Categoria: Sociedade

  • “Quando fecho a porta da minha casa, me sinto mal acompanhado”: impactos da pandemia e do isolamento social na saúde mental

    Texto produzido por Débora Bicudo de Faria Schützer* e Lia Keuchguerian Silveira Campos**

    A necessidade de isolamento social a fim de controlar a transmissão da COVID-19, preconizada pela OMS traz impactos significativos à saúde mental da população em todo o mundo (1). O isolamento é a única ferramenta possível na atualidade para controlar a nova doença, entretanto, sabe-se que ele pode aumentar a incidência de crises psicológicas (2). No Brasil, temos enfrentado um cenário de contradições e de conflitos políticos que acentuam os efeitos psicossociais negativos dessa condição (3). Dessa forma, angustiados e isolados, temos que nos haver com nossos conteúdos psíquicos e questões psicológicas preexistentes.

    Em curto período de tempo, as rotinas foram alteradas. Não podemos ir ao local de trabalho ou de estudo, não temos mais confraternizações com os amigos e até os que estão padecendo da doença encontram-se isolados da família. Essa nova realidade, apesar de sabermos que é momentânea, nos traz muitas incertezas e inseguranças. A sensação atual, como disse Minerbo (4), é a de que “estamos sem chão”. O trabalho mental de que perdemos algo da nossa vida que nos parecia tão seguro e conhecido nos coloca em um terreno psíquico árido, de luto, de ansiedade e de medo.

    Sabemos que o impacto emocional diante do potencial de contaminação pelo vírus, com seu consequente aumento da mortalidade, juntamente com o isolamento social, causa ansiedade em todos os seres humanos, independentemente da idade e de pertencer ou não a um grupo de risco. Entretanto, estudos indicam que sobretudo pessoas com algum comprometimento em saúde mental, idosos, profissionais de saúde e acometidos pela COVID-19 merecem mais atenção nesse momento (5,6).

    Pacientes com confirmação do diagnóstico de COVID-19, assim como os com suspeita, experienciam além dos sintomas físicos que já aumentam a ansiedade também o medo da morte, a culpa devido ao potencial de contágio e sofrem pelo estigma frente a sua família e seus amigos. A quarentena provoca sentimento de vazio, de solidão e até de mesmo raiva (2).

    Importante salientarmos o fato de que este momento de privações diversas no qual estamos envolvidos pode potencializar questões emocionais preexistentes e assim temos a experiência de estarmos “mal acompanhados com nós mesmos” em relação aos nossos recursos internos para lidar com essas questões. Todos somos colocados à prova de nossas capacidades mentais no que se refere à resiliência, à criatividade e à capacidade de lidar com frustração e perdas. Sem contar com o medo da morte ao qual somos expostos quando estamos falando de uma condição de saúde pouco conhecida, uma doença sem vacina, sem remédio e que vem sobrecarregando sistemas de saúde no mundo todo.

    Dessa forma, é preciso estabelecer redes de apoio e diversas maneiras de manter conexão com outras pessoas por meio das mídias eletrônicas. Embora, essas mídias também devam ser utilizadas com cautela já que podem representar uma grande fonte de informações falsas que aumentam o estresse, além das atualizações constantes em relação a número de mortos e de contaminados (6).

    Toda essa angústia à qual estamos sendo expostos gera a necessidade de um rearranjo que exige de nós um trabalho mental exaustivo, que afeta nosso cotidiano de diversas maneiras, inclusive influenciando na qualidade de vida. Assim como o corpo aciona seu sistema de defesa diante de uma ameaça, a mente também tenta se defender frente a uma nova situação. Nesse momento, utilizamos mecanismos de defesas variados, que dependem das nossas condições emocionais preexistentes e se tornam evidentes no modo como nos comportamos. Resultados de investigações em epidemias anteriores (5) demonstraram que os comportamentos relacionados à ansiedade desempenham um papel importante já no curso de uma epidemia, pois comportamentos inadequados devido ao aumento do estresse e da ansiedade psicológicos prejudicam a implementação de estratégias e de medidas de tratamento além de contribuírem para uma maior disseminação da pandemia.

    Percebemos que o mecanismo de defesa mais prejudicial à sociedade vem sendo a negação da realidade. Entende-se que a apreensão da realidade está ligada à compreensão dos mecanismos que organizam a lógica social vigente para valorização da saúde e da vida, como por exemplo o que é comprovado cientificamente e o consenso das principais autoridades de saúde. O indivíduo que nega essa realidade não coloca em risco apenas a sua própria saúde, mas a da população em geral. Resistente em cumprir com a necessidade de quarentena, acaba por expor também seu círculo social mais íntimo. A negação está ligada a um pensamento mágico e a uma incapacidade de esperar e de tolerar frustração.

    Essa questão também foi abordada por Kübler-Ross (7), quando a autora incluiu a Negação como o primeiro estágio vivenciado pelos seres humanos em um processo de luto, seguido pelos períodos de Raiva, Negociação, Depressão e Aceitação. Recentemente Weiss (8) publicou um artigo sobre a importância dessas fases de luto para compreendermos nossas emoções durante a pandemia. O autor considera que a Negação no momento atual pode ser expressa por meio de enunciados como “Essa coisa toda é tão exagerada. Que circo da mídia. As pessoas contraem a gripe todos os anos e quase ninguém morre. Eu não sou do grupo de risco então ficarei bem”. Para o autor, na fase da Raiva podem surgir questionamentos como “Isso é tudo culpa da China. Se eles tivessem colocado em quarentena mais cedo, não estaríamos tendo esse problema”. Durante a fase de Negociação, Weiss sugere que o indivíduo pode pensar “não haver problema em passar tempo com outras pessoas, desde que elas lavem as mãos antes de me verem”. Na fase da Depressão, a pessoa poderia ter pensamentos como “Não posso trabalhar, não posso ganhar dinheiro. Em breve, estarei sem dinheiro e sem teto. Essa epidemia é o novo normal. Eu posso dizer adeus às minhas esperanças e sonhos. Eu sou de alto risco e provavelmente vou morrer”. Já na fase de Aceitação podem aparecer ideias como “Não consigo controlar a pandemia, mas posso fazer minha parte isolando-me em casa, lavando as mãos e mantendo-me positivo. O fato de não poder sair de casa não significa que minha vida tenha que parar. Posso trabalhar em casa e ainda posso me conectar com meus amigos e familiares via telefone e internet”. É importante alertar que essas fases são fluídas e não ocorrem necessariamente nessa ordem.

