Categoria: Sociedade

  • Enem 2020 e o adiamento devido à pandemia


    A decisão do governo foi manter o Enem 2020

    Tempo de leitura: 3 min

    Nota (08/07/2020): foi decidido pelo adiamento da prova, as provas escritas serão nos dias 17 e 24 de janeiro.

    Pelos estudantes, as provas impressas seriam realizadas nos dias 2 e 9 de maio de 2021 e digital nos dias 16 e 23 de maio de 2021. Sendo realizada em maio, o primeiro semestre seria perdido.”

    Com a pandemia, muitos alunos não terão condições de estudar para o Enem. Crédito: Wilson Dias / Agência Brasil

    Em meio às incertezas do coronavírus, escolas e universidades tentam manter o cronograma do período letivo com o ensino à distância (EAD). Alunos e professores tiveram que se adaptar rapidamente ao ambiente virtual para conduzir as aulas, realizar apresentações e exames. Estando na era digital (ou era da informação), este cenário é visto como um futuro inevitável,  em que muitas tarefas serão realizadas virtualmente. Entretanto, a grande diferença sócio-econômica entre os estudantes e a realidade domiciliar são variáveis pouco consideradas no momento atual. 

    Será justo manter as metas para a Educação no Brasil em meio a uma pandemia, em que alunos já antes prejudicados pela desigualdade social e outras questões, hoje enfrentam barreiras ainda maiores? É isso o que pensa o ministro da Educação (nota 01/07/2020: agora ex-ministro), Abraham Weintraub, após anunciar que o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) 2020 será mantido em  novembro [1]. 

    Expectativa x Realidade

    Além do desequilíbrio de oportunidades já oferecidas aos alunos de escolas públicas e particulares, outra questão preocupante é em relação às estudantes mulheres em particular. Infelizmente, não surpreende o fato de que as meninas são responsáveis por mais tarefas domésticas do que os meninos [2], o que prejudica ainda mais o desempenho exigido pelas escolas neste período.

    Também é preciso considerar todas as questões de minorias. Um estudo do IBGE de 2017 mostrou que cerca de ¼ da população brasileira ainda não tem acesso à internet, estando o seu uso concentrado na região sul. O norte e o nordeste do Brasil possuem ao menos 50% da população sem acesso à internet [3]:

    Esse mesmo estudo do IBGE aponta que, de todos os que possuem o acesso à internet, 98,7% utilizam o celular para esse fim. Tal percentual pode ser preocupante ao inseri-lo no contexto da educação à distância, visto que celulares não são o equipamento mais adequado para o aprendizado via ensino à distância. 

    Um estudo mais recente (2019), do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, revelou que, apesar de ter crescido o número de pessoas com acesso à internet, a desigualdade ainda permanece alta. O levantamento demonstrou que, graças à popularização dos smartphones, 76% da classe C e 40% das classes D e E possuem acesso à internet. Entretanto, apenas 67% dos domicílios brasileiros estão conectados à rede e 97% das pessoas que utilizam a internet o fazem por meio de celulares. Quanto ao uso de computadores, 88% da classe A utilizam esse equipamento para acessar a internet, enquanto apenas 15% das classes D e E fazem o mesmo. [4]

    Ao ouvir alguns estudantes sobre o assunto da manutenção da prova do Enem, a deputada federal Tabata Amaral compartilhou o depoimento do aluno da rede pública de ensino, Gabriel Hanry, da Cidade de Acopiara, no Estado do Ceará. Com um telhado de pau-a-pique e canto de passarinhos ao fundo, Gabriel diz que recebe as aulas por WhatsApp e sente que será prejudicado na prova do Enem deste ano [5].

    Ouvir o depoimento do estudante no cenário em que ele se encontra e depois assistir à propaganda do governo para promover a manutenção do Enem, com falas de jovens atores conectados em múltiplos dispositivos digitais, atrás de uma mesa de estudo repleta de livros, materiais e conforto  [6], demonstra  que a expectativa está bem longe da realidade vivida por milhões de adolescentes brasileiros. 

    Está escrito na Constituição

    A democracia pressupõe a participação de todos. Não de alguns ou da maioria. Ao lado da democracia, há a república, cuja característica essencial pressupõe a igualdade. Daí decorre a justiça distributiva que exige o estabelecimento de critérios ao acesso igualitário ao que é público. Já a igualdade, segundo Aristóteles, consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade. 

    O Brasil é uma República Federativa e um Estado Democrático de Direito, de acordo com o artigo 1º da Constituição Federal. Um dos seus objetivos é a redução das desigualdades sociais e regionais, conforme o artigo 3º da Constituição Federal. Ou seja, está escrito e reconhecido que há desigualdades no Brasil. Assim, qualquer ação que uma autoridade toma dentro do governo deve necessariamente visar à preservação da democracia, assegurando a máxima participação popular e a preservação da república, garantindo o tratamento igualitário. 

    O artigo 205 da Constituição Federal prevê que a educação é direito de todos e dever do Estado. Em seguida, no artigo 206, a Constituição Federal diz que o ensino será ministrado com base na igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola, com a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais. No artigo 208, o texto constitucional disciplina que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um. 

    Com base na igualdade de condições, a lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) dispõe no artigo 44 que o acesso à graduação é aberto aos candidatos que tenham concluído o ensino médio e tenham sido classificados em processo seletivo. Ou seja, o critério estabelecido para o acesso ao ensino superior público foi a aprovação em processo seletivo. E o tratamento desigual, na medida de desigualdade, está previsto em outros critérios, como a nota do Enem que é utilizada justamente para tratar os candidatos desiguais, na medida de sua desigualdade, possibilitando uma pontuação mínima para se inscrever no Programa Universidade para Todos (ProUni). 

    Assim, ao se aplicar qualquer exame nacional, é preciso considerar se haverá a observação da participação de todos os interessados, em igualdade de condições. Se não houver, o ensino não será devidamente prestado, com violação de direito fundamental de cada estudante. 

    #AdiaEnem

    Atualmente está havendo  um movimento nas redes sociais com a hashtag #AdiaEnem, que tem como finalidade convencer o governo a rever as datas da aplicação da prova que está prevista para iniciar em 1 de novembro de 2020. Lembrando que este ano também existe  a possibilidade de realizar o Enem digital, que tem data de início para aplicação nos lugares estabelecidos no dia 22 de novembro de 2020. 

    As inscrições começaram dia 11 de maio e vão até 22 de maio, podendo ser feitas no site do Inep. Está rolando também um mutirão de inscrições para ajudar os alunos a realizarem a inscrição pela internet, basta preencher este formulário. Se vocês têm dúvidas, nos enviem uma mensagem que ficaremos muito felizes em ajudá-los. Recomendamos este livro didático digital gratuito para vocês estudar.

    Para finalizar, recomendamos o vídeo da estudante de história e youtuber Débora Aladim sobre os problemas com a realização do Enem este ano: https://youtu.be/eYmSSuaLtaQ 

    Fiquem ligados no blog, pois continuaremos trazendo as novidades sobre a aplicação da prova!

    #AdiaEnem #NenhumAlunoParaTrás

    Autoras: Paula Penedo Pontes de Carvalho, Gabriela Filipini Ferreira, Carolina Filipini Ferreira, Luisa Fernanda Rios Pinto

    Texto Original: https://www.blogs.unicamp.br/incentivandoelasnaciencia/?p=516

    Referências

    [1] https://oglobo.globo.com/sociedade/weintraub-defende-senadores-manutencao-de-provas-do-enem-em-novembro-1-24411467

    [2] https://oglobo.globo.com/economia/meninas-fazem-mais-tarefas-domesticas-tem-mesada-menor-que-meninos-22962910

    [3] https://educa.ibge.gov.br/jovens/materias-especiais/20787-uso-de-internet-televisao-e-celular-no-brasil.html

    [4] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/08/29/O-perfil-dos-brasileiros-que-nunca-acessaram-a-internet?fbclid=IwAR1xqDPc1PWfscDuGri6OnoKa_6vOfXd58dgB1VLnZ5TMK77VvLzj7RojnM

    [5] https://www.facebook.com/tabataamaralSP/

    [6] https://www.youtube.com/watch?v=apufjiGlIY0[6] https://enem.inep.gov.br/


    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • A ameaça invisível assombra a economia

    Texto escrito por Jamile de Campos Coleti

    Com 86% da população do Estado de São Paulo na faixa amarela do Plano São Paulo de retomada das atividades comerciais. A abertura de shopping centers, a retomada parcial na oferta de alguns serviços como bares, restaurantes, salões de beleza, e academias dão, nos próximos dias, seu start inicial.

    Passados quase 5 meses da pandemia de Covid-19, havia uma certa ansiedade por parte da população por consumir grande parte desses serviços. Também pela maioria dos comerciantes e empresários em retomar suas vendas. Já que enfrentam uma crise econômica desde 2014, agravada ainda mais pela recente situação de isolamento forçado.

    De acordo com estimativas da fundação Getúlio Vargas, haverá um impacto negativo de cerca de 68% nas finanças da indústria. Além de 59% no setor de comércio e de 49% no setor de serviços. Esses serão os setores que mais serão afetados negativamente em suas finanças.

    O FMI (Fundo Monetário Internacional) prevê uma crise econômica global de grande proporção devido à pandemia. A recessão estimada pelo FMI, de 4,9% para o mundo, deve se confirmar. E, para o Brasil, o quadro é ainda mais alarmante, uma vez que estamos classificados na categoria de países em desenvolvimento. Ou seja, existe uma série de barreiras estruturais que ainda não foram superadas.

    As medidas de fechamento e isolamento social afetam toda a economia, mas principalmente o consumo. Quando estávamos na fase vermelha, apenas itens essenciais eram possíveis de serem comprados presencialmente. Além disso, as pessoas ainda ficavam receosas de receber em suas casas entregas delivery – mesmo que os empresários fizessem as adequações necessárias e entrassem de cabeça na era digital.

    Em um ambiente de extrema incerteza futura, como é o caso desta pandemia, o primeiro impacto sobre os agentes econômicos (famílias e empresas) é a retração na sua renda. A causa disso é o fato de que as próprias famílias ficaram mais cautelosas em relação ao consumo. Os empresários, por seu turno, interromperam os investimentos bruscamente. Uma indicação desse fenômeno é o aumento recente nas quantias depositadas em cadernetas de poupança, ou seja, o brasileiro está poupando e se preparando para o que há por vir.

    A questão da reabertura parcial do comércio

    Quanto ao plano de flexibilização e abertura parcial do comércio, temos, por um lado, lojas fechadas e com poucos clientes. Por outro lado, ruas lotadas com consumidores lutando pelo seu espaço – como observado no último sábado dia 7 de agosto, véspera do Dia dos Pais. Em relação à abertura do comércio, há algumas considerações que devem ser levadas em conta:

    • Muitas cidades que estavam na fase 4 regrediram para a fase 1 após medidas de flexibilização entrarem em vigor;
    • O índice de Intenção de Consumo das Famílias (ICF) atingiu o menor patamar desde o ano de 2010, segundo informações da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo;
    • Há uma melhora identificada na qualidade dos serviços e atendimentos, uma vez que cada cliente que entra no estabelecimento comercial é extremamente importante para a geração de receitas;
    • A queda do nível de renda tem empurrado compradores para o comércio popular, gerando aglomerações em áreas que possuem essa característica;
    • Vendedores relatam medo em se deslocar para o trabalho, pois os meios de transporte coletivo apresentam grande possibilidade de contaminação. Muitos estão mudando as suas rotas e realizando mais baldeações para evitar linhas que possam estar congestionadas – isso normalmente aumenta o tempo de trânsito até o trabalho;
    • Existe também o acúmulo de funções dentro dos estabelecimentos, já que houve demissões e poucos funcionários ficaram para desempenhar a atividade de atendimento, venda, faturamento, estoque, etc.;

    Posto isso, o desafio é fazer com que parte importante do consumo seja retomada. Pois muitas famílias tiveram sua renda comprometida de alguma forma e as que foram menos afetadas estão bastante receosas em gastar.

