Categoria: História e Sociedade

  • A política e as histórias em quadrinhos

    Texto por Dani Marino

     

    Sabemos que nenhuma manifestação humana é dissociada do contexto em que foi produzida. Das artes plásticas, passando pelo cinema, pela literatura e outras expressões como as histórias em quadrinhos, essas expressões representam não só a visão de um artista sobre algo, mas indicam também quais são as condições sociais, políticas, culturais que possibilitaram a existência de suas obras.

    Painel da HQ “Vingadores: A cruzada das crianças” Foto: Reprodução

    Crivella manda recolher HQ dos Vingadores com beijo gay; Bienal se recusa – Prefeito disse estar ‘protegendo os menores da nossa cidade’; advogada diz que decisão é ‘censura’

    Ao mesmo tempo, o apagamento sistêmico da produção de determinados grupos, hoje entendidos como minorizados (a saber: mulheres, negros, LGBTs…), causa ausências que também são melhor compreendidas quando conhecemos o contexto político e social de cada época e de cada cultura.

    Nos quadrinhos, a política sempre esteve presente.

    Às vezes de maneira mais explícita, reforçando certos discursos e às vezes de maneira menos explícita, contrariando os discursos hegemônicos vigentes. Esses discursos podem ser examinados a partir de diversos vieses e é nas áreas como História e Ciências Sociais que estas análises encontram terreno muito fértil.

    Por exemplo, um dos marcos do desenvolvimento dos quadrinhos é o personagem Yellow Kid, de Richard Outcault. O garoto careca e de orelhas grandes já havia aparecido em outras publicações antes de se tornar o primeiro personagem colorido dos jornais estadunidenses.

    Suas tiras exerciam grande apelo ao púbico por reproduzir um tipo de humor carregado de estereótipos e era facilmente compreendida por imigrantes que não compreendiam bem a língua inglesa. Ou seja, por mais inocente que possa parecer, há uma série de elementos que podem ser observados a respeito do momento que os Estados Unidos atravessavam (MOREAU; MACHADO, 2020).

    Os códigos de ética e censura nos quadrinhos

    Com o surgimento dos quadrinhos de super-heróis no final dos anos 1930, o sentimento de nacionalismo inflamado pelas histórias de personagens como Capitão-América, Mulher-Maravilha e tantos outros tomou conta do dos EUA e contribuiu ainda mais com o sucesso das histórias em quadrinhos que enfrentariam um duro golpe nos anos 1950, quando o Comics Code Authority (código de ética dos quadrinhos) foi implementado pelas editoras (MOREAU; MACHADO, 2020).

    Em sua forma original, o código impõe, entre outras, as seguintes regras:

    • Qualquer representação de violência excessiva e sexualidade é proibida.
    • As figuras de autoridade não devem ser ridicularizadas ou apresentadas com desrespeito.
    • O bem deve sempre triunfar sobre o mal.
    • Personagens tradicionais da literatura de terror (vampiros, lobisomens, ghouls e zumbis) são proibidos.
    • Anúncios de tabaco, álcool, armas, pôsteres e cartões — postais nus são proibidos nas histórias em quadrinhos.
    • Zombarias ou ataques contra qualquer grupo racial, ou religioso são proibidos.

    o Código Hays que se trata do Código de Produção de Cinema aplicava entre outras regras as abaixo.

    Não era permitido:

    • Profanidade — uso de palavras como “Deus”, “Senhor”, “Jesus” ou “Cristo” (a não ser no contexto de cerimônias religiosas), “inferno”, “droga” e outras palavras profanas e expressões vulgares de qualquer forma;
    • Nudez — de facto ou insinuada
    • Tráfico de drogas
    • Insinuação de perversões sexuais
    • Escravidão de brancos
    • Miscigenação — relações sexuais entre brancos e negros
    • Higiene sexual e doenças venéreas
    • Cenas de parto — de facto ou insinuada
    • Órgãos sexuais de crianças
    • Ridicularização do clero
    • Ofensa deliberada a qualquer nação, raça ou credo

    Esse código impunha autocensura aos autores de quadrinhos a partir de critérios que foram acordados por editores após uma série de audiências no senado, após os estudos fraudados do psiquiatra Fredric Wertham em seu livro Sedução do Inocente (1954) terem ganhado popularidade. Com isso, vários temas e representações passaram a ser proibidos de serem retratados nos quadrinhos. Esse período coincidiu com o backlash (retrocesso) que as mulheres sofreram após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando toda indústria cultural reproduzia valores e discursos que pregavam a submissão da mulher ao marido, entre outras coisas.

    Paralelamente, em outros países do mundo também se observava esse movimento de constante entrelaçamento dos quadrinhos e da política. Fosse na censura da antologia de quadrinhos produzidos por mulheres na França, como o que ocorreu com a revista Ah! Nana! (NOGUEIRA, 2015), fosse na representação cômica dos gauleses e romanos nos quadrinhos de Asterix, que sempre representou uma crítica ao imperialismo britânico ou mesmo em nas caricaturas que Nair de Teffé fazia de personalidades brasileiras na primeira metade do século XX.

    Ainda sobre os quadrinhos mainstream, podemos citar os X-Men, que surgiram nos anos 1960 como uma alegoria para a situação de negros, mulheres e LGBTs nos EUA e que cujas causas ganharam visibilidade com os movimentos sociais que clamavam por direitos iguais na época. Com a equipe mais diversa de super-heróis já criados atém então, suas histórias inspiraram filmes, jogos e animações que traziam em seus discursos questionamentos sobre o ódio a quem era diferente. Porém, foi no final dos anos 1960 e durante os anos 1970 que os quadrinhos independentes, muitos deles com narrativas autobiográficas, definiram o tom de um estilo de quadrinhos que é publicado até hoje.

    Nomes como Robert Crumb, Art Spielgeman, Justin Green, Trina Robbins, Aline Kominsky-Crumb e tantos outros, encontraram no meio underground a chance de abordar temas tabu como sexualidade, aborto, direitos civis… e, em 1992, com o reconhecimento da HQ Maus, de Art Spielgeman (1986), contemplada com o prêmio Pulitzer, pessoas do mundo todo conheceram a história biográfica que narrava os horrores do Holcausto.

    Sem dúvida alguma, é por meio das publicações independentes que os autores alcançam maior autonomia para abordar temas como guerras, conflitos políticos, sexualidade, luta por direitos, como é o caso também da premiada HQ Persépolis (2000), da iraniana Marjani Satrapi, que aborda a revolução islâmica, ou de Fun Home (2006), de Alison Bechdel e que fala sobre sua homossexualidade e seu relacionamento com sua família enquanto tenta lidar com seus conflitos internos.

    E no Brasil?

    Com o golpe militar no Brasil nos anos 1960, a imprensa alternativa atingiu seu auge e entre os veículos de maior expressão na época, estava o periódico Ovelha Negra, editado pelo cartunista Geandré.

    Sua relevância é tamanha que o pesquisador e professor Osvaldo da Silva Costa decidiu registrá-la em sua dissertação de Mestrado, onde entendemos porque o humor gráfico teve um papel tão importante na propagação de ideais de oposição à Ditadura, fazendo com que muitos artistas que contribuíram com o jornal fossem perseguidos pelos militares.

    Capa do jornal Ovelha Negra fundado pelo cartunista Geandré (Foto: Divulgação)  

    Nos anos 1970, desenhistas e jornalistas que colaboravam com edições como O Pasquim, entre eles Ziraldo e Henfil, foram presos e várias publicações passaram a sofrer censura. Esta censura resultou na proibição de publicação de caricaturas durante o período de dez anos:

    “A censura proibia a publicação de caricaturas de autoridades nacionais e estrangeiras. Havia a censura prévia, que consistia na presença de um censor junto às redações até 1977”. (DA COSTA, 2012, p.73).

    Laerte Coutinho, uma das mais influentes cartunistas brasileiras, colaborou com muitos dos periódicos alternativos que circularam no Brasil e ainda hoje, seja em suas tiras como Piratas do Tietê ou em cartuns e charges encomendadas especialmente para ilustrar colunas de política em jornais, seu trabalho continua irreverente e provocativo.

    O cartum abaixo é um exemplo do diálogo entre o humor gráfico e a crítica político-social. Reflexo de temas recentes como os 50 anos do Golpe Militar no Brasil e uma pesquisa feita pelo Instituto de Pesquisa econômica aplicada havia apontado que 65% das pessoas entrevistadas acreditavam que mulheres que usam roupas curtas devam ser atacadas/estupradas, o cartum chama a atenção para os dois fatos diferentes e promove uma reflexão sobre ambos.

    Apesar da vocação dos quadrinhos para o entretenimento, não podemos negar sua importância no que se refere à crítica social e política através da História de diversos países. Muitas delas desempenharam um papel significativo na articulação de ideias durante regimes ditatoriais em países como Brasil e Argentina. Hoje, embora o Brasil viva um regime democrático, problemas como corrupção, escândalos políticos, desigualdade social, falta de investimento em programas de saúde e educação são temas recorrentes em tiras e charges de todo país.

    Nem só de humor vive a crítica

    Sabemos que nem todos os cartuns e tiras utilizam humor em sua linguagem, porém, é através do riso que grande parte dos artistas cria uma conexão com seu público. Tendo isso em mente, vale lembrar que não faltam estudos filosóficos, psicológicos e antropológicos acerca do poder do riso e suas funções, entre as quais podemos ressaltar a de atuar como arma de contestação política, como afirma Da Costa em sua pesquisa:

    A linguagem do humor – arma política contra regimes repressivos – é também considerada subversiva e de contracultura – pode ser narrada por meio do teatro, da música, da literatura, da imprensa, do cinema e do desenho de humor. Tem como finalidade provocar o riso ou o sorriso. O risível nas piadas e paródias, como imitação burlesca, era um dos recursos mais populares entres os bufões na Antiguidade. Rir de si mesmo e do seu semelhante, seja em tom jocoso ou de escárnio, é um traço marcante da natureza humana desde os tempos mais remotos. (DA COSTA, 2012, p.18).

    O escritor e semiólogo Umberto Eco, conhecendo o poder inquietador do riso, dedicou uma das de suas maiores obras a ele. Em O nome da Rosa, thriller ambientando na França medieval, a luta dos monges beneditinos do mosteiro de Melk para proteger um manuscrito nunca publicado de Aristóteles acaba causando inúmeras mortes e deixando um rastro de sangue.

    De acordo com as convicções dos monges mais conservadores do romance, o riso seria algo muito próximo da morte e da corrupção do corpo, mas o filósofo grego, em seu livro que só existiu na ficção, alertava para o poder libertador do riso como um veículo da verdade.

    O riso desvia, por alguns instantes, o vilão do medo. Mas a lei impõe-se através do medo, cujo nome verdadeiro é temor de Deus. E deste livro poderia partir a centelha luciferina que transmitiria ao mundo inteiro um novo incêndio: e o riso designar-se-ia como a arte nova, ignorada até de Prometeu, para anular o medo. Ao vilão que ri naquele momento, não importa morrer: mas depois, cessada a sua licença, a liturgia impõe-lhe de novo, segundo o desígnio divino, o medo da morte. E deste livro poderia nascer a nova e destruidora aspiração a destruir a morte através da libertação do medo. E que seríamos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais provido e afetuoso dos dons divinos? (ECO,1980, p. 359)

    Sendo então o riso capaz de nos guiar no caminho de descobertas sobre verdades que talvez nossos governantes prefiram que não tomemos conhecimento, não é de se espantar que tantos cartunistas tenham sido ameaçados, torturados ou mortos durante regimes ditatoriais ocorridos na América Latina, como foi o caso do autor de El Eternauta. Héctor Germán Oesterheld foi sequestrado, assim como quatro de suas filhas, duas delas grávidas, durante o regime militar da Argentina.