    Em relação às crianças (9), os reflexos do isolamento apresentam traços delicados com o prolongamento do fechamento das escolas e com o confinamento em casa que pode trazer efeitos negativos para saúde física e mental, assim como identificamos nos adultos. Com redução da atividade física, aumento da exposição a telas, padrões irregulares de sono e mudanças na sua rotina alimentar, o resultado é de ganho de peso, aumento da ansiedade e até mesmo de comportamentos agressivos. Além disso, tendo elas sido privadas do contato social com outras crianças, assim como do contato direto com professores, e estando expostas à educação a distância sem fundamentação teórica suficiente para embasamento pedagógico das escolas brasileiras, vemos acentuar quadros de ansiedade, de déficit de atenção, de hiperatividade, além de fobias e de quadros psicossomáticos.

    Em relação aos adolescentes e jovens, a atenção e o cuidado também se tornam importantes. Essa população está em plena fase de socialização e de construção da identidade com relativa independência dos pais e estão se vendo obrigados a ficar confinados, em alguns casos, justamente com eles (10). Diante disso, muitos conflitos internos também podem surgir, é preciso ouvi-los, respeitar sua individualidade e compreender com sinceridade que não é fácil para eles também. É muito importante manter a preocupação de não os sobrecarregar com demandas escolares e de “produtividade”, desconsiderando que estão enfrentando medos em relação a serem infectados ou a perderem pessoas queridas, além de estarem frustrados em relação às privações de contato social, com pouco espaço em casa e até mesmo preocupados com perdas financeiras que possam haver nesse quadro socioeconômico resultante da quarentena (9).

    Entendemos que a educação a distância pode ser uma ferramenta interessante para o enfrentamento da situação atual, mantendo o vínculo com a instituição educacional e com o conhecimento. Destacamos, no entanto, que há a necessidade de uma adequação ao contexto histórico, social e econômico em que estamos vivendo, considerando que o excesso pode resultar em sobrecarga emocional e ser prejudicial, causando um efeito contrário no processo de aprendizagem.

    De qualquer forma, estamos todos sendo confrontados pela pandemia do coronavírus. É um chumbo grande sobretudo em relação à saúde mental. Além do isolamento e da sensação de solidão, ainda somos obrigados a lidar com o medo e a constante reflexão sobre a própria saúde, a saúde da família e dos amigos. Minerbo (4) nos alerta que estamos vivendo um momento de incerteza que nos desafia a dar o próximo passo “no vazio”.

    Claro que a ciência e os pactos sociais nos colocam também em um outro patamar de possibilidades e de direcionamento. Mas isso nem sempre parece alcançar a todos e uma questão importante nesse processo está ligada à saúde mental: “quanto posso me colocar no lugar do outro, me solidarizar? ” Dessa forma, entendemos que o momento também pede que possamos tirar proveito de um mal negócio, e transformarmos algumas atitudes para contribuirmos com um melhor desfecho para essa pandemia. Há a importância de se poder fazer parte desse pacto social e de se responsabilizar pela situação da disseminação dessa doença, assim como de controlar de certa maneira os impactos que o difícil, mas necessário, isolamento social nos impõe.

    Nesse cenário muitas vezes é importante reconhecer o momento de procurar uma ajuda profissional para si mesmo ou para algum conhecido. Vimos aqui a importância da psicoterapia, que nesse enquadre está sendo até mais acessível diante da possibilidade de teleatendimento. Além disso, é oportuno investir nas relações, nas trocas afetivas, na comunicação aberta com as pessoas ao nosso redor, amigos, familiares, idosos, pessoas que moram sozinhas. O momento é de envolver-se com as necessidades emocionais, num esforço para aceitar diferenças e conhecer a própria individualidade e a do outro, abrindo um espaço para relacionamentos genuínos que só serão possíveis se estivermos bem com nós mesmos e com a sensação de que, ao fecharmos a porta de casa, possamos encontrar acolhimento interno durante essa experiência de vida tão difícil à qual fomos submetidos.

    Para Saber mais
    1. World Health Organization. Mental health and COVID-19, 2020. http:// www.euro.who.int/en/health-topics/health-emergencies/coronaviruscovid-19/novel-coronavirus-2019-ncov-technical-guidance/ coronavirus-disease-covid-19-outbreak-technical-guidance-europe/ mental-health-and-covid-19
    2. Xiang, Y.T., Yang, Y., Li, W., Zhang, L., Zhang, Q., Cheung, T., Ng, C. (2020). Timely mental health care for the 2019 novel corona vírus outbreak is urgently needed. Lancet. Psychiatry 7, 228–229. https://doi.org/ 10.1016/S2215-0366(20)30046-8.
    3. Editorial Lancet (2020), Covid-19 in Brazil: “So what?” Lancet 395(10235):1461. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31095-3
    4. Minerbo, Marion. Isolamento para você qual e a pior parte 2020. Disponível em: https://loucurascotidianas.wordpress.com/2020/04/17/isolamento-para-voce-qual-e-a-pior-parte/
    5. Hahad, O., Gilan, D. A., Daiber, A., & Münzel, T. (2020). Bevölkerungsbezogene psychische Gesundheit als Schlüsselfaktor im Umgang mit COVID-19. Das Gesundheitswesen. doi:10.1055/a-1160-5770
    6. Sood S. (2020). Psychological effects of the Coronavirus disease-2019 pandemic. RHiME 7:23-6.
    7. Kübler-Ross, E., & Kessler, D. (2005). On grief and grieving: Finding the meaning of grief through the five stages of loss. New York; Toronto: Scribner.
    8. Weiss, R. (2020). COVID-19 and the Grief Process. What happens to our differences when our experience is shared? https://www.psychologytoday.com/us/blog/love-and-sex-in-the-digital-age/202003/covid-19-and-the-grief-process
    9. Wang, G., Zhang, Y., Zhao, J., Zhang, J., Jiang, F. (2020) Mitigate the effects of home confinement on children during the COVID-19 outbreak. Lancet 21;395(10228):945-947. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)30547-X
    10. Preto, M. O. Os Adolescentes na Pandemia. In: http://www.fepal.org/os-adolescentes-na-pandemia/


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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • O problema da ação coletiva para o enfrentamento da Covid-19 no Amazonas

    Francisco Alcicley Vasconcelos Andrade

    Este artigo tem como objetivo de estabelecer conexões entre a teoria da Ação Coletiva e a crise pandêmica do novo coronavirus e as soluções propostas por Ostrom (1990). Como já é divulgado pela imprensa, o Estado do Amazonas é o epicentro da pandemia do novo coronavírus na Região Norte do Brasil. Dentre muitos outros fatores, o problema da Ação Coletiva discutida por Olson (1965) e Ostrom (1990) torna-se o foco deste artigo.

