Categoria: / Linguística, Letras e Artes

  • Esse povo imprica com quarquér coisa…

    Autoria

    Beatriz Sayuri Higuti e Viviane Carvalho

    Por: @Guinanet – CC BY 2.0 DEED – Attribution 2.0

     

    Você sabia que essa “troca” é um fenômeno fonológico muito comum na história do português?

    Os linguistas deram até um nome pra ele e mostraram que todo esse estigma é, na verdade, um tipo de preconceito linguístico.

    Existem casos em que crianças em fase de aquisição de sua língua trocam sons durante muito tempo sem que esta seja uma característica do sotaque das pessoas que estão à sua volta. Porém, em alguns dialetos, é muito comum que os falantes “troquem” o L pelo R e pronunciem naturalmente, palavras como “crima” no lugar de “clima”, “sór” no lugar de “sol” e por aí vai.

    E mesmo que essa troca seja comum em alguns dialetos, muitas pessoas (inclusive alguns professores de língua portuguesa) afirmam que esse modo de falar é “errado” e deve ser corrigido a todo custo – quase como se esse modo de falar fosse um indício de distúrbios articulatórios, mas este não é o caso aqui, como veremos a seguir.

    O podcast SciKids responde uma pergunta mencionando o distúrbio articulatório: por que os balões em que o Cebolinha pensa estão com R e não com L?

    POR QUE ESSA TROCA ACONTECE?

    A fonologia é a área de estudos da Linguística que se interessa pelos fonemas, pelos sons (ou gestos no caso de línguas de sinais) presentes em uma língua.

    Em português, por exemplo, temos, dentre vários outros, os fonemas L ou U (/l/ ou /w/) e R (/r/), que se diferenciam no sistema dessa língua. Desse modo, “calo” e “caro” são palavras diferentes, assim como /mal/ e /mar/, justamente porque, para nós, esses dois pares de fonemas são diferentes. 

    O que acontece (e bastante!) na língua portuguesa é que, em alguns dialetos, tanto o fonema L (mais tecnicamente /l/) no meio da sílaba quanto o fonema U (/w/, oriundo de /l/) no final da sílaba são produzidos como o fonema R (/r/).

    Os linguistas chamam esse fenômeno de rotacismo.
    Vejamos alguns exemplos:

    • cli-en-te -> cri-en-te 
    • bi-ci-cle-ta -> bi-ci-cre-ta 
    • cal-do -> car-do
    • al-to -> ar-to

     

     

    E O QUE A HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA TEM A NOS DIZER SOBRE ISSO?

    A Linguística Histórica é a área que estuda a história das línguas: seu surgimento, suas mudanças e, em alguns casos, seu desaparecimento. Graças a essa área sabemos que o português é uma língua românica, ou seja, surgiu a partir do latim (mais especificamente, do latim popular). E desde esse surgimento, os falantes nativos de português já realizavam o rotacismo. São diversos os exemplos de palavras que, em latim, eram pronunciadas com L (/l/) no meio da sílaba e em português passaram a ser pronunciadas com R (/r/): 

    • blandu (latim) > brando (português)
    • clavicula (latim) > cravelha (português)
    • flaccu (latim) > fraco (português)
    • gluten (latim) > grude (português)
    • plancto (latim) > pranto (português)

    Tão disseminado foi o processo que, em “Os Lusíadas” de Luís de Camões (em domínio público), é possível encontrar várias palavras que hoje são, de modo geral, pronunciadas com L (/l/) escritas com R (/r/). Este é um grande indício de que, no século XVI, de fato se falava assim:

    “E não de agreste avena ou frauta ruda, 
    Mas de tuba canora e belicosa” (Canto I) 
    “Algüas, harpas e sonoras frautas; 
    Outras, cos arcos de ouro, se fingiam” (Canto IX) 
    “O frecheiro que contra o Céu se atreve 
    A recebê-la vem, ledo e contente” (Canto IX)

    Muitos anos depois disso, no século XX, diversos linguistas e filólogos, como Amadeu Amaral, estudaram o dialeto caipira do estado de São Paulo. Nesse dialeto, formas como “fror (flor)” (conservada do português mais antigo), “mér (mel)” e tantas outras que ouvimos/produzimos até hoje já eram muito comuns.

    Portanto, é certo afirmar que o rotacismo faz parte da própria história da língua portuguesa. 

     

     

    ENTÃO POR QUE ESSE ESTIGMA?

