinas vencidas foi exatamente este caso: um dado publicado às pressas e com uma manchete estilo click-bait. O resultado? Uma parcela da população com acesso já restrito à vacinação e à informação de qualidade entra em pânico. Outra parcela que já tomou a vacina e não sabe acessar dados com precisão, mais pânico ainda.

    Assim, o cuidado com a forma como a notícia é escrita e veiculada é de grande relevância para que a população possa tomar decisões racionais com quais atitudes tomar. É claro que um jornal precisa chamar a atenção para suas matérias. É óbvio que se há desencontro entre as informações de registro de vacina e datas de validade, é fundamental que isto seja averiguado (e com urgência!). Mas qual o limiar entre a notícia e a geração de pânico? 

    Tendo em vista os comunicados publicados logo após a reportagem, há vários indícios de que pode, sim, ter havido desencontro de registros de vacinações e datas de vencimento – o que, sim, precisa ser averiguado e investigado. Mas definitivamente é passível de ser solucionado e conferido.

    Mas teve mesmo pânico?

    Só ontem, entre nossos grupos de divulgação científica, grupos de amigos/familiares/colegas e mensagens particulares nossas e das redes sociais, foram mais de 10 horas buscando informações e respondendo perguntas. Alguns colegas que trabalham tanto em bancos de dados, quanto em centros e postos de saúde também nos ajudaram a entender melhor o que podia estar acontecendo.

    Isso tudo para elaborar respostas que, simultaneamente, atendessem ao que estava sendo perguntado e acalmassem os ânimos antivacina ou de dúvida sobre como tudo vem acontecendo. Sim, reportagens como estas causam insegurança em todo o processo vacinal e não apenas na vacina aplicada individualmente. Vamos explicar como procedemos quando este tipo de notícia chega nestas nossas redes sociais (particulares ou dos coletivos).

    Um breve relato

    Um de nossos colegas que atua diretamente com estes procedimentos, inclusive, foi verificar os bancos de dados e conferir as doses de seu município. O que encontrou? Incongruências entre o dia de aplicação das vacinas e o registro dos dados. Ao entrar em contato com as pessoas vacinadas, solicitando as datas de vacinação percebeu-se que não a aplicação das vacinas aconteceram antes da data de validade vencer. A data de registro que foi ao sistema era a que aparecia no banco de dados – e não a data de aplicação da vacina. 

    Algumas destas vacinas foram aplicadas dias após chegarem ao nosso país, em fevereiro. Mas os registros no sistema aconteceram algumas semanas depois. Isto é, alguns postos repassam os dados de vacinação com atraso. Mas calma, coletam-se todos os dados no dia de vacinação, mas não necessariamente em planilhas já unificadas. É preciso que manualmente sejam inseridos no sistema final que alimenta o banco de dados do Ministério da Saúde. E é neste ponto que alguns erros acontecem.

    É importante averiguar isto? Sim! É preciso que melhoremos o sistema inteiro de registro de dados? Também. É nosso papel invalidar o trabalho de quem está lá na ponta atendendo mil demandas simultâneas e tentando fazer tudo da maneira mais ágil possível? Não, definitivamente não.  

    Nosso papel hoje ao longo do dia

    Após a publicação, sobre a aplicação de quase 26 mil doses de vacinas vencidas, muitos de nós, que trabalham com divulgação científica sobre COVID-19, começamos a receber a reportagem perguntando como proceder. Neste caso, antes de mais nada, nossa postura sempre foi de acalmar as pessoas, tentar entender o que estava sendo noticiado e buscar dar um passo a passo básico.

    Parece bobeira, mas as pessoas, antes de averiguar seus próprios dados, saem enviando as notícias e perguntando o que vai acontecer – como se 26 mil doses, em um universo de milhões de doses – fosse o maior fim do mundo desta história recente. Não, não é. Precisa ser averiguado SIM, mas há passos fundamentais para compreendermos melhor como proceder, sem se exasperar. Então fizemos o quê? 

    Além disso, sempre a informação que vai junto nestas ocasiões segue sendo:

    • É importante lembrar que a vacinação é um ato que não apenas ajuda a te proteger, mas ajuda a proteger outros à sua volta. Assim, além de tomar a vacina quando chegar a sua vez e voltar para tomar a segunda dose confira as informações do teu cartão, peça ajuda dos funcionários que estão te atendendo, se tiver dúvida: pergunta.
    • Não tenha receio de pedir as informações, seja respeitoso com quem está te atendendo nos postos de saúde e ajude sempre quem tem mais dificuldade de acessar informações sobre calendários, cronogramas e agendamentos de doses!

    Nosso posicionamento

    Respeitamos as pessoas que organizaram os dados e publicaram a reportagem, consideramos que sua postura ao longo deste ano no combate à pandemia, buscando informações técnicas e oficiais seja fundamental. Nosso posicionamento aqui não invalida, em nada, seu trabalho. Dessa maneira, nosso texto hoje, dentre tantos temas abordados, aponta que nosso posicionamento ao comunicar ciência inicia-se no levantamento de dados, aferição de conteúdo e organização das informações. Mas também se faz desde a escolha do título, até cada palavra escolhida para organizar nossas frases e parágrafos. Como apontamos anteriormente.

    Entretanto, ressaltamos que esta não é a primeira vez que esta discussão vem à tona, embora não tenha acontecido uma repercussão grande na primeira publicação de outro veículo de notícias. Apontamos que tudo o que mencionamos no texto hoje, sobre os cuidados e responsabilidades com a comunicação, valem para os dois casos.

    Inclusive, relembramos que em casos assim, existe uma responsabilidade em cascata de aferição de lotes, dados de sistema, registro no sistema e conferências de vacinas e datas de validades desde a base (quem está aplicando nos postos) até o Ministério da Saúde, passando por secretarias municipais e estaduais.

    Sobre os cuidados em cada etapa

    Devemos cuidar, também, sempre em quem recaem as culpabilizações nestes casos e como isto fragiliza, muitas vezes, os trabalhadores da saúde que estão na ponta atendendo à população, sobrecarregados e executando muitas tarefas simultâneas sem que, muitas vezes, tenham o suporte necessário para isto. E essa questão, ressaltamos enfaticamente, não costuma ser pauta. Mas precisa ser levada em consideração. Os tons acusatórios podem ajudar a termos cliques na reportagem, mas não ajudam a encaminhar soluções para as situações denunciadas. 

    Assim, dito isto, consideramos também é fundamental sempre olhar para os dados e se perguntar: existe outra explicação para isto que eu possa ter deixado passar? Este é um tema sensível e é fundamental termos esse cuidado.

    Sobre a Comunicação e a agressividade em rede

    Por fim, rechaçamos todo e qualquer ato de desrespeito às pessoas que escreveram a matéria e compreendemos que um veículo de comunicação não tem uma notícia produzida por uma ou duas pessoas apenas. Além disso, atos de cancelamento e falas agressivas e de ataques pessoais nunca fazem parte de um debate democrático e que busca compreender os dados científicos e acontecimentos cotidianos, especialmente quando envolvem COVID-19 e vacinação.

    *Atualização em 04/07/2021: Após a publicação deste texto a reportagem “Registros indicam que milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra Covid; veja se você é um deles” abriu para leitura sem restrições.

    * Atualização em 07/07/2021: A Folha publicou o seguinte texto aberto: ” Folha errou ao não afirmar que dados sobre vacinas vencidas poderiam decorrer de falhas do sistema; texto foi alterado – Reportagem apontou problemas no processo de vacinação e registro de informações; quem recebeu AstraZeneca deve conferir lote e validade no cartão”

    Para saber mais

    CONASS, CONASEMS (2021) Nota Conjunta Conass e Conasems sobre a aplicação de doses vencidas da vacina Astrazeneca/Fiocruz

    GAMBA, E, RIGHETTI, S (2021) Registros indicam que milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra Covid; veja se você é um deles Folha de São Paulo, 2 de julho de 2021

    MARQUESINI, L, VELEDA, R (2021) Dados da Saúde mostram aplicação de 1,2 mil doses vencidas da AstraZeneca em 23 estados Metrópoles 24 de abril de 2021

    PARANÁ (2021) NOTA – Estado do Paraná não recebeu e não distribuiu vacinas contra a Covid-19 fora do prazo de validade

    VIVA BEM, UOL (2021) Municípios negam ter aplicado vacina vencida e culpam sistema de dados

    G1 SÃO PAULO (2021) Prefeitura de São Paulo nega aplicação de vacinas com validade vencida G1 SÃO PAULO, 02 de julho de 2021

    As Autoras

    As autoras são pesquisadoras e divulgadoras científicas da rede Todos Pelas Vacinas e organizaram em conjunto este texto posicionando-se em seus nomes e pelo Todos Pelas Vacinas também.

    Este texto é original e foi produzido com exclusividade para o Especial COVID-19 junto com o movimento Todos Pelas Vacinas

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Não existe tratamento precoce para Covid-19 [capítulo de hoje: e os artigos de revisão?]

    Texto escrito por Ana de Medeiros Arnt, Tatyana de Almeida Tavella e Mellanie Fontes-Dutra

    Publicado no dia 15 de Junho de 2021, o artigo de revisão The mechanisms of action of Ivermectin against SARS-CoV-2: An evidence-based clinical review article reacende o debate sobre o uso da Ivermectina em casos de infecção por COVID-19.