    Porém, engana-se quem acredita que essa tendência à crítica política mais explícita possa ser encontrada exclusivamente em charges e cartuns. Quadrinhos mainstream como V de Vingança ou Watchmen, por exemplo, são produções que também viraram filmes e que fazem críticas explícitas ao autoritarismo e à corrupção por exemplo. E até mesmo nos quadrinhos de Batman, cujos quadrinhos nos anos 1930 traziam forte propaganda dos esforços de guerra, é possível pensar sobre como Bruce Wayne se beneficia do capitalismo e contribui para a degradação de Gotham, como alerta a pesquisadora e especialista no personagem, Laluña Machado.

    V de Vingança – Filme

    No entanto, é por meio das charges que um tipo de humor costuma chamar os leitores à reflexão de maneira mais contundente, o que tem gerado consequências envolvendo censura e perseguição de artistas desde a eleição do atual presidente do Brasil ou até mesmo morte, como o que ocorreu com os cartunistas do jornal francês Charlie Hebdo.

    Também não muito tempo atrás, que o projeto de quadrinhos Políticas, produzido por mulheres e dedicado a compartilhar charges e cartuns produzidos exclusivamente por mulheres (cis ou não) fez uma convocatória para homenagear a vereadora carioca Marielle Franco , brutalmente assassinada em 2018. Mais recentemente, a HQ da socióloga sueca Liv Stromqüist explorou a história da vulva a partir de inúmeras referências históricas, filosóficas e sociais em A Origem do Mundo (2018), enquanto artistas brasileiras como Carol Ito e Helô D’Ângelo exploram temas políticos em suas tiras online.

    Assim, não só artigos, como teses e dissertações sobre quadrinhos costumam explorar os aspectos políticos apresentados nas HQ e independentemente de os discursos políticos estarem explícitos, eles atravessam as obras em maior ou menor grau.

    Para saber mais:

    Podcast Confins do Universo com o professor Silvio Almeida: Tem política nos quadrinhos sim!

    Narrativas distópicas em quadrinhos

    Elas fazem política, cartuns e charges

    Referencias:

    DA COSTA, Osvaldo. Uma Ovelha Negra na Cultura Midiática: Inovações do Humor Gráfico na imprensa alternativa brasileira. Santos, Ateliê de Palavras. 2015.

    ECO, Umberto. O nome da Rosa. São Paulo. Record. 2009
    MARINO, Daniela; MACHADO, Laluña. Mulheres e Quadrinhos. Skript, 2019.
    MOREAU, Diego; MACHADO, Laluña. História em Quadrinhos EUA. Skript, Florianópolis, 2020.

    NOGUEIRA, Natania. Ah! Nanah! As mulheres e os quadrinhos na França. XXVIII Simpósio Nacional de História. Florianópolis, 2015. Disponível em: http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1435888872_ARQUIVO_AhNana_artigo.pdf

  • Vidas negras importam – Black lives matter

    Texto por José Felipe Teixeira da Silva Santos

    Após o homicídio de George Floyd, asfixiado em público pelo policial Derek Chauvin, no dia 25 de maio em Minneapolis nos Estados Unidos, uma onda de protestos violentos se desencadeou em todo o País. Os manifestantes protestam pedindo a condenação do policial por homicídio em 1° (quando o autor do crime tem a intenção de matar) e, mais do que isso, esses manifestantes clamam pelas vidas de pessoas negras que, constantemente, são alvo de uma política de extermínio racista.

    Já no Brasil, o recente homicídio do menino João Pedro, alvejado pela Polícia do Rio de Janeiro dentro de seu próprio lar, mostra novamente que em nosso país, o Estado segue uma política de extermínio da população negra, semelhante aos Estados Unidos. Isto quer dizer que não foi um caso isolado. Apontar que existe uma política de extermínio é afirmar que não foi o primeiro caso, não será o último e, mais do que isso, é prática rotineira e em muitas medidas legitimadas publicamente.

    Os números têm nome e cor

    Casos de pessoas negras que tiveram suas vidas interrompidas, como o de João Pedro, de Ágatha Félix, de Marielle Franco, mortos pelas mãos do Estado, permanecem sem resolução até hoje, compondo uma dolorosa e cruel estatística. A maior parte das justificativas compreende a Guerra às drogas e ao Tráfico, mas ao que fica evidente, esta guerra na verdade é declarada a somente uma parcela da população, a que possui cor e endereço bem determinados. Estas guerras acabam com balas perdidas que coincidentemente são sempre encontradas em corpos de comunidades de favelas ou de bairros de periferia, negros.

    Essas situações não são novidade, mas têm inflamado ainda mais o descontentamento dos cidadãos brasileiros com o panorama atual do país. Similar aos protestos em Minneapolis, aqui também houve protestos e chamados para sairmos às ruas, exigindo justiça pelas mortes e igualdade racial nas políticas públicas e na vida em sociedade. Desse modo, as ameaças pelo contágio da doença COVID-19 causada pelo novo coronavírus, parece não serem suficientes para conter uma população que morre por tantos outros motivos, incluindo um período de isolamento social. Tais atos apresentam, assim, o lado cruel de políticas, de vivências, de rotina em que a morte é um enfrentamento cotidiano – dentro ou fora de casa. 

    Nas redes sociais não é diferente, pessoas das mais diferentes posições e crenças criaram filtros para destacar o seu compromisso com uma luta antifascista, têm postado questionamentos assertivos, cobrando posicionamentos de celebridades, intelectuais e veículos de comunicação.

    Todos estes momentos e movimentos são fundamentais, pois tornam visíveis os problemas da sociedade. Exaltar a ideia de que “vidas negras importam”, tanto quanto o nome e as vidas que estão sofrendo, tornando-os símbolos não é apontar isoladamente um problema que aconteceu, nem deve ser tomado desta forma. É, sim, buscar empatia de quem não vivencia isto como cotidiano (a população branca, por exemplo), tornar evidente a questão como parte da vida de muitos brasileiros. A luta contra o racismo não deve, portanto, estar restrita aos momentos de solidariedade às vítimas. A luta e o engajamento devem ser diários, pois para as famílias de sangue retinto, muitas vezes esse momento já é tarde.

    A famosa a frase da escritora Angela Davis segue apontando para o quanto é preciso protestar contra a desigualdade racial: não basta não ser racista, é preciso ser anti racista. 

    Você não acredita ou ainda tem dúvida que pessoas negras e suas vidas são as principais vítimas de violência no Brasil? Abaixo seguem estatísticas que retratam parte desta realidade.

    Genocídio da juventude Negra no Brasil

    Homicídio de pessoas negras no Brasil

    O informativo de Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil mostra que a população negra tem 2,7 mais chance de ser morta do que a população branca.

    Segundo dados do Sistema de Informação de Mortalidade do SUS, de 2012 a 2017, foram registrados 255 mil mortes de pessoas negras por assassinato

    Segundo a analista de indicadores sociais do IBGE – na série de 2012 a 2017, houve aumento da taxa de homicídios por 100 mil habitantes da população preta e parda (categorias adotadas pelo IBGE), passando de 37,2 para 43,4. Enquanto para a população branca esse indicador se manteve constante no tempo, em torno de 16.

    Em 2017, para jovens brancos, de 15 a 29 anos, a taxa de mortalidade era de 34 em cada 100 mil habitantes. Para pessoas pretas, 98,5 mortes por assassinato a cada 100 mil habitantes; o recorte apenas para homens negros nessa mesma faixa etária, alcança a taxa de 185. No recorte para mulheres, a taxa é de 5,2 para brancas e 10,1 para pretas.

    Crianças negras mortas nos anos de 2019 e 2020 vítimas de bala perdida

    No Brasil, crianças negras são vítimas de balas perdidas, dentro ou fora de suas casas, no trajeto para escola ou onde quer que estejam. A seguir, lista de nomes de crianças negras que tiveram suas vidas interrompidas por esta causa nos anos de 2019 a 2020:

    João Pedro Matos Pinto, 14 anos. Preto. 19/05/2020.

    Luiz Antônio de Souza Ferreira da Silva, 14 anos. Preto. 06/02/2020.

    Anna Carolina de Souza Neves, 8 anos. Preta. 29/01/2020.

    João Vitor Moreira dos Santos, 14 anos. Preto. 09/01/2020.

    Ketellen Umbelino de Oliveira Gomes, 5 anos. Preta. 13/11/2019.

    Ágatha Vitória Sales Félix, 8 anos. Preta. 20/09/2019.

    Kauê Ribeiro dos Santos, 12 anos. Preto. 08/09/2019.

    Kauã Rosário, 11 anos. Preto. 16/05/2019.

    Kauan Peixoto, 12 anos. Preto. 17/03/2019.

    Jenifer Cilene Gomes, 12 anos. Preta. 14/02/2019.

    PM’s negros lideram as estatísticas de mortes em serviço

    Mesmo estando em menor número dentro da corporação (37% do efetivo policial), entre os anos de 2017 e 2018, 51,7% dos policiais mortos em serviço eram negros.

    #vidasnegrasimportam

    Vidas negras importam, seja aqui, seja nos Estados Unidos, seja em qualquer outro lugar do mundo. José Felipe Teixeira da Silva Santos (autor deste texto), em conjunto com toda a equipe do Blogs de Ciência da Unicamp, manifestamos com este documento nossa posição anti racista e antifascista, mais do que não apoiar, nos contrapomos à conivência a qualquer tipo de ação, ato ou política que se articule ao racismo e a antidemocracia, hoje e sempre.

    Para saber mais

    ARAUJO, Taís.. Como criar crianças doces num país ácido | Taís Araújo – TedxSaoPaulo, TEDx Talks. 14 de nov. de 2017. Acesso em 01 de jun. de 2020.

    CERQUEIRA, Daniel RC; MOURA, Rodrigo Leandro de. Vidas perdidas e racismo no Brasil. 2013. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    COELHO, Leonardo. João Pedro, 14 anos, morre durante ação policial no Rio, e família fica horas sem saber seu paradeiro. El País, 19 de mai. de 2020.. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    DIEB, Daniel. Anonymous volta à ativa contra Bolsonaro e Trump; conheça o grupo hacker. Tilt, 02 de jun. de 2020. Acesso em 02 de jun. de 2020.

    DUAS novas autópsias afirmam que George Floyd foi morto por asfixia. Portal G1, 01 de jul. de 2020. Acesso em: 01 de jul. de 2020.

    IBGE: População negra é principal vítima de homicídio no Brasil. Exame, 13 de nov. de 2019. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    IBGE. Tábua completa de mortalidade para o Brasil. Acesso em: 01 de jul. de 2020.

