Categoria: Sociedade

  • Vacina, Estado e Liberdade: a manipulação do debate – Parte 1

    Figura 1: Caricatura do século XIX retrata um homem da classe trabalhadora sendo vacinado à força por um oficial de saúde, enquanto é detido por um policial. Fonte: Hathitrust Digital Library. 

    Pesquisas de opinião têm demonstrado uma queda no número de pessoas dispostas a aderir a uma vacinar contra a Covid-19, quando esta for aprovada. Assim, questionamos, haveria uma deliberada intenção de agendar o debate em torno da obrigatoriedade da vacina? Isto feito utilizando o Padrão da Fragmentação e da Inversão e também fabricando um consenso, induzindo à hesitação vacinal?

    O Agendamento, o Consenso e a Inversão

    A Hipótese do Agendamento foi elaborada nos anos 1970 por Maxwell McCombs e Donald Shaw (1). Esta hipótese sustenta que os consumidores de notícias tendem a considerar mais importantes os assuntos que são veiculados com maior destaque na cobertura jornalística. Dessa forma, como consequência disso, ela propõe a ideia de que a mídia (as empresas de comunicação) pautam o debate pública. Ou seja, selecionam quais os temas mais relevantes a serem discutidos pela sociedade, relegando os demais a um segundo plano ou até ao esquecimento.

    Posteriormente, McCombs vai admitir a possibilidade da existência de um agendamento reverso (2). Isto é, que o público seja capaz de influenciar a mídia. Assim como acontece atualmente nos casos em que os assuntos mais comentados nas redes sociais tornam-se pauta nas redações. Entretanto, por sua vez, a mídia, por dever de ofício, também pode ser pautada pelos políticos na medida em que precisa cobrir o trabalho deles. Qual seja, propor mecanismos (por meio de leis) que criam um modelo de sociedade de acordo com sua ideologia político-partidária. 

    Assim, na busca de estabelecer qual tema será debate pela sociedade e qual será esquecido, há um embate de imposições de agendas entre a mídia, o público e os políticos.

    Noam  Chomsky e Edward Herman, em 1988, elaboram uma crítica aos meios de comunicação de massa, apontando que eles realizam escolhas, ênfases e omissões. No entanto, isto ocorre não por meio de técnicas jornalísticas. Mas de propaganda. Isto ocorreria com o objetivo de produzir na população a aceitação de algo inicialmente indesejado por ela. Todavia, privilegia determinados interesses, sejam do Estado ou de setores da atividade privada. Denominam a esse procedimento de Consenso Fabricado (3).

    Perseu Abramo, também no final dos anos 1980, descreve cinco padrões de manipulação da “grande” imprensa:
    1. Ocultação: é o deliberado silêncio militante sobre determinados fatos da realidade;
    2. Fragmentação: implica em duas operações básicas: a seleção de aspectos, ou particularidades, do fato e sua descontextualização;
    3. Inversão: é o reordenamento das partes, a troca de lugares e de importância dessas partes (é aplicado depois da fragmentação);
    4. Indução: o leitor é induzido a ver o mundo, não como ele é, mas sim como querem que ele o veja; 
    5. Global ou o padrão específico do jornalismo de televisão e rádio: divide-se em três momentos: o fato é apresentado sob ângulos mais emocionais; há a necessidade de personagens (testemunhas); a autoridade anuncia as providências.

    Naquela época, a internet comercial ainda nem existia – ela foi criada no Brasil em 1995. Além disso, os sites de redes sociais ainda não tinham sido inventados. No entanto, no mundo contemporâneo, escreve a jornalista Patrícia Cornils,

    “parte da disputa pela opinião pública se dá nesta esfera conectada e em publicações online independentes da grande mídia” (4).

    Nesse sentido, penso que, guardadas as devidas proporções, os padrões podem ser aplicados para a análise da produção da informação que se faz nas mídias sociais. Isto tendo em vista que, parte dela, já é profissional.

    Estratégias de ação (Modus operandi)

    Figura 2: Capa do livro Merchants of Doubt (Mercadores da Dúvida). Fonte: Bloomsbury Publishing

    Erik Conway e Naomi Oreskes (5), no livro Merchants of Doubt (Mercadores da Dúvida, 2011) falam sobre grupos empresariais. Neste livro, eles falam sobre como, desde os anos 1950, estes grupos financiam cientistas para questionar evidências científicas. Por exemplo, a relação cigarro x câncer de pulmão. Isto teria a finalidade de passar à sociedade a impressão de que há incertezas em relação às conclusões de inúmeras pesquisas. Ou seja, fazem parecer que há um debate aberto sobre o tema. Este livro foi adaptado como  documentário em 2014 pelo diretor Robert Kenner (6).

    Além disso, outra estratégia desses grupos é transformar o consenso científico em debate político. Quem fez isso foi o físico Fred Singer. O cientista relacionou a destruição da camada de ozônio da atmosfera pelos gases chamados CFCs (clorofluorcarbonos) – descoberta premiada com o Nobel de química em 1995 – a uma suposta defesa de posições políticas:  

    Singer escreveu que se tratava de uma “declaração política”. A opinião pública sueca até mesmo apoiaria uma “hipotética taxa sobre o carbono para reverter um aquecimento do clima global que ainda não foi detectado (…). Sinteticamente, o país está tomado de uma histeria ambiental coletiva” (7)

    Todos sabemos que uma das características da ciência é estar aberta a mudanças, diante de novas evidências. No entanto, nem sempre sabemos como funcionam as estratégias dos mercadores da dúvida…

    Mas quais são elas?

    • Primeiro é distorcer exatamente o natural grau de incerteza presente em todo estudo científico. Com isso, transforma-se a incerteza em uma grande dúvida que coloque em xeque a credibilidade do próprio estudo;
    • Em seguida, trazer para o debate questões de natureza política. Isto faz com que as pessoas passem a aceitar ou a negar verdades científicas com base em suas crenças político-ideológicas. Com isso, incute-se nelas a ideia de que a ciência é uma questão de opinião ou de lado.

    E por que é importante entender isso?

    O mundo segue em busca de uma vacina segura e eficaz para combater a Covid-19. Até 21 de outubro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já havia registrado cerca de 179 pesquisas em desenvolvimento. 44 delas sendo testadas em humanos. Das quais, 10 na terceira e última fase antes da aprovação (entre as quais a CoronaVac e a vacina de Oxford). No Brasil, as vacinas precisam ainda ser aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) antes de serem disponibilizadas à população.

    Neste momento, a doença já ceifou mais de 169 mil vidas brasileiras. O debate que realmente importa à sociedade é como sobreviver a essa pandemia, não apenas do ponto de vista da saúde e da economia. Mas também sob o aspecto emocional. Dessa forma, custa a crer que alguém cogite em recusar uma vacina que pode significar a volta a uma vida quase normal. Todavia, apesar disso, o instituto Datafolha lançou duas pesquisas realizadas em quatro capitais do país (o Gráfico 1 mostra apenas os resultados de São Paulo). Estas pesquisas indicam que vem caindo o número de pessoas que pretendem aderir a uma vacina quando esta for aprovada:

    Gráfico 1: Adesão à vacina contra a Covid-19 na Cidade de S. Paulo. Fonte: Instituto Datafolha em 10 out. 2020 e 07 nov. 2020

    Mas…

    Coincidentemente, há pelo menos dois meses o país passou a debater intensamente a prevalência do direito individual de não se vacinar sobre o direito coletivo à saúde. Este é um discurso que o movimento antivacina se utiliza desde o século XIX. O debate foi insuflada por falas do presidente Jair Bolsonaro a apoiadores e em cerimônias oficiais do governo, além de uma peça publicitária da (Secom). 

    Quer saber mais?

    Calma, tem a 2ª parte deste texto! Lá vamos demonstrar como a ciência vem mapeando a atuação de grupos políticos na internet, suas estratégias e esclarecer por que o debate em torno da obrigatoriedade da vacina não está aberto.

    Para saber mais / Referências: 

    1. McCOMBS, Maxwell; SHAW, Donald (1972) The agenda setting function of mass media, In Public Opinion Quarterly, Vol36, N2, Summer 1972, P176-187.

    2. McCOMBS, Maxwell (2009) A teoria da agenda: a mídia e opinião pública, Petrópolis: Vozes.

    3. CHOMSKY, Noam; HERMAN, Edward S; (2010) Manufacturing consent: The political economy of the mass media Random House, 2010.

    4. ABRAMO, Perseu (2016) Padrões de manipulação na grande imprensa, Com colaborações de Laura Capriglione [et al] – 2ed, São Paulo: Editora Fundac̦ão Perseu Abramo.

    5. ORESKES, Naomi; CONWAY, Erik M (2011) Merchants of doubt: How a handful of scientists obscured the truth on issues from tobacco smoke to global warming, Bloomsbury Publishing USA, 2011. 

    6. KENNER, Robert (2014) Merchants of Doubt, Participant Media, EUA, 30 ago, 96 min.

    7. LEITE, José Corrêa (2014) Controvérsias científicas ou negação da ciência? A agnotologia e a ciência do clima; Scientiae Studia, v12, n1, p179-189.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • 250 dias: E a pandemia, já acabou?

    Desde o anúncio da Organização Mundial da Saúde, em 11 de março, até  16 de novembro, se completam 250 dias da pandemia. 

    arte de @clorofreela

    Já podemos ir para a rua?

    Temos tido essa sensação pelo excesso de pessoas que temos visto flexibilizar o isolamento social. Pessoas que antes pareciam estar firmes no propósito de isolamento, agora afrouxam as regras e frequentam eventualmente bares, restaurantes e eventos sociais familiares. 

    Além disso, claro, sabemos que grande parte da população tem sido pressionada a abandonar a modalidade home office cada vez mais. Além da parcela de pessoas que nunca teve essa chance – ou por serem serviço essencial, ou por serem profissionais autônomos ou prestadores de serviços cuja parada implica em não recebimento completo…

    Tal característica, todos sabemos, acarreta não apenas em precarização da vida destas pessoas, mas um risco cotidiano para conseguir o mínimo de subsídios para manterem-se mensalmente. Especialmente a partir desta semana, quando o Auxílio Emergencial já contará com um novo valor, metade do que vinha sendo pago anteriormente.

    As escolas também têm aberto suas portas cada vez mais. Assim, isto acontece com pressões constantes para funcionários voltarem, nem sempre nas condições sanitárias que são indicadas, segundo a OMS.

    No entanto, o risco não só segue à espreita, quanto o número de internações e mortes segue nos rondando… 

    E nós sabemos que é difícil, tem sido difícil e continuará sendo difícil.

    Os tempos árduos de isolamento (para quem se mantém em isolamento desde março) e os tempos árduos de exposição (para quem está na rua desde que tudo começou) são, sim, tempos de asperezas. No entanto, Nagamine comenta que:

    “O alerta que os sucessivos marcos fúnebres – das mil, das dez mil, das cem mil mortes por Covid-19 no país – disparou não encontrou eco em nossa sensibilidade, e os descaminhos dos direitos humanos entre nós não permitem que nos surpreendamos”

    A autora aponta que precisamos de mais elementos não apenas para estancar a morte, uma vez que vivemos diariamente – e não é a pandemia que inaugura isso, apenas agrava. Mas comenta como precisamos lidar com ideais de falta de empatia e insensibilidade geradas a partir de uma gestão da morte cotidiana e do negligenciamento dos direitos humanos. 

    Ademais, Serge Katembera ao comentar este texto em uma análise no seu perfil do Twitter, aponta para a falta de relação entre a infecção e morte pelo Coronavírus e a estética.

    Como assim? 

    Se esse vírus fosse o Ebola, não sairíamos de casa – Serge comenta esta frase que escutou em um canal de televisão francês. Como assim? O SARs-CoV-2 não nos retira a forma, não nos causa hemorragias nem nos faz deteriorar o corpo com chagas abertas. Para grande parte da população é uma doença respiratória que afeta, sim, mas passa. 

    Queremos falar para além da questão estética, da não caracterização disforme do corpo no processo do adoecimento. Ou seja, temos um tempo intenso de desconexão por quem está dentro de casa há meses (o quê mesmo está ocorrendo do lado de fora das casas?). Temos um distanciamento dos corpos, a moralização do abraço, a desconfiguração da receptividade do sorriso.

    Além disso, temos empregos (ou atividades profissionais) que exigiram presença das pessoas, com uma intensa condenação de alguns costumes – julgando que é parte da vida trabalhar e aglomerar nos transportes coletivos, mas um absurdo irresponsável ver pessoas para sorrir e conversar.

    Há um debate acerca da moralização da noção de risco e a relação com a Covid-19. Isto é, a normalização da morte também faz parte deste processo – que culpabiliza alguns grupos, enquanto justifica outros por suas mortes e contaminações. Junto a estes processos, Segundo Moreno (2020) temos um relaxamento das medidas de proteção, diminuição de recursos para tratamento e manutenção da população e colapso dos sistemas de saúde.