    Olson (1965) descreve que, o alinhamento de interesses em uma ação coletiva não está na equivalência do interesse próprio da pessoa, mas sim, no fato de que os indivíduos têm necessidades em comum e que, somente podem atingir satisfatoriamente os objetivos propostos por meio de ações em conjunto. Contextualizando com a pandemia atual do novo coronavírus, percebe-se que o achatamento da curva de contaminação ocorrerá com a colaboração de todos, por meio de atitudes como o isolamento social, a higienização pessoal e das residências, o uso de máscaras e a solidariedade para com o próximo. A concepção de Ação Coletiva reside na colaboração mútua, solidariedade e empatia pelo próximo.

    Com todas essas orientações propagadas pela mídia, o isolamento social manteve-se baixo e, em contrapartida, os casos de coronavírus começaram a aumentar vertiginosamente, alcançando, inclusive, áreas indígenas de municípios do sul do Amazonas e, tão logo, a cidade de Manaus entrou em colapso funerário e de saúde, visto que os casos graves são deslocados para a capital por meio de UTI aérea, sendo apenas três aviões equipados para atenderem 61 municípios do interior do Estado. Além disso, o transporte de suspeitos e/ ou enfermos das comunidades rurais para os centros urbanos dar-se-ão via embarcações com motores ‘rabeta’ e de ‘ambulanchas’, dada as especificidades geográficas da região amazônica.

    Como proposta de solução para redução de casos confirmados, o governo decretou o fechamento de serviços não-essenciais e de fronteiras internacionais e interestaduais sob pena de multa e prisão, com o objetivo de evitar aglomerações e contaminações. Essa questão é discutida por Ostrom (1990) ao afirmar que as instituições são importantes mecanismos para resolução do problema da Ação Coletiva. As instituições, de acordo com North (1991), são as restrições (regras) criadas pela humanidade para estruturar as interações humanas, e atuam como mecanismos para reduzir a incerteza em ambientes e cenários complexos e incertos, como é o caso da pandemia do novo coronavirus.

    A adoção dessas instituições são capazes de gerar mudanças institucionais em dois grandes grupos, segundo North (1991): o primeiro grupo refere-se aos países flexíveis às mudanças institucionais e que se anteciparam em adotar medidas restritivas de circulações de pessoas, como foi o caso da Costa Rica, Índia e Portugal; e o segundo grupo diz respeito aos países conservadores e que adotaram tardiamente as regras de isolamentos sociais, como Itália, Espanha e Estados Unidos. Infelizmente, o Brasil e, especificamente o Estado do Amazonas, enquadram-se neste último grupo, em que criaram os primeiros comitês de enfrentamento ao novo coronavirus para definição dessas restrições e ações de combate à pandemia após dezenas de vítimas fatais.

    Sobre os diversos comitês de estratégias de enfrentamento ao Covid-19 criados em diferentes esferas, Olson (1965) discute sobre o tamanho desses grupos. Contextualizando, o autor afirma que, quanto maior e mais diversificado esses grupos (comitês), dotados de pensamentos e posições heterogêneas, mais difícil para se constituir estratégias efetivas para combater o Covid-19, pois a complexidade dos comitês aumenta conforme a inclusão de novos integrantes. Ao contrário que, em comitês menores, a tomada de decisões é mais célere e direcionada.

    Em linhas gerais, Orenstein (1998) corrobora com Olson (1965) pois, defende que comitês menores possuem membros mais atuantes e que os comitês maiores são mais susceptíveis a não atingirem seus objetivos, desestimulando o indivíduo, e que a ausência de um integrante não apresenta grande impacto sobre o resultado, como geralmente ocorre em grupos pequenos.

    Nessa perspectiva, espera-se que durante essa pandemia, possamos fortalecer a Ação Coletiva sob as premissas da colaboração, solidariedade e que nos tornamos mais humanos e que nossos representantes políticos sejam mais efetivos na adoção de instituições mais rígidas e que sejam fiscalizadas a contento. A humanidade está ultrapassando um momento delicado, mas que é necessário a união de todos, mesmo que isolados, para conter essa crise pandêmica.

    REFERÊNCIAS

    NORTH, Douglas. Institutions, institutional change and economic performance. The Journal of Economic Perspectives, Vol. 5, No. 1. (Winter, 1991).

    OLSON, Mancur. A lógica da ação coletiva. São Paulo, Edusp, 1965.

    ORENSTEIN, Luiz. A estratégia da ação coletiva. Rio de Janeiro, 1998. OSTROM, Elinor. Governing the Commons: the evolution of institutions for collective action. UK, Cambridge University Press, 1990.

  • Cenários Pós-Pandemia

    O novo Coronavírus (SARS-CoV-2) relacionado à Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) está causando uma pandemia que já ultrapassou 3 milhões de infectados e 200 mil mortos. Durante essa primeira onda de pandemia, muitos países estão enfrentando problemas relacionados à falha da capacidade dos seus sistemas de saúde. Por causa disso, vários países adotaram medidas de distanciamento social, quarentena e rastreio de infectados, enquanto tentam desenvolver vacinas e medicamentos.

    Alguns países como a China, Coreia do Sul e Dinamarca, tem aliviado aos poucos tais medidas após conseguir níveis adequados do controle da transmissão e o número de mortes ter começado a diminuir. Contudo, para acabar com a possibilidade de ressurgir infecções, períodos prolongados ou esporádicos de distanciamento social ainda são necessários.