    MARREIRO, Flávia. Marielle Franco, vereadora do PSOL, é assassinada no centro do Rio após evento com ativistas negras. El País, São Paulo, 15 de mar. de 2018. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    MENINO de 14 anos morre atingido por bala perdida na Baixada Fluminense. O Globo, Rio de Janeiro, 08 de fev. de 2020. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    MORRE adolescente de 14 anos baleado em Vila Kosmos. Portal G1, 02 de fev. de 2020. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    NITAHARA, Akemi. Negros têm 2,7 mais chances de serem mortos do que brancos. Agência Brasil, Rio de Janeiro 13 de nov. de 2019. Acesso em: 01 de jul. de 2020.

    OLIVEIRA, Leonardo. Da fatalidade epidemiológica à ferramenta de extermínio: a gestão necropolítica da pandemia. Blogs de Ciência da Unicamp – Especial Covid-19. 2020.

    SANTOS, Guilherme; SOARES, Paulo Renato. Em 10 meses, Rio tem 6 crianças mortas por bala perdida e poucas respostas para as famílias. Portal G1, Rio de Janeiro, 13 de nov. de 2019. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    TABU, Quebrando o. O dia que Brooklyn Nine-Nine explicou em um minuto o privilégio branco, Quebrando o Tabu, 01 de jun. de 2020. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    José Felipe Teixeira da Silva Santos é estudante de Biologia da Unicamp, membro da equipe técnica, administrativa e científica do Blogs de Ciência da Unicamp.
    O texto tem apoio total e incondicional de toda a equipe técnica, administrativa e científica do Blogs de Ciência da Unicamp.

  • Arte e gastos públicos

    Texto por Lucas Miranda

    O que vem à sua mente quando você vê uma performance como essa da imagem? E o que vem à mente se eu te contar que ela teve um custo de 20 mil reais para a prefeitura da cidade de Juiz de Fora / MG? Um absurdo? Qualquer coisa menos arte? Um dinheiro que poderia estar sendo utilizado para cobrir buracos, melhorar os postos de saúde, melhorar a segurança pública? Uma “lacração”?

    Nesse texto, vamos conversar um pouco sobre gastos públicos com cultura e o que exatamente é arte.

    Este conteúdo foi originalmente produzido em vídeo, mas se preferir pode lê-lo logo depois do player!

    Cartaz chamando o público para a Semana de Arte Moderna de 1922. 

    100 anos da Semana de Arte Moderna de São Paulo

    No dia 13 de fevereiro de 2022, a famosa Semana de Arte Moderna de 1922 completa 100 anos. A Semana aconteceu no Teatro Municipal de São Paulo e foi um grande catalisador de mudanças importantes na linguagem artística brasileira. A partir desse marco, surge o chamado “modernismo” no Brasil, trazendo uma estética bastante diferente.

    Até aquele momento, prevalescia a expressão artística do academismo, baseada nas academias de arte europeias e instituída no país desde 1816, com a criação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios por D. João VI.

    A arte acadêmica tinha um caráter bastante moralista, muitas vezes recorrendo a cenários bíblicos ou à coragem nobre de soldados em guerras. A idealização das formas e dos corpos também era algo que se perseguia, evitando-se ao máximo o mundano, o cotidiano e o real. As obras academistas eram carregadas de técnias complexas, uso moderado de cor e de tinta e as superfícies eram perfeitamente lisas (sem que se pudessem perceber os traços do pincel).

    Com a intenção de promover uma renovação artística e social no Brasil, um grupo de artistas (revolucionários) que se apresentariam na grande e esperada Semana de Arte Moderna de 1922, resolveram apresentar obras que causavam drástico rompimento com a expressão artística vigente (o academismo). Dentre as várias apresentações de música, poesia, esposição de obras, as obras dos chamados “modernistas” eram muito mais mundanas, cotidianas, coloquiais, cômicas, irônicas e com temáticas bem brasileiras.

    É claro que isso desagradou uma parcela importante da população e gerou diversos ataques aos artistas e a esse movimento. Mesmo assim, essa semente plantada em 1922 levou a uma série de movimentos e mudanças estilísticas nos anos seguintes.

    Segundo a jornalista e historiadora Marcia Camargos, o maior legado da Semana de 1922 “foi no sentido de libertar as artes e a cultura das amarras do academicismo, do parnasianismo, dos padrões europeus, para dar inicio à construção de uma estética nacional”.

    Primeira Missa no Brasil (1861). Obra de caráter histórico do período academicista do artista Victor Meirelles
    Samba (1925). Obra modernista do artista Di Cavalcanti

    Ataques à arte

    Para homenagear o centenário da Semana de 1922, a Prefeitura de Juiz de Fora lançou o edital cultural “Pau Brasil” para apoiar 15 ações culturais e artísticas na cidade com o valor fixo de R$ 20.000,00.

    Dos projetos contemplados o 5º lugar foi uma intervenção cultural chamada PRAIA. De acordo com a diretora dessa intervenção,

    “A ideia é a gente ocupar o Parque Halfeld [um ponto de encontro importante da cidade] de uma maneira diferente do que acontece normalmente e estamos aqui para propor novos olhares, novas maneiras de estar, questionando protocolos sociais, preconceitos e se dando ao prazer de desfrutar esse momento”.

    A intervenção artística, que ocorreu no dia 05/02/2022, consistiu em um grupo de artistas sobre uma lona amarela simulando que estavam na praia (tomando sol, conversando, etc.). Parte da população de Juiz de Fora criticou fortemente essa intervenção, alegando que: 1) isso não é arte e 2) foi um dinheiro jogado fora e os 20 mil reais gastos pela prefeitura poderiam ser utilizados para, por exemplo, cobrir buracos no asfalto.

    As críticas foram tão intensas, que o setor de inteligência da Secretaria de Segurança Urbana recomendou a suspensão da segunda apresenação dessa intervenção, de modo a proteger a integridade física dos artistas.

    É assustador ver uma performance artística precisar ser cancelada por risco à integridade física dos artistas. Da mesma forma que a Semana de Arte Moderna de 1922 sofreu ataques duros, essa intervenção (que homenageou a Semana de 1922) e outras obras artísticas que provocam rompimento com a arte mais pura, mais moralista, também sofrem ataques até hoje. Isso mostra que nesses 100 anos ainda não aprendemos tanto assim com os artistas modernistas, embora a arte tenha se transformado muito.

    Dinheiro jogado fora?

    O projeto “PRAIA” recebeu R$ 20.000,00, como estava previsto no edital Pau Brasil, sendo que cerca de 5.000,00 ficaram retidos por imposto de renda. O dinheiro restante foi usado para remunerar: 1) uma oficina de criação de 1 mês de duração; 2) duas apresentações de 2h de duração com um grupo grande de artistas; 3) a produção de um vídeo de registro; e 4) uma oficina de avaliação aberta ao público. Ou seja, não foram 20 mil reais por uma performance.

    Para ser aprovado neste edital, o proponente deveria justificar a destinação de cada centavo gasto no projeto (e valores superfaturados ou gastos desnecessários poderiam fazer o projeto ser desclassificado) e após a sua execução todos os gastos deveriam ser comprovados. Ou seja, tudo é muito bem controlado e avaliado pela Comissão Municipal de Incentivo à Cultura (Comic), que é composta por membros do poder público e da sociedade civil (principalmente da classe artística).

    Existem outros fatores importantes também: o projeto precisa ter alguma acessibilidade (seja para surdos, cegos, pessoas com deficiência, etc.); precisa estar muito bem justificado quanto ao seu objetivo artístico (e isso é avaliado por artistas); e ainda precisa oferecer uma contrapartida social gratuita (isso quer dizer que quem ganha essa verba precisa de oferecer gratuitamente uma oficina, um curso, uma aula, etc. para a poppulação da cidade. Ou seja, há aí uma importante devolutiva à sociedade, cujo dinheiro foi investido nesse projeto.

    Por fim, vale dizer que seria impossível a prefeitura simplesmente pegar esse dinheiro e usar para cobrir buracos no asfalto, simplesmente porque é uma verba que já está destinada à pasta da cultura. Quando a prefeitura aprova a lei orçamentária de um ano, ela já estabelece quanto de verba vai para cada setor. Uma vez que o dinheiro foi para a cultura, lá ele fica, e quem vai administrá-lo é a secretaria responsável. Além disso, um investimento de 300 mil reais (que foi o orçamento do edital inteiro, que contemplou 15 projetos) pode até parecer um valor exorbitante, mas não é. Para uma cidade que tem um orçamento anual da ordem de 2 bilhões e 600 milhões, esse investimento é muito pequeno. A arte sempre recebeu, e recebe, muito pouco. E o pouco que ela recebe é sempre alvo de muitos ataques e questionamentos.

    Sobre o argumento de que isso é ou não arte, nem faz sentido entrar nessa discussão, uma vez que as pessoas que mais estão defendendo que esta intervenção não é arte não têm qualquer formação artística e, pelo visto, não são consumidoras de algumas lingagens artísticas, como a arte performática. Muitas das críticas também se originam de um pensamento mais moralista e conservador e traz uma bagagem ideológica que dificulta o indivíduo a se abrir a expressões artísiticas que rompem com esse conservadorismo.

    No fim, a melhor prova de que trata-se de uma obra de arte singela e potente é que ela cumpriu um papel importante de provocar, tocar em feridas da sociedade e efervescer discussões.


  • Esquerda e direita: quem é mais feliz? E por quê?

    (Capa: à esquerda, foto por Caco Argemi CPERS/Sindicato, usada sob CC BY 2.0; à direita, foto por Larrion Nascimento)

    Texto por Davi Carvalho

     

    Ao ler o título deste texto, seja você de esquerda ou de direita, é possível que tenha elaborado mentalmente uma resposta às perguntas ali levantadas e, então, iniciou a leitura em busca de possível confirmação de sua hipótese. Aí vai uma resposta curta: conservadores são mais felizes do que as pessoas de esquerda. Essa afirmação confirma ou não o que pressupunha? Seja como for, entender – de um ponto de vista científico – a extensão e o porquê dessa diferença pode mudar sua visão sobre o quão feliz você pode ser. 

     O que diz a ciência?

    A grande maioria das pesquisas indicam que conservadores são realmente mais felizes, na média, do que as pessoas mais à esquerda no espectro político-ideológico. Um estudo do Pew Research Center (PRC), nos EUA, apontou que 45% das pessoas de direita (republicanos) contra apenas 30% das de esquerda (democratas) consideram-se “muito felizes”. [1]  Apesar de esses dados serem de uma pesquisa com mais de uma década, o aspecto mais interessante dos levantamentos feitos pelo PRC é a constância nos resultados sobre felicidade: desde 1972, os conservadores consistentemente aparecem como mais felizes do que os progressistas. 

    Esquerda e direita: quem é mais feliz?
    Afinal, quem é mais feliz? (Fonte: Pixabay)

    Outro estudo, de 2014, feito por pesquisadores da Universidade de Nova Jersey, EUA, apoiado em uma gigantesca base de dados (mais de 1 milhão de indivíduos oriundos de 16 países europeus), também apontou que as pessoas de direita são mais felizes do que as de esquerda [2].  Por fim, em um terceiro estudo, envolvendo 15 países europeus, além dos EUA, pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia e da Universidade de Utah descobriram que conservadores veem maior significado na vida do que progressistas [3]. Um ponto curioso dessa pesquisa é que, entre as pessoas de direita, aquelas mais conservadoras nos costumes (contra o casamento gay e o aborto, por exemplo) foram as que mais acentuadamente reportaram ver a vida com grande significado. 