    Neste post, estruturamos uma análise do artigo que levou a um pedido de retratação deste artigo. Para tanto, nos baseamos na fragilidade metodológica e nas escolhas de artigos e referências, feita pelos autores. Esta escrita é feita em tom de carta endereçada à revista, tendo nossa preocupação com o impacto e os possíveis danos às propostas de tratamento ineficazes, espalhamento e geração de desinformação em um momento crítico de saúde pública. Estudos com uma fragilidade teórico-metodológica como esta não deveriam ser considerados para revisão de pares. Muito menos, ter sua publicação viabilizada em um periódico que se pretende minimamente comprometido com estudos e análises científicas de fontes verificáveis e rigorosas.

    A metodologia de artigos de revisão

    Um artigo de revisão tem como premissa o levantamento de estudos cuja temática, desenho experimental, metodologias, hipóteses se aproximem, a partir de uma pergunta. A análise de artigos de revisão não se limitam a enumerar e sintetizar as ideias principais dos estudos que compõem a pesquisa.

    Segundo Palmatier, Houston & Hulland (2017), um artigo de revisão podem ter diferentes propósitos e objetivos, mas em geral eles buscam:

    “ – Resolve definitional ambiguities and outline the scope of the topic.
    – Provide an integrated, synthesized overview of the current state of knowledge.
    – Identify inconsistencies in prior results and potential explanations (e.g., moderators, mediators, measures, approaches).
    – Evaluate existing methodological approaches and unique insights.
    – Develop conceptual frameworks to reconcile and extend past research.
    – Describe research insights, existing gaps, and future research directions.”

    [tradução: – Resolver ambigüidades de definição e delinear o escopo do tópico.
    – Fornecer uma visão geral, integrada e sintetizada, do estado atual do conhecimento.
    – Identificar inconsistências em resultados anteriores e explicações potenciais (por exemplo, moderadores, mediadores, medidas, abordagens).
    – Avaliar abordagens metodológicas existentes e percepções únicas.
    – Desenvolver estruturas conceituais para reconciliar e estender pesquisas anteriores.
    – Descrever percepções de pesquisa, lacunas existentes e direções de pesquisa futuras. ]

    E o que isto quer dizer?

    Mais do que apenas uma organização de estudos passados, o artigo de revisão tem um propósito de apresentar análises, sistematizar ideias, buscar inconsistências e articular teorias, práticas e debates de relevância acadêmica.

    No caso do presente artigo, questionamos o uso da metodologia e do levantamento de estudos de análise – que não apresentam justificativas aparentes. Inicialmente, os artigos são levantados no repositório da Pubmed, desde 2008, com as palavras chave (stromectol OR Ivermectin OR “dihydroavermectin”) OR (22 AND 23-dihydroavermectin B) AND (antiviral OR virus OR COVID-19 OR SARS-CoV-2).

    A justificativa para analisar Ivermectina, stromectol ou dihydroavermectin desde o ano de 2008 – ainda que vinculado a estudos antivirais – não tem embasamento aparente dentro da pergunta ou do escopo do artigo, tampouco há algo que indique as razões desta escolha de datas, na descrição metodológica ou objetivo do artigo.

    Apontar as ações antivirais ou anti inflamatórias da ivermectina poderia fazer sentido em um trabalho de proposição de reposicionamento de fármaco – tal como foi executado e é estratégia em crises sanitárias como as que estamos vivenciando. Todavia, apontar como justificável para o uso contra SARS-CoV-2 por esta ação, em um estudo de revisão, pelo comportamento infeccioso do vírus como possível causa e efeito plausível não faz sentido algum em termos de metodologia de artigo revisão que busca sistematizar a ação entre o fármaco e o vírus a partir de estudos realizados com esta finalidade.

    Entre o título e a conclusão

    O artigo se propõe a debater – desde o título apresentado – The mechanisms of action of Ivermectin against SARS-CoV-2. Tal discussão seria feita a partir de An evidence-based clinical review article.

    Espera-se encontrar estudos de evidência baseada em clínica em que se estudou os mecanismos de ação da ivermectina contra o SARS-CoV-2. O que encontramos foram apresentações de resultados sobre a ação da Ivermectina OU artigos de comportamento do SARS-CoV-2 ao infectar o nosso corpo. 

    Não há nenhuma evidência nos artigos selecionados que aponte este caminho. Além disso, os resultados não apresentam análises sistematizadas (ou mesmo articuladas) em relação ao título ou ao objetivo do trabalho. A metodologia não apresenta uma justificativa plausível para a escolha do banco de dados, do intervalo de datas e não indica como a análise ocorrerá. Por fim, como conclusão, os autores apontam que:

    “Considering the urgency of the ongoing COVID-19 pandemic, simultaneous detection of various new mutant strains and future potential re-emergence of novel coronaviruses, repurposing of approved drugs such as Ivermectin could be worthy of attention.”

    [tradução: “Considerando a urgência da pandemia de COVID-19 em andamento, a detecção simultânea de várias novas cepas mutantes e a potencial reemergência futura de novos coronavírus, o reaproveitamento de medicamentos aprovados, como a ivermectina, pode ser digno de atenção.”]

    Em crises sanitárias como as que estamos vivendo, o reposicionamento de fármacos é uma prática comum e emergencial. Esta prática científica visa sanar ou minimizar o problema, economizando recursos, tempo e, potencialmente, vidas. Prestar a atenção em fármacos promissores é o comportamento usual da ciência em momentos assim. Isto não é uma conclusão, é uma premissa de estudos e indicação de fármacos candidatos à reposicionamento.

    Esta conclusão não indica nada em termos científicos. Bem como, não se relaciona com os resultados, não sistematiza e aponta caminhos vinculados ao título do trabalho ou a seu objetivo. Não responde a absolutamente nada.

    Por fim, nosso posicionamento

    Como cientistas e comunicadores de ciência brasileiros, temos enfrentado a crise da COVID-19 com particular dificuldade. Tendo em vista os posicionamentos negacionistas do governo. Temos visto que, dentre outras questões, há apoio para o uso do chamado “tratamento precoce” como proposta milagrosa para a cura da doença. Isto segue acontecendo sem qualquer base científica sólida ou qualquer respaldo técnico.

    Nos depararmos com este artigo, que apresenta uma metodologia frágil. Sua proposta não faz sentido sentido e não possui um debate cientificamente robusto. Ou seja, depois de um ano das propostas iniciais de reposicionamento da ivermectina, sem que se tenha chegado a conclusões efetivas de sua eficácia na cura da COVID-19, este artigo foi um duro golpe nesta trágica situação que dá sustento às desinformações.

    Destaques e apontamentos

    Destacamos, de modo específico, a citação do estudo de meta análise Ivermectin for COVID-19: real-time meta analysis of 52 studies [Internet]. Este estudo não possui autoria, nem vínculo institucional. Além disso, está depositado em um site anônimo, sem qualquer informação adicional sobre a pesquisa, sem revisão de pares. Esta suposta meta-análise tem sido fonte de desinformação em nosso país, legitimando a continuidade de tratamentos ineficazes, com prejuízos sérios à saúde de brasileiros.

    Este site está ligado a uma conta de twitter que foi excluída pela própria plataforma por propagar desinformação. Incluímos aqui o questionamento pois o único respaldo de veracidade de suas informações é a indicação de censura da rede social com o perfil do nosso Ministério de Saúde brasileiro, que também teve tweets excluídos ou que receberam notificação de informações falsas.

    Fig.1 Tela do site que indica que a conta foi suspensa por propagar desinformação, junto com a cópia do tweet do Ministério da Saúde, com mensagem desinformativa também.

    O Artigo de revisão publicado no Journal of Antibiotics cita esta pesquisa, que já foi indicada como desinformação, apontando que

    “The consistency of positive results across a wide variety of cases has been remarkable. It is extremely unlikely that the observed results could have occurred by chance”,

    [tradução] “A consistência dos resultados positivos em uma ampla variedade de casos tem sido notável. É extremamente improvável que os resultados observados possam ter ocorrido por acaso ”,

    O artigo de revisão, portanto, endossa a meta-análise que não tem qualquer fonte confiável e verificável de seus dados, metodologias e autores (para debates acerca das informações que ali estão)

    Sobre a revisão proposta

    É importante ressaltar que, dos 67 trabalhos citados no artigo, apenas 15 avaliam a ivermectina no contexto da COVID-19. Desses 15, cinco não foram publicados em revistas científicas, portanto, não passaram por revisão por pares. Dos 10 artigos restantes, sete não apoiam o uso da ivermectina no tratamento da COVID-19. Alguns destes ainda frisam a importância da realização de Ensaios Clínicos Randomizados para avaliar se esse medicamento de fato é eficaz na COVID-19.

    Por último, das 67 referências, apenas três trabalhos que apoiam o uso da ivermectina na COVID-19  foram publicados em revistas científicas com fator de impacto: Referência (24), publicado em março de 2021 (Fator de Impacto = 0.9); Referência (28), publicado no início da pandemia, em maio de 2020; e Referência (32), trabalho do ganhador do Nobel pela descoberta da ivermectina, Satoshi Omura, publicado em revista japonesa (Fator de Impacto = 4).