    Para muitas pessoas, a ajuda oferecida pelo governo federal foi insuficiente, sendo obrigadas a buscar outras alternativas para sobreviver, afinal as despesas não cessaram. Empresários e comerciantes, por sua vez, tentam recuperar as vendas mesmo com a insegurança de estar exposto a uma grande circulação de pessoas que movimentam os centros comerciais e shoppings.

    Por fim, é importante ressaltar que o isolamento social, da maneira como foi praticado no país teve como resultado até o momento mais de 100.000 mortes. Além de um impacto psicológico sobre a população – seja pelo medo, seja pelo luto. Na economia, o isolamento afetou a renda de milhares de famílias e a sobrevivência de muitas empresas. Com este afrouxamento, o novo normal está por vir. Mas o problema da contaminação pelo Covid-19 não está ainda resolvido, nem com remédios nem com vacina. Para isso, é ainda necessário que toda a população tenha cuidado, tome medidas de segurança e tenha consciência sobre o uso correto de máscara. E sobretudo, se puder, que continue em casa.

    A autora

    Jamile de Campos Coleti é Administradora, Professora na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG/FRUTAL) e Doutora em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp.

    ** Texto publicado originalmente no blog Sobre economia


    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Pandemia Covid-19: 150 dias

    arte por @clorofreela

    Dia 11 de março a Organização Mundial da Saúde decretou que a COVID-19 tornou-se uma pandemia. Parece, hoje, distante o período em que escutávamos sobre uma doença que rapidamente se espalhou em uma cidade na China e tentávamos entender as ações de bloqueio e isolamento lá.

    Também pareciam exageradas as ações ocorridas na Itália, em meio a um carnaval, com suspensão das festas e um fechamento de toda uma região do país. No Brasil, as atividades rotineiras se intensificavam na volta das férias e fim dos festejos – ainda que olhássemos para os números de doentes confirmados e buscássemos informações mais precisas. 

    Hoje, 8 de agosto, temos 150 dias de pandemia decretada. Neste meio tempo, a palavra pandemia não é mais desconhecida de nosso vocabulário mais mundano.

    Pandemia

    Pandemia:

    “disseminação MUNDIAL de uma doença ou surto com transmissão comunitária”

    Não foi a primeira vez, neste milênio, que uma pandemia fora decretada. Em 2009 a OMS anunciou uma “pandemia moderada”: a H1N1. Essa pandemia ficou conhecida como “Gripe Suína”. No Século XX foi causadora da pandemia estudada nos nossos livros de história como “Gripe Espanhola”. 

    A primeira pandemia foi registrada em 1580, iniciou-se na Ásia e espalhou-se em 6 meses. O Tifo (surgido no período das cruzadas) foi uma doença que de tempos em tempos têm suas marcas na história – mas não apresenta registro como pandemia. A Cólera teve 8 episódios pandêmicos registrados.

    A palavra Pandemia vem do grego, quer dizer “de todo o povo”. É interessante pensarmos como algo com esse significado parece tornar uma mazela democrática.

    Mas em se tratando de ciência, espantou-nos como em poucos dias alguns termos iam popularizando-se. Ficou comum, em março, falarmos em transmissão comunitária. Isto significa que pessoas que não tinham tido contato com pessoas estrangeiras já estavam transmitindo a doença.

    Em pouco tempo outras palavras comuns ao meio científico da virologia começavam a se espalhar – mais lentamente que o vírus, mas ainda assim tomavam ares cotidianos. Também víamos a ascensão do debate sobre a prática do isolamento e distanciamento social sendo debatida e outros costumes tão fora da cultura brasileira – como o uso de máscaras – entrando na pauta do dia.

    Por vezes parecia que a ciência teria seu momento e junto com a divulgação científica teriam o destaque que temos batalhado para ter. Não dizemos isso por uma ideia autocentrada e de autovalorização ou qualquer coisa que o valha (bem pelo contrário, na verdade). Mas por um trabalho de resistência de anos, construído no combate de fake news, de buscar a compreensão da ciência como ferramenta cotidiana de resolução de problemáticas mundanas.

    Números do lado de cá do mundo

    Casos totais por Estado, em escala linear, CC BY-SA 4.0, wcota/covid19br

    Mas voltando a pauta da Covid-19, inicialmente em São Paulo, mas muito rapidamente em Manaus, tivemos o alastramento da doença. Enquanto acompanhávamos a Itália atingindo 827 mortes no dia, e um total de 13 mil contaminados confirmados em um país que assumiu o lockdown, o Brasil confirmava 69 pessoas. São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia e Distrito Federal eram os locais com registro.

    No entanto, o primeiro lugar a enfrentar o colapso de hospitais foi Manaus. Em pouco tempo vimos imagens de covas coletivas ocupando noticiários na televisão e nas mídias sociais. Dia 24 de março era anunciada a primeira morte na capital de Amazonas, dia 8 de abril as reportagens de falta de leitos de U.T.I. anunciavam o colapso.

    Na América do Sul, Equador foi o primeiro país a entrar nos noticiários sobre o colapso. Em 1º de abril já havia informações sobre corpos sendo recolhidos em casa e hospitais lotados. A Argentina agiu rapidamente com ações de isolamento social instituídas pelo governo federal e, até hoje, tem um dos menores números de morte da América do Sul.

    Balanço geral

    No mundo, o coronavírus chega a quase 19 milhões de infectados e ultrapassa 700 mil mortos. Deste total, quase 100 mil mortes são brasileiras. São 100 mil pessoas, familiares de alguém, com nomes, sobrenomes, profissões, relações sociais. 

    Enquanto a doença parecia longínqua e estrangeira, o compadecimento com as imagens, talvez, parecesse maior. Atualmente vivemos um paradoxo entre o cansaço do isolamento social – aqueles ainda têm o privilégio de estar isolado e trabalhando em home office – e os riscos rotineiros de quem teve que abandonar a indicação mais segura de saúde que temos no momento, pois a escolha entre ter comida na mesa ou a possibilidade de contaminar-se não é, de fato, uma escolha.

    Estamos completando 150 dias vivendo uma pandemia. A OMS também anunciou que a infodemia é um dos maiores agravantes da doença. Além disso, temos as fake news que vem assolando as possibilidades de alcançarmos a população de modo mais eficiente…

    pandemia: e o Brasil?

    Nestes 150 dias, já são 85 – mais da metade – com um Ministro da Saúde “provisório”. Tivemos episódios de apagão dos números oficiais. Temos uma avalanche de desinformação proveniente de instâncias oficiais. Protocolos que indicam medicamentos que cientificamente não são recomendados, planos de saúde que enviaram aos médicos “kits” anti-covid preventivos, com os mesmos medicamentos recomendados pelo governo – mas não pela Organização Mundial da Saúde. Fechamos o dia 07 de Agosto com 99.572 óbitos. Hoje, 8 de agosto, passaremos as 100 mil mortes, conforme a média diária que temos visto.

    Óbitos no Brasil, em escala linear, até 07/08/20. CC BY-SA 4.0, wcota/covid19br

    Há um quadro que temos visto ser debatido politicamente como Necropolítica. A morte normalizada e normatizada, quase triplicamos as mortes que nos assombravam na Itália – aquele país europeu, lembra? Pois é, soma cerca de 35 mil mortos.

    As mortes tornaram-se parte de uma população, no Brasil, que não é mais proveniente das férias em países Europeus ou Norte Americanos. Em maio, foi noticiado um outro perfil de mortes em nosso país. Não mais a faixa etária, mas a classe social. Também há demarcação racial (40% pardos e pretos, frente à 26% de brancos). Entre mulheres grávidas, mais do que o dobro são de pretas, em relação às brancas na mesma condição.

    Para além das comorbidades que vem sido estudadas cada vez mais, a PANDEMIA, aquela que é significada como “de todo o povo” e aparenta ser democrática no próprio nome, tem preferências cruéis. Definitivamente ter mais melanina em países como o Brasil, mais do que uma condição biológica e genética, demarca espaços sociais ocupados. A imensa maioria da população desassistida da condição de permanecer em casa em programas de home office são trabalhadores informais ou de baixa renda em que a negociação para condições humanas e de manutenção da saúde não são parte do cotidiano – mas a doença sim.

    Por fim

    Não há finalização amena de postagens em tempos de Covid-19, enquanto temos a centralidade das mortes causadas por descasos na condução das políticas públicas de saúde no país. Também é fundamental pensar o quanto se fala em retorno de atividades como aulas, quando há um evidente descontrole das transmissões no país – a marca de que temos pressionado pessoas e não instâncias e instituições – para mantermos a saúde dentro de todas as condições que temos o potencial de manter (mantendo pessoas, assim, a salvo!).

    Por outro lado, mesmo sabendo que nem tudo são flores, há uma corrida pela vacina, há grupos de pesquisa desvendando mais e mais rotas de como este vírus nos contamina e se transmite. Bem como uma compreensão cada dia maior dos determinantes sociais da doença.

    E de que serve tudo isto?

    Compreender a doença, seus números e seus detalhes – dentro e fora do corpo, na sociedade, dentro das sociedades – é o que nos dá cada dia mais condições de vencê-la. 

    Assim, temos trabalhado cotidianamente buscando divulgar o conhecimento produzido, em uma rede coletiva e mundial de pesquisadores. Se não buscamos soluções milagrosas, não é por não querermos divulgar algo positivo.

    Em 150 dias de pandemia (e destes temos 139 dias de Especial Covid-19 aqui no Blogs de Ciência da Unicamp), reafirmamos que nosso trabalho segue empenhado diariamente em entender melhor a ciência embrenhada em entender tudo o que envolve o novo coronavírus e a Covid-19 e apresentar todo o conhecimento possível em nosso tempo para a todos.

    Em 150 dias de pandemia, não há cansaço, não há fake news e desinformação – de acidez do limão, à cloroquina e hidroxicloroquina, chegando no uso de ozônio (calma que em breve teremos algo sobre isso!!!) – não há necropolítica, não há normalização de mortes que nos afaste disto que assumimos como compromisso com a divulgação científica e com a busca cotidiana de diálogos estabelecidos entre cientistas e a população não especialista.

    Foram 150 dias de pandemia, 145 dias afastados da Universidade (quem está em home office), 139 dias de Especial Covid-19. Não esperamos (ou não gostaríamos) de mais dias assim. Tampouco “não arredaremos o pé daqui”, enquanto isto for necessário.

    Para Saber Mais

    ANDRADE, Eduardo Goulart (2020) Com coronavírus em disparada e UTIs lotadas, Manaus está à beira do colapso Intercept Brasil, 8 de abril de 2020.

    BBC News (2020) Coronavírus: OMS declara Pandemia BBC , 11 de março de 2020.

    BLANCO, Lis (2020) Alguns questionamentos sobre governo, um vírus e a fome Blogs de Ciência da Unicamp, especial Covid-19

    CANCIAM, Natália; SBERB, Paula; WATANABE, Phillippe (2020) Sobe para 69 o número de casos do novo coronavírus no Brasil Folha de São Paulo, 11 de março de 2020.

    CARMO, M (2020) Como a Argentina conseguiu manter o número de mortes por covid-19 sob controle Uol Notícias, 03 de Agosto de 2020.