    Tais pesquisas levantam uma questão ainda mais importante: afinal, por que as pessoas de direita são mais felizes? A literatura científica a respeito do assunto aponta três grupos de fatores que influenciam nisso:  1) aspectos demográficos – tais como casamento e religiosidade; 2) diferenças ideológicas ou comportamentais – como o grau de crença na meritocracia; 3) e, por fim, até mesmo a ideologia predominante do governo do país em que essas pessoas vivem. Quanto a este último fator, principalmente se não está contente com o governo atual de seu país, dificilmente você duvidaria do impacto disso em sua felicidade, não é mesmo? Vejamos, então, o que a ciência diz sobre a relevância de cada um desses fatores para o nosso bem-estar. 

    1)  Fatores demográficos:

    As pessoas de orientação política de direita casam-se mais [4], têm mais filhos [5] e são mais religiosas [6], quando comparadas às de esquerda. Ocorre que esses fatores todos se relacionam com a felicidade. Um estudo dos sociólogos Steven Stack and Ross Eshleman, da Wayne State University, encontrou que, em 16 de 17 países industrializados pesquisados, o casamento estava positivamente associado a um maior grau de felicidade [7]. E os conservadores não só se casam mais como, em comparação com esquerdistas casados, há maior probabilidade de se afirmarem “muito felizes” no casamento [8]. 

    Uma família feliz. Quais seriam as causas? [Fonte: Pixabay]

    Quanto à crença religiosa, segundo o célebre psicólogo social Jonathan Haidt, pessoas que comungam da mesma fé costumam compor comunidades de apoio social mútuo, o que as torna menos isoladas [9]. Além disso, sistemas religiosos oferecem explicações sobre algumas das questões mais profundas que afligem os seres humanos, como sobre a finitude e o que ocorre após a morte [10]. A crença em tais narrativas pode aplacar a angústia existencial, o que tem o potencial de proporcionar maior nível de felicidade aos religiosos.

    Quando tais fatores demográficos são considerados em conjunto, a diferença dos níveis de felicidade entre pessoas de ideologias políticas opostas pode ser muito expressiva. Segundo o cientista social Arthur Brooks, da Universidade de Harvard, 52% dos conservadores casados, religiosos e com filhos se afirmam muito felizes, contra apenas 14% das pessoas de esquerda solteiras, sem religião e sem filhos [11]. Esses fatores, porém, não explicam tudo. As próprias características ideológicas dos indivíduos também contam (e muito).

     2) Características ideológicas e comportamentais:

    Segundo pesquisas do proeminente psicólogo social John Jost, da Universidade de Nova York, o conservadorismo político é uma ideologia que justifica o sistema social, isto é, seus portadores endossam e defendem o status quo, a realidade social, política e econômica como ela é [12]. Conservadores, além de aceitarem as desigualdades sociais, também as enxergam como causadas por mecanismos que consideram justos e legítimos. Assim, Jost argumenta que essa ideologia política acaba tendo uma função paliativa, ou seja, como pessoas de direita tendem a justificar a realidade social, é menor a possibilidade de  sofrerem em relação aos problemas sociais, como a desigualdade, o que as tornaria mais felizes do que as de esquerda [13].

    Para testar essa hipótese, John Jost e a psicóloga social Jaime Napier realizaram três estudos baseados em surveys [14]. Como resultado desses estudos, amparados em dados de dez países, encontraram que, em comparação com pessoas de esquerda, o maior bem-estar subjetivo de conservadores está de fato relacionado à sua capacidade de racionalizar a desigualdade. Por “racionalização”, conceito bastante conhecido na psicologia social, entenda-se que as pessoas criam narrativas e explicações próprias para as coisas – explicações essas frequentemente bem distantes da realidade – para que se sintam confortáveis com suas crenças e formas de ver o mundo. Um exemplo disso pode ser observado quando uma pessoa conservadora considera que a pobreza seja resultado de apatia, de uma suposta indolência das pessoas: se são pobres, é porque não se esforçaram o suficiente. Eis aí uma típica e clara racionalização de um fenômeno social complexo.

    Não à toa, com base nos estudos mencionados, Napier afirma que a crença na meritocracia – a ideia segundo a qual o trabalho duro leva necessariamente ao sucesso na vida – é o principal fator para se predizer quem é mais feliz. Quanto mais se crê na meritocracia, mais feliz é o indivíduo. E os conservadores são os maiores defensores dessa crença.

    Esquerda e direita – nível de bem-estar em queda

    Em um dos três estudos referidos, Jost e Napier encontraram também que o nível de bem-estar subjetivo geral diminuiu significativamente, nos EUA, entre as décadas de 1970 e 2000. E essa queda geral da felicidade acompanhou um aumento expressivo da desigualdade naquele país. Curiosamente, ao mesmo tempo que a felicidade da população como um todo declinou ao longo do período relatado, aumentou a diferença do nível de felicidade entre os lados ideológicos: as pessoas de direita também foram afetadas e tiveram queda no nível de felicidade, mas em proporção bem menor do que as de esquerda. Observe o gráfico:  

    (Relação entre orientação política e felicidade declarada como função do índice de Gini – 1974 a 2004 – Extraído de JOST & NAPIER, 2008)

    Jost e Napier supõem que isso ocorra porque os conservadores possuem, em sua visão de mundo, um “amortecedor” ideológico contra os efeitos deletérios da desigualdade econômica no bem-estar das pessoas. Assim, conforme a desigualdade cresce, isso afeta negativamente a todos, mas atinge mais acentuadamente a esquerda, que, em vez de justificar a realidade social e suas mazelas sociais, a elas se opõe. 

    Contudo, tais características ideológicas das pessoas aparentemente também não explicam, por si só, sua diferença nos níveis de felicidade. O contexto político e social em que vivem também pesa nessa equação.

    3) Diferenças no tipo de governo

    Para cada minuto que você sente raiva, perde sessenta segundos de felicidade. – Ralph Waldo Emerson

    Se, por acaso, você se opõe firmemente ao governo atual de seu país, suas chances de ser bastante feliz diminuem. Difícil discordar dessa afirmação, não acha? Se os valores que permeiam os governantes no poder são opostos aos seus, isso tem grande potencial para reduzir seu bem-estar.  É nesse sentido que apontam alguns estudos.

    Em um extenso estudo que envolveu 98 países (incluindo o Brasil), economistas da Universidade de Heidelberg, Alemanha, investigaram a relação entre felicidade individual e ideologia de um governo. Esta última foi aferida a partir da orientação político-ideológica do chefe do Executivo, no caso de sistemas presidencialistas, e a partir da ideologia do maior partido no governo, nos países de regimes parlamentaristas. Como resultado geral da pesquisa, encontraram que as pessoas de direita são, de fato, mais felizes em média; já as pessoas de esquerda têm maior probabilidade de se declararem satisfeitas com a vida quando vivem sob governos de esquerda [15]. 

    Esquerda e direita
    A ideologia política do governo de onde vivemos também impacta nossa felicidade

    Em outro estudo bastante extenso, similar ao dos economistas alemães, psicólogas sociais da Universidade de Colônia também analisaram a questão. Com base em dados extraídos ao longo de 40 anos, de mais de 270 mil indivíduos, oriundos de 92 países (Brasil incluído), as pesquisadoras questionaram a universalidade da diferença de níveis de felicidade entre esquerda e direita. Segundo elas, seus dados mostram que, em comparação com progressistas, conservadores se declaravam mais felizes e mais satisfeitos com suas vidas à medida que a ideologia política conservadora prevalecia no contexto sociocultural do país em que viviam. Nesse estudo, as pessoas de direita se afirmaram mais felizes em 65% dos países e épocas analisados. Em parte das análises, não houve diferença significativa entre os lados ideológicos. Por fim, as pessoas de esquerda se afirmaram mais felizes em 5 dos 92 países estudados [16].

    E a sua felicidade e bem-estar? Como andam?

    E a felicidade, ainda que tardia, deve ser conquistada. – Sérgio Vaz

    Fato já bem documentado na literatura científica, o grau de felicidade que sentimos se relaciona com a nossa orientação político-ideológica. Ocorre que essa última é provavelmente imutável por vontade própria. Em verdade, as pessoas que têm lado definido no espectro ideológico costumam mesmo exibir até certo orgulho de sua posição. É possível, porém, dar sua contribuição para que seu entorno mude a favor de sua visão de mundo. Em regimes democráticos, isso não só é possível, como também é absolutamente legítimo.

    A luta política pode ser travada de mil maneiras na democracia. Quando você participa de manifestações democráticas de rua ou compartilha um post de cunho político e se posiciona, discutindo e debatendo temas, está influenciando as pessoas ao seu redor em algum grau. Sua meta maior pode mesmo ser a de dar sua contribuição para eleger um governo alinhado com seus valores. Nada mais legítimo. Afinal, sua felicidade e bem-estar podem disso depender. 

    Referências

    1. (2016) Are We Happy Yet? – Pew Research Center. Acesso em: 10 Out. 2021.

    2. Okulicz-Kozaryn, A., Holmes IV, O., & Avery, D. R.  (2014).  The Subjective well-being political paradox:  Happy welfare states and unhappy liberals.  Journal of Applied Psychology, 99(6), 1300-1308.

    3. Newman, D. B., Schwarz, N., Graham, J., & Stone, A. A. (2019). Conservatives report greater meaning in life than liberals. Social Psychological and Personality Science, 10(4), 494-503

    4. Wilcox, W. Bradford. & Wang, Wendy. (2019) Conservatives: Happier at Home, Worried for the Nation. Institute for Family Studies – IFS. Acesso em: 11 Out. 2021. {link}

    5. Stone, Lyman. (2020) The Conservative Fertility Advantage. Institute for Family Studies – IFS. Acesso em: 11 Out. 2021. {link}

    6. (2014) Religious Landscape Study – Religious composition of conservatives, Pew Research Center. Acesso em: 15 Out. 2021. {link}

    7. Stack, Steven. & Eshleman, Ross (1998) Marital Status and Happiness: A 17-Nation Study. Journal of Marriage and the Family, 60, 527-536.

    8.  Wilcox, W. Bradford & Wolfinger, Nicholas H. (2015) Red Families vs. Blue Families: Which Are Happier? Institute for Family Studies – IFS. Acesso em 17 Out. 2021. {link}

    9. Haidt, J. (2006). The happiness hypothesis. New York: Basic Books.

    10. Myers, David G. 2000. The Funds, Friends, and Faith of Happy People. American Psychologist 55:56–67.

    11. Brooks, Arthur C. (2012) Why Conservatives Are Happier Than Liberals. The New York Times. Acesso em 17 Out. 2021. {link

    12. Jost, J.T., Nosek, B.A., & Gosling, S.D. (2008). Ideology: Its resurgence in social, personality, and political psychology. Perspectives on Psychological Science, 3, 126–136.

    13. Jost, J.T., & Hunyady, O. (2002). The psychology of system justification and the palliative function of ideology. European Review of Social Psychology, 13, 111–153.

    14. Napier, Jaime L.  & Jost, John T. ( 20008) Why Are Conservatives Happier than Liberals? Psychological Science – Vol. 19, No. 6, 565-572

    15. Dreher, Axel & Öhler, Hannes. (2011) Does government ideology affect personal happiness? A test. Economic Letters. (2):161–5. 