    Por fim

    Nos estarrece, como cientistas, que transcorridos 15 meses do início oficial da Pandemia causada pela COVID-19, tenhamos que alertar uma revista deste grupo sobre a responsabilidade dos estudos publicados e a necessidade de uma revisão atenta, séria e científica de artigos científicos acerca da doença e de possíveis indicações de tratamentos. Nos estarrece, pois estes aparentes deslizes custam vidas em meio a uma crise instalada – que em nosso país é mais severa ainda pela propagação de desinformação, mas ainda é uma crise sanitária grave mesmo em países em que a vacinação está mais adiantada.

    Sabemos, outrossim, da imensa importância de estudos de revisão sérios, bem sistematizados e estruturados. Também compreendemos a necessidade de termos esperança em medicamentos que venham a nos curar desta doença – mesmo com o avanço da vacinação amenizando o cotidiano que temos vivenciado no último ano inteiro.

    No entanto, nada justifica análises apressadas e descuidadas em periódicos científicos, que possam causar mais danos sociais do que ganhos ao debate com acurácia e verificabilidade. É necessário um posicionamento mais rigoroso, e ético, frente ao conhecimento científico e seu impacto na vida humana, todos os dias.

    Desta feita, solicitamos urgente retratação e retirada deste artigo do banco de dados da revista.

    Nossos respeitosos cumprimentos,

    ___

    Assinam a carta:

    Ana de Medeiros Arnt
    Professora do Instituto de Biologia da Unicamp

    Tatyana Almeida Tavella
    Pesquisadora do Instituto de Biologia da Unicamp

    Mellanie Fontes-Dutra
    Pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Divulgadora Científica na Rede Análise COVID-19

    Para saber mais

    Palmatier, R.W., Houston, M.B. & Hulland, J. Review articles: purpose, process, and structure. J. of the Acad. Mark. Sci.46, 1–5 (2018). https://doi.org/10.1007/s11747-017-0563-4

    Não existe tratamento precoce para Covid-19 [capítulo de hoje: ivermectina]

    Por que não podemos nos precipitar com o reposicionamento de fármacos?

    1 Ano sem encontrar o tratamento de COVID-19

    WHO (2021) Therapeutics and COVID-19: living guideline: ivermectine

    As autoras

    Ana de Medeiros Arnt: Bióloga, Mestre e Doutora em Educação, Coordenadora do Blogs de Ciência da Unicamp e coordenadora do Especial COVID-19

    Tatyana de Almeida Tavela, Farmacêutica, doutora em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, Pesquisadora do Instituto de Biologia da Unicamp

    Mellanie Fontes-Dutra, Biomédica, Doutora em Neurociências, Pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    Endossam e concordam com o teor do pedido:

    Editorial do COVID-19 do Blogs de Ciência da Unicamp

    Este texto é original e foi produzido com exclusividade para o Especial COVID-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Não existe tratamento precoce para Covid-19 [capítulo de hoje: ivermectina]

    Texto escrito por Tatyana Tavella

    #IVERMECTINA, um breve histórico

    2015, o ano em que pesquisadores que descobriram um medicamento que contribuiu para uma diminuição drástica de doenças parasitárias em países tropicais, ganharam o tão almejado Prêmio Nobel de Medicina. William Campbel, da Merk, e Satoshi Omura, do Kitasato, foram laureados pela pesquisa que levou ao descobrimento da ivermectina!

    No entanto, o que parecia um conto de fadas em formato de uma parceria público-privada bem-sucedida sofreu uma reviravolta. Isto é, Uma pesquisa voltada para o bem-estar social tão importante como esta ganhou um tom mais realista na pandemia do novo coronavírus. Qual? Nem toda história tem um final feliz.

    Causos recentes: a persistência e manutenção da desinformação…

    No fim de janeiro de 2021, começou a circular em alguns grupos e mídias sociais do Brasil, uma “Meta análise”. Mas, o que é uma Meta análise? É um estudo que coleta TODAS as informações disponíveis sobre um determinado assunto. Posteriormente a isto, avalia a qualidade e homogeneidade dos dados, para verificar se os estudos concordam entre si. Assim, o pilar da meta análise é o rigor científico. Isto quer dizer que existem critérios que devem ser seguidos para validar um estudo de Meta Análise.

    No caso desta “meta análise” que estava circulando nas redes sociais e grupos, havia uma suposta “prova” que a ivermectina funciona no tratamento da COVID-19. Todavia, ressaltamos: no caso da Meta Análise divulgada sobre a ivermectina na COVID-19, nenhum critério científico que valide o estudo foi seguido.

    Recentemente, um estudo clínico concluiu que o tratamento à base de ivermectina não apresentou benefícios clínicos em pacientes com COVID-19. Esta pesquisa cumpriu os protocolos de metodologia com duplo-cego randomizado e envolvendo mais de 400 pacientes. Sua conclusão foi de que o tratamento à base de ivermectina não apresentou benefícios clínicos em pacientes com COVID-19. O trabalho foi publicado no início de março (2021) na JAMA, uma das revistas de medicina mais prestigiadas do mundo.

    Sobre a criação do mito da ivermectina

    O Brasil é um dos únicos países do mundo que insiste em destinar recursos públicos para comprar ivermectina para tratamento da COVID-19. Mesmo sem comprovação científica. Isso ao invés de investir em estratégias que realmente funcionam, como VACINAS. Mas de onde veio a ideia de que esse medicamento funciona para o tratamento da COVID-19?

    A ivermectina se tornou uma das drogas mais populares no mundo devido à pandemia do novo coronavírus, disso todo mundo sabe. O frenesi em relação à droga fez com que a medicação se esgotasse das farmácias por todo o Brasil. Lembrando que nós estamos entre os países que mais investem no medicamento para tratamento da COVID-19 (ao lado de México, Egito e Argentina).

    Em março de 2020, um trabalho publicado mostrou que doses altas de ivermectina reduziram 99.98% do RNA viral em células infectadas com SARS-CoV-2 in vitro.

    UM ALERTA: AS PALAVRAS “CÉLULAS” E “IN VITRO” INDICAM QUE A PESQUISA AINDA NÃO ACONTECEU NO SER VIVO “INTEIRO” – O TESTE ACONTECE NUMA PLACA DE LABORATÓRIO

    Isto ocorreu pouco depois de a OMS declarar a pandemia de COVID-19, e a pesquisa era de um grupo australiano da Universidade de Monash.

    Um trabalho aparentemente promissor, uma vez que o reposicionamento de fármacos reduz o tempo do descobrimento de drogas para uma doença emergente.

    Este tipo de pesquisa, busca diferentes aplicações para compostos que já passaram por ensaios clínicos de segurança. Assim, por já terem cumprido uma etapa de segurança com sucesso, já estão aprovados para uso em humanos por órgãos regulatórios. Entretanto, bom lembrar que os “ensaios clínicos de segurança” incluem testes de toxicidade. Além disso, há prescrição de dose máxima e análise de doses letais para seres humanos. Ou seja, há indicação clara de qual dose é DANOSA ao ser humano (informação que vem na bula, por exemplo).

    É importante ressaltar que esse estudo foi publicado em um momento de tensão em que o mundo assistia o sistema de saúde italiano colapsar. Dessa forma, viralizou como uma faísca de esperança no combate do novo coronavírus.

    No entanto, antes de acabar com os estoques de ivermectina das farmácias achando que a ivermectina previne, trata, ou cura COVID-19, devemos considerar alguns pontos desse estudo:

    1. Tratava-se de um estudo preliminar in vitro.

    Os testes in vitro são realizados em cultura de células (ambiente artificial, controlado) para verificar a atividade e toxicidade de um composto ou medicamento. Assim, com esses testes, são selecionadas moléculas promissoras para testes em modelos animais, os chamados testes in vivo. Isto é, estes testes são modelos um pouco mais próximos do organismo humano (ensaios pré-clínicos). Os compostos promissores nos modelos animais avançam para serem testados em humanos quanto à eficácia e segurança (ensaios clínicos), antes de serem comercializados.

    Nesse estudo, a ivermectina foi testada em doses altas em células de rim de macaco in vitro. Outros estudos já haviam reportado atividade antiviral da ivermectina contra vírus de RNA in vitro.

    No entanto, nenhum trabalho demonstrou atividade antiviral da ivermectina in vivo.

    Apesar de inibição in vitro, o tratamento à base de ivermectina não mostrou benefícios na prevenção da infecção letal de Zika vírus em camundongos. Isto é, mesmo funcionando in vitro, no modelo in vivo não obtivemos resultados. E todo o experimento com fármacos precisam desta fase pois é ela que PROVA que dentro do corpo, existe combate à doença.

    Apesar de atividade contra dengue in vitro, um ensaio clínico de fase III feito na Tailândia mostrou que o tratamento com ivermectina não reduziu a viremia. Além disso, os resultados também não apontaram benefícios no quadro clínico de pacientes com dengue. Vale frisar que no pipeline de descobrimento de drogas existem dezenas de milhares de compostos testados. No entanto, quando vamos olhar o número de compostos aprovados para uso comercial cai para casa de um dígito. Ou seja, é MUITO difícil encontrar uma molécula que passe por todas as fases do pipeline. Em suma, a pesquisa in vitro e as análises in vivo são etapas fundamentais e representam resultados parciais em um trabalho INICIAL.