    Após a primeira onda de pandemia, o SARS-CoV-2 pode apresentar dois panoramas.

    O primeiro, o vírus ser erradicado assim como sua parente, a SARS-CoV-1 (o vírus do surto de 2003), com medidas de saúde pública intensivas. Ou pode – assim como a vírus Influenza e outros coronavírus (os chamados HCoV – Coronavírus de Humanos) – recircular pela população de forma sazonal, causando surtos durante o outono e inverno nas zonas temperadas. Se conseguirmos saber em qual desses cenários se encaixa esse novo vírus, será possível propor medidas públicas de saúde para combater futuras crises referentes a ele.

    Como é o cenário atual de outros coronavírus?

    O SARS-CoV-2 faz parte da família Coronaviridae e do gênero betacoronavírus, que inclui outros parentes dele como: o SARS-CoV-1, o MERS-CoV (responsável pelo surto no oriente médio em 2012), e dois outros coronavírus de humanos, o HCoV-OC43 e HCoV-HKU1.

    O SARS-CoV-1 e MERS-CoV são vírus mais perigosos, causando doenças severas com uma taxa de mortalidade de 9 e 36% respectivamente. Contudo, sua transmissão é bem mais difícil de acontecer do que a do vírus causando a atual pandemia.

    Quanto aos HCoVs, as infecções causadas por eles são um tanto quanto mais leves, sendo que tais vírus são os segundos mais comuns em causar o resfriado. Os surtos de HCoVs acontecem geralmente no inverno nas zonas temperadas, o que pode sugerir que o clima frio e nosso comportamento de nos aglomerar nessas situações para nos aquecer pode facilitar sua transmissão, assim como acontece com o vírus influenza.

    Apesar da imunidade causada pela infecção dos HCoV durar pouco (aproximadamente 1 ano), a imunidade contra os vírus mais sérios, como o SARS-CoV-1, é de longa duração, o que nos permite combatê-lo mais rápido em um segundo contato. Uma boa notícia é que o contato com um desses vírus gera anticorpos que ajudam a combater os outros, em um processo chamado Imunidade Cruzada

    Resumidamente: entre 10 e 12 dias após entrarmos em contato com um desses vírus, começamos a produzir anticorpos. Isso nos ajuda a combater aquela infecção inicial e gera a tão falada memória imunológica, que em um segundo contato com o vírus, causará uma resposta mais rápida e eficiente no seu combate.

    A Imunidade Cruzada acontece quando um anticorpo produzido contra uma parte X de um desses vírus do gênero betacoronavírus (que são parecidos em sua estrutura), acaba se ligando a essa mesma parte X de outro vírus do mesmo gênero, ajudando a combatê-lo de forma mais rápida e eficiente.

    Quais são os fatores que podem influenciar novas ondas epidêmicas ou pandêmicas do SARS-CoV-2?

    A partir de todas essas informações, um grupo de pesquisadores de Harvard publicou na Revista Science um modelo matemático da transmissão considerando os seguintes fatores que poderiam influenciá-la:

    • O grau de transmissão durante variações sazonais, isto é, como seria a contaminação das pessoas dependendo das variações climáticas;
    • A duração da imunidade, gerada pelo SARS-CoV-2
    • O grau de imunidade cruzada entre o SARS-CoV-2 e outros coronavírus já em circulação na população

    A partir destes fatores, os cientistas chegaram às seguintes possibilidades:

    1. O SARS-CoV-2 pode voltar a proliferar a qualquer momento do ano. Infecções no outono/inverno favorecerem surtos mais agudos com um maior número de infectados, enquanto infecções no inverno/primavera, apesar de ainda ocorrer, vão levar a surtos menores; 
    2. Se a imunidade do SARS-CoV-2 não for permanente ou de longa duração, ele pode  voltar a entrar em circulação assim como acontece com o Influenza e os HCoV. Uma imunidade de curto período levaria a surtos anuais de SARS-CoV-2, enquanto uma imunidade um pouco mais duradoura, 2 anos por exemplo, levaria a surtos bienais;
    3. Em lugares onde há uma alta variação sazonal (como as zonas temperadas, no Sul do Brasil) a transmissão teria uma incidência menor durante o verão, mas também haveria surtos mais recorrentes e maiores durante o inverno. Isso aconteceria porque durante os meses de verão, quando a transmissão seria menor, há um acúmulo de indivíduos suscetíveis (ou que não foram infectados na última onda ou que “perderam” a imunidade com o passar dos meses);
    4. Se a imunidade do SARS-CoV-2 for permanente, o vírus pode desaparecer por 5 anos ou até mesmo antes de causar um surto maior. Além disso, se ele gerar imunidade cruzada contra outros HCoV, estes podem virtualmente desaparecer também;
    5. Já se a imunidade cruzada de outros betacoronavirus contra SARS-CoV-2 for baixa, isso pode ajudar que o  SARS-CoV-2   desapareça por poucos anos, podendo ressurgir depois. Por exemplo, se considerarmos que a imunidade contra SARS-CoV-2 pode durar apenas dois anos, os baixos níveis de imunidade cruzada dos HCoV poderia nos ajudar a  prolongar o tempo de ressurgimento do SARS-CoV-2, voltando a aparecer depois de 3 anos, ao invés de 2.

    Quais são os possíveis futuros cenários? 

    Vamos considerar o pior cenário possível: não há imunidade cruzada entre outros HCoV contra o SARS-CoV-2, não há como aumentar a capacidade dos sistemas de saúde, remédios e vacinas vão requerer meses ou até alguns anos para o desenvolvimento e teste, restando somente intervenções não farmacológicas para conter a transmissão do vírus. Nesse cenário, a pandemia de COVID-19 poderia durar até 2022, com possíveis duas ondas de contaminações que teriam seu pico durante o inverno no hemisfério norte, e com a necessidade de  novos períodos de isolamento social de 25 até 75% do tempo. Durante esses dois anos, possivelmente o vírus contaminaria todo o mundo. Neste caso, as contaminações aconteceriam como aconteceu com o influenza entraria em um ciclo sazonal de infecções (ocorrendo principalmente no inverno).