    A moralização do cotidiano e seus colapsos

    Dessa forma, aparentemente, estes colapsos de sistemas de saúde e gestão da morte não afetam nem concepções de direitos humanos. Tampouco questões de estética que nos fazem temer um invisível vírus que nos afeta.

    A moralização cotidiana proveniente do SARS-CoV-2 tem também um caráter polarizante no debate pró ou contra vacinas, pró ou contra usos de máscaras e liberdades individuais, pró ou contra debates científicos, pró ou contra a economia.

    “A pandemia da COVID-19 reforça a urgência do amparo humanitário” nos diz Loiane Prado Verbicaro, em muitas dimensões de conhecimento e ação cotidianas.

    A Divulgação Científica no Brasil

    Parte do debate que a Divulgação Científica tem realizado no Brasil centra-se nas publicações científicas nacionais e internacionais sobre o SARS-CoV-2. Bem como, sua ação no organismo, ou resultados das vacinas em desenvolvimento. Tudo isto é fundamental para entendermos cada vez mais e melhor sobre a doença.

    Também temos visto, nas últimas semanas, publicações que apontam para o aumento de casos em vários lugares do mundo. Bem como, tentativas de contenção dos contágios e resistências – ou não – das populações quanto a isso.

    Talvez precisemos voltar às ênfases acerca das contaminações, auto-cuidado e, acima de tudo, compreensões acerca de como responder melhor a pergunta:

    E a pandemia já acabou?

    Hoje nós inauguramos a seção E a pandemia já acabou? Vamos trazer dicas mais precisas para situações específicas. Além disso, nós, do Blogs de Ciência da Unicamp, vamos reorganizar a apresentação dos dados. Ademais, criar séries que expliquem a ciência de base para entender o vírus, a doença e sua contínua expansão na população.

    Não, a pandemia não acabou. Em tempo, não, reuniões com a família não são tranquilas e isentas de riscos. Assim como, não, ir a bares e restaurantes – especialmente ambientes fechados – não são atos seguros neste momento.

    Chegamos aos 250 dias de pandemia. Temos 165 mil mortes no Brasil e mais do que 1 milhão e 300 mil mortes no mundo inteiro. Dessa forma, é preciso frisar, diariamente sim, que tempos de exceção precisam de ações empáticas, solidárias e científicas. Bem como, precisam compartilhar continuamente – e retomar debates “antigos” – sobre como o vírus está presente. Isto é, se espalhando e novamente ocupando leitos das UTIs – de hospitais públicos e privados.

    Em suma, 250 dias pandêmicos

    250 dias se passaram. Vamos encarar cada dia que acordamos. Como? Com um compromisso de seguirmos informando, conversando, debatendo. Assim como produzindo conteúdos para pensarmos esta etapa de nossas vidas com mais segurança, cientificamente embasados, socialmente engajados. 

    Fiquem bem, se puderem permaneçam em casa. Não, a pandemia não acabou!

    Para saber mais

    Katembera, Serge (2020) 1. Os ratos não temem o vírus (publicação no Twitter)

    MORENO, Arlinda B. et al. (2020) A pandemia de COVID-19 e a naturalização da morte. Observatório Covid-19 Fiocruz Observatório Covid-19.

    Nagamine, Renata (2020) Partilha do insensível; Quatro Cinco Um

    Nagamine, Renata (2020) “Repensando a partilha do insensível: reflexões sobre direitos humanos e sensibilidades no Brasil da pandemia”; Errante

    Organização Mundial de Saúde (2020) Coronavirus disease (COVID-19): Schools

    Verbicaro, LP (2020) Pandemia e o colapso do neoliberalismo, Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, v11, e3, p1-9

    Reportagens recentes no jornal

    Da Redação G1,(2020) Após menor média em outubro, Grande SP volta a ter mais registros de internações em novembro; erro em sistema impede dados de mortes G1, 13/11/2020

    Da Redação G1 ES (2020) ES chega a 4.009 mortes e 169.928 casos confirmados de Covid-19, G1 Espírito Santo, 15/11/2020

    Da O Globo (2020) Covid-19: SP tem aumento de internações em hospitais e alta de casos suspeitos; cientistas avaliam possibilidade de 2ª onda O Globo, 12/11/2020

    Bergamo, Monica (2020) Prefeitura de SP deve analisar nesta semana se há crescimento de internações por Covid-19; Folha de São Paulo, 13/11/2020

    Da Redação Gaúcha ZH (2020) Rio Grande do Sul registra 1.189 novos casos de coronavírus em 24 horas, Gaúcha ZH Corona Serviço, 15/11/2020.

    Do Uol (2020) Caixa paga parcelas de R$ 600 e R$ 300 para novo grupo; veja todas as datas, UOL Economia, 15/11/2020

    Portal A Crítica (2020) Amazonas registra 569 novos casos e mais 10 mortes por Covid-19, A Crítica, 14/11/2020

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Foram produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Por um olhar mais ético e menos apressado na comunicação sobre ciência e sociedade

    O processo de produção de conteúdo de divulgação científica deve passar por um processo de reflexão crítica. Isto envolve não apenas o conteúdo a ser publicado. Mas acima de tudo um compromisso ético, de empatia e responsabilidade com a sociedade.

    Uma das maiores dificuldades de se trabalhar com a Divulgação Científica é ponderar sobre o quê e como se vai falar/abordar algo. Quando estamos em tempos [digamos] regulares, produzimos conteúdo a partir de um planejamento, com organização de pautas, postagens semanais e/ou quinzenais, também temos um cronograma para estudar cada temática que vamos abordar. Isso nos traz uma certa segurança no que escrevemos, temos tempo de depurar tudo o que fazemos, incluindo revisar, repensar as palavras.

    Algumas vezes, óbvio, há acontecimentos sociais que se tornam urgentes e produzimos textos mais apressados. Normalmente solicitamos tais textos a blogueiros das áreas específicas, por exemplo.

    No entanto, desde março nossa periodicidade de publicação foi alterada. São dois ou três textos semanais, além da reorganização dos textos nas redes sociais. Resolvemos, há algumas semanas, reestruturar o trabalho da Covid-19. Isto aconteceu não só pelo excesso de trabalho em si. Mas por sentirmos que vínhamos fazendo sem este tempo de ponderação. Também sentimos a necessidade de organizar melhor o conteúdo que temos abordado, frente às necessidades de nossos leitores.

    Comunicação e Divulgação Científicas em tempos de pandemia

    Como assim? Trabalhar com comunicação científica em tempos de crise sanitária. Também há obscurantismo científico e negacionismo em altos cargos executivos do país. Além disso, vemos disputas político-partidárias em torno da vacina. Há demandas diárias de conhecimentos de alta complexidade. Tudo isso é um desafio para todos da divulgação científica. Há também a reafirmação de um compromisso assumido perante aqueles que, de alguma maneira, confiam no que temos feito e buscam aqui informações, diálogos, trocas acerca da pandemia e relações científicas e sociais que nos atingem diariamente.

    Ouvimos falar sobre a importância da divulgação científica para a construção de uma cultura científica (Vogt & Morales, 2018). Mas para isso é essencial que ela seja construída a partir de uma relação mais próxima com o humano, mais empática.

    E a vacina? A morte? O Butantã? A Anvisa?

    Desde segunda as reviravoltas com o tema da vacina estão mais assoberbados que o usual. Primeiro, os pronunciamentos da Pfizer, depois, vimos a suspensão da CoronaVac, que hoje foi retomada.

    Divulgadores científicos e cientistas que acompanhamos e com os quais trocamos informações – parceiros de trabalhos – têm produzido conteúdo incessantemente. Pessoas que se apresentam cansados, virando (literalmente) noites e noites para trabalhar e compreender a complexidade de toda a situação deste momento.

    Hoje o dia foi distante de redes sociais em nosso expediente. Víamos a movimentação e os debates de maneira fragmentada, em meio às aulas, palestras e reuniões. Buscávamos informações, tristes pelo embate político. Tentando compreender ataques de duas instituições de respeito disputando por legitimidade frente ao que era narrado como “evento grave” (na hora do almoço).

    Nesta hora, já nos parecia nefasto um presidente da república vibrar pela suspensão dos procedimentos de desenvolvimento da vacina. Isto acontecia como se fosse uma partida de um lance em um jogo de sorte ou revés. Acrescente a desconsideração sobre o momento tão importante e que requer atenção para cada etapa que vivenciamos.

    Que momento?

    Nós temos, hoje, no Brasil 161 mil mortes, 364 mil casos em acompanhamento e 5,5 milhões de pessoas já foram infectadas. No mundo, são 51 milhões de infectados e mais de 1 milhão e 200 mil mortos. Lamentamos a perda de cada uma dessas vidas.

    A pandemia, ao que tudo indica, está longe de acabar. A morte é vivência cotidiana. As contaminações são expectativas de muitos que trabalham diariamente, expondo-se por falta de políticas que direcionem nosso país e nossa população de modo mais seguro.

    Não há o que vibrar por uma pesquisa com vacina sendo suspensa.

    Ao fim do dia…

    Soubemos a causa da morte ao final da tarde. A morte por evento grave não é vinculada à vacina. Foi um suicídio. Todo e qualquer debate deve sempre cercar-se de extremo cuidado e muito (MUITO!) respeito. Tanto que se buscou omitir a causa pelas instituições envolvidas com a pesquisa, ressaltando-se somente o fato de não ser relacionada à vacina. Inclusive há formas e procedimentos para notícias que envolvem suicídio. A Organização Mundial da Saúde tem um documento e debate específico para isso.

    Neste momento, retomamos o início deste texto. Isto é: para abordarmos qualquer tema na Divulgação Científica, com ética, empatia e responsabilidade, é fundamental não nos apressarmos, nem buscarmos ineditismo para falas proferidas aqui. Todo o tema científico, por princípio, precisa de cuidado, revisão e rigor.

    O suicídio, prezados leitores, é tema para falas cuidadas e atentas. Poderíamos, sim, escrever sobre isso, no tempo que uma publicação precisa para ser desenvolvida, com os profissionais que se ocupam com esta discussão no âmbito científico – como sempre fizemos aqui. Ver pulular publicações que deveriam centrar-se na produção e desenvolvimento da vacina – falando tão vulgarmente deste tema nos deixou pensativos sobre se este deveria ser o foco, usando a dor como mote.

    Nosso compromisso

    Temos profundo respeito e compromisso com cada texto que produzimos e, desta vez, não será diferente. É preciso mais do que uma análise mais estruturada para conversar com todos. Precisamos, antes de tudo, apontar que debates inócuos e vazios, não fazem parte do que consideramos cientificamente válidos e eticamente pertinentes.

    A isto, estarrecidamente, observamos o acréscimo de posicionamentos governamentais necropolíticos. Também observamos disputas territoriais e ganhos individuais. Tudo isso sobrepondo-se aos debates científicos e causando desinformação, e em cima de conhecimento científico produzido em benefício da população, debates apressados para cliques exagerados. Somos (e precisamos ser) mais do que isso.

    Àqueles que, neste momento, perderam alguém em um ano tão difícil, nossos mais sinceros sentimentos.

    Para saber mais

    OLIVEIRA, L (2020) Da fatalidade epidemiológica à ferramenta de extermínio: a gestão necropolítica da pandemia; Blogs de Ciência da Unicamp – Especial Covid-19

    SCHÜTZER, DBF e CAMPOS, LKS (2020) “Quando fecho a porta da minha casa, me sinto mal acompanhado”: impactos da pandemia e do isolamento social na saúde mental; Blogs de Ciência da Unicamp – Especial Covid-19

    VOGT, C e MORALES, AP (2018) Cultura Científica; ComCiência,

    World Healt Organization; Suicide Prevention: Responsible reporting on suicide Quick reference guide https://www.who.int/mental_health/suicide-prevention/dos_donts_one_pager.pdf

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Vamos abrir as escolas? (parte 3)

    Texto escrito por Gian Carlo Guadagnin e Gildo Girotto Junior

    Já discutimos nos primeiros textos da série questões importantes relacionadas a possível abertura das escolas. Buscamos falas de especialistas e discutimos falácias irresponsáveis. Temos clareza que, ainda que pudéssemos pensar na abertura, uma série de protocolos deveriam ser seguidos e uma infraestrutura mínima deve estar à espera dos alunos, alunas, professores e professoras. Pois bem, podemos então pensar um pouco sobre essa estrutura que (não) temos e para termos clareza do quão longe (ou perto) essa história vai. 

    Reconhecendo que as desigualdades se acentuam com a ausência de um projeto educacional e reconhecendo também que as condições sanitárias não são ideais para o retorno (e traremos dados sobre isso), nos cabe a pergunta: é possível planejar o ensino nestes meses finais que nos restam para o fim do ano? É mais inteligente e mais sensato quando nos atentamos aos exemplos da nossa realidade e pesamos as possibilidades que nos são factíveis, do que sair por aí comprando exemplos internacionais que não se encaixam nas nossas salas.