    2. A dose de ivermectina utilizada no estudo é alta.

    O estudo constatou que em tratamentos in vitro realizados com a dose de 5 µM, a ivermectina foi capaz de reduzir em 99.98% a quantificação de RNA viral da célula infectada com SARS-CoV-2. Aparentemente a ivermectina tem uma atividade potente contra o novo coronavírus in vitro. No entanto, quando consideramos as propriedades farmacocinéticas desse composto, observamos outra coisa. Essa concentração é mais 17 vezes maior do que a concentração sérica máxima mais alta (Cmax) de ivermectina reportada na literatura.

    Assim, isso significa que para testar se a ivermectina tem um potencial clínico no tratamento da COVID-19, precisaríamos de uma dose de ivermectina muito maior do que as reportadas nos testes de segurança desse medicamento. Ou seja, a dose necessária para o teste clínico equivale a uma dose maior do que a segurança para as pessoas. Em suma, de novo, traduzindo: esta dose equivale a uma intoxicação grave e as pessoas podem MORRER tomando as doses reportadas no estudo.

    3. O reposicionamento de fármacos só funciona em uma situação específica

    O reposicionamento funciona? Sim, mas com uma ressalva fundamental! Se as doses utilizadas para tratar uma doença nova se encontram dentro do intervalo de segurança clínica para qual o composto obteve aprovação! Dessa forma, nesse caso, o estudo utilizou uma concentração de droga extremamente alta e inatingível, mesmo com dosagens excessivas do medicamento. Isto é, a ivermectina tem ação in vitro contra o vírus. Mas no corpo humano, na concentração usada no estudo, ele mataria o hospedeiro também (ou seja: nós…). Conclusão: a concentração de ivermectina utilizada no estudo é IRRELEVANTE do ponto de vista clínico, pois pode (e eventualmente vai) matar o ser humano.

    Sobre a Ivermectina e o Tratamento precoce no Brasil

    Em janeiro de 2021, durante o colapso do sistema de saúde de Manaus, o Ministério da Saúde lançou o aplicativo TratCov. Este aplicativo estava estruturado em uma pontuação de sintomas do paciente. Qualquer sintoma mínimo de COVID-19 (qualquer pontuação), sugeria a prescrição de um coquetel de medicamentos. Este coquetel tinha indicações SEM EFICÁCIA CIENTÍFICA para tratamento da COVID-19 (ivermectina estava incluída na lista).

    Nesse mesmo período, o Twitter reconheceu as postagens do Ministério da Saúde do Brasil referentes ao “Tratamento Precoce” como “enganosas”.

    Nós fomos o único país do mundo a ter posts de um ministério ocultados por uma rede social.

    No início de fevereiro de 2021, a Merk publicou uma nota dizendo que não existem evidências científicas de que o medicamento funcione para tratar COVID-19. Quem é a Merk? A farmacêutica fabricante de ivermectina e principal beneficiada com as vendas do medicamento.

    Além disso, apesar do silêncio dos Conselhos de Medicina do Brasil, muitos médicos fizeram um alerta sobre o surgimento de casos de hepatite medicamentosa causada por excesso de ivermectina. Até mesmo o Conselho Federal de Farmácia se manifestou contra o uso de ivermectina e do “tratamento precoce” como estratégia de tratamento para a COVID-19.

    Por fim…

    Não existem evidências científicas. Como assim? Não há estudos clínicos que passaram por revisão e publicadas em revistas científicas endossando ou justificando o uso de ivermectina no tratamento da COVID-19. Assim, Não existe tratamento precoce para COVID-19. A Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Pan-Americana de Saúde (PAHO), o FDA e a ANVISA não recomendam o uso de ivermectinapara tratamento ou prevenção da COVID-19.

    Conclusão: a ivermectina não cura, não trata e não previne COVID-19 e seu uso prolongado PODE LEVAR A PESSOA À ÓBITO!

    Para saber mais

    1. The FDA-approved drug ivermectin inhibits the replication of SARS-CoV-2 in vitro-
    2. Ivermectin: a systematic review from antiviral effects to COVID-19 complementary regimen. PMID: 32533071; PMCID: PMC7290143
    3. Lack of efficacy of ivermectin for prevention of a lethal Zika virus infection in a murine system.
    4. Ivermectin as a potential COVID-19 treatment from the pharmacokinetic point of view: antiviral levels are not likely attainable with known dosing regimens.
    5. WHO guideline on drugs for covid-19. BMJ. 2020;370:m3379
    6. Recomendação sobre o uso de ivermectina no tratamento de COVID-19 – OPAS/OMS | Organização Pan-Americana da Saúde (paho.org)
    7. FDA Letter to Stakeholders: Do Not Use Ivermectin Intended for Animals as Treatment for COVID-19 in Humans
    8. Agência Nacional de Vigilância Sanitária: nota de esclarecimento
    9. Merck: remédio em teste reduz infecção por covid-19, aponta dado preliminar.
    10. Médicos alertam sobre uso de ivermectina contra Covid-19, após suspeita de paciente com hepatite aguda-contra-covid-19-apos-suspeita-de-paciente-com-hepatite-aguda
    11. TrateCov: sistema do governo que sugere cloroquina não explica uso de dados
    12. López-Medina E, López P, Hurtado IC, et al (2021) Efeito da ivermectina no tempo de resolução dos sintomas entre adultos com COVID-19 leve : um ensaio clínico randomizadoJAMA, Publicado online em 04 de março de 2021.
    13. Busca de fórmulas milagrosas contra a Covid-19 continua impulsionando vendas de medicamentos

    A autora

    Tatyana Tavella, Farmacêutica pela Universidade de São Paulo, doutora em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, atualmente trabalha na área de descobrimento de fármacos no Laboratório de Doenças Tropicais da Unicamp.

    Este texto é original e exclusivo do Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Corrigindo boatos de forma estratégica

    Postagem por Dayane Machado (@DayftMachado) e Minéya Fantim (@mifantim)

    Você não aguenta mais receber “fake news” no grupo da família? Já cansou de corrigir os mesmos boatos toda semana?

    Rã Zinza AntiFakenews de 1 De Novembro De 2018 Por Rafael Marçal https://vacilandia.com/ra-zinza-antifakenews/

    Pois você não está sozinho. Desde que os primeiros casos de Covid-19 começaram a ser registrados, os potenciais riscos das desinformações deixaram de ser assunto para pequenos grupos de cientistas e invadiram o dia-a-dia de boa parte da sociedade.

    Nesses últimos meses, muita gente teve que aprender a checar informações. Além disso, tem ajudado colegas e familiares a filtrar o conteúdo que anda circulando por aí.

    Mas, apesar disso, o resultado desse tipo de interação nem sempre é o esperado e, como consequência, muita gente tem ficado frustrada e sem entender por que parece que certas correções não funcionam.

    Numa tentativa de popularizar o que a gente já sabe a partir das pesquisas sobre desinformação, um grupo de mais de 20 especialistas no tema se reuniu para publicar:

    O Manual da Desmistificação 2020. (BAIXE AQUI)

    O documento resume os resultados dos principais trabalhos da área e transforma tudo isso em um conjunto de recomendações simples e diretas para você aplicar na sua rotina.

    Assim, a proposta é que cada vez mais pessoas entendam o problema e que a partir daí, possam ajudar no enfrentamento da desinformação de forma estratégica.

    Por exemplo, você sabia que nem sempre vale a pena corrigir um boato?

    Se ele tiver pouca visibilidade, a correção pode até sair pela culatra, tornando o boato mais popular em vez de realmente combatê-lo (veja mais detalhes na figura abaixo).

    O pessoal mal-intencionado, especialmente quem já faz parte de movimentos negacionistas, sabe disso e tenta surfar na popularidade de jornalistas e celebridades para alcançar um público maior.

    Infelizmente, muita gente vem mordendo a isca. Dessa forma, vemos veículos jornalísticos validando desde teorias da conspiração sobre o resultado das eleições norte-americanas a questionamentos sobre a segurança das vacinas contra a Covid-19.

    O panorama estratégico da desmistificação

    Entretanto, através do manual, você também vai entender por que certos boatos continuam “grudando” na cabeça das pessoas, independente de quantas vezes eles sejam corrigidos, vai aprender a evitar que isso aconteça e, quando não for possível prevenir, vai saber como corrigir os boatos de forma efetiva, aumentando as chances de que a correção realmente funcione.

    O Manual da Desmistificação 2020 chega poucos meses depois da publicação do Manual das Teorias da Conspiração e é produzido pelos pesquisadores Stephan Lewandowsky e John Cook e também disponível em português.

    Em suma, você encontra os dois documentos, além de outros recursos para combater o negacionismo e a desinformação na página do Centro para a Comunicação das Mudanças Climáticas da Universidade George Mason e na página do Skeptical Science.