    Em qualquer sociedade, os grupos sociais se distinguem pela forma como falam, ou seja, têm uma norma linguística própria, que faz os falantes se identificarem uns com os outros e se sentirem pertencentes ao grupo (Faraco, 2002)

    Na escola, o objetivo dos professores de português é ensinar a norma padrão, porque a padronização é importante (principalmente para um país de tamanho continental como o nosso). É preciso que os alunos saibam seus direitos e deveres como cidadãos e consigam se posicionar diante de injustiças sociais.

    Mas o problema surge quando as pessoas afirmam que apenas a norma padrão deve ser utilizada e criticam qualquer coisa que não pertença a essa norma, como o rotacismo no dialeto caipira. Esse modo de pensar é, na verdade, preconceituoso, porque, como mostramos neste post, não tem fundamento no sistema próprio da língua. 

    Portanto, para combater esse e outros tipos de preconceito linguístico é preciso uma mudança de atitude: respeitar o conhecimento linguístico de todo e qualquer falante, valorizando o que ele já sabe, e reconhecer na língua que ele fala a sua própria identidade como ser humano. 

     

    Para Saber Mais

    AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. São Paulo: Iba Mendes, 2019 [1920]. BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 2007 [1999]. 

    BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola, e agora?: sociolingüística & educação. Parábola, 2005. 

    ESPÍRITO SANTO, Júlia Maria França. Entre o campo e a cidade: rotacismo em São Miguel Arcanjo. Dissertação (Mestrado em em Linguística) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. p. 116. 2019.

    FARACO, Carlos Alberto. Norma-padrão brasileira: desembaraçando alguns nós. In: BAGNO, Marcos (org.). Lingüística da norma. São Paulo: Loyola, 2002. p. 37-61.

    Sobre quem escreveu

    Beatriz Sayuri Higuti e Viviane Carvalho são alunas do curso de graduação em Linguística da Unicamp

    Como citar: 

    Higuti, Beatriz Sayuri e Carvalho, Viviane. (2024). Esse povo imprica com quarquér coisa… Revista Blogs Unicamp, Vol.10, N.1, Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/esse-povo-imprica-com-quarquer-coisa/. Acesso em: DD/MM/AAAA

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Colagem com bocas em movimento (Freepik – original) e elementos ilustrados.

    Edição: clorofreela

  • O Cearensês no Universo Multilinguístico do Português: Cine Holliúdy

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    Autores

    Texto publicado por Thiago Oliveira da Motta Sampaio, baseado no trabalho de Alice Zaroni Nicolella, Júlia América de Paula Santos, Juliana Caroline Bonetti e Tatiana Bartolomei Sarnelli.

    Como citar:  

    Oliveira da Motta Sampaio, Thiago (2023) O Cearensês no Universo Multilinguístico do Português: Cine Holliúdy. Revista Blogs Unicamp, V.09, N.01, 2023. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/08/04/o-cearenses-no-universo-multilinguistico-do-portugues-cine-holliudy/  
    Acesso em dd/mm/aaaa
    Sobre a imagem destacada:

    Cartaz do “Cine Holliúdy: A Série – Temporada 3” (imagem de divulgação/Globoplay).

    Atribuição:

    Globoplay

  • A linguagem visual é estratégica

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    Autores

    Texto escrito por Carolina Frandsen Pereira da Costa

    Como citar:  

    Frandsen Pereira da Costa, Carolina (2023) A linguagem visual é estratégica. Revista Blogs Unicamp, V.09, N.01, 2023. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/08/04/a-linguagem-visual-e-estrategica/
    Acesso em dd/mm/aaaa
    Sobre a imagem destacada:

    Pessoas reunidas discutindo estratégias de projetos; em sobreposição, no centro, se vê a pupila e íris de um olho.

    Atribuição:

    Arte por Clorofreela.

  • Como conseguimos entender línguas que não falamos?

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    Autores

    Texto escrito por Nathália Álex Soares Silva e John Alexandre Dias.

    Como citar:  

    Álex Soares Silva, Nathália. Alexandre Dias, John (2023) Como conseguimos entender línguas que não falamos?. Revista Blogs Unicamp, V.09, N.01, 2023. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/08/02/como-conseguimos-entender-linguas-que-nao-falamos/ 
    Acesso em dd/mm/aaaa
    Sobre a imagem destacada:

    Montagem com três fotos: na imagem central há uma pessoa escrevendo em uma lousa “olá” em diversos idiomas, à esqueda há placas em madeira em diversos idiomas e à direita há uma criança aprendendo liguagem de sinais.

    Atribuição:

    Elementos Canva Pro; arte por Clorofreela.