    Caso a capacidade dos sistemas de saúde seja aumentada (e isto já está ocorrendo, mesmo que mais lentamente do que gostaríamos neste momento), facilitaria à população a ganhar imunidade contra o vírus, levando a redução do tempo da pandemia, dos isolamentos e distanciamentos sociais. Essa imunidade não ocorre por termos mais hospitais, mas por termos mais capacidade de suporte para atender pacientes, assim, estes têm mais chances de sobreviver, ficando imunizados (ao menos, ao que tudo indica) por um tempo. Junto a esse fato, com a descoberta de algum potencial medicamento eficaz, a pandemia e as medidas de isolamento poderiam ser totalmente relaxadas por volta do primeiro semestre de 2021.

    Mas, como dito, esse seria o pior dos cenários. A maioria dessas alegações feitas pelos pesquisadores foram baseadas em modelos matemáticos, então muitas pesquisas ainda precisam ser feitas para se comprovar algumas dessas modelagens como o grau de imunidade cruzada causada pelos vírus e o tempo da imunidade das pessoas contra o SARS-CoV-2.




    Referências:

    https://time.com/5822470/countries-lifting-coronavirus-restrictions-europe/

    https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/situation-reports/

    https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/04/15/interna-brasil,844824/brasil-anuncia-droga-com-94-de-eficacia-contra-coronavirus-em-laborat.shtml

    Kissler, S. M., Tedijanto, C., Goldstein, E., Grad, Y. H., & Lipsitch, M. (2020). Projecting the transmission dynamics of SARS-CoV-2 through the postpandemic period. Science.

    Neher, R. A., Dyrdak, R., Druelle, V., Hodcroft, E. B., & Albert, J. (2020). Potential impact of seasonal forcing on a SARS-CoV-2 pandemic. Swiss Medical Weekly, 150(1112).

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Ensino Remoto Emergencial: não é só sobre acesso e equipamentos…

    Se a disponibilidade de tecnologias já limita quem pode ter acesso ao ensino remoto, o problema se torna ainda mais complexo quando analisamos as condições deste novo contexto de aprendizagem. É fundamental, neste momento, compreendermos que o ensino proposto está longe de ser o que se preconiza como educação, tanto quanto Educação à Distância. Vivemos um momento em que as escolas foram fechadas por uma situação de saúde pública. As escolas (e todos os serviços) foram fechados enquanto tentávamos (e ainda tentamos) entender tudo o que acontece e buscamos nos adequar da melhor maneira possível – individual e coletivamente.

    Helder Gusso é professor e pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e tem refletido sobre a aprendizagem do ensino remoto emergencial. O pesquisador concedeu uma entrevista à Natália Flores (que assina esta postagem), e demonstrou preocupação com o ensino remoto emergencial, uma vez que a realidade das famílias brasileiras é muito heterogênea. Isto pode acarretar na falta de condições em proporcionar um ambiente favorável para o estudo de crianças e adolescentes. Inúmeros fatores entram em jogo, como a mudança na rotina, o aumento de demandas da casa, a preocupação excessiva com a contaminação, entre outros.

    Gusso aponta que mesmo que consiga acompanhar as atividades remotas, um estudante cuja família tem que lidar com problemas financeiros por conta da pandemia, parentes doentes ou o risco eminente de contaminação, caso familiares estejam trabalhando durante o período de quarentena, pode ter seu rendimento escolar comprometido. Entra na lista dos possíveis problemas, o fato de que muitos estudantes que não têm um lugar calmo e isolado para estudar, caso comum nas periferias urbanas.

    Atividades pedagógicas remotas e questões legais

    É importante pontuar que quando se fala em acesso há um grande abismo entre ter equipamentos, ter serviço de internet (com um sinal adequado para ver os materiais escolares sem restrição de dados já discutido em postagem anterior) e ter condições de acompanhar as atividades propostas pelas escolas e professores.

    E tudo isto ainda envolve um empenho público que não apenas legitime as ações, mas dê suporte técnico, legal e didático pedagógico para não aprofundarmos ainda mais as desigualdades sociais que virão em função da pandemia causada pela COVID-19.

    No dia 29 de Abril, o Conselho Nacional de Educação (CNE)* lançou o Parecer Com Diretrizes Para Reorganização dos Calendários Escolares e Realização de Atividades não presenciais pós retorno. Há vários pontos que são pauta para outras postagens. Ressaltaremos apenas que o citado Parecer aponta que atividades “não presenciais” podem ou não ser mediadas por tecnologias digitais, citando outras alternativas.

    No entanto, mais do que isso, o parecer enfatiza a necessidade de comunicação entre escola e comunidade escolar (pais e alunos) e produção de guias que orientem não apenas os estudantes, mas seus responsáveis legais, sobre o planejamento e rotina de estudos, enquanto este período durar.

    Embora o texto traga avanços e legalidade para ações necessárias, indique a comunicação como imperativa e que as atividades não presenciais não precisam ser mediadas por tecnologias digitais, não indica saídas para isto, apontando, inclusive, uso de redes sociais como whatsapp e outros comunicadores instantâneos. Além disso, no Parecer a ênfase em conteúdos e atividades que supram conteúdos regulares se faz presente, especialmente na orientação para as séries Finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio.

    Novamente, as preocupações do pesquisador Gusso se fazem relevantes, pois existe a necessidade de nos atentarmos que este não é um momento de suprirmos “todos os conteúdos” que seriam trabalhados normalmente em sala de aula presencial. Não há condições de os docentes acompanharem os estudantes com a qualidade e a efetividade necessária.

    Além disso, ignora-se a possibilidade de excessos de atividades e falta de interatividade que, especialmente para as crianças mais novas, pode ser até mais importante do que toda a centralidade no conteúdo que comumente acaba sendo o foco nestes debates.

    Segundo Luiz Carlos de Freitas, professor e pesquisador aposentado da Faculdade de Educação da Unicamp, é preciso ter cuidado com a sobrecarga de responsabilidade atribuída aos pais (que têm sido chamados de tutores em alguns casos, neste processo). A sobrecarga diz respeito às condições dos pais em atuarem de forma didática e pedagógica em relação às atribuições que comumente são não somente de docentes e escolas, mas de órgãos públicos governamentais. Freitas cita, especificamente, a situação das provas padronizadas que cobram conteúdos formais (aqui em São Paulo temos a SARESP, por exemplo). 