    Sobre o Manual da Desmistificação 2020

    Outras informações: https://skepticalscience.com/translationblog.php?n=4886&l=10

    Para baixar: https://skepticalscience.com/docs/DebunkingHandbook2020-Portuguese.pdf

    Para saber mais:

    Este texto foi escrito originalmente no blog Mindflow

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • QUANDO O MÉDICO DESINFORMA: o caso das vacinas

    Existem médicos contra as vacinas desde o século XVIII

    Figura 1: Edward Jenner e dois colegas eliminando três oponentes antivacinação, as vítimas mortas da varíola estão espalhadas a seus pés. FONTE: Isaac Cruikshank, 1808 (Wellcome Collection). Creative Commons

    Há quem estranhe o silêncio dos conselhos de medicina ante a posicionamentos de alguns de seus membros contrários à imunização por vacinas contra a Covid-19 e favoráveis à utilização de medicamentos sem eficácia comprovada (até o momento). Embora hoje não haja dúvidas sobre a eficácia e segurança das vacinas, dados históricos mostram que, desde o século XVIII, sua utilização como tratamento profilático é combatida por alguns médicos.

    Século XVIII

    Nos Estados Unidos (EUA), entre 1721 e 1722, uma grande epidemia de Varíola atingiu a cidade de Boston, à época com 11 mil habitantes, registrando mais de 6 mil casos, levando 850 deles a óbito. O pesquisador Matthew Niederhuber, da Harvard Medical School, escreve que “o uso da inoculação durante essa epidemia e o acalorado debate que surgiu em torno da prática foi uma das primeiras aplicações importantes da inoculação na sociedade ocidental, abrindo caminho para que Edward Jenner (o descobridor da vacina contra a varíola em 1796) desenvolvesse a vacinação contra a varíola até o final do século” (1).

    INOCULAÇÃO
    É a exposição deliberada ao vírus da varíola usando material de uma crosta de varíola – por exemplo, esfregado em um pequeno corte na pele. Geralmente resulta em uma forma mais branda de doença, mas ainda apresenta risco de morte.

    No entanto, conseguir sua aprovação não foi uma tarefa simples, uma vez que a comunidade médica de Boston se posicionou contra essa autorização, tendo o Dr. William Douglass (1691-1752), um dos únicos médicos da cidade que realmente possuía um diploma de medicina, como liderança do movimento anti-inoculação. Seu principal argumento era o de que a inoculação não fora suficientemente testada e seria baseada em folclore.

    Contudo, no início de 1722, os líderes da campanha de inoculação, o médico Zabdiel Boylston e o reverendo Cotton Mather, apresentaram dados que atestaram a eficácia da inoculação: enquanto a taxa de mortalidade entre os não inoculados foi de 14,8%, entre os inoculados, foi de apenas 2%. (1)

    Século XIX

    Na Inglaterra, em meados do século XIX, os historiadores Dorothy Porter e Roy Porter (1988), escrevem que surgiu uma fonte de oposição científica à vacinação liderada por um grupo anticontagionista que defendia ser a remoção da “sujeira” o caminho para a prevenção de doenças e que negava teorias sobre a especificidade de doenças.

    O médico britânico Charles Creighton (1847-1927) expoente do grupo foi um exemplo de antivacinacionista que fundamentou sua rejeição ao método profilático em uma teoria anticontagionista de propagação de doenças. 

    • O médico afirmava que a vacina em si era uma causa de sífilis e dedicou um livro ao assunto, A História Natural da Varíola Bovina e da Sífilis Vacinal (2), no qual argumenta que a vacinação era um envenenamento do sangue com material contaminado, que não poderia fornecer proteção contra uma doença causada por eflúvios decorrentes de matéria orgânica em decomposição. 
    • No livro Jenner e Vacinação: um capítulo estranho da história médica (3) Creighton descreve Edward Jenner como pouco melhor do que um criminoso e ganancioso que enganou o Parlamento e os mundos científico e médico para que acreditassem em seu método mítico (4).

    Século XX

    Em 1998, o então médico britânico Andrew Wakefield, consultor honorário em gastroenterologia experimental no London’s Royal Free Hospital, publicou um artigo na conceituada revista The Lancet em que ilustrou um estudo de vinte pacientes e concluiu que a administração da vacina MMR causava autismo e algumas formas de colite (inflamação do intestino grosso). Segundo Tafuri (2011), quando o artigo foi revisado pelos pares, a conexão entre vacina e autismo não foi comprovada e a publicação foi desacreditada. No entanto, o estudo do britânico passou a ser utilizado por grupos antivacina como argumento para não vacinar os filhos. Em 2004, a revista reconheceu que não devia ter publicado o estudo de Wakefield e, em 2010, retirou-o de seus arquivos, sendo que, no mesmo ano, ele teve seu registro cassado pelo Conselho Geral de Medicina (GMC) do Reino Unido, acusado de agir de forma “desonesta”, “enganosa” e “irresponsável”.

    Século XXI

    Mais recentemente, em 2003, o artigo “Timerosal em vacinas infantis, distúrbios do neurodesenvolvimento e doenças cardíacas nos Estados Unidos” (GEIER e GEIER, 2003) publicado por Mark Geier, doutor em genética, e David Geier, bacharel em biologia, alegam que o conservante timerosal, usado em certas vacinas, causa autismo. Segundo a premiada jornalista científica, Megan Scudellari (2010), Mark Geier testemunhou em apoio ao vínculo timerosal-autismo como testemunha especialista em testes de vacinas nos EUA, porém, numerosos estudos rigorosos descartaram esse vínculo. 

    Atualidade

    Como se percebe, não é de hoje que esse lugar de fala vem sendo disputado por atores que, em teoria, têm notório saber específico ou são detentores de conhecimento reconhecido e que usavam, cada um a seu modo, a mídia disponível em seu contexto para divulgar suas ideias, nem sempre apoiados no devido rigor científico. Por isso, não chega a ser surpresa o atual silêncio dos conselhos de medicina, visto que, em sua maioria, são compostos por profissionais que têm interesses políticos, conforme mostra recente reportagem do site The Intercept Brasil.

    Em outro aspecto, o jornalismo profissional – em nome da imparcialidade, da necessidade de ouvir “o outro lado” e, evidentemente, em busca de mais audiência (isto é, retorno financeiro) – tem dado destaque a vozes dissonantes que, muitas vezes, contradizem as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), da ciência e/ou da própria medicina. o que tem causado na sociedade uma sensação de que a eficácia e a segurança das vacinas ainda é um debate aberto, quando na verdade não é. O quadro se agrava num contexto em que as mídias sociais replicam essas vozes, elevando exponencialmente o seu alcance.

    Nesse sentido, vale atentar para a ponderação do biólogo Atila Iamarino, para quem “numa questão científica onde centenas de especialistas chegaram num consenso, dar o mesmo peso para o questionamento, não faz sentido” (5). Agora, mais do que nunca, o papel da Divulgação Científica se faz necessário para que se possa mitigar a maré de desinformação que contribuiu para que o Brasil atingisse a lamentável marca de mais de 200 mil mortes. 

    Referências

    (1) NIEDERHUBER, Matthew. The fight over inoculation during the 1721 Boston smallpox epidemic. Science in the News, 2014. Disponível em: http://sitn.hms.harvard.edu/flash/special-edition-on-infectious-disease/2014/the-fight-over-inoculation-during-the-1721-boston-smallpox-epidemic/ Acesso em 31 jan. 2021

    (2) CREIGHTON, Charles. The Natural History of Cowpox and Vaccinal Syphilis. London: Cassell, 1887.

    (3) CREIGHTON, Charles. Jenner and Vaccination: A strange chapter of medical history. London, 1889.

    (4) PORTER, Dorothy; PORTER, Roy. The politics of prevention: anti-vaccinationism and public health in nineteenth-century England. Medical history, v. 32, n. 3, p. 231-252, 1988. (p. 237) Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/medical-history/article/politics-of-prevention-antivaccinationism-and-public-health-in-nineteenthcentury-england/160A0FE00C0D60AC0AF87DCC3D444523 Acesso em 31 jan. 2021.

    (5) IAMARINO, Atila, Aquecimento Global. Canal Nerdologia. (05m 35s a 05m 46s) 01 jun. 2017. Disponível em: https://youtu.be/8sovsUzYZFM. Acesso em 31 jan. 2021.

    Para Saber Mais:

    CRUIKSHANK, Isaac. Edward Jenner e dois colegas eliminando três oponentes antivacinação, as vítimas mortas da varíola estão espalhadas a seus pés. British Museum, Catalogue of political and personal satires, vol. VIII, London, 1947, n°. 11093. Wellcome Collection. 20 Jun. 1808. Disponível em: https://wellcomecollection.org/works/x7kbxaef Acesso em 01 fev. 2021.

    GEIER, Mark R.; GEIER, David A. Thimerosal in childhood vaccines, neurodevelopment disorders, and heart disease in the United States. J Am Phys Surg, v. 8, n. 1, p. 6-11, 2003.

    SCUDELLARI, Megan. State of denial. Nature Medicine 16, 248. 2010. Disponível em https://doi.org/10.1038/nm0310-248a. Acesso em 31 jan. 2021.