    ESPECIAL COVID-19 Checagem de fatos Blogs de Ciência da Unicamp, especial Covid-19

    FLORES, Natalia (2020) Como a desinformação têm atrapalhado nossa resposta à Covid-19 Blogs de Ciência da Unicamp, especial Covid-19

    G1 (2020) Amazonas tem primeira morte por novo coronavírus, diz Susam G1 , 24 de Março de 2020.

    JORNAL NACIONAL (2020) Na Itália, número de mortos pelo novo coronavírus passa de 820. Jornal Nacional, 11 de março de 2020.

    OLIVDEIRA, Leonardo (2020) Da fatalidade epidemiológica à ferramenta de extermínio: a gestão necropolítica da pandemia Blogs de Ciência da Unicamp, especial Covid-19

    SCHUELER, Paulo (2020) O que é uma pandemia? Notícias e Artigos Fiocruz, 23 de março de 2020.

    TERRA (2020) OMS eleva gripe suína a pandemia, 1ª no século XXI Terra, 11 de junho de 2009.

    VESPA, Talyta (2020) Em vez da idade, classe social passa a definir quem morre de covid no país

    WIKIPEDIA (2020) Gripe Espanhola, Wikipedia.

    YOUNG, Victor (2020) Morte pela covid-19 ou pela fome, será esta a questão? Blogs de Ciência da Unicamp, especial Covid-19

    ZIBELL, (2020) Mortos em casa e cadáveres nas ruas: o colapso funerário causado pelo coronavírus no Equador BBC , 1 de Abril de 2020.

  • “Programa Nutrir Campinas: impactos em época de pandemia do COVID-19”

    Texto produzido por Ana Clara Duran e pesquisadoras do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Alimentação da Unicamp (NEPA/UNICAMP)

    Em abril de 2020 foi confirmado que a pandemia do COVID-19 havia atingido todos os estados do Brasil (1). Porém, em um cenário em que as principais medidas de prevenção são o isolamento social e medidas de higiene, as populações mais vulneráveis são as mais afetadas, incluindo uma maior dificuldade de aquisição de alimentos (2).

    Essas populações com dificuldades econômicas e sociais são as que apresentam maiores índices de Insegurança Alimentar e Nutricional (IAN), ou seja, apresentam maiores dificuldades de acesso a alimentos de qualidade de forma adequada (3), o que aumenta o seu risco de desenvolver ou agravar doenças como obesidade, diabetes, hipertensão, depressão e doenças mentais (4). Ademais, evidências recentes demonstram um maior risco de complicações quando o paciente diagnosticado com COVID-19 apresenta obesidade ou diabetes. 

    O Programa Nutrir Campinas

    Em Campinas, um terço dos domicílios apresentavam IAN previamente a pandemia do COVID-19, o que pode ser ainda mais intensificado durante essa época de crise, exigindo medidas emergenciais (5). Assim, a Prefeitura de Campinas, através da Lei no 15.892 de 30 de março de 2020, declarou a expansão do Programa Nutrir Campinas para até 26 mil famílias(6). O Nutrir Campinas é um Programa Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) implementado em 2016 para auxiliar famílias em vulnerabilidade no município. Estas famílias recebem um cartão alimentação que pode ser utilizado em estabelecimentos de vendas de alimentos credenciados no valor mensal de R$94,00 (7, 8).

    O Programa, que substituiu a entrega de cestas básicas – ação conhecida por ser menos eficiente e custo-efetiva do que transferência diretas de renda –  ainda apoia o comércio local, já atendia até início de 2020 cerca de seis mil famílias, o que equivale a mais de 30 mil pessoas em situação de pobreza (7). Os novos cartões, distribuídos a partir de abril, podem ser utilizados por até 90 dias na compra de, além de gêneros alimentícios, produtos de higiene pessoal e limpeza, essenciais para a diminuição da disseminação do vírus (8). A extensão deste programa emergencial em mais três meses está atualmente em fase de discussão.

    O Núcleo de Estudos e Pesquisa em Alimentação da Unicamp

    Considerando que a identificação de populações mais vulneráveis em tempos de crises devem ser prioridade nos esforços para reduzir a fragilidade e o tempo de recuperação após a crise (9), o monitoramento de estratégias como o Programa Nutrir Campinas é essencial. Assim, pesquisadores, alunos de graduação e pós-graduação do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação (NEPA) da UNICAMP desenvolveram um projeto de pesquisa e extensão para avaliar os comportamentos de compra de alimentos com o cartão-alimentação do Programa Nutrir Campinas entre os beneficiários convencionais e emergenciais, além de avaliar, em uma sub-amostra de beneficiários, a situação de IAN durante e após a pandemia do COVID-19.

    O desenvolvimento do projeto

    O projeto de extensão e pesquisa está sendo realizado em parceria com a Secretaria Municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos de Campinas e utilizará informações socioeconômicas e de participação dos beneficiários fornecidas pela Secretaria e também dados dos estabelecimentos onde as compras de alimentos são realizadas, fornecidos pela empresa que gerencia os cartões-alimentação. 

    Assim, verificaremos os locais de compra dos beneficiários previamente cadastrados no Programa e analisaremos a distância que os beneficiários percorrem para comprar alimentos. Após essa etapa, compararemos os comportamentos de compra (valor de compra, tipo e distância percorrida até os estabelecimentos) antes, durante e após a pandemia. Essa mesma avaliação será realizada entre os beneficiários emergenciais que serão comparados aos beneficiários do Programa Nutrir Campinas que já recebiam o benefício antes da pandemia da COVID-19. Ademais, em uma subamostra de participantes, avaliaremos por meio telefônico o estado de segurança alimentar e nutricional durante o período de isolamento social e seis meses após sua finalização no Município de Campinas. Estes beneficiários também receberão informações acerca de como melhor utilizar seus benefícios de acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira (10). 

    Os resultados serão discutidos com a Secretaria Municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos. A parceria entre o NEPA/Unicamp e a Prefeitura de Campinas tem o potencial de contribuir para o aprimoramento do Programa Nutrir Campinas, auxiliando no manejo do programa e na tomada de decisões futuras acerca de proteção social dessa população.

    Força Tarefa Unicamp: a pesquisa em tempos de pandemia

    [Nota do Editorial] Este é o primeiro texto produzido por uma das pesquisas já em andamento da Força Tarefa da Unicamp – que além dos trabalhos de diagnóstico tem produzido pesquisa em várias áreas de conhecimento. Em breve traremos mais textos e debates sobre a ciência em tempos de pandemia, realizados pela Força Tarefa da Unicamp.

    Para saber mais

    1. El País (2020) Evolução dos casos de coronavírus no Brasil.

    2. Lima J (2020) Por que as periferias são mais vulneráveis ao coronavírus, Nexo Jornal.

    3. Bezerra TA, Olinda RAd, Pedraza DF (2017) Insegurança alimentar no Brasil segundo diferentes cenários sociodemográficos, Ciência & Saúde Coletiva, 22:637-51.

    4. Gundersen C, Ziliak JP (2018) Food Insecurity Research in the United States: Where We Have Been and Where We Need to Go, Applied Economic Perspectives and Policy;40(1):119-35.

    5. Souza BFdNJd, Marin-Leon L, Camargo DFM, Segall-CorrÊA AM (2016) Demographic and socioeconomic conditions associated with food insecurity in households in Campinas, SP, Brazil, Revista de Nutrição, 29:845-57.

    6. Campinas (2020) Lei nº 15.892 de 30 de março, altera a Lei nº 15.017, de 26 de maio de 2015, que “institui o Programa Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional `NUTRIRCAMPINAS`, estabelece critérios de inclusão, interrupção e exclusão, e dá outras providências”.

    7. Campinas (2019) Prefeitura de Campinas. Programa Nutrir Campinas entrega mais 900 cartões em Dezembro 2019.

    8. Campinas (2020) Prefeitura de Campinas. Prefeitura disponibiliza cartões Nutrir emergenciais a partir do dia 17.

    9. Dixon N (2019) Identification and inclusion of vulnerable populations during emergency planning: A real-world application.

    10. Brasil, Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica (2014) Guia Alimentar para a População Brasileira 2ª edição.

    Outros Textos do blogs

    Alguns questionamentos sobre governo, um vírus e a fome

    As Autoras

    Ana Clara da Fonseca Leitão Duran é pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação (NEPA) da UNICAMP e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva na área de concentração de Epidemiologia da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Também é pesquisadora associada do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (NUPENS/USP).

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Como a Economia Social e Solidária pode ser a solução para esses novos tempos pós pandemia!

    Com mais de 8 milhões de casos confirmados de Covid-19 no planeta [1], passar por essa pandemia acelerou discussões que não giram em torno apenas da saúde e a busca pela cura do vírus, mas promoveu também discussões que, até então, circulavam apenas em bolhas sociais [2]

    A pandemia deixou claro os problemas da falta de investimento nos sistemas de saúde e ciência, além da avalanche de informações duvidosas recebidas diariamente (a chamada infodemia).

    A pandemia também evidenciou as deficiências sociais e econômicas vigente que insiste em seguir o raciocínio da Revolução Industrial (1760 – 1840) – com suas devidas atualizações – mas, mantendo seu principal compromisso com o maior lucro em decorrência da menor despesa possível. 

    Vimos explodir nas mídias sociais e na imprensa demonstrações, protestos e cobranças de uma situação que não era igual para todos, principalmente, advindas  dessa nova geração [3] que veio a público mostrar como a Covid-19 e seus efeitos foram sentidos de forma muito diferente (e a custo de vidas) nas minorias, como: mulheres, povos indígenas, pessoas com deficiência, comunidades marginalizadas, jovens e pessoas com contratos de trabalho precários ou da economia informal, por exemplo.

    E ao identificar essas problemáticas evidenciadas pela pandemia, às Nações Unidas [4] montou uma Força-Tarefa Interinstitucional sobre Economia Social e Solidária (TFSSE) promovendo assim a discussão e a garantia da coordenação dos esforços internacionais, aumentando sua visibilidade (da Economia Social e Solidária – SSE) como solução na recuperação pós-crise do COVID-19.

    “A pandemia expôs muitas fragilidades em nossas economias e aprofundou as desigualdades existentes, destacando a necessidade de resiliência, inovação e cooperação. Os problemas pré-crise, incluindo a quantidade e qualidade insuficientes de emprego, as crescentes desigualdades, o aquecimento global e a migração, a insustentabilidade do atual sistema industrial de alimentos, vão piorar significativamente como conseqüência das medidas tomadas para combater a emergência sanitária”.

    Documento emitido pela TFSSE em 11/06/2020.

    Nós tivemos o privilégio de conversar com o Leandro Pereira Morais que é economista, Representante do Brasil no OIBESCOOP, Consultor Sênior da OIT, Membro Suplente da Força Tarefa das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária (E mais um tantão de coisas [5]) sobre como essa iniciativa funciona e como podemos contribuir para que o futuro pós – COVID-19 ofereça condições melhores a nossa sociedade.

    Objetivos de Desenvolvimento Sustentável [6]

    Como a Força Tarefa das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária contribui para a recuperação pós-crise do COVID-19?

    R: Esse trabalho ganhou muitas conexões com outras agências das Nações Unidas e foi se transversalizando os temas relacionados a Economia Social e Solidária com outras áreas como a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), nos assuntos relacionados a segurança alimentar, orgânicos, na geração de trabalho e renda para famílias vulneráveis, promovendo, por exemplo, o acesso a alimentação mínima diária, repercutindo, inclusive em melhores condições de saúde.

    Essa transversalização se formou no que chamamos de Força Tarefa das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária.

    É importante dizer, que essas discussões já eram desenvolvidas antes da pandemia, como: os objetivos do desenvolvimento sustentável – a agenda 20/30 e às ODS.