    Como o ensino emergencial deve ser encarado, então?

    Diante dos limites das tecnologias, muitos professores e pesquisadores da área da educação acentuam o fato do ensino remoto emergencial ser uma solução momentânea para a situação que estamos vivendo. Estamos em situação de emergência e é deste modo que temos que encarar, também, a situação no ensino. O Ensino Remoto Emergencial funciona como ferramenta para distrair e ocupar os estudantes com atividades complementares e não obrigatórias nas agendas escolares. 

    Essa é a posição defendida por vários especialistas da educação, entre eles, o próprio Helder, que estuda as razões do fracasso escolar. “Achar que os estudantes estão aprendendo o que estava previsto para eles aprenderem neste mês de março/abril e voltar, depois da pandemia, ao ensino presencial com essa suposição talvez nos coloque numa posição bastante complicada”.

    Segundo o pesquisador, alunos que não conseguem acompanhar as primeiras aulas de um semestre letivo têm grandes chances de fracassar, pois não conseguem aprender a base necessária para temas mais complexos que vêm na sequência.

    O que vai fazer a diferença é a forma como as escolas vão atuar, assim que as atividades presenciais forem restabelecidas. Formular estratégias para recuperar o que o que não foi aprendido durante esses meses, atuar de forma coletiva e compreensiva – fornecendo suporte emocional aos estudantes, que voltarão abalados pela situação – podem ser algumas soluções.

    Também neste blog:

    Desigualdade social e tecnologia: o ensino remoto serve para quem?

    Para saber mais

    BRASIL. CNE. (2020). Parecer Com Diretrizes Para Reorganização dos Calendários Escolares e Realização de Atividades não presenciais pós retorno.

    FREITAS, Luiz Carlos. (2020) Pais Defendam Seus FilhosAvaliação Educacional, publicado em 04 de Abril de 2020.

    GUSSO, Helder. Entrevista concedida à Natália Flores no dia 03 de abril de 2020 .

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Desigualdade social e tecnologia: o ensino remoto serve para quem?

    O ensino remoto emergencial foi uma das opções encontradas para contornar a falta de aulas em escolas e universidades durante a pandemia. Ainda que seja uma solução interessante para aproximar alunos e professores, o uso de plataformas virtuais e atividades escolares a distância coloca luz sobre a desigualdade de acesso a tecnologias de comunicação e informação – e pode aprofundar o abismo social da educação no Brasil. E hoje neste post, nos propusemos a apresentar um breve panorama sobre a Educação à Distância, as políticas públicas e o acesso à internet no Brasil.

     

    A educação à distância e as políticas públicas no Brasil.

    Muito embora a educação informatizada não seja um debate novo no Brasil e no mundo – tendo sua história marcada no período após a Segunda Guerra Mundial (década de 1950) e com as possibilidades sendo maiores após o advento dos computadores pessoais (na década de 1980), o acesso aos equipamentos de informática e computação e o acesso às tecnologias de internet só recentemente tornaram-se viáveis para uma parcela grande da população. As Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação (TDCI) aparecem neste cenário como ferramentas que são grandes promessas para a educação, no Brasil e no mundo. 

    A educação de um país, de modo geral, deveria seguir preceitos constitucionais e legais, pautados em políticas públicas que proporcionassem ao máximo uma igualdade de oportunidades, independente de condições socioeconômicas. Neste sentido, a educação à distância, regulamentada e estruturada a partir de políticas públicas, serviria para criar condições não apenas de trabalhar o que entendemos como conteúdo escolar (ou os conteúdos das disciplinas clássicas, digamos assim), mas também o desenvolvimento intelectual e a habilidade com diferentes estratégias e ferramentas de ensino e aprendizado.

    O uso de equipamentos como celular e computador seriam, deste modo, mais do que apenas uma porta de acesso ao conteúdo, mas um modo de aprendizado vinculado ao manuseio do próprio equipamento de múltiplas maneiras. Tudo isto, inicia-se não apenas com a pesquisa relacionada à educação à distância, mas também (e a partir destas pesquisas) com o estudo e a implementação de políticas públicas específicas.

    De modo geral, as políticas públicas de inclusão digital na educação se pautam não apenas na existência de conteúdos acessíveis, mas também na alfabetização da população sobre as TDCIs e na infraestrutura que garanta a disponibilidade de acesso a este conteúdo.

    As políticas públicas com este fim específico, no Brasil, vinham sendo discutidas e estavam previstas no Plano Nacional de Educação, e seria implementado via Programa de Inovação Educação Conectada, instituído em 2017, cujo objetivo principal era “apoiar a universalização do acesso à internet em alta velocidade e fomentar o uso pedagógico de tecnologias digitais na educação básica”. Nesta lei, argumentava-se sobre a importância de implementar políticas de acesso à internet, especialmente em populações com vulnerabilidade socioeconômicas e baixo desempenho em indicadores educacionais. O Programa previa, ainda, apoio técnico e financeiro para as escolas.

    Em pesquisa recente, constatou-se que em nosso país cerca de 82% das escolas privadas e 73% das escolas públicas do meio urbano possuem acesso à internet. No meio rural, este percentual cai para 42% para escolas privadas e 13% para escolas públicas. Só por este panorama breve das escolas, poderíamos questionar se existe condições e se os professores das escolas tiveram acesso às ferramentas antes deste momento que vivemos hoje. 

    Mas… Não estamos falando de escolas e suas condições de conexão. A Educação à Distância é diferente do que temos neste momento, pois preveria um planejamento anterior, com treinamento adequado e estrutura escolar e dos estudantes. O que temos neste momento poderia ser chamado de ensino remoto emergencial. E aí uma das questões é qual a condição desta educação mediada por tecnologias para que todos fiquem em casa enquanto durar a pandemia aconteça no Brasil?