    TAFURI, Silvio. et al. From the struggle for freedom to the denial of evidence: history of the anti-vaccination movements in Europe. Annali di igiene: medicina preventiva e di comunita, v. 23, n. 2, p. 93-99, 2011. Disponível em https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21770225/ Acesso em 31 jan. 2021.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Desinformação e vacinas: cuidados necessários

    Recebemos hoje uma notícia animadora: as novas datas de vacinação já saíram!

    Uhuuuu! Vamos lá! Espalha essa notícia sim! Vai pro zap sim! Encaminha prá todo mundo sim!

    Não. Calma. Pera lá…

    Nunca encaminhe nenhuma mensagem antes de conferir tudo…

    Olhando com mais calma, vimos alguns sinais de alerta e já fomos conferir!

    Primeiro sinal: o site é do governo de São Paulo! Será que é o site mesmo?

    Sim, o site é real, é sobre a vacinação em São Paulo… Todavia, o restante da mensagem, não era bem assim. Aqui mora o cerne de como a desinformação se propaga! Veja, o site existe, a vacina existe (Sim! Ela existe!), mas as datas não foram confirmadas ainda. E este é só um dos detalhes…

    Também consta nesta mensagem a data de vacinação de pessoas entre 0 e 28 anos. A vacina ainda não teve seus resultados de eficácia para menores de 18 anos. Portanto, esta faixa etária de menores de idade não será vacinada por enquanto!

    A desinformação é ardilosa sabe? Ela traz informações que muitas vezes são reais (como o site do governo), aliadas com aquelas que queremos que sejam reais (datas próximas de vacinações). E isso nos atrapalha mesmo. Por isso, nós trouxemos para vocês algumas dicas para ajudar, em cima do encaminhamento que recebemos! Vamos lá?

    Sobre fake news e desinformação, vocês podem saber mais informações aqui

    Texto produzido para o especial e também para compor todo o trabalho que seguimos fazendo na campanha #todospelasvacinas

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Vacinas: uma ação de Saúde Pública

    Vacinas são ferramentas importantes no combate à doenças e devem ser pensadas para o bem público. Elas já enfrentam o desafio da desinformação, às fake news, e capitalizar esse momento de vacinação contra a COVID-19 é colocar mais um obstáculo para sua implementação. 

    Temos acompanhado passo a passo o desenvolvimento das vacinas, seus testes, avaliações e aprovações, aprovadas. Todos temos visto, exultantes, as últimas notícias sobre as vacinas no país.

    Há, óbvio, expectativa e urgência em tudo isso. Pois, as vacinas são um dos instrumentos de saúde mais fantásticos já elaborados pela ciência. E, também, um grande passo da ciência que vem se aprimorando cada vez mais ao longo do século XX e agora no século XXI.

    Dessa forma, já houve, sim, muito questionamento acerca de sua segurança. O movimento anti-vacinas que vemos hoje não é o mesmo de décadas anteriores. Mas retoma receios da população, misturados com mentiras e falácias acerca de um (mentiroso) risco às pessoas.

    Neste post, nós vamos propor pensarmos sobre a Vacina Como Produto e a necessidade de olharmos para as Vacinas como uma conquista de cientistas e da humanidade – e não de indivíduos isolados. Vamos entender melhor sobre isso?

    As Vacinas são uma conquista de saúde pública: e é só isso?

    As vacinas são, sim, uma estratégia fundamental para combater doenças sem tratamento. É a partir das vacinas que conseguimos erradicar poliomielite, coqueluche, sarampo no Brasil. E será pelas vacinas que conseguiremos diminuir, e muito, as mortes e as contaminações por Sars-CoV-2 em nosso país e em todo mundo.

    Conquistarmos vacinas seguras e eficazes em tão pouco tempo foi um feito enorme de nossa sociedade. Não é um risco, as vacinas não foram feitas “rápido demais”. Isto foi um investimento estrondoso, nunca visto antes no mundo. Parece clichê, mas realmente foi um grande esforço científico para um bem comum e é espantoso tudo o que conquistamos, como espécie, em 10 meses de pandemia. Mas atrás desse processo, há décadas dedicadas ao estudo de vacinas. 

    Temos neste momento no Brasil, a autorização para uso emergencial de duas vacinas.

    A primeira a vacinar pessoas, logo após a aprovação da Anvisa ontem, foi a CoronaVac, da empresa Sinovac, que em parceria com o Instituto Butantã será produzida e distribuída em São Paulo para todo o Brasil. Teremos em breve, ao que tudo indica, a vacina Astrazeneca, de Oxford, em parceria com a Fiocruz, também será produzida e distribuída para todo o Brasil (a partir de fases de aplicação da vacina, estabelecidos pelo PNI).

    Ambas vacinas são seguras, eficazes e serão fundamentais para diminuirmos a incidência da doença, diminuirmos internações em UTIs, ou mesmo ambulatoriais. Repetimos, neste sentido, tudo isto é fantástico e estamos ansiosos por nossa vez para nos vacinarmos também!

    O que trazemos como questão aqui – e temos abordado ao longo dos últimos meses sobre vacinas e outros temas – é a necessidade de isto ser tratado como pauta da saúde pública. Isto é: as vacinas estão acima dos interesses político-partidários, ou de políticos específicos. E devem assim ser compreendidas! Não existe torcida para uma ou outra funcionar melhor.

    A ciência não funciona a partir de torcidas, mas a partir de observação dos fenômenos, elaboração de perguntas, elaboração de hipóteses, organização e estrutura de metodologias de coleta e tratamento de dados, análise de dados coletados, apresentação e discussão de resultados.

    A avaliação de todos estes processos acontece por pares (colegas da mesma área). A torcida não faz parte de nenhuma etapa disto que conhecemos por método científico. Isto não quer dizer que não tenhamos expectativa pela vacina e não queiramos resultados positivos de segurança e eficácia. Isto quer dizer, apenas, que nossa expectativa e esperança não coleta dados, não pode interferir no processo e, definitivamente, não adulterar resultados.

    Isto vale para cientistas, isto vale para políticos. Além disso, é fundamental a transparência no processo de desenvolvimento científico (a pesquisa sobre a vacina desde o início). Todavia, também devemos cobrar por transparência e objetividade na comunicação acerca deste desenvolvimento. Especialmente pelo momento delicado em que vivemos.

    Assim, usar a vacina como moeda de troca entre setores do governo, fazendo de cada etapa um grande espetáculo que retira das pessoas diretamente envolvidas – cientistas, profissionais de saúde e instituições públicas – o protagonismo pode ser um problema. Ademais, há também um possível descrédito gerado exatamente pela quantidade de informações, demasiadamente técnicas e – para quem não conhece todo o procedimento – contraditória.

    As vacinas obedecem protocolos científicos elaborados em conjunto por vários cientistas: não é um produto de apenas uma mente ou de uma pessoa. Elas funcionam como uma ferramenta de saúde pública por serem efetivas não quando uma ou outra pessoa se vacina, mas quando a maioria de uma população se vacina. Isto é o que chamamos de cobertura vacinal.

    A Desinformação e  as Vacinas

    As vacinas e as campanhas de vacinação não se fundamentam, apenas, no conhecimento técnico científico. Tampouco conseguimos convencer pessoas que estão amedrontadas sobre a segurança de seus filhos, pais idosos ou parentes em grupos de risco apenas afirmando que “é científico, nada de mal vai acontecer”.

    Estes movimentos de desinformação e fake news que implantam o medo são complexos e não se desenrolam apenas apresentando a informação verdadeira, cientificamente embasada.

    É fundamental fazermos isto que chamamos de “trabalho de formiguinha”. Isto é, conversar e propor diálogo, responder perguntas, apontar caminhos, artigos, argumentos e não perder a paciência. Há que se ter em mente que muitos conhecimentos técnicos são desconhecidos por grande parte da população. Não por que possuem uma linguagem difícil ou impossível de compreender-se, mas por ainda não fazerem parte cultura geral da nossa sociedade Eles acabam sendo pouco acessíveis na linguagem. Ou, ainda, pouco divulgado a um público diferente do público habituado ao discurso científico e acadêmico.

    Ainda sobre Desinformação

    A desinformação, em tempos de internet, segue lógicas de grande financiamento, criação de perfis falsos (os chamados bots) que servem para espalhar rapidamente um termo, tag ou tipos de publicações específicas, criando artificialmente “trending toppics”. Também conhecidos como Assuntos do Momento no Twitter.

    Este modelo de espalhar desinformação, de forma organizada e financiada, vem sendo combatida a partir da denúncia em massa de determinados perfis e da tentativa de rastrear de onde vem a informação primária – para eventualmente derrubar estes perfis e/ou publicações.

    Explicando assim, parece até simples de executar a tarefa.

    No entanto, há dificuldades em apagar publicações falaciosas, mentirosas ou com informações duvidosas e sem embasamento. Além disso, muitas vezes, derrubar estes perfis é um processo demorado, o que pode causar bastante estrago enquanto o tempo passa.

    O procedimento de inserir um comunicado de que a informação é contrária às indicações médicas e da OMS é um importante passo no combate à desinformação e algumas redes sociais têm começado a aderir a isto de forma mais comprometida.

    Há outros movimentos que buscam rastrear empresas que financiam propagandas em sites – e eventualmente sites que propagam desinformação. Assim, com estas denúncias, há empresas que têm retirado o financiamento em sites que espalham essas notícias falsas. O grupo mais famoso no Brasil é o Sleeping Giant, muito atuante no Twitter.