    A economia social e solidária é uma ferramenta importante para a formação e implementação das ODS e sua relação com seu ambiente/território onde essas ações são desenvolvidas. Do ponto de vista da conexão do econômico (gerar renda e trabalho), com o social (emancipação de vulneráveis, governança democrática participativa  nas políticas públicas) e com o ambiental (com práticas sustentáveis, agricultura familiar). Essa, então, se transforma na tríade do desenvolvimento econômico, sócio-político e ambiental.

    Assim, a partir desse momento de pandemia, voltamos os trabalhos e a articulação governamental internacional para a questão de enfrentamento da pandemia e suas consequências econômicas, sociais e ambientais.

    Muitas das experiências da economia solidária podem ser utilizadas para situações emergenciais, como a disponibilização de alimento, associações de costureiras para a confecção de máscaras, por exemplo. Assim, como às de médio e longo prazo, propondo revisões e reflexões do atual modelo de desenvolvimento que vivemos. Esse modelo bastante potente do ponto de vista material e da produção, de padrões tecnológicos avançados, a chamada 4ª revolução, mas que cobra um preço alto das relações de trabalho, de espaço, produção, de consumo, sociais e ambientais.

    Portanto, todo um mundo de discussões que já perfilava antes da pandemia e que agora intensifica essas tendências e exige soluções, coloca urgência na discussão.

    E como esse padrão econômico citado reflete na sociedade nesse momento de pandemia?

    R: Pois é, como estávamos conversando esse padrão econômico, produtivo e altamente potente do ponto de vista material e de produção, que nos permite conforto, enfrentamento de momentos adversos e de acesso, por exemplo, relógios que medem sua saúde, controle de temperatura do ambiente, viagens através do continente, comunicação em tempo real e com pessoas do outro lado do mundo, enfim… não podemos negar que é fantástica essas evoluções. Por outro lado, os frutos dessa produção material não são para todos. Nem todos são convidados nesta festa!

    Ainda há pouca facilidade de acesso a essas produções materiais e inovações tecnológicas, é para quem pode pagar.

    Essa facilidade é elitista e exclusiva! Ao mesmo tempo, percebemos nesse cenário de produção material e tecnológica o aumento na concentração de renda, exclusão, desigualdade e miséria.

    A pandemia veio para desnudar de forma intensa essa realidade e não é um problema do Brasil mas no mundo todo. O sistema atual é incoerente, nós temos uma produção mundial de alimentos de 10 bilhões e um planeta com 7 bilhões, como mais de 1 bilhão e meio de pessoas passa fome diariamente? 

    Então, do ponto de vista de médio e longo prazo, talvez essa pandemia nos dê a oportunidade de rever esse padrão econômico vigente, do lucro pelo lucro. E esse não é papo de esquerda ou direita mas de reflexão e discussão para aqueles que têm o mínimo de sensatez.

    Mas, isso seria uma mudança profunda, não só de padrões mas de consciência, certo?

    Sim, essa é uma mudança estrutural, de conceitos, de sentimentos. Não é simples, mas é preciso que às pessoas pensem sobre e essa discussão tem várias facetas, das relações de consumo, trabalho, etc.

    Nas relações de consumo, já vemos mudanças. As pessoas estão repensando e tomando atitudes de mudança.

    Primeiro que vivemos em um momento que as pessoas não tem como sair de casa frequentemente, devido a possibilidade de contaminação da Covid-19 e a incerteza de ter condições financeiras e de emprego, que já era um problema antes da pandemia. 

    Hoje às pessoas repensam sua necessidade de consumo. E isso gera um olhar crítico para a compra.

    A economia, na verdade, foi se distanciando da realidade da sociedade e isso aparece nesse momento de adversidade que estamos passando. Esse diálogo que tem aparecido sobre termos que escolher entre a vida e o trabalho não é justa, é uma equação obscena, é uma guerra de narrativas e isso é muito sério!

    A base originária da estrutura da ciência econômica precisa ser revista!

    Essa ciência é organizada pelos nexos de mercado, é essa ideia do “homem econômico”, ou seja, uma caricatura tosca que se move por ideais maximizantes, portanto, o produtor maximiza o lucro, em decorrência do prejuízo ao meio ambiente, precarização o trabalho e até a aceitação do trabalho escravo.

    Já pelo ponto de vista do consumidor é a maximização do conforto, bem estar, ou seja, quando sua renda, que é limitada, maximiza o seu consumo em demandas ilimitadas. 

    Dessa forma, a economia vem se afastando da realidade e essa pandemia só desnudou essa questão. Se por um lado, se tem pessoas que podem pagar pelo acesso a saúde, alimentação e ficar em casa, por outro, temos pessoas que não tem acesso a água, o que dirá álcool em gel e no meio pessoas que lutam pendendo de um lado e do outro. 

    Então, já vivíamos uma crise estruturante e o “corona” pega carona nessa crise e foi sendo escancarado pelas minorias nas mídias sociais ao mostrar o empregado que pegou o vírus da patrão e morreu e a patrão que teve acesso a condições de saúde e alimentação digna e sobreviveu.

    E quais são os direcionamentos práticos que a economia social e solidária recomenda para que essa ideia de produção e consumo maximizante mude? 

    É importante deixar bem claro que é um processo, não é uma receita de bolo ou mágica! Mas ações individuais, apesar de serem de menor alcance, já ajudam muito a promover mudanças:

    1- Fazer a comunicação e sugestões de assunto na imprensa, sites de comunicação, compartilhar conteúdo em suas redes sociais, por exemplo, sempre de forma não agressiva mas que sensibilize e informe às pessoas sobre a economia solidária, seus princípios e discussões. 

    2- Discutir e pensar sobre o assunto – como nós fazemos aqui no curso de Economia na Unesp, colocando em discussão os conceitos da economia solidária e pensar em um mundo diferente desses padrões que estamos vivendo, como mudanças na relação do trabalho, o não haver emprego para todos e seus efeitos.

    3- Participar, financiar e divulgar ações coletivas (trabalho, social e ambiental) – Dar visibilidade para grupos de minorias e suas reivindicações, dar preferência para atividades de pequenos comerciantes, empresários, artesãos, trabalhadores informais. Não consumir produtos que vem de empresas que degradam o meio ambiente ou funcionam em situações degradantes de trabalho.

    4- Escolher governante e exigir deles após às eleições que implementem políticas públicas para que o pequeno negócio tenha melhores chances de sobrevivência, acessos a créditos e impostos justos, a relação que vivemos hoje é completamente desigual para aquele que concorre com grandes indústrias. No Brasil, a micro e pequena empresa gera 80% da capacidade de renda do país, isso sem condições mínimas, é preciso que haja políticas mais favoráveis.

    Entende-se que o Consumo Consciente não é só um ato econômico mas político também, quando eu consumo de uma marca que sabidamente precariza o trabalho, não paga impostos ou degrada o meio ambiente, eu estou sendo conivente com o processo. Claro que o consumo dos pequenos ainda é mais caro, produtos orgânicos, por exemplo, mas ao investir comprando desse pequeno produtor geramos impactos macro na sociedade.

    A ideia que vimos aumentando durante a pandemia como “compre do pequeno” ou “compre no seu bairro” sempre foi uma bandeira da economia social e solidária. E essa é uma consciência que começou aumentar não só com as pessoas comuns, mas vemos empresários e empresas também começando a mudar sua atitude.

    E como a divulgação científica pode contribuir com essa mudança estrutural?

    A ciência em si tem um papel fundamental nisso, fazendo ciência em prol da maioria. 

    O cientista precisa colocar seu esforço em, além de desenvolver aquela área e realizar descobertas, para que sua pesquisa tenha uma ação social e não fique apenas no seu meio, que tenha uma utilidade pública, social e que não privilegie o sistema econômico e de mercado vigente. 

    Um exemplo, é essa busca pela vacina para o Covid-19. Será que essa vacina terá um direcionamento de bem de mercado e o acesso será restrito a quem possa pagar por ela? Ou terá um direcionamento social que independentemente da condição financeira, cor, credo, opção sexual, por exemplo, possa ter acesso a ela?

    Acho que todo cientista tem esse papel de rever a ciência de forma crítica, porque ela não está desconectada desse padrão que discutimos aqui, a disponibilização das informações sobre ciência, inclusive.

    A ciência, sua evolução e suas descobertas também foram disponibilizadas pela lógica de mercado, ou seja, para quem podia pagar. É claro, que existe o problema de financiamento, mas o que é possível se fazer, como cientista, é pensar na ciência como coletivo e disponibilizar seus frutos para que todos tenham acesso, para o bem comum.

    Por fim, nossa ação aqui na Força tarefa é feita, por sua maioria de professores/pesquisadores, de todo os lugares do mundo, dedicando nosso tempo em orientar, construir e reunir uma literatura e arsenal conceitual, teórico e empírico para contribuir para a implementação da Economia Social e Solidária nos governos mundiais, essa é uma das atividades em prol do bem comum que viemos explanando aqui.

    Dica de evento:

    O Fórum Político de Alto Nível, plataforma central das Nações Unidas para o acompanhamento e a revisão da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, prevê a participação plena e efetiva de todos os Estados Membros das Nações Unidas e Estados membros de organizações especializadas.

    A reunião do fórum político de alto nível sobre desenvolvimento sustentável em 2020 será realizada de terça – feira, 7 de julho a quinta-feira, 16 de julho de 2020 , sob o apoio do Conselho Econômico e Social. Isso incluirá a reunião ministerial de três dias do fórum, de 14 de julho a 16 de julho de 2020.

    Acompanhar o evento: ttps://sustainabledevelopment.un.org/hlpf/2020

    Para saber mais:

    [1] Para conferir os dados atualizados da Covid – https://covid19.who.int/ e https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51718755

    [2] “O fenômeno de Bolhas Sociais é conhecido em diversas áreas e pesquisas estão sendo feitas para analisar seu impacto na sociedade. Se caracteriza pela limitação dos indivíduos ao acesso a informações que tem afinidade e a falta de acesso a informações divergentes ou diferentes das de seu interesse.”

    EVANGELISTA, Bruno; BATISTA, Gabriela; DE OLIVEIRA, Jaqueline Faria. Detecção Automática de Bolhas Sociais no Twitter em uma Rede de Usuários de Tecnologia. In: Anais do VII Brazilian Workshop on Social Network Analysis and Mining. SBC, 2018.

    [3] Falamos aqui das gerações Y e Z: A geração, conhecida como Y – nascidos entre 1980 a 1995 – presenciou a plena expansão das inovações tecnológicas, o nascimento da internet e o início da mudança na comunicação e na era da informação, estes foram criados com a preocupação pela segurança e pelo excesso de estímulos, suas ambições estão na prosperidade econômica, ou seja, é movida por resultados, desafios e interesses de ascensão rápida.

    Já a geração Z – nascidos entre 1996 a 2000 – nasce em plena era da informação e da tecnologia na palma da mão, essa é uma geração conectada e informatizada 100% do seu tempo, prefere o consumo rápido e facilitado porém com pouca interação social presencial, uma vez que a conectividade supri suas necessidades emocionais. Essa geração não procura o acúmulo de bens, mas valoriza o dinheiro para que este sustente seu padrão e qualidade de vida, buscando, muitas vezes um perfil empreendedor. 