    O acesso à internet no Brasil

    O primeiro dado que precisamos lembrar é que nem todo mundo tem equipamentos que possibilitam o acesso à internet. Em 2017, segundo dados do IBGE, 43,4% dos domicílios brasileiros possuíam computadores pessoais e 13,7% tablets. O percentual de telefones móveis, neste mesmo ano, estava presente em 93,2% dos domicílios (ao menos um por residência).

    Os dispositivos mais disponíveis para os brasileiros são, portanto, os telefones celulares. Em 2019, tínhamos 420 milhões de dispositivos digitais (computadores e smartphones) circulando no Brasil, o que dá 2 dispositivos por habitante. A distribuição desses dispositivos, no entanto, nem sempre é igualitária. Destrinchando estes números, a partir da pesquisa do CEDIC de 2018, percebemos que apesar de 83% dos brasileiros terem telefone celular, 16% ainda estão fora dessa realidade. Temos computadores portáteis em apenas 27% das residências, computadores de mesa em 19% e tablets em 14%. 

    Voltando ao IBGE, esta mesma pesquisa (que é por amostragem de domicílios) aponta que em 2017, 74,9% das residências brasileiras utilizavam internet. Este número chega a 80,1% em residências urbanas e 41% em residências rurais. Cabe ressaltar que a pesquisa do IBGE também buscou levantar os motivos pelos quais 25,1% dos domicílios brasileiros não tem (ou não tinham naquele momento) acesso à internet… As respostas variam entre: falta de interesse no serviço, valor do serviço de acesso, ninguém da residência sabe usar internet e o equipamento para acessar é muito caro, conforme gráfico abaixo (retirado na íntegra da publicação de IBGE, 2017).

    Além destes pontos levantados anteriormente, outra questão se refere à qualidade da conexão, que também pode ser um entrave para que estudantes acompanhem vídeo-aulas e conversas com a turma e professores nas plataformas virtuais.

    Neste primeiro texto da série sobre Educação e ensino remoto emergencial, buscamos apresentar um pouco sobre algumas problemáticas quanto ao acesso às Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação – enfatizando equipamentos e serviços de internet em domicílios brasileiros. 

    Mais do que dizer que estas estratégias não deveriam ser usadas pelas escolas, a ideia era brevemente apresentar um pouco as dificuldades de se implementar isto em tempos anteriores à pandemia (trazendo alguns dados históricos de políticas públicas brasileiras) e que são acentuados no atual cenário que vivemos.

    Agora é necessário, mesmo que de forma urgente, buscar formas de não acentuar desigualdades sociais que já são históricas e profundas na sociedade, em função de políticas de acesso à informação no país.

     

    Para saber mais:

    BRASIL. IBGE. (2018) PNAD – Acesso à Internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2017. Brasília: IBGE.

    HAYASHI, C.; SOEIRA, F.S.; CUSTÓDIO, F.R.; (2020) Análise sobre as políticas na Educação à Distância no Brasil. Research, Society and Development, v.9, n.1.

    MOREIRA, E. S.; LIMA, E.O.; BRITO, R.O. (2019). Estudo comparado das políticas públicas educacionais de inclusão digital: Brasil e Uruguai. Revista da Faculdade de Educação.

     

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Alimentação em tempos de Isolamento Social

    Em época de pandemia de Covid-19 e isolamento social, a rotina pessoal, profissional e familiar de muitas pessoas tem se modificado. A mudança de rotina altera o comportamento e o hábito alimentar que também são influenciados pelo estado de saúde mental e emocional.

    Pesquisas mostram que a ansiedade e o estresse podem provocar o aumento da ingestão calórica e do ganho de peso em curto prazo devido ao alto consumo de alimentos ricos em carboidratos e gorduras.

    Nesse contexto atual, além do isolamento social, ouvir ou ler continuamente sobre a pandemia aumentam o nível de ansiedade e estresse.

    Isso pode levar as pessoas a comerem em maior quantidade e a buscarem alimentos chamados “comfort food”. Esses “alimentos que confortam” são aqueles que remetem a memória afetiva e que causam prazer e bem estar.

    O consumo de tais alimentos – muitas vezes ricos em carboidratos/açúcares (como doces, chocolates, bolos e tortas, por exemplo) – estimula a produção de serotonina que, por sua vez, tem um efeito positivo no humor e na redução momentânea do estresse e no aumento do bem estar mental.

    Esse comportamento chamado de “comer emocional” é influenciado diretamente pelo estresse e pela ansiedade.

    Por isso, é importante reconhecer a presença excessiva dessas emoções e perceber se estão influenciando o comportamento alimentar. Seja pelo aumento do consumo de doces, massas e pães, por exemplo, ou pelo aumento da quantidade de alimentos e bebidas consumidos no dia-a-dia.

    Uma orientação prática para cuidar da alimentação em tempos de isolamento/distanciamento social é criar estratégias de planejamento alimentar.

    PLANEJAMENTO ALIMENTAR

    O primeiro passo é planejar a alimentação (diária/semanal/mensal). A partir desse planejamento fazer a lista de compras;

    Manter a dispensa e geladeira organizadas para saber o que tem e evitar o desperdício de alimentos;

    Estabelecer horário para as refeições como café da manhã, almoço, jantar e lanches intermediários, evitando “pular” refeições e “beliscar” durante o dia e à noite;

    Ter uma alimentação variada composta, de uma forma geral, por cereais integrais, leguminosas, oleaginosas, frutas, verduras e legumes, carnes, frangos, ovos e peixes, leites e derivados.  (Lembrando que pessoas que tenham alguma alergia/ intolerância alimentar ou indivíduos vegetarianos/veganos precisam ter um planejamento alimentar específico).

    Priorizar alimentos in natura como frutas, verduras e legumes;

    Utilizar ervas aromáticas e especiarias para cozinhar;

    Experimentar algum alimento novo que não tenha o hábito de comer;

    Valorizar alimentos regionais, produtores locais e pequenos comércios;

    Cozinhar mais, aprender novas receitas e aproveitar esse momento de isolamento para cultivar novos hábitos alimentares.

    ATITUDES ALIMENTARES POSITIVAS

    Além do planejamento alimentar, é importante adotar atitudes alimentares positivas para desacelerar a mente e comer com atenção plena.