    O que queremos dizer com isto afinal?

    Que é urgente priorizar o que, neste momento, realmente importa: a população. As rusgas via mídias sociais e coletivas de imprensa acusando um ou outro setor, desmentindo, alardeando e promovendo discussões, mais do que informar e propor políticas rápidas e eficientes, que salvarão vidas, têm gerado palco de protagonismo que atrasam a política, geram insegurança na população e, de fato, pouco informam.

    Isto, de modo algum é despolitizar as vacinas. Fazer política pública é atuar pelo público. É preciso que as decisões sejam tomadas para o bem da população e não para promoção de pessoas e nomes que queiram, como costumamos dizer, capitalizar com este momento.

    Por fim

    Tendo em vista este trabalho de formiguinha, o Blogs de Ciência da Unicamp e outros GIGANTES que também são formiguinhas maravilhosas lançaram hoje o site Todos Pelas Vacinas. Uma ação que mostra que formiguinhas juntas, podem ter ações de impacto! Lá vocês encontram textos, vídeos, podcasts, artes, informações e uma parte de tudo o que temos batalhado, juntos, para um mundo cientificamente informado e empaticamente responsável!

    Blogs de Ciências da Unicamp, Observatório Covid-19, Rede Análise Covid-19, Equipe Halo (ONU), ABRASCO, Sociedade Brasileira de Imunologia, União Pró-Vacina, Instituto Questão de Ciência: Todos Pelas Vacinas

    Campanha Todos Pelas Vacinas (arte oficial da campanha)

    A ciência e a divulgação científica seguem batalhando para que as informações científicas e as produções da ciência (neste caso específico, as vacinas) sejam acessíveis à população, como direito humano básico. Compartilhe esta ideia! 😉

    Para saber mais

    Bisol J (2020) Politização da vacina é irresponsabilidade sanitária. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário 9(4): 192-197.

    Garcia, LP, Duarte, E (2020) Infodemia: excesso de quantidade em detrimento da qualidade das informações sobre a COVID-19, Epidemiologia e Serviços de Saúde Pública 29 (4), 

    Oliveira, T (2020) Como enfrentar a desinformação científica? Desafios sociais, políticos e jurídicos intensificados no contexto da pandemia, Liinc em Revista

    PROGRAMA RADIS DE COMUNICAÇÃO E SAÚDE (2020) Vacinas na corrida: da politização aos esforços da ciência, RADIS: Comunicação e Saúde, n218, p6-7, nov.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Fazer Divulgação Científica sobre pandemia em uma sociedade do espetáculo

    Em dias como os que temos vivido temos sempre uma enxurrada de informações, decorrentes da imensa expectativa que temos sobre os números de eficácia, segurança, incidência e vários e outros termos que nos chegam sem que consigamos parar para pensar e elaborar os dados com cautela.

    Claro que vocês todos – nós todos… – temos cobrado publicação de dados. Também é verdade que, diferente de qualquer outro momento experienciado por quem está vivo hoje, nunca tivemos tanto interesse em uma vacina. Simultaneamente a isso, nunca uma pandemia em um mundo em que as informações nos chegam em tamanha velocidade e quantidade.

    Toda essa expectativa, frente a este cenário, é perfeitamente compreensível. Há uma ansiedade imensa em termos os dados em mãos para dizermos:

    – temos a solução!
    – assim vai funcionar!
    – eis aqui a resposta final!

    Todavia, a ciência não funciona com respostas finais. Nem com resultados estanques. Para fazer ciência, para termos respostas, para analisarmos nossos dados: precisamos de tempo.

    Penso no que diria Guy Debord, escritor da obra Sociedade do Espetáculo (1967) e Comentários do Espetáculo (1988) ao ver como não apenas a mídia tradicional torna a realidade imagética – mas a partir das redes e mídias sociais, todos nós participamos disso de diferentes modos. Como assim? Ora, como atualmente vemos o tempo inteiro imagens de nós mesmos, dentro de aplicativos em que “produzimos conteúdos” para sermos consumidos, como produtos.

    Mas o que isto tem a ver com a pandemia e as vacinas?

    O processo de midiatização de nós mesmos já era crescente nas redes sociais. Ao iniciarmos uma vivência de isolamento social, para aqueles que têm acesso a esses recursos digitais, o uso das redes tornou-se muitas vezes não somente um momento de fuga para lazer, compartilhamento de memes e notícias, mas trabalho cotidiano e, também, único meio de comunicação constante.

    Neste cenário, temos um aumento de divulgadores científicos e jornalistas cada vez mais aparecendo em todas as mídias e redes, buscando produzir conteúdos diversificados para públicos diferentes. Estas ações em tempos de pandemia funcionam como uma forma de se comunicar com um público cada vez maior, numa tentativa de “furar bolhas” como costumamos falar.

    Em alguns momentos desta pandemia, a ideia dos excessos de informação se fez mais presente. A OMS, por exemplo, tem trabalhado com o termo de “infodemia”, que seria essa “pandemia de informações”. No sentido que vem sendo debatida, a infodemia não se vincula apenas a informações falsas. Ou seja, se relaciona a qualquer tipo de informação sobre a COVID-19 e sua enorme quantidade sendo publicada cotidianamente no mundo, sem que consigamos acompanhar, filtrar, ler/ver/ouvir, aprender, pensar…

    A questão, portanto, é o excesso. Mas também à dificuldade que temos de peneirar tudo isso, com a calma e acurácia necessária.

    Sociedade da Informação

    Não é recente também o debate sobre a sociedade da informação – esta que nos impossibilitaria a vivência de experiências. Por quê? Exatamente por estarmos sempre atrasados em relação à última notícia, leitura, livro, vídeo, live, stories, do momento. Larrosa diz que na sociedade da informação estamos sempre muito bem informados – mas não no sentido de termos sabedoria, mas de termos muitas informações sobre tudo. Mais do que isso, ao termos informações, temos também que expressar muitas opiniões o tempo inteiro. 

    (Que o diga quem tem Twitter e segue os “assuntos do momento”…)

    E por ter informação e, consequentemente, opinião, que o sujeito informado não consegue que nada lhe aconteça. Nada acontece ao sujeito informado e opinativo pois não há tempo para viver. É preciso consumir a próxima notificação, com mais informação, para novamente falarmos nossa próxima opinião.

    Parece uma grande obviedade, não é mesmo?

    Juntemos as ideias da sociedade da informação e da sociedade do espetáculo. Isto é, nossa sociedade precisa não só produzir constantemente informações, mas conteúdos e imagens (que serão consumidos por pessoas).

    E é assim que temos lidado diariamente com nossa comunicação – falamos de engajamento, seguidores, alcance de cada palavra, cada tag, cada foto, imagem e vídeo que obtivemos a cada publicação. Acompanhamos métricas, nos aprisionamos nos gráficos e consumimos a nós mesmos nesse processo.

    Na pandemia, portanto, não só nossa vida tornou-se isso tudo (ou só isso?). Mas tudo acaba sendo de alguma maneira disponibilizado ao vivo. Enquanto produzimos e reproduzimos em plataformas simultaneamente, escrevendo freneticamente.

    Comentamos, escutamos livres, conversamos, baixamos os últimos artigos, tentamos entender os cálculos, os modelos, os protocolos, as métricas, as imagens…

    Terça-feira, mais uma vez, a coletiva de imprensa para divulgar os dados da Coronavac, vacina que será produzida pelo Instituto Butantã, em convênio com a Sinovac, virou um grande espetáculo de dispersão e tensão.

    Expectativa? Imagine…

    Estamos super tranquilos. Sim! Estamos ansiosos e, óbvio, queremos muito ter dados que nos indiquem que a solução está logo ali, na etapa que virá.

    De modo algum este texto nega a urgência de minimizar os impactos da pandemia na sociedade.

    Todavia, o frenesi que novamente caímos (e nos incluímos nisso), causa também desencontro de informação, confusão e ajuda (SIM) no processo de desinformação.

    O conhecimento científico tem seu tempo para ser construído. Temos falado sobre isso desde o início da pandemia. O tempo da divulgação também precisa ser retomado. 

    Estava no texto manuscrito que “é preciso que respiremos”… Tendo em vista a situação noticiada hoje, sobre Manaus, eu diria que É PRECISO QUE TODOS NÓS CONSIGAMOS NOS UNIR PARA QUE TODOS RESPIREM!

    O conhecimento não se faz com furor e pelos excessos. Tampouco se faz de maneira solitária e com um ou outro ato de grande nome que salvará – ou condenará – a todos. Não estamos em uma ficção em que um herói (branco, hétero, pai de família) explode um avião, percorre o mundo, estanca um apocalipse zumbi e consegue retornar para os braços da família que o aguarda.

    A sociedade do espetáculo – que transforma nossa vida em uma narrativa ficcional, não se trata do consumo de informações e imagens dos outros, mas de nós mesmos. Nosso tempo de vida, nossa condição de diálogo, nosso tempo com nossos pensamentos e com uma análise mais calma e menos superficial de tudo o que tem acontecido.