    A(s) escola(s) no Brasil

    Dois dos fatores mais importantes no controle da pandemia do novo Coronavírus, já assinalados nos diferentes protocolos, são o distanciamento social e as condições sanitárias, os quais atingem como uma bomba o espaço escolar brasileiro.

    Segundo dados do Censo Escolar de 2019(1), divulgados pelo INEP, a média nacional de alunos por turma varia entre (mínimo) 14,3, na creche, e 31,1 (máximo) no Primeiro ano do Ensino Médio, todavia esse valor chega a 36,5 em algumas regiões do nordeste, por exemplo(2). Esses números são muito superiores aos cerca de 20 alunos/turma da média dos países da União europeia(3), da qual fazem parte os que afirmam (de forma enganosa) que o contágio da doença não foi agravado pela volta às aulas presenciais.

    Sobre a realidade aqui, ainda tem mais…

    Ainda, a qualidade sanitária das instituições escolares também é muito diferente. Muitas escolas do Brasil não dispõem de papel higiênico, por exemplo, para todos os estudantes, ou então obtém sua água de cisternas e essa é a única forma possível de alguma tentativa de higienização. Em casos piores não há nem mesmo unidades de saúde próximas e, assim, quem faria a checagem do estado de saúde desses estudantes e professores?

    Há que se considerar também que em muitos casos, como na educação básica, boa parte das relações são construídas pelo toque, pelo contato direto, e então não faz sentido levar a criança à escola para que ela tenha uma educação psicossocial, se estaremos limitando ou proibindo essa ação. Ou seja, o argumento acaba em si mesmo e, portanto, não se justificaria.

    Mas tem mais ainda? Sim…

    Voltando aos dados de infraestrutura, temos um grande número de escolas que funcionam em dois ou até três turnos. Ou seja, um conjunto de estudantes que frequentam as aulas no período da manhã, um novo conjunto de estudantes à tarde e outro à noite o que implica que para cumprir as condições sanitárias, a escola deveria ser sanitizada(4) totalmente entre os turnos.

    Como será o controle das condições de entrada? Como está sendo planejado a sanitização dos ambientes? Quais as estratégias de acompanhamento da disseminação do vírus? As perguntas de quem está diretamente envolvido com o retorno, ou seja, alunos e professores, são muitas.

    Quem defende a volta com base na experiência internacional de países desenvolvidos, por outro lado, não parece se perguntar. Um terceiro lado sequer se importa porque não é a sua realidade. Todavia, no meio de tudo isso, poucos se preocupam com as recomendações de caráter internacional, ou com a necessidade de um plano de retomada pensado para o país. Incluímos nesse grupo os ministros e ex-ministros e demais coordenadores do ministério da educação do atual governo.

    O que podemos fazer?

               Mas se não retornarmos, o ano estará perdido? Sem dúvidas, a qualidade de qualquer intervenção educacional remota e, nesse momento, adaptada, é inferior ao ensino que foi planejado presencialmente. Não questionamos esse fato. Os primeiros meses de pandemia deixaram claro que a adaptação ao ensino remoto escancarou as desigualdades e tolheu a possibilidade de estudo de muitos estudantes. No entanto, para garantirmos as condições de saúde, defendemos que o retorno presencial não ocorra e que seja possível, com a compreensão da situação, e o desenvolvimento de ações estruturadas em estratégias de acesso no intuito de “devolver” a educação àqueles de quem ela foi tirada.

    Desse modo, a pergunta que deveríamos ter feito não é “devemos retornar?”, porque as recomendações são claras(5), mas, sim, deveríamos questionar “como planejar e executar o trabalho com a situação remota?”. E ainda, “como planejar e executar ações que suportem os aprendizados perdidos nesse ano?”. Essas são questões que, antes de tudo, devem levar em consideração a especificidade dos municípios e, sem dúvida nenhuma envolver os diferentes atores da comunidade escolar. 

    Dessa forma, a esfera online, mais segura no momento, deve funcionar se governos e indivíduos articularem ações. Algumas recomendações já têm sido feitas nesse sentido, como as destacadas na sequência, indicadas pela UNESCO(6). Deve-se ressaltar que o acesso à educação é direito constitucional universal de todo cidadão e, assim, dever do poder público de fazer todo o necessário para que mesmo o indivíduo mais afastado e vulnerável não fique em desvantagem.

    1 – Analisar a resposta e escolher as melhores ferramentas 

    Escolher as tecnologias mais adequadas de acordo com os serviços de energia elétrica e comunicações disponíveis, bem como as capacidades dos alunos e professores. Isso pode incluir plataformas na internet, lições de vídeo e até transmissão através da televisão ou rádio.  

    2 – Assegurar-se de que os programas são inclusivos

    Implementar medidas que garantam o acesso de estudantes de baixa renda ou com deficiências. Considerar instalar computadores dos laboratórios da escola na casa dos alunos e ajudar com a ligação à internet.  

    3 – Estar atento para a segurança e a proteção de dados  

    Avaliar a segurança das comunicações online quando baixar informação sobre a escola e os alunos na internet. Ter o mesmo cuidado quando partilhar esses dados com outras organizações e indivíduos. Garantir que o uso destas plataformas e aplicações não violam a privacidade dos alunos.  

    4 – Dar prioridade a desafios psicossociais, antes de problemas educacionais  

    Mobilizar ferramentas que conectem escolas, pais, professores e alunos. Criar comunidades que assegurem interações humanas regulares, facilitando medidas de cuidados sociais e resolvendo desafios que podem surgir quando os estudantes estão isolados.  

    5 – Organização do calendário 

    Organizar discussões com os vários parceiros para compreender a duração da suspensão das aulas e para decidir se o programa deve centrar em novos conhecimentos ou consolidação de currículo antigo. Para organizar o calendário é preciso considerar as áreas afetadas, o nível de estudos, as necessidades dos alunos e a disponibilidade dos pais. Escolher metodologias de ensino de acordo com as exigências da quarentena evitando métodos de comunicação presencial.  

    6 – Apoiar pais e professores no uso de tecnologias digitais 

    Organizar formações e orientações de curta duração para alunos e professores. Ajudar os docentes com as condições básicas de trabalho, como rede de internet para aulas por videoconferência e assegurar os pagamentos salariais, principalmente daqueles que apresentam maior vulnerabilidade..  

    7 – Mesclar diferentes abordagens e limitar o número de aplicações  

    Misturar as várias ferramentas disponíveis e evitar pedir aos alunos e pais que baixem ou testem múltiplas plataformas.  

    8 – Criar regras e avaliar a aprendizagem dos alunos 

    Definir regras com pais e alunos. Criar testes e exercícios para avaliar de perto a aprendizagem. Facilitar o envio da avaliação para os alunos, evitando sobrecarregar os pais.  

    9 – Definir a duração das unidades com base na capacidade dos alunos  

    Manter um calendário de acordo com a capacidade dos alunos se concentrarem sozinhos, sobretudo para aulas por videoconferência (assegurando para isso as condições mínimas de vida na alimentação, saúde e habitação). De preferência, cada unidade não deve exceder os 20 minutos para o ensino fundamental e 40 minutos para o ensino médio. 

    10 – Criar comunidades e aumentar a conexão 

    Criar comunidades de professores, pais e diretores de escolas para combater o sentimento de solidão e desespero, facilitando a troca de experiências e discussão de estratégias para enfrentar as dificuldades.

    Isto quer dizer que vai funcionar?

    O processo está longe de ser considerado fácil. Desse modo, as recomendações são densas e envolvem parcerias importantes, articulação do Ministério da Educação (praticamente ausente durante toda a pandemia). Além disso, requerem conhecimento técnico, preparo, diálogo, respeito e segurança para os profissionais, estudantes e suas comunidades, além de noção das realidades locais. Mas ainda assim, é mais coerente do que colocar vidas em risco e lidar com a dor.

    Finalizando

    Por fim, devemos reiterar que o espaço virtual nunca substitui a experiência de sala de aula na formação do indivíduo. Além disso, uma educação digitalizada não pode ser pensada como terminal. Assim, devemos exigir as adaptações necessárias ao momento e simultaneamente cobrarmos a construção de uma educação universal, válida, eficiente, pública e presente para todos os sujeitos. 

    O que estamos vivendo agora é atípico e não pode ser entendido como o novo normal. A educação, quando segura, deve ser presencial. Do contrário, podemos privar indivíduos do acesso, criar novas defasagens e aumentar a desigualdade social, que já nos é tão crassa, ou acabar por fomentar uma educação como negócio, que deve ser considerada um perigo no longo prazo e, portanto, desestimulada.

    Referências

    1 – Censo escolar no Brasil, http://portal.inep.gov.br/censo-escolar

    2 – Alunos por turma 2019 no Brasil, http://portal.inep.gov.br/web/guest/indicadores-educacionais

    3 – Alunos por turma no Mundo, https://novaescola.org.br/conteudo/4475/brasil-esta-entre-os-paises-com-mais-alunos-por-turma

    4 – Sanitização, o que é? De água sanitária à radiação: você já ouviu falar em sanitização?

    5 – ARTIGO: Reabrir as escolas: quando, onde e como? https://nacoesunidas.org/artigo-reabrir-as-escolas-quando-onde-e-como

    6 – Covid-19: Unesco divulga 10 recomendações sobre ensino a distância devido ao novo coronavírus https://news.un.org/pt/story/2020/03/1706691

    Textos anteriores da série:

    Vamos abrir as escolas? (parte 1)

    Vamos abrir as escolas? (parte 2)

    Os Autores

    Gildo Girotto Junior é Licenciado em Química (UNESP), Doutor em Ensino de Química (USP) e atualmente é professor e pesquisador no Instituto de Química da Unicamp

    Gian Carlo Guadagnin é estudante de graduação em Licenciatura em História (UNICAMP)

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Vamos abrir as escolas? (parte 2)

    Apenas no dia 24 de setembro, tivemos 831 óbitos no Brasil, acumulados, temos 139.808 óbitos confirmados no Brasil, até esta data. Como lidar com os debates de abertura de escolas, quando ainda temos em nosso país tantas mortes diárias?

    Temos escutado diversas opiniões, olhar algumas delas talvez seja importante para pensarmos a abertura das escolas. É o que faremos hoje e nos próximos textos em que vamos olhar para algumas falas comuns que escutamos quando perguntamos se as escolas deveriam mesmo abrir… 

    1. Os bares abriram! Como assim não podem abrir escolas?

    Talvez a pergunta correta fosse: será que os bares deveriam ter aberto? Qual o nível de segurança de um lugar como um bar, como controlar entradas e saídas destes espaços, quando grande parte funciona com seu público circulando na rua?

    Não faz sentido comparar bares e escolas, pois os bares não deveriam, pela lógica, estarem abertos. Há evidências de “superespalhamento” da COVID-19 em espaços como bares e eventos sociais (como casamentos), publicados sobre Hong Kong (saiba mais aqui e aqui). Assim, estes seriam os maiores responsáveis (10% dos casos de infecções rastreados). 

    Vale lembrar a reportagem da BBC, que aponta a partir de um estudo estadunidense as atividades de maior risco:

    Retirado da Reportagem “Apenas a vida de vocês importa?”

    Talvez por termos aberto comércios, shoppings e bares é que as escolas passaram a ser mais um fator de risco e não “o grande fator de risco”. Mas definitivamente, não é porque os bares abriram, que escolas também podem abrir (essa comparação não faz sentido!).

    – Mas, a economia, ela está sofrendo demais, sabe?

    Pois, sim. a economia está sofrendo. Já discutimos isso em várias postagens aqui no Especial. Também discutimos sobre necropolítica, vale a pena conferir…

    2. Se mantivermos os protocolos sanitários nas escolas, não vai funcionar?

    A Organização Mundial da Saúde (OMS) indica que para abrir escolas o indicado é ter uma abordagem baseada no RISCO de contaminação (veja na íntegra as recomendações da OMS aqui). Neste sentido, talvez mais importante do que pensar se escolas no Brasil devem abrir, seja pensar sobre: em que municípios e em quais estados escolas podem abrir. 

    Além disso, os benefícios e os riscos devem ser mensurados em relação a intensidade de transmissão na região da escola. Isto é, não adianta pensar em abrir escolas no BRASIL. Isto é, a análise de abertura tem que ser pensada em relação à comunidade escolar em cada cidade. Por exemplo: a transmissão está elevada? Como são as condições sanitárias desta região? Como as crianças chegarão na escola?