    16. Stavrova, Olga. & Luhmann, Maike. (2016) Are conservatives happier than liberals? Not always and not everywhere. Journal of Research in Personality. 63:29–35. 

     

    Agradecimentos

    Este texto contou com a sempre excelente revisão de Caroline Frere e Eduardo J. V., aos quais sou muito grato. Sem a decisiva contribuição do amigo Daniel Nunes, que trouxe referências, ideias e insights, o texto também não seria o mesmo. Gracias!

     

  • O Spoiler como discurso

     Texto por Erica Mariosa Carneiro

    Sobre as estratégias de marketing na Divulgação Científica – Spoiler e seu uso político

    “Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?” (FOUCAULT, 1996 p.08)

    Durante o trabalho de divulgação científica sobre a COVID-19 que realizamos no Blogs de Ciência da Unicamp, por diversos momentos, me peguei refletindo sobre essas mesmas duas perguntas que Foucault faz no início de A Ordem do Discurso

    É claro que lá em 1970, época em que essa pergunta foi refletida por Foucault, a internet ainda era um projeto de conhecimento de pouquíssimos cientistas e a ideia de um mundo conectado a discursos eternizados em redes sociais não fazia parte desta discussão. Contudo, ao ler Foucault não pude deixar de relacionar esses dizeres a este momento em que lidamos com discursos ditos de forma estratégica, travestidas de acidentais e com o objetivo claro de confundir e invisibilizar toda uma população.

    Spoiler como Discurso

    “Foucault (2012) afirma que o discurso não é uma cópia exata da realidade, mas uma representação culturalmente construída, visto que o poder circula pela sociedade. A partir da desconstrução histórica de sistemas ou regimes formadores de opinião, pode-se analisar o significado e alcance de um discurso, verificando o porquê certas categorias, linhas de pensamento e argumentos tomam um caráter mais verdadeiro do que outros. Frente a este cenário, o próprio discurso acaba posicionando o sujeito, definindo seu papel diante da prática discursiva.” (DE MELLO e VALENTIM, 2021 p. 35)

    Muito antes da internet, o ato de revelar pequenas partes de uma história para atrair a atenção do público já era um recurso muito usado pelo marketing. Essas estratégias têm como objetivo aguçar a curiosidade de seu público, provocando ações que garantam o sucesso da obra (quando digo “obra” leia-se qualquer produção ou produto ou pessoa ou ideia que pretende-se divulgar), como o aumento de compras de ingresso para o lançamento de um filme, por exemplo.

    As estratégias de escape (como aprendi na minha graduação) ou como é mais conhecida hoje em dia a “estratégia de spoilerconsiste em vazar uma informação importante e reveladora de forma proposital mas com aparência de acidente à veículos de comunicação, seu objetivo principal é conseguir mais espaço na mídia do que o inicialmente contratado e, por consequência, mais visibilidade. 

    Através de uma pequena frase que “escapa” em uma entrevista, uma imagem ou frase que dá margem a especulação, o envio de um produto antes do lançamento ou até uma informação falsa já é possível conseguir a atenção da imprensa, dos veículos de comunicação especializados e de sua base de fãs.

    O exemplo Marvel

    É claro que a Marvel não foi a primeira empresa a apostar na estratégia de Spoiler como forma de divulgar seus produtos, e quando digo produtos não resumo isto aos seus filmes, mas toda a franquia Marvel, como quadrinhos, camisetas, parque de diversões, personagens e até ideias.

    É possível identificar este planejamento desde a sua fase 1 ao adotar cenas pós-créditos (isso mesmo, no plural) que antecipam informações e provoca no espectador o desejo de continuar acompanhando a história independente do custo ou tempo que isso gere. Mas não só o aumento de cenas pós créditos, a Marvel mantém toda uma maquinaria de incentivo massivo de teorias.

    Teorias, na cultura pop, se trata de produções de materiais por fãs que antecipam, apresentam fatos e discutem possíveis futuros para suas franquias favoritas. Essas produções giram em torno de textos, vídeos e comentários, mas também podem ser vistos em memes, artes, Fanfics e até filmes completos.

    E como isso funciona na prática?

    Com o incentivo financeiro que as redes sociais proporcionam aos seus usuários em troca de visibilidade (curtidas, compartilhamentos, etc) a estratégia de escape ou spoiler ganha uma nova camada, os comentários.

    Segundo (FOUCAULT, 1996 p.25) 

    “o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro. Deve, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual não escapa nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito.”

    Assim, além do aumento de tempo na cobertura da obra, a Marvel viu no comentário um upgrade na estratégia original: a de prever a satisfação do público. Basta entregar o spoiler a um grupo de influenciadores, e monitorar os comentários do público para prever se é necessário alterações no conteúdo da obra ou na estratégia escolhida para divulgação de suas produções.

    Ou seja, a estratégia de spoiler contribui não só para o retorno em visibilidade para as produções da Marvel ela também possibilita a economia em dinheiro ao oportunizar correções estratégicas a partir da reação da sua base de fãs.

    “O comentário conjura o acaso do discurso fazendo – lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado. A multiplicidade aberta, o acaso são transferidos, pelo princípio do comentário, daquilo que arriscaria de ser dito, para o número, a forma, a máscara, a circunstância da repetição. O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 1996 p.25 e 26) 

    Sendo assim, todas as escolhas da Marvel tem como objetivo a geração de comentários e a geração de conteúdos novos, as teorias. Desde, a escolha do elenco, do cenário, do comportamento do atores nas entrevistas e nas redes sociais, até a negociação com outras empresas detentora de direitos autorais, são apresentadas a imprensa, influenciadores e fãs como escape, descuido, verdade que não deveria ter sido revelada ainda.

    Assim a imprensa, influenciadores e sua base de fãs foram se acostumando a buscarem nas produções da Marvel qualquer vislumbre de uma nova informação e a partir disso gerar novos conteúdos. E apesar desses profissionais estarem cientes das estratégias utilizadas pela Marvel, ainda sim, continuam gerando conteúdo a partir do ideal de “aproveitamento” da visibilidade da Marvel para o crescimento de suas próprias plataformas digitais. (Falo mais sobre isso no O Influencer como Corpo Dócil). 

    Já para a Marvel a estratégia de spoiler serve não só para movimentar milhões de conteúdos novos e, por consequência, milhões de dólares para a empresa em vendas de seus produtos, só para se ter uma ideia em valores, em 2019 esta empresa já valia US$ 18 bilhões de dólares. Mas também para manter sua base de fãs em constante crescimento, atuante, pagante e fidelizado. Se considerarmos apenas as produções cinematográficas o uso dessa estratégia é um sucesso a 13 anos. Para saber mais sobre a história do Universo Marvel).

    Você se lembra quando – oh. Você pode não ter estado lá naquele dia.

    Oh eu não posso falar sobre isso.
    Seguindo em frente, em frente! Meu sentido de aranha estava indo, O que —- é você!

    Fonte da imagens

    Qualquer semelhança não é mera coincidência – Spoilers que testam enunciados e sua função política

    “O enunciado é, pois, concebido por Foucault como função enunciativa que define textos como acontecimentos discursivos produzidos por um sujeito, em um lugar institucional, determinado por regras sócio-históricas que definem e possibilitam a emergência dos discursos na sociedade”. (SOUSA e CUTRIM, 2016 p. 49)

    Foi em 19 abril de 2016 durante a votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff que notei, pela primeira vez, a estratégia do spoiler sendo usada como função política. 

    “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”. 

    A fala do então deputado Jair Bolsonaro e hoje presidente do Brasil exaltava o coronel Brilhante Ustra, o primeiro militar reconhecido pela Justiça brasileira como torturador durante o regime militar (1970 e 1974). Sob o comando de Ustra ao menos 50 pessoas foram assassinadas ou desapareceram e outras 500 foram torturadas, segundo a Comissão Nacional da Verdade.

    Ao pronunciar o nome de um conhecido torturador ao vivo e em rede nacional era possível vislumbrar a estratégia de escape sendo aplicada, ao monitorar a reação pública sobre sua fala em um momento tão perturbador para o país, percebeu-se até que ponto a população brasileira (através das redes sociais) e a imprensa era sensível às questões comuns à extrema direita que apoiou massivamente o regime militar e posteriormente a candidatura de Jair Bolsonaro a presidente em 2018. Consequentemente, essa estratégia tornou-se um poderoso instrumento durante seu mandato como presidente da república.

    Conforme a pandemia da Covid-19 avançava a estratégia de escape tornou-se tão comum que o próprio presidente a anuncia:

    “Olha a matéria para a imprensa amanhã, vou dar matéria para vocês aqui. Acabei de conversar com um tal de Queiroga, não sei se vocês sabem quem é. Nosso ministro da Saúde. Ele vai ultimar um parecer visando a desobrigar o uso de máscara por parte daqueles que estejam vacinados ou que já foram contaminados para tirar este símbolo que, obviamente, tem a sua utilidade para quem está infectado”.

    Fala foi proferida pelo presidente durante um evento oficial do governo federal em 10/06/2021

    Falo mais sobre isso no Comunicação comandada e a exaustão de quem debate 

    Através de falas que vão contra a prevenção da contaminação da Covid-19, o presidente testa seu discurso junto aos seus apoiadores, monitorando seu prestígio e aceitação, ao mesmo tempo que provoca a reação exacerbada da imprensa e influenciadores contrários ao seu governo.

    A cada  “Está superdimensionado o poder destruidor desse vírus”, “Para 90% da população, isso vai ser uma gripezinha ou nada”, “Se você virar um jacaré, é problema seu.” que o presidente vaza na mídia, uma avalanche de postagens, reportagens, entradas ao vivo, tweets são feitos na intenção de desfazer os desentendimentos (leia-se infectados e mortes) que estas falas causam.

    Imagem – Publicação do jornal Estado de Minas que destaca a reação do presidente diante do número de vítimas do novo coronavírus no Brasil esteve entre os assuntos mais comentados do Twitter no Brasil – 29/04/2020

    “O presidente da república nos deu uma aula sobre como a comunicação, ao longo de toda a sua gestão, vem sendo absolutamente eficiente e tem pautado uma corrida desesperada de cientistas, jornalistas e divulgadores da ciência em redes sociais e veículos de comunicação.” (ARNT e CARNEIRO, 2021 p.01)

    Assim como prevê a estratégia de spoiler as falas do presidente não são levianas, mas pensadas estrategicamente para serem ditas em momentos e para veículos de comunicação que possam reverberara-las de forma exaustiva e para além dos “furos de reportagem” as falas contam com o funcionamento das redes sociais que premiam a visibilidade de influenciadores.

    Através de infinitos comentários, a internet garante que o discurso chegue a mais e mais pessoas, e por consequência, garanta que a obra esteja sempre em evidência. Resta saber até quando os influenciadores e a imprensa continuará dando palco para esse tipo de estratégia.

    Referências

    ARNT , Ana de Medeiros; CARNEIRO, Erica Mariosa Moreira. Comunicação comandada e a exaustão de quem debate. 1. ed. Campinas-SP, 11 jun. 2021. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/covid-19/comunicacao-comandada/. Acesso em: 4 set. 2021.

    FOUCAULT, Michel. Ordem do discurso (A). Edições Loyola, 1996.