    A vacina

    Sim. Ela foi anunciada. A vacina que temos e teremos em breve é a que, neste momento, é possível. Se a ciência tem seu tempo, fez – até o momento – a que teve condições de produzir.

    Nossa, então ela não é boa, nem confiável? Sério?

    Vamos lá: as vacinas que estão sendo produzidas e serão aplicadas em nosso país são eficazes, são seguras e diminuirão MUITO os efeitos que temos vivido nesta pandemia.

    Isso inclui lotação em UTIs e capitais SEM OXIGÊNIO nas alas hospitalares. Isso inclui diminuir pessoas morrendo em casa por falta de espaços em hospitais. Também se relaciona a uma quantidade menor de pessoas adoecendo. Isso, por fim, significa um tempo para retomar nosso país.

    É verdade que nunca se perguntou a eficácia e à segurança de vacinas antes, do modo como temos visto agora. Também é preciso admitir que nunca tínhamos vivido uma pandemia, cujo isolamento tornou a informação em tempo real tão acessível (na quantidade, na qualidade, na linguagem), mas tão inacessível (na quantidade, na qualidade, na linguagem).

    Aligeiramentos

    Se o jornalismo precisa de novidade, é importante lembrar que não em detrimento da análise embasada e da promoção do burburinho caótico. No entanto, se a divulgação ainda tem dúvidas, antes de dar respostas aos seguidores, precisa atentar-se ao tempo da análise dos dados.

    E, acima de tudo, embora humanos e todos erremos (muitas e muitas vezes – e façamos o mea culpa, sincero e fundamental), o diálogo ainda é a nossa ferramenta mais basal para construção coletiva e colaborativa, que vale a pena investir. 

    Assim, não é atropelando processos que conseguiremos estancar notícias falsas. Não é escrevendo sem fôlego que frearemos as ansiedades exacerbadas.

    Furor

    Após todo o espetáculo e comentários do espetáculo de terça-feira, as notícias de quarta, e o caos sem fôlego desta quinta – dias, cálculos e notícias nada triviais – precisamos sim de cobranças severas e direcionadas. Bem como precisamos nos atentar à ética das palavras, da divulgação, das notícias. Além disso, seguimos buscando a empatia das ideias, das defesas científicas, em cada cobrança de políticas públicas de nossos governantes.

    A espetacularização ocupa as telas e nos impõe estados de urgência. Urgência que já está sendo vivida por todos aqueles que estão expondo-se sem auxílios financeiros, aguardando testes diagnósticos (que apodrecem em estoques empoeirados). Ou, ainda, quando vemos mães que perdem empregos por não ter onde (ou com quem) deixar seus filhos.

    A vida inteira aconteceu quando pequenos donos de seus negócios batalham diariamente por decisões que levam ao endividamento ou à demissão de funcionários. Quando não são os dois acontecimentos simultaneamente.

    Enquanto isso,

    Nas lives com palavras de exaltação, entre flashes, dúvidas e palmas, as covas cotidianas e coletivas seguem sendo abertas, as UTIs sendo lotadas, oxigênio faltando (OXIGÊNIO FALTANDO), metrôs permanecem abarrotados, entre contas bancárias tão vazias.

    Dessa forma, tentamos entender os dados, analisá-los, debater com colegas. Neste meio tempo, vemos as fake news sendo propagadas, distorcendo nossos diálogos e análises – por pessoas que ocupam postos em veículos de comunicação tidos como mídia tradicional. E isto não pode deixar de ser mencionado!

    No meio de tudo isto, seguimos produzindo o espetáculo. Entretanto, seguimos não conseguindo respeitar o que prometemos defender: o tempo da ciência, do conhecimento, da divulgação científica para apresentar e analisar DADOS. E com estes dados, cobrar posturas políticas que (aí sim) minimizem os efeitos tão vorazes, desta pandemia.

    Não por um preciosismo extremo e sisudo. Mas por defendermos que é pelo acesso ao conhecimento científico e pelo diálogo estabelecido entre pessoas, sobre o conhecimento construído, que tomaremos decisões menos submissas, com menos opressão, obscurantismo e autoritarismo.

    Um dia de cada vez – mas sem esquecer que muitos dias nos esperam.

    Por fim,

    Este texto é um desabafo, teoricamente embasado. Mas ainda assim, um desabafo. E um abraço, longo e demorado, em cada colega da Divulgação e Jornalismo Científicos que tem arduamente trabalhado para analisar dados, artigos, documentos, buscando agir da maneira mais ética, empática e socialmente responsável quanto possível.

    E segue sendo um desabafo, para que tenhamos tempo, com responsabilidade e consigamos (juntos) ajudar a todos os que vem (literalmente) perdendo o fôlego e a vida no meio deste caos cotidiano.

    Para Saber Mais

    DEBORD, G (2000) Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.

    DEBORD, G (1997) A Sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro: Contraponto.

    LARROSA, Jorge (2002) Notas sobre a experiência e o saber da experiência, Revista Brasileira de Educação.

    MORAES, ALC (2016) Cultura da imagem e sociedade do espetáculo. São Paulo: UNI, 2016

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Vocês sabem o que é “Clickbait”?

    Este termo é usado em manchetes e títulos para atrair a atenção (e cliques!) a partir do sensacionalismo. Sensacionalismo este que pode, inclusive, ser aversivo a nós, na primeira leitura.

    Pode parecer bobo! Mas na verdade o clickbait é super eficiente – e aí reside o perigo! A divulgação científica e o jornalismo tem debatido este tema, sua necessidade (na verdade a falta de necessidade) e a ética desta prática.

    Afinal, mais do que só clicar, a ideia é compartilharem nosso conteúdo!

    Nós sabemos, também, que muitas vezes não há leitura do material completo. Assim, um título ou manchete impactante – mas não necessariamente vinculado à verdades ou fatos – pode gerar exatamente o efeito contrário do que gostaríamos!

    Além disso, também é importante mantermos manchetes e títulos que angariem mais e mais pessoas possibilitando aprofundamento e argumentação com nosso material – e não engajamento por raiva, choque e por termos ficados estupefatos…

    Lidar com divulgação científica e jornalismo científico é lidar com ética e direito às pessoas terem acesso à informação confiável. Ou seja, rebatendo atos de raiva e cliques com compartilhamentos sem leitura e compreensão dos conteúdos. E isto é um pressuposto básico e ético de uma comunicação empática e ética. Dessa forma, mais do que cliques e seguidores, debates sobre fatos, argumentação sobre pressupostos, compreensão social da ciência e seus princípios!

    Ser sensacionalista – por exemplo com manchetes de “efeitos colaterais da vacina”, “mutação do nosso DNA com as vacinas” ou (pior) o “uso de fetos abortados e vacinas” – mexe com o imaginário de pessoas. Assim, assustamos, mais do que conversamos. Geramos raiva e desafeto, mais do que informamos. Produzimos pânico, mais do que propomos compreensão.

    Assim, seguimos uma pergunta crucial sobre nosso papel na produção de conteúdos diários para todos vocês!

    Isso inclui uma postagem sobre o clickbait, em plena pandemia da covid-19 – que já gera medo o suficiente em nossa população! Não precisamos alardear mais e mais receio, sem qualquer fundamento.

    Há estudos científicos sobre clickbait e estes estudos indicam perda de credibilidade dos veículos. Lá no twitter vocês podem ver nos “assuntos do momento” o quanto veículos se aproveitam para gerar aversividade e raiva para o engajamento.

    Com base na ciência, apontamos que precisamos de mais cautela e ética, especialmente em tempos de crise!

    Por fim, vamos inserir uma série de referências sobre isto – exatamente para reforçar que não é “só uma clicada”, não é “só um compartilhamento”, não é “apenas uma piada que gera engajamento”.

    Compromisso com notícias, com ciência, com divulgação científica não é apenas falar de fatos – e usar ironia ou buscar engajamento não pode ser feito à revelia de ética e empatia!

    Há estudos que indicam, sim, que isso pode ter um impacto social e estimulem produção de fake news.

    Em tempos de crise sanitária, qualquer clickbait que gere medo em relação às vacinas é triste, pois em nome do engajamento e compartilhamento do conteúdo, estimulamos raiva, descrença e fake news!

    Vamos apoiar boas práticas na ciência e na divulgação científica? 

    Divulgadora queridíssima do nosso coração que falou sobre o clickbait e fake news do momento (brilhantemente):
    @mellziland

    Para saber mais:

    Clickbait na wiki

    Pedro, M (2019) O clickbait no ciberjornalismo português e brasileiro: o caso brasileiro

    Bolton, DM (2017) Fake news and clickbait–natural enemies ofevidence-based medicine.

    Bourgonie, P (2017) From Clickbait to Fake News Detection:An Approach based on Detecting the Stance of Headlines to Articles.

    Potthast M., (…) (2016_ Lecture Notes in Computer Science, vol 9626. Springer, Cham. https://doi.org/10.1007/978-3-319-30671-1_72

    Hurst, N (2016) To clickbait or not to clickbait? : an examination of clickbait headline effects on source credibility.

    P.S.: Esse post veio de leituras aterrorizadoras pela manhã? Sim! Mas também veio de uma conversa com o @Dslmoura. obrigada por instigar 🙂

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

plugins premium WordPress