    Baby Boomer: https://pt.wikipedia.org/wiki/Baby_boomer

    Geração X: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gera%C3%A7%C3%A3o_X

    Geração Y: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gera%C3%A7%C3%A3o_Y

    Geração Z: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gera%C3%A7%C3%A3o_Z

    [4] Para a lista completa de membros e observadores do UNTFSSE, visite: http://unsse.org/ – Para mais informações, entre em contato com: Presidente: Vic Van Vuuren (OIT), vanvuuren@ilo.org; Secretaria Técnica: Valentina Verze (OIT), verze@ilo.org

    Ainda mais informações sobre o assunto:

    Sobre a Divisão de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

    Textos originais sobre a conscientização e contribuição para o corpo de conhecimentos sobre SSE como um meio de implementação dos ODS

    ESS Collective Brain é um espaço interativo virtual que visa enriquecer as atividades da OIT em  Economia Social e Solidária (ESS) – http://ssecollectivebrain.net/?lang=es

    Observatório Ibero-Americano de Emprego e Economia Social e Cooperativa

    [5] Leandro Pereira Morais. Professor Doutor e Pesquisador do Departamento de Economia e Coordenador do Núcleo de Extensão e Pesquisa em Economia Solidária, Criativo e Cidadania (NEPESC) da UNESP – ARARAQUARA, Membro Titular do Conselho Científico Internacional do CIRIEC, Representante do Brasil no OIBESCOOP, Consultor Sênior da OIT nas áreas de Economia Social e Solidária e Cooperação Sul-Sul, Membro Suplente da Força Tarefa das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária. Áreas de Interesse em Pesquisa: Políticas Públicas de Economia Social e Solidária, ODS, Cooperação Sul-Sul e Ecossistema Empreendedor para Economia Social e Solidária

    Ainda mais um pouco sobre o Leandro Morais: https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/38780/leandro-pereira-morais/ e http://lattes.cnpq.br/8472617785156618

    [6] Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) (ou Objetivos Globais para o Desenvolvimento Sustentável) são uma coleção de 17 metas globais, estabelecidas pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Os ODS são parte da Resolução 70/1 da Assembleia Geral das Nações Unidas: “Transformando o nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, que depois foi encurtado para Agenda 2030. As metas são amplas e interdependentes, mas cada uma tem uma lista separada de metas a serem alcançadas. Atingir todos os 169 alvos indicaria a realização de todos os 17 objetivos. Os ODS abrangem questões de desenvolvimento social e econômico, incluindo pobreza, fome, saúde, educação, aquecimento global, igualdade de gênero, água, saneamento, energia, urbanização, meio ambiente e justiça social. https://pt.wikipedia.org/wiki/Objetivos_de_Desenvolvimento_Sustent%C3%A1vel

    Este post foi publicado originalmente no blog Mindflow

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Carlos Nobre alerta que além da pandemia, é preciso conter o aquecimento global


    Por Danila Gabriela Bertin, Felipe Ferreira Naves e Vinícius Nunes Alves

    A colaboração científica global é essencial para vencermos a crise do novo coronavírus, mas também para uma reconstrução sustentável da economia pós-Covid-19

    Quem nega o aquecimento global, 
    vai ver esses efeitos acontecendo daqui há 20 ou 30 anos.
    Quem vai ser afetado, 
    não são as mesmas pessoas que estão negando agora.
    [Átila Iamarino no programa Roda Viva da TV Cultura em 30 de março] 
    

    Nunca antes, na sociedade moderna, houve uma pandemia com esta magnitude. Ao mesmo tempo, há uma união global da ciência em prol de uma solução comum, em proporções nunca vistas antes. Mas Carlos Nobre, um dos maiores cientistas do clima, defende que a ciência se una não só durante a crise de Covid-19, mas também após a mesma para auxiliar a economia a se reconstruir de forma sustentável no mundo.

    No webinar “Futuro Pós Covid-19” promovido pelos Líderes Climáticos da Juventude (YCL, sigla em inglês) em 05 de maio, o climatologista de destaque discutiu meios para uma reconstrução sustentável da economia pós Covid-19. “O ideal é uma colaboração, não é um país brigando com o outro, escondendo ciência, tentando usar a ciência com enorme poder tecnológico e econômico”, ressalta Carlos Nobre, que também apoia essa postura para as mudanças climáticas, outro problema global que as sociedades devem enfrentar.

    Carlos Nobre é um cientista brasileiro de impacto internacional. Atualmente é pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP e Presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, entre outras titulações e funções. Nobre alerta sobre os riscos do aquecimento global formado nas últimas décadas para a humanidade, caso não frearmos as emissões de gases de efeito estufa. A destruição e poluição do meio ambiente podem tornar a manutenção da vida na Terra insustentável para os seres humanos, assim como para 40 a 50% das espécies do planeta.

    Imagem de chamada do Youth Climate Leaders (Líderes Climáticos da Juventude) no Facebook para o webinar com Carlos Nobre.


    Resistência e retomada econômica sustentável

    Tanto na crise de Covid-19 quanto na crise climática há certa resistência da sociedade em mudar o estilo de vida, principalmente pelo impacto na economia. Carlos Nobre fez questão de reconhecer que “a recuperação econômica não é um coelho que sai da cartola do mágico”. É inevitável que grande parte dos recursos para isso saia do bolso do cidadão, assim como aconteceu nas outras recessões. Portanto, é imprescindível o posicionamento da sociedade a favor das soluções sustentáveis e economicamente viáveis, que evitem os limites planetários.

    A energia de fontes renováveis, como a solar e eólica, estão entre as menos custosas. No entanto, os subsídios para a indústria fóssil, a maior responsável pela crise climática, ainda é dez vezes maior do que para a energia renovável. Logo, é urgente a inversão desta prioridade. Carlos Nobre ainda realçou a necessidade da transição para uma agricultura regenerativa, baseada em sistemas agroflorestais, que favoreça a biodiversidade dos países tropicais e os serviços ecossistêmicos.

    “A floresta em pé tem um valor econômico superior para a sociedade em geral do que a floresta derrubada e substituída por pastagem de pecuária ou mesmo grãos. Tanto a ciência quanto o conhecimento tradicional podem valorizar, inclusive culturalmente, uma floresta em pé por milhares de anos”, conta Carlos. Nesse sentido, o projeto Amazônia 4.0 (em referência à quarta revolução industrial) é um exemplo de sucesso na parceria entre ciência, tecnologia e conhecimento tradicional de povos amazônicos que busca o desenvolvimento de uma economia que prioriza a floresta em pé.

    Outra iniciativa recente que tem potencial para alavancar a economia de forma sustentável após a pandemia é a do Fórum Econômico Mundial (2020) que propõe plantar um trilhão de árvores de forma planejada. Isso, além de ser poderoso no combate às mudanças climáticas, pode ser também um instrumento valioso na recuperação econômica, uma vez que gerará empregos e benefícios para a agricultura e qualidade ecológica urbana.


    Crise climática e pandemias no futuro

    As hipóteses mais aceitas para o surgimento do novo coronavírus, o Sars-Cov-2, se relacionam ao tráfico de animais silvestres, ao seu manuseio e consumo. São os famosos mercados molhados. E por que eles trazem risco de epidemias? Os animais silvestres, há milhões de anos, estão em equilíbrio com seu ambiente. Ambiente este que é rico em diversos microrganismos e, quando perturbado, pode desequilibrar o tamanho das populações de microrganismos e de seus vetores (animais que o transportam).

    A savanização da Amazônia também traz consigo riscos expressivos de gerar doenças com potencial pandêmico. Com as florestas tropicais secando e se transformando em fisionomias savânicas, a diversidade de microrganismos é desequilibrada e o fluxo desses muda, ficando mais expostos para a população humana.

    Muitos desses microrganismos podem trazer doenças zoonóticas, se em contato direto com humanos. A Floresta Amazônica, além de sofrer problemas ambientais como desmatamento, queimada e grilagem de terras, já carrega potenciais endemias. “Se perguntarem assim: Poxa, a Amazônia nunca gerou até hoje uma pandemia, né? Eu responderia: pura sorte porque elementos de geração de epidemias e pandemias estão na Amazônia. Existe a leishmaniose que é endêmica. Existem umas hantaviroses que estão se tornando agora um pouco mais disseminadas. É um lugar que tem a maior diversidade de microrganismos do mundo”, destaca o cientista.


    Crise climática e injustiça social

    A desigualdade social se torna cada vez mais frequente, em ritmo acelerado nos países em desenvolvimento. As populações com menor capacidade de resiliência aos impactos das mudanças climáticas são justamente as mais vulneráveis e as que menos contribuem para a instalação desta crise. São países africanos, do sul da Ásia e América Latina. Mesmo diante desse contexto, “nós ainda não tivemos a habilidade de implementar um mecanismo de compensação de justiça social”, pondera Carlos Nobre com sua franqueza característica.

    O Fundo Verde do Clima surgiu em 2010, na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, com o objetivo de financiar projetos voltados ao enfrentamento da crise climática nos países mais vulneráveis. Porém, o Fundo se encontra com baixa efetividade de atuação contra a injustiça social, assim como para nos direcionar a trajetórias de menor risco.

    Transações de caráter econômico não sustentáveis ainda estão recebendo prioridade, e um exemplo disso é a crítica iniciativa Belt and Rode da China que pretende vender termelétricas a carvão para a África. Ironicamente, é esse continente que possui o maior potencial de geração de energia solar do mundo com o Deserto do Saara.

    Isso vai na contramão do Acordo de Paris (2015) realizado pelas Nações Unidas que considera “as mudanças climáticas como uma ameaça urgente e potencialmente irreversível para as sociedades humanas e para o planeta e, portanto, requer a mais ampla cooperação possível de todos os países e sua participação em uma resposta internacional eficaz e apropriada, com vista a acelerar a redução das emissões globais de gases de efeito estufa”. Nesse sentido, Carlos Nobre ainda complementa que “se nós não conseguirmos atingir os objetivos do acordo de Paris, nós vamos criar um mundo muito mais impensavelmente injusto do que nós já temos hoje.”

    Poluição atmosférica em cidades – Imagem de Pixabay


    O papel da educação e dos jovens com as mudanças climáticas

    Quando lidamos com crises sanitárias, como a Covid-19, a percepção dos impactos é maior, pois estamos vivenciando as consequências desse problema rapidamente. Mas quando tratamos das graduais mudanças climáticas a percepção de risco é menor. Para mudar essa percepção, não basta só a informação científica, mas precisa essencialmente de uma base educacional sólida que valorize o processo do conhecimento científico sobre problemas ambientais e outros que afetam a sociedade como um todo.

    Os sistemas educacionais formais se concentram na juventude e colocam os jovens como protagonistas iminentes da sociedade. Assim, é a educação de qualidade que pode esclarecer a percepção de risco das mudanças climáticas, tornando a sustentabilidade um valor humano e de cidadania.

    Carlos Nobre enfatizou que os “bons ventos” estão mais nas mãos dos jovens, pois serão os consumidores, empreendedores e políticos de uma sociedade futura. Segundo o pesquisador, a organização de jovens líderes climáticos deste webinar é um emblema disso. São jovens com esse perfil que pensam em medidas inovadoras e em ferramentas criativas da quarta revolução industrial para gerar oportunidades econômicas sustentáveis. A responsabilidade e a oportunidade parecem ainda maiores para as gerações jovens que crescem em países com dimensões continentais e com biodiversidade imensa como o Brasil.


    Danila Gabriela Bertin é bacharel em Ciências Biológicas pelo ICENP/UFU.

    Felipe Ferreira Naves é bacharel em Ciências Biológicas e mestrando em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais pela UFU.

    Vinícius Nunes Alves é licenciado e bacharel em Ciências Biológicas pelo IBB/UNESP, mestre em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais pela UFU. Atualmente é estudante de especialização em Jornalismo Científico pelo Labjor/UNICAMP e colunista do jornal Notícias Botucatu.