    DE MELLO, Mariana Rodrigues Gomes; VALENTIM, Marta Lígia Pomim. Análise do discurso. Logeion: Filosofia da Informação, v. 7, n. 2, p. 35, 2021.

    SOUSA, Claudemir; CUTRIM, Ilza Galvão. Práticas discursivas e função enunciativa na constituição do sujeito quilombola. MOARA–Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras ISSN: 0104-0944, v. 2, n. 40, p. 49, 2016.

  • Centrão ou arenão?

    Texto por Luã Leal

    Ele era, no início da carreira, apenas uma celebridade da TV que fazia uma parte da população rir. Antes de virar presidente, praticava o mesmo ofício de grande parte de sua família. Quando entrou na política, com discurso em prol da moralização, ele alinhavou seu programa de governo com discursos sobre fé e combate à corrupção. Candidato declaradamente cristão, se consagrou na eleição por um pequeno e novo partido de proposições nacionalistas e conservadoras. Grande parte de seus colegas de partido eram militares reformados. Conseguiu se eleger por pregar a moralização da vida política no país, mais uma república latino-americana exausta da “velha política”. Foi o mais votado no primeiro turno e derrotou um partido de inspiração social-democrata no segundo. Naquela conjuntura da votação para presidente, o seu país registrava inúmeras denúncias de corrupção, as quais atingiram inclusive o processo eleitoral, e era conhecido internacionalmente pela elevada taxa de homicídio intencional. Durante o século XX, a história dessa república teve várias rupturas com a ordem democrática, sucessivos golpes, ascensão de presidentes militares e alto grau violação de direitos civis. Representando a “nova política”, Jimmy Morales venceu a eleição presidencial na Guatemala em 2015.

    Durante a campanha, a primeira pergunta da peça publicitária – “por que estou na política?” – dá título ao vídeo e explica ao eleitorado porque o artista famoso na televisão se arriscou para concorrer ao cargo de presidente. Ao final da propaganda, o candidato nacionalista pergunta ao público: “quer uma Guatemala diferente?”. O então humorista e secretário-geral do partido Frente de Convergencia Nacional (FCN) tinha como mote parar com as pilhérias dos guatemaltecos acerca das próprias derrotas (inclusive no futebol). Desse modo, poderia ser construído um caminho sem os “guatemaltecos maus”, resgatando uma honra nacionalista. O seu slogan da campanha foi “Ni corrupto, ni ladrón”, uma opção de voto para derrotar os “maus políticos”.

    Em 2017, após ser acusado de financiamento eleitoral ilícito, o presidente Jimmy Morales considerou persona non grata o diretor da Comisión Internacional contra la Impunidad en Guatemala. Durante o seu mandato, esse presidente-humorista entrou em conflito com uma comissão da ONU e o Ministério Público da Guatemala, instituições que apuravam irregularidades no financiamento de sua campanha. Começaram então os protestos de rua, criticados prontamente por associações de empresários do país. Então, o presidente-humorista expulsou o diretor da comissão da ONU, que investigava complexos esquemas de corrupção. Surgiu uma onda de tensões internas para saber como o presidente deveria seguir a constituição e como poderia agir em relação à Comissão Internacional contra a Impunidade. No meio de uma crise política em 2018, a melhor opção de marketing político foi ligar as câmeras e entrar em um fast food.

    Cruzarei a fronteira para citar brevemente El Salvador, cujo universo partidário se assemelha ao do país vizinho. O principal partido de direita, Alianza Republicana Nacionalista (ARENA), foi fundado em 1981 e venceu as eleições de 1989, 1994, 1999 e 2004. O partido esquerdista Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional venceu duas eleições consecutivas, em 2009 e 2014. Nayib Bukele, sem poder se candidatar pelo seu partido, o Nuevas Ideas criado em 2018, precisou concorrer pelo GANA. Os egressos da ARENA e de outras organizações da direita salvadorenha formaram Gran Alianza por la Unidad Nacional (GANA) em 2010, partido vencedor das eleições de 2019 com o candidato Bukele. Nas eleições municipais de 2018, GANA foi o terceiro partido com mais vitórias nos municípios de El Salvador.

    A direita no Brasil, desde a redemocratização, reúne os “conservadores reformadores do Estado” e os “liberais reformadores”. Esses sustentam uma agenda de defesa dos direitos individuais, da propriedade privada e da redução das travas burocráticas, aqueles dependem da bandeira da gestão eficiente nos serviços públicos para angariar votos em suas bases conservadoras (da aristocracia dos políticos de bem incorruptíveis, segundo o dicionário udenista). Embora concordem na defesa dos interesses empresariais, sobretudo na crítica à burocracia estatal e ao corporativismo no serviço público, ambos os grupos (conservadores reformadores e liberais reformadores) representam a direita tradicional, que se esconde nos lemas da social-democracia europeia para conquistar o eleitorado das camadas médias urbanas. Percebemos, assim, alguns elementos que aproximam movimentos políticos de ascensão do discurso anticorrupção em três países latino-americanos: Guatemala, El Salvador e Brasil. Resposta das direitas à “onda rosa”? Talvez.

    O caso brasileiro tem suas peculiaridades, inclusive pela dimensão da fragmentação partidária, porém, assim como outros países, o seu panorama ideológico foi contaminado pelo período autocrático. Maria Victória Benevides, na revista Lua Nova em 1986, publicou uma genealogia das organizações do sistema bipartidário vigente da decretação do AI-2 (1965) até a Lei Nº 6.767 (1979). O objetivo principal do texto era analisar a conversão ideológica do MDB em PMDB. Nas palavras da autora, um “pacto conservador” resultou na formação do “partido-ônibus”:

    “Arenão” redivivo. Afinal, que revival maldito ronda o atual PMDB? Por que se lembram da UDN de tão triste memória, por que desenterram a Arena, pior ainda? Para entender as críticas — e, quem sabe, exorcizar as pragas — seria preciso voltar às origens do MDB, bem como tentar desvendar possíveis semelhanças entre o PMDB e a falecida UDN.

    Eleito presidente, o senador Fernando Henrique, representante do estado de São Paulo, usou a tribuna para se despedir do Congresso em dezembro de 1994. Seu compromisso era continuar uma “agenda de reformas políticas” que encerraria o ciclo de uma transição que durou de 1979 a 1994. De acordo com o texto lido, a eleição, sem sectarismos partidários, seria a comprovação do “fim da jornada da transição”, que resultaria em uma “democracia moderna” e com estabilidade econômica. Um trecho do discurso foi intitulado “O fim da Era Vargas”, pois, para FHC, o “autoritarismo” era “uma página virada na História do Brasil”. Restaria, contudo, atacar os “padrões de protecionismo e intervencionismo estatal”:

    um pedaço do nosso passado político que ainda atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade. Refiro-me ao legado da Era Vargas – ao seu modelo de desenvolvimento autárquico e ao seu Estado intervencionista[1].

    [1] Para quem tiver interesse, no link é possível conferir a transcrição do discurso no Senado: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes-oficiais/catalogo/fhc/discurso-de-despedida-do-senado-federal-1994

     A reforma – ou modernização – do Estado nunca saiu da pauta do PSDB, em sua agenda permanente para desestatização da economia e da abertura para aumentar a concorrência, sem esquecer a crítica contundente ao corporativismo e aos privilégios que distorcem a distribuição de renda. Em suma, o Estado produtor seria substituído pelo Estado regulador, preocupado em eliminar as “restrições anacrônicas ao investimento estrangeiro”. Pularei 20 anos nos capítulos da Sexta República para chegar a um discurso de novembro de 2014. O senador mineiro Aécio Neves discursou no Congresso após ser derrotado nas eleições presidenciais. Ainda o samba de uma nota só:

    Defendi a retomada das reformas para modernizar a nossa economia e retirá-la da paralisia em que o atual Governo a colocou.[…] Advoguei, em todas as partes do Brasil, a necessidade da maior participação do investimento privado na construção da infraestrutura, para que deixássemos de ser aprisionados por uma visão ideológica, estatizante e ultrapassada.[…] E propus a reaproximação do Brasil com o resto do mundo, ao qual demos as costas, nos últimos anos, ao priorizar as parcerias com governos ideologicamente alinhados[2].


    [2] Para quem tiver interesse, no link é possível conferir a transcrição do discurso no Senado: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/409754

    Evidentemente, pouca importa à cúpula dos partidos do Centrão um debate sobre o impacto das organizações criminosas, com armas disponíveis, nos resultados eleitorais. Tal tema não comove lideranças dos partidos que se interessam no binômio votos e cargos, com o único objetivo de sempre estar perto dos núcleos de poder no governo federal. Ignorar o permanente cenário de extrema violência durante as corridas eleitorais significa desluzir os poderes que financiam candidatos. O El País publicou um mapeamento de figuras políticas baleadas na Baixada Fluminense entre 2015 e 2016. O texto de María Martín, em 2016, analisou a conjugação de forças institucionais para elucidar nove execuções que ocorreram no período:

    A Procuradoria Regional Eleitoral pediu que a Polícia Federal participe das investigações pela suspeita de que a morte de pelo menos dois desses vereadores e quatro pré-candidatos se tratem de crimes políticos. 

    As legendas pendulares, que definem os gastos dos recursos indepentemente da bandeira ideológica do incumbente no Executivo, acompanham as tendências das marés. Até mesmo após um maremoto, como a provocada pela base bolsonarista em 2018. Para explicar a “utopia reacionária” de um presidente que assume um “sentimento antissistema”, Christian Lynch encontrou em 2015, no início do fim do governo Dilma, a gênese de

     uma vasta coalizão de oposição de liberais e conservadores. Diante da incapacidade de autorreforma do sistema político, emergiu, dentro do Poder Judiciário e do Ministério Público, uma “vanguarda” de juízes federais e procuradores disposta a derrubar a situação social-democrata, aproveitando a investigação contra a corrupção. Esse “judiciarismo” de índole liberal e retórica republicana (o “lavajatismo”) se legitimou como uma forma “democrática” de regenerar a República, pela mera aplicação destemida da lei por um grupo de patrióticos operadores jurídicos. 

    Alguns capítulos depois, no pleito de 2020, a principal característica foi a vitória daqueles personagens já conhecidos do eleitorado, os políticos profissionais. Alguns vencedores já haviam exercido o cargo, como em Belém, outros eram herdeiros de famílias poderosas na política local, como em São Paulo. Seria uma resposta ao fenômeno eleitoral de 2018? Fim do maremoto da “nova política”? Um candidato derrotado afirmou, em entrevista publicada na Folha em 2018, que o fracasso dos novatos resultaria no retorno dos políticos profissionais pois, com o ocaso da “nova política”, os eleitores e as lideranças partidárias “vão chamar quem tem um pouco mais de sobrevivência”. Gabriela Caesar publicou no G1 alguns infográficos que explicitam o êxito eleitoral dos principais partidos em 2020, quando 29 partidos conquistaram vitórias nas eleições para o executivo municipal.

    Uma máquina do tempo seria quase inútil para entender a repetitiva política brasileira. Themístocles Cavalcanti, então presidente do Instituto de Direito Público e Ciência Política e diretor da Revista de Ciência Política, publicou no segundo volume desse periódico um esforço teórico para conceituar “democracia”. Quero destacar o seguinte trecho do texto “A democracia como sistema político”, de 1968: “o progresso das comunicações e as facilidades crescentes no uso dos processos fraudulentos são outros tantos fatores que trouxeram para a democracia uma fase de crise”. Denúncias de fraude, compra de votos, oligopolização da mídia e bipolarização partidária: esses quatro ingredientes estiveram presentes nas eleições diretas desde 1945. E onde se situam as forças políticas do compadrio e do clientelismo?