    Outros fatores, segundo a OMS, devem ser levados em consideração nesta conjuntura, tais como: os impactos de se manter a escola fechada nas comunidades, a realidade de populações vulneráveis, as desigualdades sociais e a relação do processo de ensino aprendizagem. Além disso, a OMS recomenda que deve ser analisado se as escolas conseguem operar em boas condições sanitárias e se as autoridades locais têm condições de agir rapidamente, caso necessário.

    Mas, vocês podem perguntar: o que são boas condições sanitárias, para a OMS?
    Recomendações OMS para abertura das escolas
    Recomendações OMS para abertura das escolas

    Aqui vou fazer algumas observações que penso ser pertinente:

    Somos o 7º país do mundo em óbitos por milhão de habitantes. 

    No entanto, somos o 82º país do mundo em quantidade de testes por milhão de habitantes.

    O que isto quer dizer? Que embora nós tenhamos aumentado a quantidade de testes realizados aqui no Brasil, os dados confirmados de óbitos e infectados nos colocam nos dez primeiros colocados. Mas de testagem e aferição de doentes em 82º lugar. Estamos testando pouco e, mesmo assim, confirmando muitas mortes. (Se às vezes parece confuso comparar os números da Covid-19 “por milhão de habitantes” ou em números absolutos, veja estas postagens: 1, 2, 3).

    Esta semana foi anunciado, aqui em Campinas, que na cesta básica destinada aos estudantes em isolamento social não terá arroz em função do valor. Como um município que não consegue garantir 5kg de arroz por aluno que precisa da cesta básica, garantirá testes diagnósticos à equipe que trabalha na escola e alunos? (A dúvida é sincera e vale a indicação de que teremos um texto sobre segurança alimentar em breve…).

    Será que conseguimos ter uma noção segura de risco e manter boas condições sanitárias para proteger a saúde e segurança de todos na escola (estudantes, funcionários e docentes) sem a realização de testes em massa em nosso país?

    Como diz o dito popular: fica aí o questionamento

    Voltemos às recomendações da OMS:

    “Higiene e práticas diárias na escola e nas salas de aula: Distanciamento físico de pelo menos 1 metro entre indivíduos, incluindo espaçamento de carteiras, higiene das mãos e respiratória frequente, uso de máscara apropriada para a idade, ventilação e medidas de limpeza ambiental devem ser implementadas para limitar a exposição” (tradução minha).

    A OMS recomenda, ainda, triagem de alunos e funcionários e recomendações de que caso apresente qualquer sintoma ou mesmo não se sinta bem, que fiquem em casa sem qualquer penalidade.

    Assim, aqui talvez fosse pertinente perguntar-se: É possível manter afastamento de 1 metro de cada carteira, com todas as crianças retornando? Como seria a dinâmica de retorno para criar condições MÍNIMAS de saúde para que estas recomendações tornarem-se efetivas?

    Além disso, quando pesamos os benefícios do retorno, talvez seja importante não apenas fazer um check list de benefícios e malefícios. Mas apontar quais os riscos deste suposto benefício do retorno.

    Destaco, ainda, o recente documento lançado pelo Ministério da Saúde (MS), “Orientações para retomada segura das atividades presenciais nas escolas de educação básica no contexto da pandemia da Covid-19” (leia na íntegra aqui). Neste documento, há um detalhamento sobre como as escolas devem agir em caso de reabertura. As orientações, no entanto, são sugestões a serem seguidas pelas escolas. Estas não são, portanto, obrigadas a seguir todas as recomendações do MS.

    No documento brasileiro, por exemplo, consta:

    “As orientações abaixo são gerais e deve-se sempre observar as normas e orientações estaduais e municipais na implantação dessas medidas e na determinação de reabertura das escolas, sejam elas da rede municipal, estadual ou federal. É importante reforçar a autonomia federativa, uma vez que as decisões sobre a implementação de estratégias são tomadas localmente, em colaboração com serviços de saúde. 

    Essas ações, ao longo de todo o processo de planejamento e execução, precisam ser articuladas com toda a Rede de Atenção à Saúde (RAS) e demais setores do respectivo ente federado capazes de orientar, acompanhar e dar suporte à escola e toda a comunidade escolar. Com isso, os Grupos de Trabalho Intersetoriais Municipais (GTI-M) do PSE tem um papel central na articulação desses atores envolvidos nas orientações deste documento. É importante que o tema da Covid-19 seja incluído no planejamento das aulas, sendo trabalhado em conjunto com as ações de promoção da saúde e recomendações do Ministério da Saúde e integradas com as disciplinas escolares, como forma de agregar ao aprendizado” (Brasil, 2020, p.5-6).

    Em suma, o retorno às aulas tem como premissa as condições de orientar, acompanhar e dar suporte à escola e toda a comunidade escolar por parte da Rede de Atenção à Saúde (RAS). Neste contexto, seria importante à comunidade escolar – pais e gestão da escola – estarem em contato com a RAS e cobrarem estas ações antes do retorno efetivo das crianças.

    Por fim?

    Assim, seria recomendável, ANTES de reabrirem as escolas, assegurar que teremos estas condições em cada escola e comunidade escolar: distanciamento entre classes, escalonamento para intervalos, refeições, entradas e saídas de alunos; testes e rastreamento de contatos de funcionários, docentes e estudantes; análise de grupos de risco e contatos destas pessoas com indivíduos que apresentam riscos (pessoas idosas ou com comorbidades).

    Além disso, obviamente, uma análise detalhada da região e localidade para assegurar-se que não temos uma situação de risco neste momento – o que conseguiríamos dizer se tivéssemos testes em quantidades suficientes (o que está longe de ser uma realidade!).

    No próximo texto, vou propor que pensemos sobre outras falas comuns, tais como “é justo as crianças perderem o ano escolar por causa da Covid-19?”; “não dá para esperar a vacina, em algum momento teremos que voltar!” e “os pais e as crianças estão cansados, talvez seja bom voltar levando-se em conta a saúde mental” (também parecida com a fala) “não se contaminar é importante, mas conviver com outras crianças também!”.

    Por enquanto, acho, já temos bastantes ideias para pensar e discutirmos juntos (ou o famoso: por hoje é só, pessoal…).

    P.S.: um update rápido

    Só para lembrar que, junto a este debate, ontem (24/09) enquanto produzíamos este texto, o nosso Ministro da Educação Milton Ribeiro declarou que o ensino remoto acentuou a desigualdade no Brasil – o que tem sido apontado como um dos possíveis benefícios do retorno (minimizar esta desigualdade). Tal debate não leva em conta, claro, as condições em que as escolas estão e de que modo vai acontecer o retorno. Vale a pena destacar a fala, conforme o jornal Estado de São Paulo:

    BRASÍLIA – O ministro da Educação, Milton Ribeiro, reconhece que a pandemia do novo coronavírus acentuou a desigualdade educacional no País. “Não é um problema do MEC, mas um problema do Brasil”, afirmou em entrevista ao Estadão. Ribeiro acredita que não faz parte das atribuições do ministério resolver a falta de acesso à internet de alunos que não conseguem acompanhar aulas online ou se envolver na reabertura de escolas.

    Na entrevista, o Ministro afirma que haverá repasses para os municípios e para as escolas, para compras de insumos de proteção. O questionamento de se estas medidas asseguram estudantes, funcionários e docentes, feitas no início do texto, permanece.

    Para Saber Mais:

    ADAM, D.C., WU, P., WONG, J.Y. ET AL. (2020) Clustering and superspreading potential of SARS-CoV-2 infections in Hong Kong. Nat Med

    BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE (2014). Oficina Nacional de Planejamento no Âmbito do SUS.

    BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE (2020) Orientações para retomada segura das atividades presenciais nas escolas de educação básica no contexto da pandemia da Covid-19.

    HSIANG, S, ALLEN, D, ANNAN-PHAN, S et al (2020) The effect of large-scale anti-contagion policies on the COVID-19 pandemic Nature 584, 262–267.

    ROVÊDO, T (2020) Educação corta arroz da cesta entregue a alunos de Campinas; A Cidade On 

    WHO (2020) Q&A Schools and Covid-19

    WORLD METERS (2020) https://www.worldometers.info/coronavirus/#countries

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Vamos abrir as escolas? (parte 1)

    Texto escrito por Gian Carlo Guadagnin e Gildo Girotto Junior

    E agora, José? E agora, Você?

    Porque planejar um novo semestre escolar corretamente não significa precisar voltar ao sistema presencial? É hora de ouvir educadores, professores e alunos, e não só empresários e economistas. O problema, ou o caroço, não é a escola não ser presencial, é ela não ser nada. E, tristemente, em muitos lugares ela já é pouca.

    Com a naturalização irracional da pandemia do novo coronavírus, por boa parte da população e endossada por políticos e figuras públicas, a vida volta a uma normalidade inexistente e perigosa. Da irresponsabilidade de quem é legalmente dono de si, surgem os que querem colocar jovens e crianças em risco, com justificativas superficiais que se suportam no desconhecimento da realidade da escola no país.

    As ruas…

    Não bastassem as aglomerações em ruas, bancos, restaurantes e lojas, há quem defenda que é hora dos estudantes voltarem às suas atividades escolares presenciais. Defendem ainda que planejar um novo semestre/bimestre à distância não se justifica, uma vez ser possível organizar as escolas em condições para alocar estudantes, professores e funcionários em sala.

    Procuramos nesse texto iniciar uma discussão trazendo, primeiramente, uma visão geral e algumas recomendações de especialistas sobre o retorno às aulas. A intenção dessa série é, a partir de argumentos factuais, entender caminhos para a educação nesse momento, ainda que ocorra a distância. E, deixamos claro nossa opinião que o contexto de um planejamento do ensino à distância EM CONTEXTO PANDÊMICO não significa defender um projeto de educação a distância permanente. 

    O caroço no angu

    Matérias recentemente publicadas em jornais de grande circulação apresentam uma visão problemática, em alguns pontos, sobre a volta às aulas. Limitações de abordagem, falácias e uma diminuição da situação escolar nacional que é, na verdade, típica de quem nunca, ou muito pouco, entrou numa sala de aula da rede estadual de qualquer unidade da federação. Assim, a falsa simetria entre escolas e comércio, sob a égide de um populismo que se pauta em frases como “pagaremos caro por abrir bares antes de escolas” sustenta uma ideia de que o lucro do empresariado educacional está padecendo e necessitando de discursos baratos na tentativa de convencer população e governo. Em contraponto, pesquisas com a população mostram que uma de cada três pessoas não se sente segura no retorno à escola, o que acirra ainda mais o debate.  

    O fato é que a ingerência que se faz em tantas áreas econômicas e sociais não pode, nem deve de forma alguma, ser estendida para as escolas por uma justificativa, usada de forma rasa, de que a educação e as crianças devem ser prioridade. Se as crianças, os jovens, todos aqueles que trabalham neste setor e a educação devem (e devem mesmo!) ser prioridade, então porque não pensar na saúde e segurança desses sujeitos primeiro?!

    Pois é…

    Sabemos, e reafirmamos, a necessidade do compartilhamento de experiências com outros indivíduos na formação cognitiva, social e emocional dos estudantes(1) . Se nós, adultos, já sofremos com a ausência do contato humano, imaginemos as crianças. Além disso, é verdade que muitos jovens e crianças não estão tendo nenhum tipo de educação formal nesse período de pandemia (a ONU estima cerca de 1,6 bilhão de pessoas no mundo todo)(2). Mas, é exatamente por isso que precisamos pensar formas eficientes e acolhedoras de educação, ainda que à distância (e não necessariamente virtual), em um momento que essa parece ser a opção mais segura, principalmente em países com a estrutura educacional como a brasileira.

    Dizemos isso em virtude de nossa situação social e econômica ser muito particular, o que se desdobra e implica em grande medida na nossa educação quanto à acesso, eficiência, métodos, espaços, limitações e proficiências. Claro que discutir o lugar da escola nesse momento sem falar de seguridade e desigualdade social, distribuição de renda e condições mínimas de vida é bastante complicado.

    E o comércio, não abriu?

    Boa parte dos negócios reabriu porque seus donos não conseguem manter funcionários e a si mesmos, sem clientes. Isso mostra que, nas massas, até mesmo aqueles que se entendem parte do processo produtivo não têm estabilidade social. O que dizer então das famílias, e de seus estudantes, em situação de vulnerabilidade, ou que perderam o emprego ou tiveram diminuição de renda? Bom, a escola não é fonte de renda, de modo geral, para os estudantes, mas é a única fonte de alimentação balanceada que muitos deles têm. Estar desassistido pela escola sujeita um aumento das chances de abuso sexual, gravidez na adolescência e exploração do trabalho para auxiliar as despesas da casa. Além disso, significa não aprender na “idade ideal”, o que leva a defasagens na vida toda(3).

    Entretanto, observa-se que, mesmo que o comércio tenha aberto, a vida não voltou ao espírito de normalidade. Segundo a pesquisa(4), a sensação de segurança sanitária é baixa. Dados recentes mostram que 31% das pessoas não se sentem nada seguras para ir ao trabalho, e esse número aumenta em situações de lazer, atingindo 59% em ‘ir à restaurantes” e 63% para “ir ao cinema”. 