    Este post foi escrito originalmente no blog Natureza Crítica

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Isolamento social muda a dinâmica do meio ambiente durante a pandemia

    Por Caroline Marques Maia, Luciane Borrmann e Vinícius Nunes Alves

    Benefícios momentâneos ao meio ambiente durante a pandemia não indicam, necessariamente, que a natureza está sendo restaurada dos estragos causados por humanos

    Diminuição da poluição atmosférica em grandes cidades, águas mais limpas, passagem incomum de animais silvestres em centros urbanos, praias vazias com tartarugas desovando em massa. Essas e outras consequências da redução da circulação humana e o seu impacto no meio ambiente têm sido noticiadas durante a pandemia e são importantes para reflexões sobre as questões ambientais no planeta. Mas será que apenas efeitos benéficos estão ocorrendo no meio ambiente em função do distanciamento social? “Alguns animais podem se beneficiar de forma mais imediata, como aves voltando a nidificar em certas áreas ou peixes reocupando canais outrora poluídos, mas mesmo a natureza dando mostras de reparos, isso não significa dizer que esteja se recuperando”, pondera a bióloga Lilian Hoffmann.

    Pela primeira vez em cerca de 80 anos, a montanha Dhauladhar, que faz parte da cordilheira do Himalaia, pôde ser avistada novamente na Índia. Esse fenômeno ocorreu devido à queda da poluição atmosférica pela diminuição da produção nas fábricas e o trânsito reduzido na quarentena. Na China, essa redução chegou a 25% desde o início da pandemia, sendo que o isolamento social no país pode ter salvo entre 50 e 75 mil pessoas da morte devido à poluição, de acordo com a Universidade Stanford

    Para Evangelina Vormittag, médica e doutora em patologia e saúde ambiental da Universidade de São Paulo (USP), conhecida como “Dra. Poluição”, essas reduções de poluição ilustram o quanto se polui o ar diariamente e como o menor consumo favorece um futuro mais saudável e mais sustentável. A médica afirma que “o benefício de um ar menos poluído é imediato para a saúde da população, não apenas para aqueles com doenças respiratórias, mas também para doenças cardiovasculares, principalmente quando se trata de grupos mais sensíveis como crianças e idosos”. 

    Segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2018, a poluição do ar foi responsável por 320 mil mortes nas Américas e 51 mil no Brasil por ano. “Enfermidades como asma e infarto são acentuadas pela baixa qualidade do ar e isso tem custos econômicos (perda de produtividade e custo de internação) que podem ser mensurados em estudos científicos de poluição atmosférica sobre a saúde”, avalia Evangelina.

    A poluição atmosférica em centros urbanos, como na imagem, caiu consideravelmente com a redução nas atividades industriais e no trânsito pelo isolamento social. Crédito: Unsplash

    E não é apenas a poluição atmosférica que reduziu nos últimos meses. As águas do rio Ganges no Norte da Índia – um dos rios mais poluídos do mundo – estão ficando mais limpas, como noticiou em abril o jornal indiano India Times.  Mesmo os canais de Veneza na Itália, famosos por seu mau cheiro, estão com as águas mais claras e nítidas por falta de circulação de barcos, fenômeno que foi relatado pelo G1 em março. Até as vibrações que as atividades humanas diárias causam na crosta terrestre diminuíram com o isolamento social, permitindo que os dispositivos sísmicos detectem outros movimentos menores com sinais mais claros, noticiou a revista científica Nature

    Vantagens para a fauna

     Locais antes dominados pela presença humana agora estão dando passagem para animais silvestres como onças-pardas, coiotes e perus nos Estados Unidos, javalis na Espanha, leopardos em vários locais da Índia, cervos no Japão, todos exemplos das recentes aparições registradas em área urbana. E não é apenas a visita desses animais em locais bem urbanizados que tem sido notada. Em Fort Lauderdale, em Miami, a Veneza americana, as águas mais claras possibilitam que os caranguejos no seu habitat natural possam ser observados. 

              Bodes caminhando em bando no País de Gales. Crédito: Conta pública da @bbcbrasil no Twitter

    A fauna ainda está se beneficiando de outras formas por causa da redução na circulação de pessoas durante a pandemia. Um bom exemplo são as notícias, como da revista Veja, sobre tartarugas marinhas desovando em massa nas praias vazias, inclusive no Brasil. Até mesmo animais cativos estão sendo favorecidos. Depois de quase 10 anos de tentativas de acasalamento sem sucesso, o zoológico vazio de Hong Kong registrou esse ato ocorrendo naturalmente entre um casal de pandas, algo que pode ser vantajoso para a conservação dessa espécie. 

    Depois de quase uma década sem reproduzir, pandas acasalam em zoológico sem visitação em Hong Kong. Crédito: HKFP

    Apesar desses efeitos aparentemente otimistas para a fauna, resta a dúvida se todos eles são mesmo saudáveis para os animais. “Muitos animais que visitam as ruas podem estar atrás de comida, por exemplo, entrando em contato com resíduos descartados, e podem acabar se contaminando”, aponta Lilian, que é doutora em Biologia Animal e bolsista do Programa Arquipélago e Ilhas Oceânicas.

    Só impactos positivos?

    Existe também um outro lado sobre as consequências da pandemia atual para o meio ambiente. Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), se grandes empresas petrolíferas e políticas econômicas usarem o atual recesso econômico como pretexto para desacelerar a transição para a energia limpa, a redução das emissões globais de carbono que estão ocorrendo neste ano não ajudarão a combater as mudanças climáticas. Por exemplo, na Arábia Saudita houve grandes quedas nos preços do petróleo, o que está fazendo o país aumentar sua produção em parceria com a Rússia. 

    O próprio isolamento social, apesar de diminuir o consumo de energia no segmento industrial, tende a aumentar as contas de energia nas residências. Segundo a Agência Brasil, a despesa do consumo residencial de energia elétrica pode aumentar em até 20%, e as estimativas do Ministério de Minas e Energia indicam que os gastos com o gás natural podem subir até 23%.

    Em um período que os holofotes estão voltados principalmente para a crise da saúde, o Brasil está caminhando para “compensar” a queda na emissão de gases de efeito estufa pela redução de atividades de transporte e de indústrias com uma tendência de aumentar o desmatamento. Como a própria vegetação “sequestra” gás carbônico, o desmatamento resulta em mais gás carbônico (CO2) na atmosfera. 

    Segundo relatório recente do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg) realizado pelo Observatório do Clima,as emissões de carbono devem aumentar até 20% em 2020 devido ao grande aumento do desmatamento”. Isso ocorre principalmente na Amazônia desde 2019, com a gestão do ministro do meio ambiente Ricardo Salles, já denunciado por improbidade administrativa, tanto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo quanto pela Associação dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Asibama-DF) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). 

    “Alguns políticos e outros tomadores de decisão se aproveitam do momento de dificuldade de acompanhamento da sociedade para executar ações maléficas ao coletivo, tais como aumento na exploração de minérios, aprovação de legislação inadequada ou ainda destituição de decretos e portarias de proteção de biodiversidade, culturas indígenas e quilombolas. Isso acaba desfazendo resultados de grandes lutas passadas para a proteção de ecossistemas, biodiversidades e culturas”, destaca Camila Domit, bióloga do Centro de Estudos do Mar (UFPR). 

    Há ainda a ameaça de aumento de ações ilegais que prejudicam o ambiente e a fauna quando o foco da população e dos governantes está na manutenção das necessidades básicas e na busca de soluções para a pandemia. “Atividades ilícitas proliferam em épocas de pouca ou nenhuma fiscalização, e pode-se ver isso em atividades como desmatamento, garimpo, tráfico de animais silvestres, caça e pesca ilegal”, aponta Lilian. Um exemplo disso é a associação criminosa voltada para o desmatamento e o garimpo ilegais em terra indígena no Mato Grosso, que foi descoberta e apreendida pela Polícia Federal recentemente com mandados de prisão dos envolvidos, e busca e apreensão das ferramentas.

    Aumento no volume de descartáveis

    Outro impacto negativo é o aumento da quantidade de lixo descartável usado em alimentos e, principalmente, em hospitais. A Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) calculou em março que no país poderia ter um expressivo aumento de geração de resíduos sólidos domiciliares (15 a 25%) e de hospitalares em unidades de atendimento à saúde (10 a 20 vezes). 

    No Brasil, a capital paulista recentemente suspendeu a lei de proibição de materiais plásticos para comercialização de alimentos, supostamente pelas embalagens ajudarem na higienização e na prevenção da doença. Além disso, máscaras e luvas usadas pelas pessoas para proteção estão sendo descartados incorretamente à céu aberto nas ruas, gerando ainda mais poluição no ambiente, inclusive nos próprios oceanos. “A maior parte do lixo que chega às praias vem das cidades e como continua sendo produzido muitas vezes sem destino adequado, continua um problema, afetando negativamente a biodiversidade”, conclui Camila.

    Máscaras usadas para proteção contra o coronavírus são descartadas muitas vezes nas próprias ruas, gerando assim mais poluição no ambiente. Crédito: Pixabay

    A experiência globalizada do isolamento social ilustra que a cultura de produção e consumo têm impactos sobre meio ambiente e fauna. E mesmo os efeitos positivos da pandemia podem ser apenas um alento temporário, mas não a solução para os problemas que a civilização humana causa na natureza, como superexploração e poluição ambientais, e extinção em massa de espécies.

    Lab-19, projeto de divulgação científica de um grupo de alunos do curso de especialização em jornalismo científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor-Unicamp), engajados, como tantos, em contribuir para a disseminação de informações corretas e confiáveis sobre a epidemia de covid-19 para públicos diversos.

    Caroline Marques Maia é bióloga, mestre e doutora em zoologia. Comanda o Blog ConsCIÊNCIA Animal e é gestora-diretora do Clube Ciência e do Writing Center do Instituto Gilson Volpato de Educação Científica (IGVEC).

    Luciane Borrmann é jornalista e educadora ambiental.

    Vinícius Nunes Alves é biólogo, com mestrado em ecologia e conservação de recursos naturais. É colunista do jornal Notícias Botucatu.

  • Podemos comparar estas duas cidades? Exercícios complexos para uma pergunta simples (parte 3)

    No dia 26 de maio me perguntaram sobre a relação entre os casos confirmados e quantidade de óbitos de duas cidades, Porto Alegre e Hong Kong. A ideia geral da pergunta era: estes números são semelhantes?

    Ao tentar responder a pessoa ao que parecia uma pergunta simples, me vi envolta a inúmeras questões importantes sobre todo o fenômeno da COVID-19 e o quanto, também, temos apresentado dados sem que necessariamente as pessoas saibam não apenas receber a informação, mas questioná-las e compreendê-las de maneira menos apressada. 

    A pergunta gerou uma pesquisa que foi se estendendo, se estendendo e cá estamos, no segundo texto da série!

    O primeiro texto pode ser lido aqui. Em resumo, no dia 26 de maio, Porto Alegre tinha 1049 casos confirmados e 32 óbitos. Hong Kong tinha 1066 casos confirmados e 4 óbitos. No primeiro texto, eu busquei analisar algumas questões relacionadas à população total das duas cidades e, também, densidade populacional. No segundo texto, que pode ser lido aqui, eu fiz uma comparação com as datas de 26 de maio e 09 de Junho, mostrando as diferenças entre os números neste meio tempo.

    A outra questão que surgiu ao longo deste debate é sobre a subnotificação e as testagens, que é o que eu discuto hoje!

    Antes de falar dos testes

    Apenas para atualizar os dados das duas cidades

    Porto Alegre

    • 01 de Julho: 3.624 casos confirmados; 1.309 casos recuperados; 94 óbitos; 8.971 casos em análise.
    • 09 de Junho: 1.712 casos confirmados, 45 óbitos, 619 casos recuperados e 4.753 casos suspeitos em análise (aguardando o resultado).