    Em 24 de abril de 1995, no Painel da Folha, coluna assinada por José Roberto de Toledo e Gustavo Krieger, foi noticiada a “articulação” para a formação de um novo partido. Nos bastidores, articulavam duas lideranças do PFL: o vice-presidente Marco Maciel e o presidente da Câmara, Luís Eduardo Magalhães. A proposta era fundir PFL, PPR, PTB, PP, PL e parte do PMDB, formando assim uma frente apelidada jocosamente de Arenão. Essa coalizão unificada em uma sigla partidária facilitaria, de acordo com esse plano, o caminho do governo de Fernando Henrique Cardoso para aprovar reformas no Congresso.

    O partido Arenão não saiu do papel. Em 2007, um formidável rebranding transformou o PFL em DEM. O partido sobreviveu politicamente, apesar de algumas cisões, e desde 2019 se equilibra na corda bamba apenas para não se afirmar como governista. Em 2020, os partidos PP, PSD, DEM e PL venceram em 2148 municípios, cerca de 39% do total.

    CapitalVencedor no 1º turno2º colocadoEleito no 2º turnoVencedor buscou reeleição ou apoio da situação ?
    São PauloPSDBPSOLPSDBSim
    Rio de JaneiroDEMRepublicanosDEMNão
    SalvadorDEMPTXSim
    FortalezaPDTPROSPDTSim
    Belo HorizontePSDPRTBXSim
    ManausPODEAvanteAvanteNão
    CuritibaDEMPDTXSim
    RecifePSBPTPSBSim
    GoiâniaMDBPSDMDBSim
    BelémPSOLPatriotaPSOLNão
    Porto AlegreMDBPC do BMDBNão
    São LuisPODERepublicanosPODENão
    MaceióMDBPSBPSBNão
    Campo GrandePSDBAvanteXSim
    NatalPSDBPTXSim
    TeresinaMDBPSDBMDBNão
    João PessoaPPMDBPPNão
    AracajuPDTCidadaniaPDTSim
    CuiabáPODEMDBMDBSim
    Porto VelhoPSDBPPPSDBSim
    FlorianópolisDEMPSOLXSim
    Boa VistaMDBSDMDBSim
    Rio BrancoPPPSBPPNão
    VitóriaRepublicanosPTRepublicanosNão
    PalmasPSDBPROSXSim
    Partidos vitoriosos nas eleições de 2020 – capitais. O “X” sinaliza que houve vitória no primeiro turno.
    CapitalVencedor no 1º turnoVencedor buscou reeleição ou apoio da situação?Currículo do candidato ou vínculo familiar
    São PauloPSDBSimNeto de Mário Covas, vice-prefeito eleito em 2016.
    Rio de JaneiroDEMNãoPrefeito de 2009 a 2016.
    SalvadorDEMSimVice-prefeito eleito em 2016.
    FortalezaPDTSimPresidente da Assembleia Legislativa (2019-2020).
    Belo HorizontePSDSimEmpresário do ramo de engenharia. Eleito para primeiro mandato em 2016.
    ManausPODENãoGovernador interino (2017) e presidente da Assembleia Legislativa (2017-2019).
    CuritibaDEMSimPrefeito de 1993 a 1997. Eleito novamente em 2016.
    RecifePSBSimDeputado federal, filho de Eduardo Campos e bisneto de Miguel Arraes.
    GoiâniaMDBSimPrefeito de Aparecida de Goiânia de 2009 a 2017, governador de 1995 a 1998 e vice-governador de 1991 a 1994 de Goiás.
    BelémPSOLNãoPrefeito de Belém de 1997 a 2005.
    Partidos vitoriosos nas eleições de 2020 – 10 capitais com maior população. A última coluna apresenta um breve resumo do currículo dos vencedores apenas para corroborar a hipótese do texto.

    A fragmentação, no atual contexto, beneficia o Centrão. Essas duas tabelas comprovam que a maior parte do eleitorado, residente nas grandes capitais, experimentará uma onda do avanço dos partidos desse universo partidário. No Simpósio Direitas Brasileiras, em 2017, Rafael Mucinhato pontuou que o período antecedente às eleições (indiretas) de 1985 teve como marca a pulverização de siglas. Em seu texto, o pesquisador demarcou o seguinte processo de “arenização”, um “encontro com a velha direita”:

    Esse espalhamento e “infiltração” de ex-membros da Arena em partidos políticos que não eram seus sucedâneos diretos (no caso o PDS e o PFL), um processo que no caso do PMDB foi chamado por parte de seus políticos de “arenização do partido”, também foi notado por alguns membros do PSDB quando este chega ao governo em 1994.

    Se, entre as crises de 2013 e 2018, “mudança” era o substantivo que regia a busca pela “nova” política, os fluxos mais recentes indicam o retorno dos verbetes “experiência”, “confiança”, “continuidade” ou “estabilidade”. Importa menos a análise semântica do que apurar a tendência: os profissionais do varejo político aproveitaram o refluxo da onda “renovadora” para consolidar o seu protagonismo.

  • O valor da Constituição

    Texto por Victor Augusto Ferraz Young

    A crise social, política e econômica que se vive na atualidade em diversos países tem colocado em questão a viabilidade do Estado Social Democrático de Direito, ou seja, a ideia de que as sociedades devem persistir em sua tentativa de fazer com que todos vivam sob regras (da Constituição e das leis) criadas por esta mesma sociedade, mesmo em meio a todas as dificuldades que esse processo acarreta. A alternativa que vem sendo reiteradamente proposta por parte da sociedade a este caminho é, a nosso ver, muito arriscada e perigosa, pois baseia-se na concepção de que poderes acima de tais leis deveriam ser concedidos a um único grupo liderado por uma figura carismática que, em tese, superaria as dificuldades inerentes ao lento processo democrático. Espera-se com isso que as decisões políticas sejam mais rápidas e que o progresso econômico chegue mais cedo. O risco está justamente na entrega de poderes que estariam acima da lei produzida de forma representativa, pois a partir desse ponto pode surgir um antigo conhecido da história humana, a tirania. Foi justamente para impedir o risco de que esta prevalecesse que se criou o Estado de Direito que, ao logo do tempo, progrediria para o Estado Social Democrático de Direito.

    Estado de Direito e a Constituição

    Surgido sob a égide dos ideais iluministas, e principalmente após a revoluções liberais do século XVIII nos Estados Unidos e na Europa, a concepção de um Estado de Direito ocorreu em oposição ao então Estado Nacional Monárquico Absolutista. Ou seja, não haveria mais nenhum rei que encarnasse poder político absoluto sobre todos os outros cidadãos. Depois de sangrentas lutas revolucionárias, o Estado de Direito foi instituído em prol dos direitos e das liberdades individuais, em contraposição à arbitrariedade real, constituindo assim mecanismos para a proteção e perpetuação destes direitos e liberdades sem que para isso fosse necessária a abolição do Estado.

    O Estado de Direito com todo seu aparato subordina-se, dessa maneira, a uma lei superior, chamada de Constituição, que define direitos e garantias individuais, ou seja, trata-se de uma lei maior que protege esses direitos e garantias e está acima de qualquer arbitrariedade do próprio Estado. Este mesmo Estado deve limitar sua ação a apenas aquilo que é permitido pela Constituição. Esta vinculação do Estado à Lei Maior [Constituição] exige que sejam respeitados elementos como a supremacia da Constituição, a separação dos poderes, a superioridade das leis e a garantia dos direitos individuais.

    Dessa forma, a Constituição é a regra suprema, pois ela define os agentes (representantes) que farão as leis; estabelece como as leis devem ser feitas (processo legislativo); e baliza os limites de todas essas leis que são subalternas a ela. Caso uma lei inconstitucional, isto é, que não está de acordo com a Constituição, venha a ser aprovada (e promulgada), mecanismos de controle estabelecidos dentro da própria Constituição devem dar conta de expulsá-la do conjunto restante de leis (ordenamento jurídico). A Constituição, por seu turno, não é criada por nenhum dos poderes que delega, mas por um poder constituinte que assim o é dada sua força para fazer valer a regra para todos. Este poder de criação, geralmente constituído para a elaboração do texto, por fim, dissolve-se tão logo é promulgada a Lei Magna. O Estado de Direito e suas instituições emergem, portanto, depois de promulgada a Constituição. No Brasil, uma Assembleia Constituinte foi eleita para a confecção e promulgação da Constituição Federal de 1988.

    A Separação dos Poderes

    A separação dos poderes que deve, por sua vez, ser definida pela Constituição se faz necessária em função de o Estado necessitar de mecanismos de auto regulação que mantenham sua atuação dentro dos limites estabelecidos pela regra constitucional. De um modo geral, o poder do Estado fica, dessa forma, dividido em: Poder Executivo, que administra os negócios do Estado por meio de atos administrativos; Poder Legislativo, que cria as leis para a condução dos negócios do Estado e o regramento do convívio social; e Poder Judiciário, que julga os conflitos que podem ocorrer dentro do Estado, entre indivíduos e entre este e os indivíduos de maneira imparcial e mediante provocação. Os três poderes têm independência no exercício de suas funções. Os atos administrativos do Executivo e as leis emanadas do Legislativo submetem-se, todavia, à apreciação constitucional do Judiciário, ou seja, podem estar sujeitos a uma sentença que irá legitimar ou anular os atos daqueles poderes conforme dita a Constituição. O Estado de Direito busca, dessa maneira, autorregular-se, isto é, o Poder Judiciário não administra os negócios estatais, assim como não produz as leis, mas zela pela formação e pelo cumprimento dessas leis, assim como aprecia atos administrativos que possam ser ilegais. Por meio deste mecanismo de divisão de poderes, nenhum poder usurpa âmbito alheio, conduzindo a ação do Estado à submissão constitucional.

    A superioridade da lei e a garantia dos direitos individuais

    Outro elemento fundamental dentro do Estado de Direito é a ideia de que todos os entes estatais e não estatais estão sujeitos à superioridade da lei. No que se refere especificamente ao Estado, a lei, como expressão da vontade geral do povo, concede aos agentes do Estado poderes para que as funções do Governo, do Legislativo e da Judiciário sejam cumpridas por estes sob o império daquela.

    A garantia dos direitos individuais estabelecidos pela Constituição é também elemento que compõe o Estado de Direito. Resulta dela o direito subjetivo público que vai além do direito subjetivo privado, ou seja, o indivíduo não só pode reclamar direitos frente a outros indivíduos, mas pode também opor-se ao Estado, caso este venha a violar suas garantias constitucionais.