    E a escola?

    Quanto à escola, entre as famílias que ganham até 2 salários mínimos ao mês o percentual de pessoas contrárias à abertura das instituições é de 77%, e atinge 56% das famílias com renda superior a dez mil reais ao mês. Nas famílias em que os estudantes frequentam a rede privada, 75% se mostraram contrários à abertura, enquanto nas com estudantes da rede pública o índice chega a 79%. 

    Compreendendo toda a complexidade do impacto da ausência da escola como espaço físico. Todavia, compreendemos também que a escola é muito diferente do comércio e, nessa situação que vivemos, ela não precisa estar aberta para funcionar. Mesmo as escolas particulares continuaram funcionando e, inclusive, cobrando mensalidades, o Estado não cortou a pequena e mal-distribuída verba da educação. O trabalho de professores e funcionários não parou. Na verdade surgiram novos desafios, mas a maioria dos estudantes continuaram sendo, de alguma maneira, atendidos à distância, online ou por meios físicos. 

    O que defendemos portanto, é que, não havendo a garantia de preservação da saúde de estudantes e não sendo possível estimar como a disseminação do vírus seria afetada pela volta presencial as aulas, todo esse atendimento seja pensado, planejado e organizado para que continue remoto e, possa, nesse caminho aprimorar ações para garantir o acesso aqueles que ainda estão à margem do processo. No terceiro texto desta série apresentaremos dados das escolas e ações possíveis nesse sentido.

    Mas e a Europa, não tá abrindo?

    Enquanto isso, onde a desigualdade social é menor, e as condições de acesso básico à educação são levadas a sério, meio mundo resolveu voltar ao ambiente presencial, e com motivos. Além de ter um programa eficiente e planejado de retorno, esses (poucos) países tiveram um controle inteligente e efetivo da pandemia, desde muito cedo, coisa que, salvo exceções por forças estaduais ou municipais, não tivemos, não em nível nacional. Nossas taxas de contágio não diminuíram satisfatoriamente (apenas se estabilizaram) e nossa condição física escolar impede que o argumento de que “dá pra voltar, mas com cuidado” se produza como verdadeiro. 

    Mesmo nesses países não há plenas garantias de que a volta será definitiva; é um processo gradual e sob observação, com possibilidade de declinação à qualquer momento. Assim, há que se destacar ainda, que mesmo em países considerados seguros, o número de casos aumentou. Na frança, por exemplo, os novos casos associados ao ambiente escolar representaram na última semana um terço do total.(5)(6)

    Recomendações

    Se buscarmos as recomendações para entender o processo, acharemos as recomendações do corpo de especialistas em educação da UNESCO, em abril. Neste documento, consta que da reabertura das escolas os governos deveriam:

    “Preparar-se com políticas, procedimentos e planos de financiamento estratégicos necessários para melhorar a escolaridade, com foco em operações seguras, incluindo o fortalecimento de práticas de ensino a distância.”(7) 

    Nós fizemos isso? Temos um Plano? Não, não fizemos isso. Mas queremos reabrir tudo a toque de caixa.

    A OMS desencoraja a abertura de escolas em locais onde a contaminação ainda seja alta (como no caso do Brasil) (7). Além disso, pesquisadores do Massachusetts General Hospital (MGH), afiliado à Harvard, e do Mass General Hospital for Children (MGHfC) afirmam que as crianças desempenham um papel maior do que o imaginado na difusão do coronavírus na comunidade. Isso porque as crianças infectadas mostraram ter um nível significativamente mais alto de vírus em suas vias aéreas do que adultos hospitalizados em UTIs para tratamento da doença. Ademais, são assintomáticas em boa parte dos casos(8;9).

    Finalizando

    Deste modo, o que precisamos (antes de reabrir irresponsavelmente as escolas) é planejar, cobrar ações das esferas públicas (lembrando que não é o professor que resolve os problemas da escola). Isto para a manutenção e incremento do acesso e da qualidade da educação, em prol de programas que garantam que todos tenham uma vida digna, com saúde, educação e estabilidade econômica, fatores que poucas vezes antes estiveram tão interligados, ou tão na nossa cara. Tampouco podemos também transferir as responsabilidades da educação familiar para a escola.

    Nos próximos textos, discutiremos mais sobre todo esse contexto. O problema, ou o caroço, não é a escola não ser presencial, é ela não ser nada. E, tristemente, em muitos lugares ela tem sido pouca.

    Para saber mais

    1 – Socialização na Escola

    https://www.scielo.br/pdf/er/n32/n32a10.pdf

    2 – ARTIGO: Reabrir as escolas: quando, onde e como?

    https://pt.unesco.org/news/reabrir-escolas-quando-onde-e-como

    3 – Marco de ação e recomendações para a reabertura de escolas – Abril de 2020.

    https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000373348_por

    4 – Pesquisa aponta insegurança sobre a volta às aulas

    https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/09/75-dos-eleitores-na-cidade-de-sao-paulo-sao-contra-volta-as-aulas-segundo-datafolha.shtml

    5 – Disparada de casos põe em xeque volta às aulas na França

    https://www.dw.com/pt-br/disparada-de-casos-p%C3%B5e-em-xeque-volta-%C3%A0s-aulas-na-fran%C3%A7a/a-54768254

    6 – Infecções em escolas são um terço dos novos casos de Covid-19 na França

    http://g1.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/videos/t/videos/v/infeccoes-em-escolas-sao-um-terco-dos-novos-casos-de-covid-19-na-franca/8891815

    7 – OMS, UNESCO e Unicef fazem recomendações para a segurança escolar na pandemia.

    https://pt.unesco.org/news/unesco-unicef-e-oms-emitem-orientacoes-garantir-que-escolas-estejam-seguras-durante-pandemia-da

    a – Documento  https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000374258_por

    8 – Alta transmissão por crianças

    9 – Crianças assintomáticas são 64% das infectadas pelo Covid-19 em Sp.

    https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/08/18/mais-de-64percent-das-criancas-que-testaram-positivo-para-covid-19-foram-assintomaticas-aponta-mapeamento-da-prefeitura-de-sp.ghtml

    Os Autores

    Gildo Girotto Junior é Licenciado em Química (UNESP), Doutor em Ensino de Química (USP) e atualmente é professor e pesquisador no Instituto de Química da Unicamp

    Gian Carlo Guadagnin é estudante de graduação em Licenciatura em História (UNICAMP)

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Pelos olhos delas: relatos e reflexões durante a quarentena – parte 1

    Startup Stock Photos via Pexels. Creative Commons.

    A pandemia da COVID-19 afetou profundamente a forma como a sociedade se organiza e teve reflexos agudos no universo do trabalho. No meio acadêmico, já há dados iniciais que mostram que as mulheres estão sendo desproporcionalmente afetadas: as cientistas e pesquisadoras estão submetendo menos artigos durante a quarentena; em contrapartida, os periódicos observaram um aumento do número de envios de trabalhos realizados por homens.

    Nós, do Ciência Pelos Olhos Delas, temos conversado muito sobre esse contexto de isolamento social e como ele impacta a produtividade de todas as pessoas que atuam na área acadêmica – desde discentes de graduação até professores universitários. Por isso, elaboramos um questionário em português e em inglês para mensurar esse impacto e comparar as respostas de quem faz pesquisa no Brasil e em outras partes do mundo.

    Os resultados parciais de nossa pesquisa podem ser conferidos na reportagem escrita por Nayara Fernandes e publicada no Portal R7 em 25 de agosto de 2020. Além dessa iniciativa, também temos pensado a respeito das repercussões da quarentena em nosso dia a dia, o que nos fez chegar à proposta deste post: relatar nossas vivências ao longo dos últimos meses e também refletir sobre o momento atual e sobre o que vem depois dessa experiência coletiva. Confira abaixo a primeira parte.

    Relatos e reflexões da equipe do Ciência Pelos Olhos Delas durante a quarentena

    Bruna Bertol

    A Bruna é mestre em Ciências com ênfase em Imunologia Básica e Aplicada e está terminando seu doutorado na mesma área pela USP de Ribeirão Preto (SP). Em 2019, fez estágio na Universidade do Colorado, em Denver (EUA), onde conheceu a Marina e a Giovana, integrantes do blog.

    Ela trabalha com câncer de tireoide e sua relação com fatores genéticos e imunológicos, buscando avanços no seu diagnóstico/prognóstico e tratamento, e também tem interesse nas discussões relacionadas às áreas de política, história e ciências sociais.

    Bruna apresentando seu trabalho de doutorado em um congresso científico internacional em Amsterdam (2018). Arquivo pessoal.

    Natural de Joinville (SC), Bruna voltou dos EUA em janeiro de 2020 para iniciar o último ano do doutorado. Tinha planos de fazer viagens internacionais e de passar mais tempo com sua família em Santa Catarina este ano. Com a chegada da pandemia no Brasil, todo o seu planejamento foi afetado. Ela conta mais abaixo:

    “Eu optei por ficar em Ribeirão Preto pois eu sempre lidei bem com a minha própria companhia, mas a verdade é que a combinação de 1) me adaptar ao Brasil novamente, 2) morar sozinha a mais 800 km de distância da minha família, 3) escrever uma tese de doutorado, 4) medo da pandemia e 5) isolamento social absoluto em casa, tem sido um grande desafio emocional para mim.

    No início, queria muito ler e entender sobre o novo coronavírus para me manter informada, e acabei deixando minha tese em segundo plano, mas, com o avanço da pandemia, chegou o ponto em que sinto que o esgotamento mental tem afetado minha produtividade científica. No início, acreditei que até o mês de agosto as coisas estariam melhores, mas a verdade é que não sabemos como serão os próximos meses no país. 

    Ribeirão Preto tomou medidas de isolamento social que foram cumpridas no início, porém, como a maioria das cidades brasileiras, passou a afrouxá-las, principalmente em virtude da pressão econômica, antes de haver uma redução significativa dos casos diários.”

    Para a Bru, a pandemia expõe de forma escancarada no Brasil a desigualdade social, a precarização do trabalho e a violação constante de direitos fundamentais (como o acesso a um serviço de saúde público e de qualidade). 

    Ela destaca ainda que as mulheres são particularmente afetadas durante a quarentena: ficam mais expostas à violência doméstica e mais sobrecarregadas com os cuidados com a casa e com as atividades de reprodução social¹, além de serem a grande maioria dos profissionais na linha de frente nos hospitais e nos serviços de saúde. 

    A verdade é que é difícil prever nossa vida pós-pandemia, mas certamente o momento em que vivemos nos exige repensar nossa vida individual e em sociedade, bem como ressignificar nossas prioridades, nossos direitos e nosso trabalho.”

    Carolina Francelin

    A Carolina é mestre e doutora pela UNICAMP em Genética e Biologia Molecular com ênfase em Imunologia. Logo após sua defesa de doutorado, no final de 2014, engravidou de sua filha Anna, hoje com 5 anos. 

    Em 2018, mudou-se com sua família para Birmingham (EUA), onde trabalha atualmente como pesquisadora na Universidade do Alabama. Além da pesquisa científica, ela tem interesse em acompanhar a produção intelectual sobre maternidade, criação e desenvolvimento infantil, e também adora fazer experimentos culinários acompanhada pela Anna.

    Carolina no laboratório onde trabalha na Universidade do Alabama em Birmingham (EUA). Arquivo pessoal.

    A Carol, que já conhecia a Marina e o blog antes de se juntar à nossa equipe no começo de 2019, nos conta como foi o início das medidas de quarentena na Universidade do Alabama e na cidade onde vive:

    Foi em uma reunião do laboratório, numa segunda-feira de manhã, que recebi o aviso sobre o fechamento da Universidade. Eu passei esse dia ‘fechando’ experimentos, congelando as células e me certificando que tudo ficaria seguro durante a quarentena – período esse que ninguém sabia dizer a duração. 

    Na quarta-feira da mesma semana as escolas fecharam. Meu esposo também foi enviado de quarentena para casa, sem previsão de volta ao trabalho. No fim daquela semana éramos eu em home office e eles (meu esposo e filha) de férias num apartamento fora da nossa terra natal. 

    Passei pelo desespero de produzir nesse período, o de manter o homeschooling, o de estudar, o de organizar a vida e por aí vai. Foi um processo de resiliência e auto-conhecimento diário, tentando manter os lemas ‘um dia de cada vez’ e ‘antes feito que perfeito’. 

    Voltamos para a rotina (quase) normal no meio de maio. Minha filha só tem aula porque frequenta escola particular, os colégios públicos continuaram fechados e reabriram agora em setembro. 