    Hong Kong

    • 01 de Julho: 1.243 casos confirmados; 117 casos ativos; 1.120 casos recuperados; 07 óbitos;
    • 09 de Junho: 1.108 casos confirmados da doença, segue com 4 óbitos, 55 casos ativos (3 destes em estado crítico) e 1049 recuperados.

    Agora vamos à questão dos testes…

    E em que a quantidade de testes nos ajuda?

    Basicamente, testar em massa nos possibilita não apenas aferir quem está doente em situação grave ou gravíssima. Os testes em massa, mesmo em casos em que as pessoas apresentam sintomas muito leves da doença, nos dá condições para um manejo muito mais eficaz da doença e dos doentes.

    Se temos sintomas leves e temos a confirmação, podemos rastrear nossos contatos, testar estas pessoas e sinalizar a necessidade de isolamento (nosso e das pessoas ao nosso redor) até que a fase infecciosa da doença acabe. Podemos compreender melhor a quantidade de pessoas que já foi infectada em nosso município, possibilitando analisar com mais precisão quantos recuperados já temos e a segurança para flexibilizarmos os distanciamentos sociais e de que forma retomaríamos a vida em nosso espaço urbano.

    Além disso, conhecendo melhor a quantidade de infectados – doentes leves, moderados, graves e críticos – poderíamos nos planejar melhor em relação às compras e instalações de equipamentos hospitalares, leitos, contratações de profissionais de saúde em modo emergencial, etc.

    E estes dados são suficientes?

    Bom, eu achei prudente também olhar outros dados, uma vez que muito têm se falado sobre a subnotificação aqui no Brasil. A subnotificação se dá, entre outras coisas, pela quantidade de testes feitos na população. Quanto mais testes fazemos, mais conhecemos realmente quantas pessoas foram infectadas, e conseguimos rastrear melhor os lugares em que a infecção está mais presente, para propor um distanciamento social mais eficaz, correto?

    Eu não achei as testagens totais feitas em Porto Alegre, então eu analisei a partir da média de testes populacionais no Brasil. Como Hong Kong é uma “cidade-estado” estes números absolutos estão nos registros oficiais mundiais. Vale a pena observar que eu consegui apurar estes dados hoje (9 de Junho de 2020) e é a partir deles que eu vou fazer a próxima análise (como se fosse equivalente aos dias anteriores). Vamos dar uma olhadinha nestes números:

    • Hong Kong estava com uma média de 27.082 testes para cada 1 milhão de habitantes no dia 09 de Junho; no dia 01 de julho apresenta uma média de 42.883 para cada 1 milhão de habitantes e fez um total de 321.498 de testes no país;
    • O Brasil estava com uma média de  4.706 para cada 1 milhão de habitantes no dia 09 de Junho; agora apresenta uma média de 15.184 para cada 1 milhão de habitantes e fez um total de 3.227.591 de testes no país.

    Como eu não encontrei o número exato de testes realizados em Porto Alegre (várias cidades não apresentam estes dados, ou não são fáceis de serem encontrados), eu vou supor que obteremos o total de testes diagnósticos feitos na cidade de Porto Alegre somando-se a quantidade de negativos, positivos e em análise.

    Ao analisar o Boletim Epidemiológico de Porto Alegre lançado no dia 26 de maio de 2020, havia registrado um total de 4.105 testes (casos confirmados + casos negativos), enquanto ainda estavam em análise 2743 casos, totalizando 6.848 testes diagnósticos no dia 26 de maio

    Se olharmos o Boletim Epidemiológico de Porto Alegre, lançado no dia 09 de Junho de 2020, observamos os seguintes números: 1.712 casos confirmados; 4.753 casos em análise e 4.614 casos negativos, isto somado teríamos o total de 11.079 testes realizados desde o início da pandemia no dia 09 de Junho.

    Já o Boletim Epidemiológico de Porto Alegre, lançado no dia 02 de Julho de 2020 há um total de 16.410 testes (3.624 confirmados + 12.786 negativos), enquanto ainda estão em análise 8.971, totalizando 25.381 testes diagnósticos no dia 01 de Julho de 20220.

    Hong Kong fez o total de 202.930 de testes diagnósticos até o dia 09 de Junho, o que nos dava uma quantidade de testes 18,31 maior. No dia 01 de Julho, a cidade completou o número de 321.498 testes diagnósticos totais, o que relacionado à Porto Alegre nos dá uma quantidade de testes 29,02 maior.

    Se formos fazer relativo à quantidade de testes por 1 milhão de habitantes (que é a comparação padrão internacional), Hong Kong neste momento está com 42.883 e Porto Alegre com 7.467 testes. Neste sentido, Hong Kong está fazendo 5,74 mais testes por milhão de habitante do que Porto Alegre.

    E a subnotificação?

    O Ministério da Saúde divulgou, no dia 24 de Junho, que os casos suspeitos com sintomas leves começariam a ser testados no SUS. Pois bem, há muito se fala sobre a questão da subnotificação. Um dos dados acerca disto é, exatamente, a falta de testagens em massa na população – ainda estamos longe disto. No mundo, relativamente a testagens por milhão, estamos em 112º lugar. 

    Em artigo publicado dia 24 de Junho, os pesquisadores apontam uma notificação em 9,2% dos casos no Brasil. Neste sentido, o nosso número atual de 1,456,969 de casos, se corrigido seria cerca de 15.836.619 pessoas contaminadas (no Brasil). Outro dado que indica que estamos subnotificando são os casos de Síndrome Gripal e Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG).

    Em Porto Alegre, temos registrados em Pronto Atendimento, em Junho de 2018 um total de 261 casos de Síndrome Gripal. Este número em 2020 foi de 1.274 casos registrados (4,88 vezes mais casos do que dois anos antes). Em Unidades de Atenção Primária temos 289 casos em junho de 2018 e 2.141 casos em junho de 2020 (7,41 vezes mais casos em 2020).

    Se olharmos os números no Brasil, o Painel Coronavírus do Ministério da Saúde aponta este comparativo

    Gráfico retirado do Painel Coronavírus do Ministério da Saúde, no dia 02 de Julho de 2020.

    A SRAG tem sido apontada como um importante indicador de subnotificação por diversos centros de pesquisa, cientistas e divulgadores de ciência (eu mesma já falei sobre isto neste texto aqui). 

    Finalizando…

    Não há muito o que falar sobre a abertura de espaços comerciais, tanto em Porto Alegre, quanto em outras capitais do país. Ao que parece, os planos de abertura estão em andamento com os casos subindo, óbitos batendo recordes e uma alarmante subnotificação ainda presente. As políticas públicas que poderiam estancar a reabertura seguem a passos lentos (quase parados) e a pressão de grandes empreendimentos parece ser maior do que um conjunto de análises científicas em meio à grave crise sanitária. 

    Ainda estamos longe de superar a crise sanitária e de mortes e estamos longe de alcançar um bom plano de abertura, especialmente enquanto a quantidade de testes esteja tão baixa e a subnotificação siga tão presente em nosso cotidiano.

    Mais do que traçar planos sobre a volta às atividades presenciais, deveríamos estar debatendo seriamente planos de manutenção da vida e minimizações de desigualdades sociais que só se acentuam nestes momentos.

    Todavia, esta pauta é de uma vida inteira – e não apenas desta crise sanitária – e ainda temos muito o que fazer, lutar, trabalhar, para as novas distopias, não tão árduas como as que estamos passando agora. 

    😉 Contamos com vocês, inclusive. 

    Encerro estes conjuntos de postagens comparando duas cidades…

    Inúmeras questões foram se abrindo com estas 3 postagens que fiz, comparando Porto Alegre e Hong Kong. Agradeço imensamente às revisões, questionamentos e inquietações que provocaram e a possibilidade de entender mais sobre aspectos que pareciam simples. Ainda há muito o que estudar, em breve apresentarei estas outras arestas que foram se fazendo contundentes ao longo da escrita destas postagens…

    Para escrever este texto, assim como o primeiro, eu contei com a leitura, revisão e boas conversas com uma galera da Divulgação Científica e da Unicamp, que eu faço questão de agradecer aqui:Marco Henrique, do blog zero (que além da revisão e das mil ideias, fez as imagens e corrigiu todos os cálculos! hehehe), o Samir Elian, do blog Meio de Cultura A Erica Mariosa, do blog Mindflow, o Roberto Takata, do blog Gene Reporter e o Professor Hyun Mo Yang, do Instituto de Matemática, Estatística e Ciências da Computação (IMECC) da UNICAMP.

    Para saber mais

    AAA INOVAÇÃO. Linha do Tempo do Coronavírus no Mundo [31/12/19 até 10/06/2020]. Acesso em 09/06/2020.

    BOFF, Thiago (2020) Passageiros e motoristas de linhas que podem ser suspensas afirmam que ônibus circulam lotados em Porto Alegre Gaúcha ZH, Porto Alegre, 26 de Maio de 2020. Acesso em 15/06/2020

    CRONOLOGIA DA PANDEMIA COVID-19. Wikipedia. Acesso em 09/06/2020.

    DIHL, Bibiana. Porto Alegre é a primeira cidade do país a ter decreto de emergência reconhecido pelo governo federal. Gaúcha ZH Porto Alegre, 02/04/2020. Acesso em 09/06/2020.

    GONZATO, Marcelo (2020). Porto Alegre tem a quarta menor incidência de coronavírus entre as capitais. Gaúcha ZH Saúde.

    HONG KONG. (2020a) Coronavirus  Acesso em 15/06/2020

    HONG KONG (2020b) Latest Situation of Novel Coronavirus infection in Hong Kong Acesso em 15/06/2020

    HONG KONG NÃO TÊM (2020) Hong Kong não tem novos casos de coronavírus pela 1ª vez em quase 2 meses. Valor Econômico. Acesso em 09/06/2020.

    LIMA, Lioman. (2020). Coronavírus: 5 estratégias de países que estão conseguindo conter o contágio. BBC Brasil, 18/03/2020. Acesso em 09/06/2020

    MINISTÉRIO DA SAÚDE (2020) Coronavírus Brasil. Acesso em 09/06/2020.

    MOTA, Renato. Países asiáticos voltam a ver seus números da Covid-19 crescerem. Olhar Digital, 07/04/2020. Acesso em 09/06/2020.

    PORTO ALEGRE. Secretaria de Saúde (2020a). Boletim COVID-19 nº 65/2020. Acesso em 09/06/2020.

    PORTO ALEGRE. Secretaria de Saúde (2020b). Boletim COVID-19 nº 78/2020. Acesso em 09/06/2020.

    PORTO ALEGRE. (2020c) Prefeitura prorroga decreto de isolamento social e libera mais alguns setores. Acesso em 09/06/2020.

    PORTO ALEGRE (2020d). Vigilância do novo coronavírus mobiliza área de saúde da Capital. Acesso em 15/06/2020

    PORTO ALEGRE (2020e). Saúde Municipal se mobiliza para vigilância do coronavírus

    PORTO ALEGRE (2020f). Boletim COVID-19 n.101/2020.

    Prado, Marcelo Freitas do, Antunes, Bianca Brandão de Paula, Bastos, Leonardo dos Santos Lourenço, Peres, Igor Tona, Silva, Amanda de Araújo Batista da, Dantas, Leila Figueiredo, Baião, Fernanda Araújo, Maçaira, Paula, Hamacher, Silvio, & Bozza, Fernando Augusto. (2020). Análise da subnotificação de COVID-19 no Brasil. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, Epub June 24, 2020.https://doi.org/10.5935/0103-507x.20200030

    ROCHA, Camilo. (2020). Os estudos que mostram o impacto positivo do isolamento social.   Nexo Jornal, 21 de abr de 2020. Acesso em 09/06/2020.