    Estado Democrático de Direito e Estado Social Democrático de Direito

    O Estado Democrático de Direito, de outra maneira, vai além do Estado de Direito, ampliando o âmbito jurídico para a conformação de um Estado que tenha por objetivo a promoção da justiça e da igualdade entre seus cidadãos, pois além dos elementos do Estado de Direito, no Estado Democrático de Direito tem como premissa a participação efetiva do povo no exercício do poder. Para tanto, valida-se o conceito republicano de agente público eleito como representante do povo para o exercício do poder que este lhe concede. Dessa forma, representantes legislativos e executivos são escolhidos por um processo eleitoral para mandatos periódicos que podem ou não ser renovados conforme a própria vontade popular. Estes mandatários eleitos podem ainda ser responsabilizados e impedidos do exercício das funções, caso violem as prerrogativas que lhes são concedidas. Neste Estado, é, portanto, fundamental o clima de liberdade política para o debate social, a escolha e/ou impedimento dos eleitos.

    Em período mais recente, novas Constituições têm contemplado um modelo de Estado ainda mais elaborado no sentido de estender novas proteções aos cidadãos. Trata-se do Estado Social Democrático de Direito, isto é, um Estado que não só visa garantir os direitos individuais, a participação popular no poder, mas também proteger o povo do poder e/ou do desamparo econômicos. Neste, a Constituição pode regular as relações econômicas como contratos entre empregados e empregadores, assim como estabelecer que sejam garantidos direitos sociais como educação, saúde, previdência, seguro desemprego, entre outros elementos que protejam a dignidade humana.

    Concluindo

    Podemos considerar, portanto, que a ideia de um Estado Nacional definido e constituído pelo povo tem nos desdobramentos históricos das concepções de Estado de Direito até a de Estado Social Democrático de Direito uma determinada evolução em que, a cada período de tempo, além de estabelecerem-se mecanismos para a garantia dos direitos individuais, agregou-se às Constituições maior proteção às sociedades, buscando torná-las e mantê-las mais livres, justas e igualitárias.

    Todo este aparato foi constituído com base na experiência política humana, tendo como primeiro impulso a ideia de se evitar a tirania. Fazer com que funcione para que cumpra os propósitos virtuosos aqui expostos é uma construção social de cada povo, pois não é difícil perceber que as experiências de mera transplantação desse constructo para dentro de outros países não faz com que o resultado seja sempre positivo. Dessa forma, o Estado Social Democrático de Direito não é solução pronta para as aflições humanas, mas é, sem dúvida, um caminho melhor e contrário ao de aventuras que podem levar a terríveis ditaduras.

    Referências

    SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. Malheiros, 2004.

  • O 7 de setembro de Jair Bolsonaro: defesa histórica da violência como fundamento da ordem

    Texto por Ulisses Rubio e Gustavo Zullo.*

    Consideramos que no pronunciamento realizado por Jair Bolsonaro no 7 de setembro algo foge ao estereótipo paradigmático dos discursos do atual presidente. Bolsonaro não repetiu as falas aparentemente desconexas, que têm deixado os analistas atônitos e os leva a análises no mínimo insuficientes, uma vez que enfatizam a incoerência e ressaltam um burro Bolsonaro. Ao contrário, consideramos que, na comemoração da independência, o presidente apresentou um discurso elucidativo e, na medida do possível, sereno sobre sua seleção do passado nacional e dos seus valores. Mais ainda, Jair Bolsonaro explicitou a sua visão de Brasil, na qual os dominantes desenharam a identidade nacional:

    “Naquele histórico 7 de setembro de 1822, às Margens do Ipiranga, o Brasil dizia ao mundo que nunca mais aceitaria ser submisso a qualquer outra nação”.

    Quem é o sujeito da ação? O Brasil. Mas quem é o Brasil? Mais que isso, quais seriam os “brasileiros [que] jamais abririam mão de sua liberdade”?

    Certamente não estão incluídos aí os negros escravizados, que permaneceram privados de sua liberdade ainda por mais de um quarto de século após a independência. Seriam os indígenas? Isto não seria coerente com as atuais políticas do executivo federal em relação aos povos indígenas, especialmente atingidos pela boiada incandescente que avança de modo acelerado sobre a Amazônia e o Pantanal.

     “A identidade nacional começou a ser desenhada, com a miscigenação entre índios, brancos e negros”.

    Nesse trecho do discurso, a vírgula após “desenhada” não é gratuita. Repare. A miscigenação não é o agente da passiva. O agente da passiva do verbo “desenhada” não aparece. A miscigenação é um aspecto muito importante da identidade nacional, mas não a sua realizadora. Assim, nos perguntamos quem seria este agente da passiva e por que ele teria sido ocultado? Para responder a estas questões, recorremos a um dos ícones do pensamento conservador brasileiro do século XX, Oliveira Vianna. Segundo ele, os principais acontecimentos que marcam a História do Brasil, inclusive a independência, foram protagonizados pela “Nobreza rural”. Coerente ao pensamento conservador, acreditamos que Bolsonaro está assumindo que são os dominantes que “desenharam” a identidade nacional.

    Implícita nesta posição está que a identidade nacional teria sido formada pelo andar de cima e para o andar de cima a partir da preservação da segregação social. E esta questão possui uma curiosidade quando a associamos à época da independência. Naquele período, a segregação social assumia a forma de um sistema escravista extremamente violento que, contudo, foi romantizado pelo conservadorismo brasileiro como um sistema em que se formaram afetos espontâneos entre negros e brancos. Como consequência, a interpretação conservadora da identidade nacional cancela a possiblidade dos dominados acessarem a cidadania sem que se o anuncie explicitamente – e aqui reside um dos grandes dilemas brasileiros.

    Na atual conjuntura, isto significa a supressão de todos os ensaios emancipatórios que se vislumbraram nos últimos anos, uma ofensiva a pautas sociais, culturais e econômicas que apontam para a construção de uma sociedade mais justa ou, se quiserem, menos injusta.

    Na visão conservadora da formação histórica do Brasil, a miscigenação cumpre um papel fundamental, mas não fundador, da identidade nacional. Para deixar ainda mais evidente o significado da miscigenação no discurso de Bolsonaro, recorremos a outro autor importantíssimo para o pensamento conservador brasileiro: Gilberto Freyre, autor que consolidou a ideia de que, no Brasil, vivemos numa “democracia racial” e que nos ajudará a decifrar a sequência do discurso de Bolsonaro.

    Assim, seguimos com o presidente: “Posteriormente, ondas de imigrantes se sucederam, trazendo esperanças que em suas terras haviam perdido. Religiões, crenças, comportamentos e visões eram assimilados e respeitados. O Brasil desenvolveu o senso de tolerância”.

    Bem… já identificamos “quem era o Brasil”. Agora vemos estes brasileiros serem “tolerantes”, “assimilando” e “respeitando” diferentes “religiões, crenças, comportamentos e visões”. A fala do presidente claramente retoma a “plasticidade” do português, o elemento branco da miscigenação exacerbada por Gilberto Freyre. Portanto, a suposta “democracia” racial decorreria da benevolência dos dominantes, caracterizada por sua plasticidade, isto é, por sua capacidade de “tolerar” e “assimilar” o caldo cultural dos dominados – e a esta altura já notamos que o termo “assimilação” significa dominar/sufocar. Mas esta não é uma dominação explícita – e esta tradição de se fazer parecer tolerante é preservada até por Bolsonaro, apelidado de “cavalão” nos seus tempos de exército. Isto é, se na frente das câmeras o discurso é de tolerância e mesmo de exaltação da diversidade, a prática é de perseguição social e policial de tradições e costumes não-hegemônicos, como ocorre com o candomblé.

    E aqui insistimos. O agente que integra é o mesmo brasileiro que realiza o movimento de independência. Este brasileiro absorve outros elementos culturais, mas não confere o mesmo valor à cultura dos povos escravizados e, consequentemente, não os concebe como dignos de fazerem reivindicações. Assim, a sua presença é tão somente tolerada na medida em que se preserva à sombra da sociedade. Portanto, compreendemos como “os diferentes tornavam-se iguais”, proferido na continuação da fala de Bolsonaro.

    Simula-se uma igualdade, posto que os povos dominados e as suas respectivas culturas jamais foram aceitos em pé de igualdade – isto é, o conflito nunca foi aceito como parte da construção de um ambiente verdadeiramente democrático. Esta “igualdade” a que Jair Bolsonaro se refere foi construída pelos dominadores. Isto é, uma igualdade que, na verdade, é absolutamente incompatível com a valorização real daquilo que o presidente ostenta orgulhosamente como um “conjunto de preciosidades culturais, éticas e religiosas”.

    Assim, a “plasticidade” que constrói a democracia racial de Gilberto Freyre pode se juntar à “placidez” da formação social brasileira de Oliveira Vianna, para quem “à sombra patriarcal deste grande senhor de engenhos, de estâncias, de cafezais vivem o pobre e o fraco com segurança e tranquilidade”.

    Com isto, Bolsonaro assume a figura de patriarca nacional, de defensor da ordem conservadora, entendendo que mobilizações sociais são bem vistas apenas quando subsidiam a sua ordem. E este detalhe é importante: a atuação do governo Bolsonaro não se restringe à perseguição de negros e indígenas, mas tem a relação histórica de perseguição e tutela a estes grupos como experiência a ser repetida quantas vezes forem necessárias para preservar privilégios.

    Podemos, assim, entender a narrativa que o presidente constrói no que segue de seu discurso:

    “Passados quase dois séculos da independência, nos quais enfrentou e superou inúmeros desafios, o Brasil consolidou sua posição no concerto das nações. Ainda no século XIX, durante o período do império, fomos invadidos e agredidos, derrotando a todos. Já no século XX, durante a II Guerra Mundial, a Força Expedicionária Brasileira foi à Europa para ajudar o mundo a derrotar o nazismo e o fascismo. Nos anos 60, quando a sombra do comunismo nos ameaçou, milhões de brasileiros, identificados com os anseios nacionais, de preservação das instituições democráticas, foram às ruas contra um país tomado pela radicalização ideológica, greves, desordem social, e corrupção generalizada”.

    O que vemos é a exaltação de três governos autoritários que sufocaram manifestações sociais que chacoalhavam a ordem.

    Estamos, portanto, preparados para entender a coerência do discurso do presidente quando ele afirma defender a democracia e a liberdade:

    “O sangue dos brasileiros sempre foi derramado por liberdade. Vencemos ontem, estamos vencendo hoje e venceremos sempre. No momento que celebramos esta data tão especial, reitero, como presidente da República, meu amor à Pátria e meu compromisso com a Constituição e com a preservação da soberania, democracia e liberdade, valores dos quais nosso País jamais abrirá mão. A independência do Brasil merece ser comemorada hoje, nos nossos lares e em nossos corações. A independência nos deu a liberdade para decidir nossos destinos e a usamos para escolher a democracia”.

    Nesta narrativa, já sabemos que quem teve a liberdade para fazer a independência e manter a ordem posteriormente foi o patriarca branco, intolerante e eugenista, oposto à imagem benevolente da miscigenação apresentada por Bolsonaro. Sabemos também que a democracia de que se fala, é a dita “democracia racial”.

    *Ulisses Rubio. Economista, Professor Universitário, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da UNICAMP.

    *Gustavo Zullo. Economista, Professor Universitário, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da UNICAMP.

    Referências:

    FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da familia brasileira sob o regime da economia patriarcal. 17. ed. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio, 1975.

    VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: historia – organização – psicologia. Belo Horizonte, MG; Niterói, RJ: Itatiaia: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1987.

    Pronunciamento do Presidente Jair Bolsonaro, 7 de Setembro de 2020. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=2iomceoXjOY. Acessado em 7 de setembro de 2020.

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