    Para o retorno ao laboratório, preparamos documentos de conduta de segurança, mantemos distância social, usamos máscaras e somos orientados a fazer de casa tudo o que for possível. As cafeterias estão fechadas, os restaurantes do campus foram abertos somente para a retirada de refeições e as aulas presenciais retornaram cheias de protocolo de segurança.”

    Para a Carol, a pandemia trouxe à tona importantes discussões, como as diferenças de classe, raça e gênero, o quanto grupos específicos são afetados de formas diferentes e o que pode ser feito para melhorar a sociedade como um todo:

    “As pessoas postam nas redes sociais que esperam pelo retorno à vida após a pandemia, e eu realmente espero que não seja um retorno. Eu espero que os processos tenham sido reavaliados e que, de alguma forma, a humanidade tenha mudado a forma de como tem construído o mundo.”

    Gabriela Mendes

    A Gabriela é biomédica e mestre em Biologia Celular pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Atualmente, ela realiza seu doutorado no Programa Interdisciplinar de Genética na Texas A&M University, em College Station, no Texas, onde trabalha desde 2016 com biomateriais.

    O objetivo principal do projeto da Gabi é utilizar esses biomateriais para promover a formação de novos vasos sanguíneos para acelerar a cicatrização local, visando o tratamento de doenças como diabetes e doenças cardiovasculares.

    Interessada em contribuir e aprender mais sobre a divulgação científica e o papel das mulheres nas diferentes áreas da ciência, ela integra o blog desde o início de 2019.

    Gabriela em 2019 no laboratório onde exerce sua pesquisa de doutorado, na Universidade Texas A&M em College Station (EUA). Arquivo pessoal.

    No final de fevereiro deste ano, durante uma reunião de laboratório, a Gabi foi alertada por sua orientadora sobre a possibilidade de passarem a trabalhar remotamente se o número de casos de COVID-19 aumentasse nos EUA e, mais especificamente, no Texas. No mês seguinte, essa possibilidade se concretizou, como ela nos conta a seguir:

    “Dia 13 de março foi o último dia que fui trabalhar no laboratório, antes que a universidade paralisasse todas as atividades de pesquisa que não fossem relacionadas ao novo coronavírus. A partir desse dia comecei a trabalhar em casa pelo computador e só saía para fazer compras de itens básicos. 

    Por mais de 2 meses somente pessoas consideradas essenciais tinham acesso aos laboratórios – aquelas pessoas que estavam trabalhando com o novo coronavírus e/ou que tivessem que cuidar de células e animais de laboratório. A universidade reabriu para as outras pesquisas no dia 1o de junho e foi quando pude retomar meus experimentos no laboratório seguindo as novas regras de segurança: uso obrigatório de máscaras dentro do prédio, somente 2 pessoas por laboratório no mesmo horário, distanciamento social, higiene das mãos com maior frequência, entre outras medidas. 

    Atualmente, o uso de máscaras continua sendo obrigatório em qualquer local público e no campus. As aulas presenciais na universidade recomeçaram em agosto, mas parte da carga horária de aulas continua sendo online. Os casos de COVID-19 continuam aumentando na cidade e no estado, ao mesmo tempo em que as pessoas tentam voltar às suas rotinas de atividades. Já são seis meses trabalhando de casa sempre que possível e convivendo somente com colegas do lab, além do meu marido. Nessa nova rotina, continuamos saindo de casa somente para fazer compras de mercado e algumas vezes vamos caminhar num parque.”

    A Gabi defenderia sua tese de doutorado em agosto, mas, devido à pandemia, a  defesa foi adiada para dezembro. Em meio ao estresse da finalização do doutorado e o fato de estar longe da família durante a quarentena imposta pela pandemia, ela ressalta a importância de continuar seguindo as recomendações de cientistas e de especialistas e continua:

    “Cada vez mais defendo a ciência e confio nela, e espero que com o nosso trabalho no blog a gente consiga conscientizar mais pessoas sobre a importância da pesquisa e do método científico. Além disso, acho que as desigualdades sociais e de gênero foram escancaradas no mundo todo com a pandemia, quando vemos que pessoas em situação de maior vulnerabilidade morrem mais de COVID-19, e que as mulheres têm acumulado afazeres domésticos e produzido menos no trabalho. Ao mesmo tempo, estes são problemas que tem sido bastante discutidos durante a pandemia e espero que essas reflexões tragam melhorias daqui pra frente.” 

    A parte 2, com os relatos das demais integrantes do Ciência Pelos Olhos Delas, será publicada no blog em 25 de setembro.

    Os relatos acima, escritos pelas integrantes do Ciência Pelos Olhos Delas, foram condensados e editados por Gabriela Mendes e Juliana Lobo. Este post passou pela revisão de toda a equipe do blog antes de ser publicado.

    Nota

    ¹ Para saber mais sobre reprodução social, recomendamos a videoaula “Divisão Sexual do Trabalho”, ministrada pela cientista política Flávia Biroli (UnB).

    Este texto publicado no Especial Covid-19 foi escrito originalmente no Blog Ciência Pelos Olhos Dela

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Impactos da Pandemia de Covid-19 sobre a Economia Brasileira

    Texto escrito por Paulo Ricardo S. Oliveira*

    A chamada “segunda onda” da pandemia de Sars-Cov-2, isto é, a crise econômica do pós-pandemia, tem sido objeto de discussão entre os especialistas. As necessidades de isolamento social impostas pela pandemia certamente tem impactos sobre a economia, e é sabido que os efeitos deletérios na economia podem perdurar para além da dissolução da crise sanitária. Mas em qual proporção a pandemia deve afetar a economia brasileira? Nesta nota, busca-se lançar luz sobre essa questão com bases na avaliação dos dados da atividade econômica no primeiro trimestre e nas projeções para a retração do PIB brasileiro no ano de 2020.

    Antes de analisar os dados, é importante reconhecer que a crise da pandemia não cessa a retomada do crescimento da economia brasileira. A crise da pandemia chega ao Brasil num período de estagnação econômica, que pode ser visto como um desdobramento da crise financeira global e da crise política brasileira, com efeitos mais dramáticos a partir de 2014. Em 2015, por exemplo, o PIB brasileiro encolheu -3,15%. Em 2016, houve nova retração de -2,90%. Desde então, temos observado taxas de crescimento inferiores a 1,5%, nível considerado baixo para as economias emergentes. Por fim, no ano passado, a economia brasileira cresceu apenas 1,08%, e é neste contexto de estagnação que a crise da pandemia nos atinge.[1]

    Impactos da pandemia no 1º Trimestre/ 2020

    De acordo com os dados oficiais, o PIB brasileiro recuou -1,5% no primeiro trimestre de 2020, em relação ao último trimestre de 2019. Sob a ótica da oferta, o PIB industrial recuou -1,4%, serviços -1,6%, enquanto a produção agropecuária apresentou crescimento de 0,6%.  Do lado da demanda, a pandemia afetou significativamente o consumo das famílias, que caiu -2,0% no 1° Trimestre/2020 – maior queda desde 2001. Na contramão, a formação bruta de capital, isto é, a compra das empresas de bens de capital como máquinas e equipamentos, cresceu 3,1%, sobretudo pela baixa base de comparação do 4º Trimestre/2019. Por fim, os gastos do governo cresceram apenas 0,2%, mesmo diante da gravidade da pandemia[2].  

    Os índices de atividade, divulgados para os meses entre janeiro e junho/2020, revelam que, apesar de indicadores positivos na comparação mês a mês desde maio/2020, indústria, comércio e serviços acumulam quedas significativas na comparação entre o 1° Trimestre/2020 e o 1° Trimestre/2019, como mostra a Tabela 1.

    Tabela 1. Índices de atividade econômica na indústria, serviços e comércio – Junho/2020

     IndústriaComércioServiços
    Taxa de variação mensal (ref. Maio/20)8,9%12,6%5,0%
    Taxa de variação mensal (ref. Junho/19)-9,0%-0,9%-12,1%
    Taxa de variação semestral (ref. 1S/19)-10,9%-7,4%-8,3%
    Notas: Comércio – índice de volume de vendas no comércio varejista ampliado | Serviços – índice de volume de serviços | Indústria – índice de produção física industrial.
    Fonte: Elaboração própria com bases nas Pesquisa Mensal de Comércio, Pesquisa Mensal de Serviço e Pesquisa Industrial Mensal do IBGE.

    De forma contra intuitiva, nota-se que a indústria foi o setor mais afetado na comparação trimestral, acumulando queda de -10,9% no 1° Trimestre/2020. Da mesma forma, a despeito das taxas positivas para comparação mês a mês, o comércio encolheu -7,4% e os serviços -8,3% no 1° Trimestre/2020. A Tabela 2 mostra a queda por categoria econômica industrial.

    Tabela 2. Variação da Produção Física Industrial por Categoria Econômica

    Var. 1T/2020 1T/2019Var. Mensal Jun/2020 Jun/2019Var. Mensal Jun/2020 Maio/2020
    Bens de capital-21,2-22,213,1
    Bens intermediários-6,6-5,94,9
    Bens de consumo-16,2-11,615,9
          Bens de consumo duráveis-36,8-35,182,2
          Bens de consumo semiduráveis e não duráveis-10,3-5,66,4
    Fonte: Produção Industrial Mensal – Produção Física/ IBGE.

               

    Nota-se, que o fechamento do semestre, reforça a persistência dos indicadores negativos e revertem os indicadores positivos verificados nas contas nacionais no 1° Trimestre/2020.

    Em relação ao emprego, os dados mais recentes apontam que a taxa de desocupação vem crescendo desde maio/2020, quando estava em 10,5%, e atingiu o ponto máximo do período no final de julho/2020, quando chegou a 13,7%. Também na última semana de julho, o país tinha 5,8 milhões de pessoas afastadas do trabalho devido ao distanciamento social, 8,3 milhões de pessoas em trabalho remoto, 18,7 milhões de pessoas trabalhando menos que o habitual e 29,5 milhões de pessoas com rendimentos menor do que o habitual. Mais preocupante, estima-se que, neste momento, 18,5 milhões de pessoas não procuram emprego por conta da pandemia ou por falta de trabalho na sua localidade e 43,0% dos domicílios nacionais recebem auxílio emergencial.

    Para se ter uma ideia da dimensão da amplitude do auxílio emergencial, o bolsa família, um dos maiores programas de transferência de renda da história recente brasileira, beneficiou 13,5% dos domicílios brasileiros, em 2019 [3].

    Por fim, é possível verificar que os impactos no setor externo da economia brasileira têm sido consideráveis. As exportações caíram -7,7% e as importações -5,21% no 1º Semestre/2020. Apesar das quedas relativamente baixas, o impacto qualitativo da crise sobre a pauta de exportação merece destaque. Como esperado, dada a elasticidade renda das exportações e importações[4], isto é, como a demanda internacional de cada bem responde a movimentos na renda internacional, a queda foi maior para produtos mais complexos e menor para produtos menos complexos. Produtos mais complexos são produzidos em países mais avançados tecnologicamente, demandam mais conhecimentos para serem manufaturados e possuem maior valor agregado. A Tabela 3 mostra a variação das exportações e importações por categoria de complexidade para economia brasileira.

    Tabela 3. Variação das Exportações por Categoria de Complexidade – 1° Trimestre/2020

    Grau de ComplexidadeExportações (bilhões USD)% do total exportadoVar. % 2019/2020
    Baixa28,3427,9%-6,5%
    Média-baixa                  45,645,0%7,9%
    Média-alta22,622,3%-25,5%
    Alta46,34,5%-30,6%
     Fonte: Elaboração própria com base nos dados do Ministério da Economia e do Observatório de Complexidade Econômica.

    Nota-se que as quedas mais acentuadas nas exportações se deram nas categorias de produtos mais complexos, isto é, a pandemia alterou a qualidade da pauta exportadora nacional. A reversão deste impacto qualitativo vai depender da recuperação das economias parceiras e do grau de protecionismo que pode ampliar-se no pós-pandemia. A queda nas importações, no entanto, foi mais equilibrada dentre as principais categorias de complexidade, como mostra a Tabela 4.

    Tabela 4. Variação nas Importações por Categoria de Complexidade – 1º Trimestre/2020

    Grau de ComplexidadeImportações (bilhões USD)% do Total ImportadoVar. % 19/20
    Baixa3,84,8%-24,0%
    Média-baixa                  21,527,1%-5,6%
    Média-alta36,345,7%-2,4%
    Alta17,622,2%-5,0%
     Fonte: Elaboração própria com base nos dados do Ministério da Economia e do Observatório de Complexidade   Econômica.

    Projeções de Impactos da pandemia em /2020

    Infelizmente, as principais projeções para economia brasileira no 2º semestre de 2020 reforçam a continuidade das quedas verificadas até o momento. A projeção mais recente do Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê que a economia brasileira deve encolher -9,1%, em 2020[5]. A mesma instituição também prevê que a economia global sofrerá retração de -4,9% neste ano.  As projeções do Banco Central do Brasil (BCB), no entanto, são mais otimistas, prevendo uma retração anual de -6,4%, ao mesmo tempo que reconhece que o nível de incerteza continua elevado para os próximos trimestres[6].