    SORDI, Jaqueline (2020). Lupa na Ciência: Estudos mostram eficácia do isolamento social contra Covid-19 e projetam cenários. Agência Lupa, 20 de abril de 2020. Acesso em 09/06/2020.

    YUGE, Claudio. (2002). Países que já haviam controlado a COVID-19 confirmam a 2ª onda de infecções. Canal Tech, 06 de Abril de 2020. Acesso em 09/06/2020.

    WORLDOMETERS. Coronavírus. Acesso em 09/06/2020.

    ZUO, Mandy; CHENG, Lilian; YAN, Alice e YAU, Cannix. (2019). Hong Kong takes emergency measures as mystery ‘pneumonia’ infects dozens in China’s Wuhan city.South China Moorning Post,  31 dezembro de 2019. Acesso em 09/06/2020.

    Este post foi escrito para o Especial COVID-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • As não intermitências dos leitos de UTI

    Desde janeiro deste ano, estou participando de um clube de leitura com alguns amigos. Escolhido há meses, o livro da vez é As intermitências da morte”, de José Saramago.

    Nesse livro, num belo dia, a morte simplesmente resolve tirar um período sabático e ali, naquele país, ninguém mais morre. Maravilha né? Na verdade, nem tanto. Um caos é instalado naquele lugar, com direito a crise religiosa, crise funerária… E, claro, crise no sistema hospitalar…

    E era sobre isso que eu queria falar com vocês. Mas antes, leia abaixo um trecho que fala da crise que se instaura nos hospitais. Se você não conhece o livro, não se preocupe, não é spoiler e é um trecho pequeno e do início do livro – ah, e o texto é em português de Portugal!

    Também os directores e administradores dos hospitais, tanto do estado como privados, não tardaram muito a ir bater à porta do ministério da tutela, o da saúde, para expressar junto dos serviços competentes as suas inquietações e os seus anseios, os quais, por estranho que pareça, quase sempre relevavam mais de questões logísticas que propriamente sanitárias. Afirmavam eles que o corrente processo rotativo de enfermos entrados, enfermos curados e enfermos mortos havia sofrido, por assim dizer, um curto-circuito ou, se quisermos falar em termos menos técnicos, um engarrafamento como os dos automóveis, o qual tinha a sua causa na permanência indefinida de um número cada vez maior de internados que, pela gravidade das doenças ou dos acidentes de que haviam sido vítimas, já teriam, em situação normal, passado à outra vida. A situação é difícil, argumentavam, já começámos a pôr doentes nos corredores, isto é, mais do que era costume fazê-lo, e tudo indica que em menos de uma semana nos iremos encontrar a braços não só com a escassez das camas, mas também, estando repletos os corredores e as enfermarias, sem saber, por falta de espaço e dificuldade de manobra, onde colocar as que ainda estejam disponíveis. – As intermitências da morte. José Saramago, Companhia das Letras.

    Quando li esse trechinho não tive como não comparar com a situação que observamos em vários hospitais do país… Situação agravada pela COVID. Quando pensamos em leitos de enfermaria e UTI, pensamos em rotatividade: um fluxo contínuo de entrada e saída de pacientes. No caso dessa história contada por Saramago, as pessoas chegam doentes, às vezes em estado grave. Alguns provavelmente se curam e deixam os hospitais, mas outros com certeza chegam em estado muito grave, tão grave, que esses pacientes deveriam morrer – mas não morrem (afinal, a morte deu uma trégua). Assim, os leitos passam a ser ocupados por esses pacientes e acabam não são liberados… A consequência é que a ocupação, por esse motivo, atinge seu máximo em pouco tempo e pronto: está instaurado o caos descrito no trecho.

    Voltando a nossa realidade, o que observamos na Itália (em março) e estamos vendo agora em alguns estados do Brasil é que, além de um grande influxo de pacientes ao mesmo tempo (pacientes estes que não estavam sendo esperados, afinal pacientes com COVID não estavam no fluxo dos pacientes hospitalares até três meses atrás) nos hospitais, o período de internação, inclusive nas UTIs é bem maior. De acordo com a AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira) um paciente na UTI permanece internado, em média, por cerca de 6 dias, enquanto para um paciente com COVID a duração da internação na UTI é de aproximadamente 14-21 dias. Soma-se a isso os profissionais da saúde que acabam se contaminando e devem ser afastados e os leitos ocupados pelos pacientes do fluxo normal (afinal derrames, acidentes, câncer e outras emergências continuam acontecendo mesmo com a pandemia!).

    Em reportagem do dia 19/06/2020, a BBC Brasil apresentou a figura abaixo com as taxas de ocupação de leitos de UTI nos Estados Brasileiros, com dados das secretarias de saúde dos estados até o dia 17/06. Alguns estados (n=14) apresentaram sinais de queda devido às medidas de distanciamento social adotadas (AM, AP, CE, ES, MG, PA, PB, PE, PI, RJ, RN, SC, SP e TO), seis estados estão com as taxas de internação estabilizadas ou com sinais de estabilização (AC, AL, BA, GO, MA, RR) e 6 estados (MS, MG, PR, RS, RO, SE) + o Distrito Federal (DF) estão com taxas em ascensão ou com sinais de alta.

    Apenas como exemplo, de acordo com a reportagem, o principal hospital de Roraima (HGR) em uma semana teve um pulo de 71% para 110% da capacidade. Aqui, em Belo Horizonte (onde moro), estamos vendo um aumento relativamente rápido das ocupações de leitos após a abertura de quase todo o comércio; a Santa Casa BH, por exemplo, está se preparando para, nos próximos dias, dobrar de 50 para 100 os leitos de UTI. Isso nos leva a inferir que alguns locais ainda não entraram em colapso por estarem conseguindo abrir novos leitos em tempo de atender à população.

    Essas taxas de ocupação de leitos são um dos principais indicadores para os dirigentes tomarem as decisões sobre abrir ou não os comércios locais. Mas pela dinâmica da infecção, geralmente esses dados refletem as taxas de infecção com 2 semas de atraso. Assim, as decisões devem ser tomadas com cautela e previsão estimada da situação da contaminação em cada cidade individualmente. Comparar dados de cidades diferentes, em momentos diferentes da curva, e de países diferentes talvez não seja uma boa ideia. A Ana Arnt faz uma reflexão sobre isso nesse post: “Podemos comparar estas duas cidades? Exercícios complexos para uma pergunta simples” (parte 1) e (parte 2).

    DICA DE LIVRO!

    Para terminar, queria voltar na indicação do livro As intermitências da morte”, de José Saramago. Neste livro, Saramago, laureado com o prêmio Nobel de Literatura em 1998, parte de uma premissa simples para escrever um livro fantástico: e se as pessoas parassem de morrer?

    Uma pergunta que parece irrelevante, mas que quando analisada mais a fundo traz consigo grandes questões… Economia, saúde e até mesmo a religião são afetadas. O que parece ser um grande acontecimento feliz, a vida eterna se transforma, em pouco tempo, numa situação de difícil resolução.

    Apesar de estar esgotado na editora em sua versão física, o livro pode ser comprado em ebook. Clicando e comprando por este link você é direcionado para a Amazon e pode ajudar o blog: As intermitências da morte”, de José Saramago.

    REFERÊNCIAS:

    Reportagem da BBC Brasil: Coronavírus: 14 Estados têm queda de internações após isolamento social; DF e outros 6 Estados enfrentam alta.

    Comunicado da AMIB, disponibilizado no site da SOMITI: COMUNICADO DA AMIB SOBRE O AVANÇO DO COVID-19 E A NECESSIDADE DE LEITOS EM UTIS NO FUTURO

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Impactos psicossociais da pandemia são severos em profissionais da saúde

    Por João Pedro Broday

    Segundo o Ministério da Saúde já são mais de 32 mil profissionais da saúde contaminados pelo novo coronavírus. Além dos impactos diretos da doença, os trabalhadores da linha de frente ao combate à doença são também os mais vulneráveis aos impactos na saúde mental. 

    Estudo realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), liderado por Felipe Ornell e Silvia Chwartzmann Halpern, divulgado na última edição da revista Caderno de Saúde Pública, utilizou epidemias anteriores para desenvolver um cenário para a pandemia atual. O trabalho indicou que durante a epidemia de Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave), em 2003, 18 a 57% dos profissionais da saúde tiveram sérios problemas emocionais e psiquiátricos. Já em 2015, durante a epidemia de Mers (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), também causada pelo coronavírus, estresse e fadiga também foram observados. 

    “Estudos prévios mostram que eventos de contaminação podem ser seguidos por impactos drásticos na saúde psicossocial individual e coletiva, tornando-se, eventualmente, mais danosos que a própria pandemia”, alertam os pesquisadores. 

    Os autores verificaram que, com o alta demanda por serviços de saúde, há o aumento da jornada de trabalho que, aliada com a infraestrutura precária, a falta de equipamentos de proteção individual (EPI) e a preocupação com a auto inoculação, aumentam a sobrecarga emocional nesses profissionais, trazendo consequências psíquicas com sentimento de solidão, estresse, irritabilidade, fadiga mental e física, insônia, desespero e até mesmo estresse pós-traumático (TEPT). 

    “Estudo recente com profissionais da saúde no tratamento da Covid-19 encontraram altas incidências de estresse e ansiedade, com maiores índices em mulheres e enfermeiras, quando comparadas com homens e médicos, respectivamente. Isto pode ser explicado pelos longos turnos e contato intenso com pacientes por parte das enfermeiras”, enfatizam os autores.

    A imagem de super-herois

    “Uma tendência que é mais desencadeada na Covid-19 é dar aos profissionais de saúde um status de super-heróis e, se por um lado isto agrega valor, por outro há pressão adicional, porque os super-heróis não falham, não desistem ou ficam doentes”, afirmam Felipe e co-autores.  

    De posse dessas informações, o estudo indicou que o cuidado psicológico dos profissionais da saúde deve ser ampliado, especialmente para aqueles que apresentam doenças crônicas, ou vivem com crianças ou idosos. Os sintomas somáticos também devem ser avaliados, bem como ser fornecido tratamento psicológico a esses profissionais, como foi feitos em RenMin Hospital e no Centro de Saúde Mental, em Wuhan, na China, primeira cidade onde a Covid-19 foi diagnosticada. Nesses locais, foram criados guias e consultas online com equipes multiprofissionais, permitindo uma melhor psicoeducação e a identificação de sintomas nos próprios integrantes das equipes médicas.  

    “No Brasil, onde há uma escalada no número de casos, estratégias de saúde para profissionais de linha de frente precisam ser intensificadas. Se eles não forem priorizados, além do possível colapso do sistema de saúde, teremos o colapso emocional dos profissionais”, afirma o estudo. O trabalho também indica que tal colapso influenciará diretamente na disponibilidade humana e de recursos durante a pandemia e pode ser solucionado com a criação de centros médicos em áreas mais distantes e o desenvolvimento de programas governamentais de escala regional e municipal, visto que cada região apresenta peculiaridades no enfrentamento à doença.

    “Uma estratégia complementar é o estabelecimento de parcerias com instituições da sociedade civil e implementação de sistemas de assistência remota. Atualmente, diferentes iniciativas estão sendo desenvolvidas por universidades e centros privados de saúde mental com objetivo de prover suporte online e de telefonia a profissionais da saúde”, sugerem os autores do artigo.

    Acesse o artigo completo

    ORNELL, Felipe et al . The impact of the COVID-19 pandemic on the mental health of healthcare professionals. Cad. Saúde Pública,  v. 36, n. 4,  2020.   Epub Apr 30, 2020. 

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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