  • Não é só traduzir? O trabalho de um tradutor de filmes e séries

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    Autores

    Texto escrito por Amanda Soares Pereira Akad Barghout e Gabriel Pimentel Nogueira

    Como citar:  

    Pereira Akad Barghout, Amanda Soares. Pimentel Nogueria, Gabriel (2023) Não é só traduzir? O trabalho de um tradutor de filmes e séries. Revista Blogs Unicamp, V.09, N.1, 2023. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/08/02/nao-e-so-traduzir-o-trabalho-de-um-tradutor-de-filmes-e-series/
    Acesso em dd/mm/aaaa
     

    Sobre a imagem destacada:

    Claquetes utilizadas no cinema com listras em preto e branco, com uma ranhura branca no centro da placa e desfocada.

    Atribuição:

    Arte por Juliana Luiza e Clorofreela, a partir da comparação de uma cena de Divertida Mente na versão em inglês e na versão em hebreu (fornecida pelos autores).

     

  • Coleção audiovisual exclusiva: entrevistas e momentos do Kinani (V.3, N.12, 2017)

    Coleção audiovisual exclusiva: entrevistas e momentos do Kinani (V.3, N.12, 2017)

    Uma das questões nevrálgicas que aqueles e aquelas que trabalham com pesquisa seguramente têm que enfrentar, gira em torno do papel social desse fazer. Em 2013, logo que cheguei a Maputo e comecei a observação participante no meio profissional da Dança Contemporânea, encontrei-me uma vez mais com a queixa das pessoas a respeito da invisibilidade dos resultados produzidos pelas pesquisas e com a sensação de exploração dos informantes, pois é muito raro que o retorno a ele ou à comunidade seja visualizado de forma precisa.  A partir dessa reflexão acumulada ao longo dos anos, mas também do reencontro com os artistas no Kinani 2017, estabeleceu-se que um dos papéis, meu e da pesquisa que realizo enquanto ali estou, é dar a ver o acontecimento e os pensamentos dos sujeitos a quem tenho acesso privilegiado,  já que estou ali de corpo presente, fazendo aulas, conversando, entrevistando, pensando junto.

     

  • Discursos de séries televisivas sobre as mulheres e a cidade de São Paulo

    Mulheres e cidade podem estabelecer alguma relação de sentido? Que mulheres são essas? Que cidade é essa? Como mulheres e cidade vão sendo significadas pelas séries de televisão? Como é possível compreender a produção desses sentidos? Trabalhando especificamente com as séries Aline (2009-2011) e Antônia (2006-2007), exibidas pela Rede Globo, e com Alice (2008, 2010), exibida pelo canal de TV por assinatura HBO, Valquiria Lima buscou responder essas e outras questões em sua tese de doutorado defendida recentemente no IEL.
  • Comunicação: animais, humanos e ETs

    O que estuda a Linguística: Taí a resposta!Se você gosta de comunicação, de ficção científica e de ler sobre a exploração do espaço pela humanidade, provavelmente também gostou bastante de “A Chegada”. Caso não conheça, o filme de Dennis Villeneuve foi inspirado no conto “História da sua vida” de Ted Chiang e fez sucesso recentemente, ao ponto de ganhar o Oscar de melhor edição de som. O roteiro do filme gira em torno do trabalho de uma linguista, Louise Banks, convocada pelo exército americano para decifrar ‘a linguagem’ dos visitantes alienígenas. Se você é entusiasta no tema, mesmo que não seja linguista ou não tenha gostado do filme, sugiro fortemente a leitura do conto.

  • Carolina Maria de Jesus e a polêmica sobre o que é literatura

     Em abril desse ano, a Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp (Comvest) divulgou a lista de livros para o vestibular de 2019. Entre os já canonizados Luís de Camões, Antônio Vieira e Camilo Castelo Branco, a grande novidade foi encontrar o nome da escritora Carolina Maria de Jesus e seu livro Quarto de Despejo: diário de uma favelada (1960) entre as leituras obrigatórias. Entre tantos livros escritos por homens e já conhecidos pelos vestibulandos, essa foi a primeira vez que a obra de uma mulher negra apareceu na lista da Unicamp. Há muito o que comemorar quando uma mudança como essa acontece em um dos maiores vestibulares do país: aos poucos, mais vozes começam a contar histórias que já conhecemos, mas que nos foram sempre contadas pelas mesmas perspectivas.

  • Mas isso é arte?

    Imagine o seguinte: você vai a uma exposição e se depara com centenas de bancos de madeira espalhados pelo espaço expositivo. O que você acharia disso? Legal? Ou muito, muito estranho? Algumas pessoas consideram trabalhos como esses não só estranhos, mas incompreensíveis. E, por isso, não têm vontade de visitar museus ou galerias. Mas… Vamos tentar entender por que a arte de hoje é assim?

     

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