    Uma das projeções mais robustas sobre os impactos econômicos da pandemia, que utiliza dados da matriz-insumo produto brasileira, foi feito pelo Grupo de Indústria e Competitividade do Instituto de Economia da UFRJ[7]. O estudo prevê três cenários para o comportamento do PIB e os componentes da demanda final, em 2020, como mostra a Tabela 5.

    Tabela 5. Projeções de retração do PIB brasileiro – 2020

    CenáriosVar. PIBConsumo das FamíliasFormação Bruta de CapitalGasto do GovernoExportações
    Otimista-3,1%-1,5%-10,0%2,5%-6,6%
    Referência-6,4%-3,8%-20,0%2,5%-15,7%
    Pessimista-11,0%-8,3%-30,0%2,5%-20,4%
    Fonte: GIC UFRJ

    Em síntese, as diferentes fontes convergem em relação às previsões para economia brasileira em 2020. Mesmo as estimativas do governo já se aproximam do cenário de referência, e a estimativa do Fundo Monetário Internacional do cenário mais pessimista estimado pelos pesquisadores do IE/UFRJ. Neste cenário, até o final de 2020, espera-se que as exportações brasileiras caiam -20,4%, a formação bruta de capital fixo -30% e o consumo das familiais -8,3%.  O aumento de 2,5% nos gastos do governo, foram estimados a partir da previsão dos gastos adicionais com a saúde pública.

     Considerações Finais

    Em suma, os números e projeções do ano corrente indicam que os impactos da crise sobre a economia brasileira serão consideráveis, piores do que os verificados em virtude dos desdobramentos da crise financeira e política de 2014. Certamente, os impactos não afetarão apenas a economia nacional, mas também as demais economias globais. As economias que não lograram o rápido controle da epidemia e continuam alimentando altos níveis de incerteza sobre a capacidade de controle da crise sanitária tendem a sofrer mais intensamente os impactos da “segunda-onda”.

    É preciso ter em mente que essa crise, além do maior impacto sobre PIB brasileiro, tem caráter bastante distinto da crise financeira global de 2008[8]. Por afetar diretamente a capacidade produtiva, a crise da pandemia faz com que as políticas monetárias sejam relativamente ineficazes na retomada da atividade.

    É por isso que policymakers do mundo inteiro têm cada vez mais destacado a importância da política fiscal expansionista (gasto do governo) para a retomada econômica no pós-pandemia. As autoridades econômicas nacionais, no entanto, tendem a perceber a pandemia e seus impactos como um fenômeno temporário, e descartar a possibilidade da ampliação dos investimentos públicos. Essa percepção incorreta da gravidade da crise pode comprometer a recuperação econômica e prolongar o cenário de estagnação da economia brasileira. 

    Do ponto de vista do choque externo e da política comercial e industrial no pós-crise, é provável que os efeitos da queda na renda global e políticas mais protecionistas de comércio afetem as exportações brasileiras de forma significativa. É válido lembrar que, apesar da predominância do consumo interno sobre o produto nacional, a indústria brasileira é altamente dependente da importação de insumos industriais e pode ser afetada pela quebra de algumas cadeias de fornecimento que serão afetadas por possíveis guinadas protecionistas.

    Por outro lado, esse recuo na liberalização comercial pode gerar algum espaço para implementação de políticas industriais e comerciais mais alinhadas com os objetivos de desenvolvimento da indústria nacional. De todo modo, qualquer movimento neste sentido parece improvável diante da atual visão liberalizante das autoridades econômicas nacionais.


    Para saber mais

    [1] Dados do IBGE, Sistema de Contas Nacionais Anuais. Produto Interno Bruto (PIB) a preços básicos, variação real anual.

    [2] Dados do IBGE, Sistema de Contas Nacionais Trimestrais. Dados dessazonalizados, disponíveis em https://sidra.ibge.gov.br/tabela/5932#/n1/all/v/6564/p/201901,201902,201903,201904,202001/c11255/all/d/v6564%201/l/v,p,t+c11255/resultado

    [3] PNAD-Covid/IBGE (2020) Dados da PNAD-COVID/IBGE, disponíveis em  https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/ .

    [4] Informalmente, elasticidade renda das importações e exportações refere-se a mudança percentual no volume destes dois fluxos após uma variação na renda.

    [5] Dados do World Economic Outlook, Junho/2020 do FMI, disponíveis em https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/06/24/WEOUpdateJune2020

    [6] Dado do Relatório de Inflação do Banco Central, Junho/2020 disponível em https://www.bcb.gov.br/content/ri/relatorioinflacao/202006/ri202006p.pdf

    [7] Dados disponíveis em  https://www.ie.ufrj.br/images/IE/grupos/GIC/GIC_IE_NT_ImpactosMacroSetoriaisdaC19noBrasilvfinal22-05-2020.pdf

    [8] Ver análise da Nota do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica, disponível em http://www3.eco.unicamp.br/images/arquivos/nota_cecon_coronacrise_natureza_impactos_e_medidas_de_enfrentamento.pdf

    O autor

    Paulo Ricardo S. Oliveira é Doutor em Desenvolvimento Econômico (IE-UNICAMP), Professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e Economista do Observatório PUC-Campinas.

    Este texto foi publicado originalmente no Blog Sobre Economia

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • “Só dá aulas”: o que fazemos na universidade pública? (parte 1)

    Texto escrito por Lavínia Schwantes e Ana Arnt

    Somos duas professoras, biólogas, com mestrado e doutorado na área de Educação/Ensino. E vamos contar um pouco da trajetória de trabalho nossa, para exemplificar um pouco do que é e como trabalha a universidade – e como isso vem acontecendo na pandemia.

    Mas antes de falarmos da pandemia, vamos falar sobre o nosso trabalho “no antigo normal”.

    “Só dá aulas”

    Já trabalhei com o Ensino Médio – eu amava “dar aulas” para essa galera no meu querido Sarmento Leite e me orgulho demais dos colegas que, mesmo com a desvalorização salarial imposta na última década, mantém bons índices de desempenho com os estudantes[1]. E, atualmente, estou como professora universitária há 13 anos, na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), já dei aula também na Universidade Federal do Tocantins (UFT). Essa pergunta que está no título deste post eu escuto desde o início de minha carreira profissional como professora há 20 anos! (Lavínia Schwantes).

    Eu fui professora de cursinho popular por 6 anos. Um tempo em que aprendi a compreender a docência, os conteúdos curriculares, como imersos em questões sociais que jamais poderiam ser segmentados. Também foi onde aprendi que entrar na universidade é, para muitas pessoas, um grande sonho. Sou professora universitária há 15 anos, já fui professora na Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT) e, desde 2016, dou aula na Unicamp. Esta pergunta que está no título do post eu escuto desde o início da minha carreira profissional, que completou 18 anos… (Ana Arnt)

    Mas ainda hoje? Sério?

    Ainda mais em tempos pandêmicos, com as universidades “paradas” (muitas aspas aqui), essa pergunta volta a ressoar por todos os lados e resolvemos explicar o que fazem docentes de universidade pública.

    Não fazem nada?

    Para começar, segundo a lei que rege o funcionalismo público civil (lei 8112/1990), este professor é um funcionário público. Na sua origem, portanto, deve atender ao serviço público. Ou seja, seu trabalho serve a toda a comunidade e à sociedade. Para ser servidor, precisa ser aprovado em um concurso público, aberto a todos que se encaixam nos requisitos da vaga.

    Assim, neste concurso, o candidato deve mostrar que sabe o conteúdo da vaga à qual está concorrendo. Isto é, deve mostrar que sabe “dar uma aula” e, mais do que isso, organizar um plano de trabalho no qual constem projetos de pesquisa, de extensão e, de ensino, claro. Daí, já tiramos as três funções que, tanto o professor quanto a universidade pública têm, que são: ensino, pesquisa e extensão!

    Aqui cabe um esclarecimento importante em relação a carreira de professores no Ensino Superior. Segundo a lei que rege o magistério público federal (Lei 12772/2012) a carreira de professor tem classes conforme o nível estudo (graduado, Mestre ou Doutor) e pode ser D.E. (Dedicação Exclusiva) ou não. Alguns tem regime parcial de 40h ou 20h semanais.

    A maioria dos professores de Ensino Superior são doutores (58% nas universidades brasileiras em 2018)[2] e tem D.E. (71% nas universidades brasileiras em 2018)[3]. Isso quer dizer que eles se dedicam somente à universidade, ao trabalho que nela desenvolvem, considerando o tripé de ensino, pesquisa e extensão conforme previsto no artigo 207 da Constituição Federal (CF) de 1988. Não podem ter outra renda, nem trabalhar em outros lugares, não podem ter empresa ou receber remuneração para outra atividade fora da universidade de forma fixa (apenas para trabalhos pontuais – como consultorias ou cursos – e há um limite anual para isso).

    Afinal, o que compõe esse tripé?[4]

    ENSINO

    Uma das funções da universidade é a formação de profissionais em áreas específicas. Isso é ENSINO. Aí está, agora sim! É o “dar aulas”. Assim, todo semestre, o professor universitário público, não importa o regime de trabalho que tem (D.E., 40 ou 20h) atende turmas de alunos nos cursos de graduação que atuam.

    O tempo que ocupa para essa função é determinado pela universidade e pode variar dentro de seus órgãos internos. Isso chama-se autonomia universitária e é amparado no artigo 207 da CF e na Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional (lei 9394/96).

    Mas o “dar aulas” não é somente estar em sala de aula. Vejam que o conhecimento aumenta e se modifica muito ao longo do tempo e com isso, a necessidade do professor ter aulas atualizadas. Não adianta o professor dar a mesma aula desde o ano 2000 quando entrou na universidade, porque, com certeza, o conhecimento científico sobre sua temática de aula e as metodologias existentes para ENSINÁ-la se modificaram ao longo desse período.

    Para manter a atualização do que ensina aos seus graduandos, e assim, formar bons profissionais, o professor estuda e prepara aulas toda semana. Ainda tem a tarefa semanal de avaliar a aprendizagem dos estudantes, isto é, elaborar, disponibilizar, ler, corrigir trabalhos e provas, estabelecendo notas para cada uma das turmas das disciplinas. Vamos dizer então, se ele “dá aulas” duas tardes por semana na graduação, outros dois turnos ele usa para preparar as aulas, estudar para elas e avaliar trabalhos dos estudantes. Aí se vão quatro turnos de trabalho no ENSINO.

    PESQUISA

    A segunda função do professor universitário público D.E. é a PESQUISA! E aqui, entra outro tanto de atividades. O que é fazer pesquisa hoje? [5]É atualização de saber da área específica que o professor trabalha, isto é, produção de conhecimento. As universidades públicas são responsáveis por 95% do conhecimento produzido no país[6]. Como ele faz isso? O professor, geralmente, se vincula a um curso de pós-graduação de sua áre, cada universidade tem muitos destes cursos em todas áreas nas quais formam profissionais na graduação.

    Inserido na pós-graduação, o professor desenvolve pesquisas em diferentes espaços na universidade – um laboratório, uma sala multidisciplinar ou outro. Ali, o professor orienta os estudantes em pesquisas próprias, mas quase sempre vinculadas à temática e pesquisa central do professor. Existem professores que orientam cinco, sete ou 15 estudantes simultaneamente, que, depois de formados na graduação, se dedicam a desenvolver projetos para receber os títulos de Especialista, Mestrado e/ou Doutorado. Esses orientandos e o professor formam o que chamamos de grupos de pesquisa.

    Fazer pesquisa, atualmente, também implica compartilhar o conhecimento para a comunidade científica de cada área, o que significa escrever artigos científicos. E também implica buscar auxílio financeiro para que seus projetos sejam desenvolvidos, pois para fazer pesquisa, precisamos de livros, acesso bom à internet, equipamentos, materiais diversos, reagentes e outros recursos. E todos eles precisam de verba!

    Fazer pesquisa envolve todo um trabalho burocrático, além da “pesquisa em si”

    Na busca desses recursos, o professor precisa escrever projetos e submetê-los para avaliação de agências de fomento que abrem editais específicos para tal, sejam essas agências governamentais ou privadas. A pesquisa ainda inclui participar de comissões de avaliação de artigos científicos, de artigos para eventos, de comitês de avaliação de projetos de editais.

    Ou seja, o trabalho com PESQUISA na universidade pública requer tempo para: reuniões do grupo de pesquisa e orientação dos alunos (um turno); trabalho no laboratório ou espaço de pesquisa (um turno); escrita de artigos científicos, de projetos e de relatórios de pesquisa (um turno); leitura e avaliação de artigos dos orientandos, bem como, de revistas científicas (mais outro turno)…

    Ah, e claro que, na pós-graduação, o professor “dá aulas” também, nos cursos de Especialização, Mestrado e/ou Doutorado para os estudantes pós-graduandos. E para tal, como na graduação, ele também deve preparar e estudar, atualizando seu tema da aula. Portanto, aí temos, aproximadamente, mais quatro turnos de PESQUISA e mais um de ENSINO de novo!

    EXTENSÃO

    Por fim, a última função, mas não menos importante, de um professor docente universitário público é a EXTENSÃO!! Antes, comentei que a maior parte de produção do conhecimento se faz dentro das universidades públicas e que uma função da pesquisa é divulgar este conhecimento para comunidade científica. E quem não é desse grupinho da comunidade científica? Como fica sabendo do saber, ou dos produtos, ou das tecnologias que são produzidas na universidade?

    Pelo trabalho de extensão, cujo nome revela sua função: é uma extensão da produção da universidade para a comunidade no entorno dela. Assim, mais uma vez, o professor, tem de escrever projetos de extensão e executá-lo com a ajuda de uma equipe – outros colegas ou estudantes. Esse trabalho pode ser de divulgação científica, de trabalho com as comunidades periféricas, com determinada porção da população, com uma determinada instituição que não a universidade, com prefeituras ou associações de bairro, em hospitais ou museus, por exemplo.

    Há inúmeras possibilidades de extensão que envolvem, além da já citada divulgação de conhecimento, o retorno do investimento social na universidade para a população como um todo! Você sabia, por exemplo, que muitos dos museus, jardins botânicos ou espaços de cultura que você frequenta são mantidos pelas universidades públicas? Muitas delas mantêm também hospitais universitários públicos com recursos físicos, estruturais, de capital e humanos. Isto é, todos estes são espaços de extensão universitária com foco no atendimento direto ao público já mais consolidados historicamente!

    Lembra dos movimentos “Ciência na Rua”?

    Também lembramos a vocês, aqueles movimentos de maio de 2019 do tipo “ciência na rua”, em prol de uma educação de qualidade. Pois é, o objetivo desses eventos era mostrar todo o trabalho/pesquisa/conhecimento desenvolvido nas universidades para a comunidade, como um grande evento de EXTENSÃO!! Foi importante para muitos professores entenderem também qual sua função com essa atividade do tripé da universidade! Todavia, infelizmente, a extensão ainda é a “prima pobre” da universidade pública, há, mesmo com um crescente, pouco investimento e poucos projetos de extensão. Mas é função do docente universitário. Digamos que aí vai outro turno de trabalho na EXTENSÃO!

    No total…

    Por fim, voltamos a contagem: são dois turnos, mais dois, mais um no ENSINO; quatro turnos semanais na PESQUISA e um turno na EXTENSÃO, somando 10 turnos de trabalho! É possível para o professor “jogar” estes turnos a cada semana conforme a necessidade. Isto é, estes dez turnos aqui variam de semana a semana conforme as demandas vão surgindo no trabalho! Exceto o tempo de dedicação às aulas na graduação, que é mais fixo, o professor pode se envolver mais na pesquisa ou na extensão de acordo com a característica individual ou de sua área. Mas todo tripé é sua função!!!

    Um exemplo real

    Vejamos nosso exemplo (somos professoras com Doutorado e somos D.E.): duas tardes de aulas na graduação na Biologia; dois turnos de preparo das aulas sobre Educação em Biologia. Mas, calma, também temos aulas na pós-graduação (um turno de aula, um turno preparando material).

    Ainda, reunião com grupo de pesquisa PEmCie, estudos sobre nosso tema de pesquisa “História e Filosofia da Ciência”, reuniões com cada um dos orientandos do grupo. Na FURG, são um total de doutorando, duas mestrandas, dois bolsistas de iniciação científica, duas professoras. Na Unicamp, dois doutorandos, sete mestrandos, cinco alunos de iniciação científica e alunos que estão estudando para entrar nas próxima seleções de pósgraduação. Além disso, temos leitura dos artigos deles e organização de trabalhos dos orientandos e escrita de artigos e projeto de pesquisa (vai aí uns, sei lá, uns quantos turnos de trabalho, hehe).

    Estamos revitalizando meu projeto de extensão que incluía divulgação científica nas escolas e agora estamos focando nas tecnologias digitais para tal. Além disso, o grupo também tem atuado na Divulgação Científica – aqui no blogs e no nosso podcast, nesta empreitada são alguns turnos (que variam dependendo da semana…).

    Será que ficou um pouco mais claro?

    Quanto deu aí? Muitos turnos, não é? Deu para “encher” uma semana de trabalho? Dá pra incluir até o sábado, muitas vezes! Ah, sim… E, a Lavínia ainda trabalha com os estágios docentes nas escolas, então visitas periódicas a essas instituições parceiras estão, também, na minha rotina. Mas enfim, acho que conseguimos apresentar um panorama breve que indica que nosso trabalho é mais do que “dar aulas”. Não acha?

    Todavia, não esqueçamos que muitos professores, exercem cargos de gestão (seria uma quarta função nesse tripé), assumindo, temporariamente, coordenações de curso de graduação, de pós-graduação, diretoria de seções nas pró-reitorias ou em departamentos e institutos; ou mesmo, gerenciando pró-reitorias e reitorias. Como são temporários, não coloquei esse trabalho administrativo na conta, mas posso afirmar, por experiência própria como coordenadora por 2,5 anos, que é um baita trabalho, cansativo e, muitas vezes, burocrático!

    E tem mais, um professor D.E. participa de atividades temporárias na universidade como: comissão de graduação, de pós-graduação, de seleção de mestrado/de doutorado, bancas de avaliação de teses e dissertações, orientador de trabalho de conclusão de curso, comissões eleitorais, comissões de curso. Pode assumir gestão sindical ou comissão de organização de eventos. Por fim, ainda tem participação em eventos científicos e apresentação de trabalhos em congressos, participação em reuniões de todo e qualquer tipo, etc.

    “Ah, mas eu conheço um professor que só vai à universidade pra dar aulas”

    “Eu conheço o fulano, que foi meu professor, e não faz tudo isso não”. É, infelizmente, conhecemos professores universitários assim! Como em qualquer profissão, há quem não possa ser tomado de exemplo e, definitivamente não são a maioria. No entanto, apostamos nos meus colegas que trabalham bastante para um bom desenvolvimento na/da universidade para/com a sociedade!

    E o que podemos dizer para você? Espelhe-se naqueles que levam seu trabalho a sério e o conduzem de forma a promover melhorias para a nossa sociedade. E se aqueles que não o fazem ainda te incomodarem muito: “dê um toque” para eles, comente sobre a necessidade de fazermos nosso papel e mostrarmos toda a potência de uma universidade pública!

    Nosso foco eram os tempos pandêmicos né? Mas tivemos que nos estender um pouco na explicação para vocês entenderem melhor. E como tudo isso funciona na quarentena fica para um próximo post!


    Para saber mais:

    [1] Rede pública do RS alcança primeiro lugar no ranking do Enem

    [2] [3] Dados INEP: Sinopse Estatística da Educação Superior 2018.

    [4] MOITAL, F, Maria GSC; ANDRADE, FCB (2009) Ensino-pesquisa-extensão: um exercício de indissociabilidade na pós-graduação, Revista Brasileira de Educação, vol14, nº41, Rio de Janeiro, maio/ago.  

    [5] KUENZER, AZ, MORAES, MCM (2005) Temas e tramas na pós-graduação em educação, Revista Educação e Sociedade, v26, nº93, Campinas, set/dez/2005

    [6] Dados da Academia brasileira de ciências sobre produção científica no Brasil

    As autoras

    Lavínia Schwantes – Biológa, formada no século passado na UFRGS; atua como professora na área há mais de 20 anos. Encantada pela educação em ciências, trabalha formando professores de Ciências e Biologia. Pesquisa a ciência, sua produção e sua filosofia, e como pode ser ensinada, tendo aí concentrado seus estudos, projetos, publicações científicas, leituras e orientações de graduação e pós-graduação junto ao Grupo PEmCie no CEAMECIM na Universidade Federal do Rio Grande-FURG.

    Ana Arnt – Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB), do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM) e do Programa de Pós-Graduação em Genética e Evolução. Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência!

    Este texto foi escrito originalmente no para o Blog Pemcie

    Texto 2 da série

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Lições da pandemia: avante à bicicleta

    Texto escrito por Tássia Biazon

    Foto: arquivo pessoal da autora

    Um vírus mostrou que mudanças de hábitos podem acontecer rapidamente. Além do uso de máscaras ou do álcool em gel, se você reparar bem vai perceber que o uso de bicicletas aumentou. Basta olhar nas redes sociais a quantidade de pessoas posando em suas bikes. Seja porque as academias ficaram fechadas, os transportes públicos se tornaram lugares inviáveis ou a preocupação com uma vida mais saudável aumentou!

    Ontem foi o dia em que a terra completou mais um Overshoot Day, momento em que a humanidade usou todos os recursos biológicos que a Terra pode regenerar durante um ano. Ou seja, a partir de hoje e até o último dia de 2020, estamos usando esses recursos no cheque especial. E para ajudar a diminuir esse impacto, vamos fazer das pedaladas um hábito de fato?

    Sobre a bicicleta

    A bicicleta surgiu como um meio de transporte há mais de 200 anos. O veículo de duas rodas pioneiro, que foi criado em 1817 pelo alemão Karl von Drais, era de madeira, funcionava com o impulso dos pés e pesava uns bons quilos. Mas apenas na década de 1970 houve um boom no uso das bicicletas, que não durou muito porque os automóveis ganharam vez! Todavia, em 2020 temos a oportunidade de estabelecer um maior uso das bikes para o bem de todos e do todo – uma vez que os automóveis estão entre os principais emissores de gases do efeito estufa na Terra!

    Em alguns lugares, a bicicleta é parte integrante da vida cotidiana há um bom tempo, como é o caso da Holanda, que é famosa por ter mais bicicletas do que pessoas. Por lá, se locomover em duas rodas é tão comum que não significa ser pobre, rico, atleta ou estiloso, pelo contrário. Mostra-se algo tão natural de ser feito diariamente quanto escovar os dentes. Outro exemplo de relação harmoniosa com as bicicletas, antes da pandemia do coronavírus, é em Copenhague, capital da Dinamarca, que há anos investe no setor, estimulando a circulação de mais bicicletas do que carros em suas ruas!

    Como cita a reportagem do Fórum Econômico Mundial, há muitos motivos para incentivar as duas rodas em todos os lugares. O ciclismo contempla quase todos os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU estipulados em 2015. Além disso, contribui para uma maior qualidade de vida, melhora a saúde mental e física, promove um ambiente mais saudável. Por fim, gera uma economia verde e de baixo carbono, reduz o congestionamento, a poluição do ar e as emissões de CO2. Então, devemos caminhar (ou pedalar) para que todos usem bicicletas?

    Por que não?

    Mas para isso será necessário muito mais do que a vontade de pedalar no final de semana, os desafios são diversos.

    Por exemplo, as ciclovias não devem ser estabelecidas apenas em áreas nobres e centrais; o investimento em infraestruturas permanentes para o uso das bicicletas como em Milão, com expansão e conexão de redes de bicicletas existentes; a educação para que todos os tipos de veículos e pedestres saibam melhor transitar por qualquer via (conforme aponta Infosiga, só no Estado de Paulo houve 143 mil acidentes de trânsito em 2019); o incentivo para ações como a World Bicycle Relief, organização sem fins lucrativos que leva bicicletas para quem precisa; a World Cycling Alliance, que tem como uma das prioridades compartilhar as melhores práticas, pesquisas e estatísticas para melhorar o uso de bicicletas em todo o mundo; e a People For Bikes que mostra o quanto o ciclismo pode prosperar!

    A bicicleta é uma solução de mobilidade humana muito econômica, simples e sustentável. Ela não é algo utópico. Talvez, o veículo do futuro foi inventado há muito tempo.

    Que esse movimento de expandir pedaladas se transforme em uma mudança cultural de fato, uma das maneiras de respeitar o planeta, que está trabalhando no vermelho e que clama por ações mais sustentáveis.

    Para saber mais

    Global Footprint Network (2020) Today is Earth Overshoot Day

    Nações Unidas Brasil (2015) Momento de ação global para as pessoas e o planeta

    A autora

    Tássia Oliveira Biazon é  graduada em Ciências Biológicas (Licenciatura/2013 e Bacharelado/2014) pelo Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-Botucatu) e graduada em Biologia pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC-Portugal) em 2012; Pós-graduada (Lato Sensu) em Jornalismo Científico no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2016; Atualmente é colaboradora do Laboratório de Manejo, Ecologia e Conservação Marinha do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo.

    Este texto foi escrito originalmente no Blog Natureza Crítica

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

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