    Nesse sentido, seguem algumas orientações para serem usadas antes e durante as refeições:

    • Perceba e acolha suas emoções e sentimentos antes das refeições. Se estiver muito ansioso, pare e respire lenta e profundamente para então começar a comer (use técnicas de respiração e meditação);

    • Desconecte-se da TV, computador, celular e redes socias no momento das refeições;

    • Coma com atenção plena (mindful eating) e concentre-se no ato de se alimentar. Sente-se para comer e apenas coma, não faça outras atividades ao mesmo tempo.

    • Feche os olhos e observe o aroma, a temperatura, a textura e o sabor dos alimentos, e coma sem culpa;

    • Mastigue lentamente os alimentos. Apoie os talheres na mesa entre as garfadas, fazendo uma leve pausa no momento das refeições. Uma outra forma de comer mais devagar é tentar comer com a mão não dominante;

    • Perceba os sinais de fome e saciedade para evitar comer em excesso.

    Por fim, manter uma alimentação equilibrada em nutrientes e em quantidade de alimentos, além do planejamento das refeições associado a atitudes alimentares positivas são estratégias para combater os efeitos negativos do isolamento social na alimentação e na saúde.

    Referências: Guia Alimentar para População Brasileira, 2014. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf

    Santos, et al. Emotional eating is related to carbohydrate intake in active women. Motriz: rev. educ. fis. vol.22 no.4. 2016

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • O isolamento social está funcionando? Os memes respondem

    No último dia 20 de março, a Unicamp já completava sua primeira semana de isolamento social enquanto vários setores da indústria e do comércio, incluindo escolas públicas e privadas, ainda estavam em funcionamento (no estado de São Paulo, a quarentena seria decretada apenas 2 dias depois).

    Enquanto eu me encontrava numa situação de assimilar essa nova realidade, recebi, na mesma tarde, três memes bastante semelhantes entre si.

    Todos os três viralizaram rapidamente, entrando para ranking de postagens mais populares nos grupos das famílias, dos pais da escola, do bairro e da garotada.

    Ao analisar os memes, parece que a intenção é muito boa: convencer as pessoas a ficarem em casa. Porém, a estratégia de convencimento é duvidosa: o medo.

    Estes infográficos não são muito diferentes de quando eu já estava cansada de correr atrás do meu irmão menor e dizia para ele não entrar no quarto porque lá tinha um fantasma assustador (tadinho, morria de medo).

    Estes memes apresentam uma narrativa mais ou menos assim: compare os números de casos no Brasil e na Itália no mesmo momento da epidemia (23° e 24° dias) e extrapole o número de casos no Brasil, tomando-se a Itália como modelo. Quantos mortos teremos?

    E foi assim, convencidos pelo medo de um futuro incerto, que os cidadãos de São Paulo talvez tenham iniciado sua quarentena.


    Fantasmas existem

    Conforme meu irmão foi crescendo, ele começou a adquirir coragem de ir dar uma “espiadinha” no quarto para ver o tal fantasma. Depois de algumas vezes, ele concluiu o óbvio: vinha sendo enganado.

    Nas últimas duas semanas, muitos estão repetindo o mesmo raciocínio em relação à COVID-19. A diminuição da adesão ao isolamento social já é medida e observável. Por necessidade, ou por curiosidade, muitos foram “dar uma espiadinha” e, por falta de evidências de corpos empilhados nas ruas, construíram suas hipóteses, dentre elas:

    • a COVID-19 não é um monstro;
    • ela é só uma invenção de uma irmã maldosa.

    Temos então uma boa e uma má notícia.

    A boa notícia é que, ao alcançarmos o 49° dia da pandemia no Brasil, nossos números oficiais registram cerca de metade das mortes previstas pelo agourento meme (na verdade, essa é uma notícia excelente!).

    A má notícia é que fantasmas existem.

    O paradoxo do isolamento social é que, se ele funciona, as pessoas acham que ele não é necessário.


    Por que o meme errou?

    Para tentar responder essa pergunta, vamos fazer a seguinte brincadeira:

    1. Vamos voltar no tempo no tempo 7 dias (mais precisamente no dia 6 de abril);
    2. Faremos uma projeção pessimista e uma projeção otimista da evolução dos casos;
    3. Voltamos ao presente e verificamos como nos saímos.

    Vamos repetir a brincadeira para os 5 estados brasileiros com maior número de casos de COVID-19: Pernambuco (5°), Amazonas (4°), Ceará (3°), Rio de Janeiro (2°) e São Paulo (1°).

    Nos gráficos abaixo, o cenário pessimista é pintado de vermelho. Ele pressupõe que a evolução dos casos seguiria, ao longo da última semana, um crescimento exponencial.

    o cenário otimista, é pintado de verde. Este modelo, “enxerga” um achatamento da curva em qualquer queda da taxa de crescimento de um dia para outro (regressão logística).

    Os pontos em azul, representam a trajetória real do que aconteceu na última semana.

    4° e 5° lugares – Pernambuco e Amazonas

    Pernambuco e Amazonas experimentaram uma taxa de crescimento acelerada na última semana. Como resultado, suas trajetórias de evolução de casos não apresentaram nenhum esboço de achatamento da curva. Assim sendo, não foi possível nem mesmo projetar o cenário otimista. Os gráficos mostram apenas o cenário pessimista com base numa projeção exponencial.

    A triste notícia é que, em ambos os estados, o crescimento do número de casos se mostrou mais acelerado que o cenário pessimista, na maioria dos dias.

    Amazonas e Pernambuco tiveram uma semana de crescimento acelerado dos casos de COVID-19

    2° e 3° lugares – Rio de Janeiro e Ceará

    Ainda que estejam com taxas aceleradas de crescimento do número de casos da COVID-19, o Rio de Janeiro e Ceará conseguiram escapar do fantasma do cenário pessimista e terminaram a semana com um número de casos menor que o previsto neste cenário.

    Rio de Janeiro e Ceará mostram sinais de desaceleração ao longo da última semana, ainda que estejam numa forte ascendente

    1° lugar – São Paulo

    Dos 5 estados brasileiros com maior número de casos de coronavirus, São Paulo é o estado que mais se aproximou do cenário otimista na última semana. Infelizmente, isso está longe de ser motivo de orgulho para o estado que se aproxima da marca dos 10.000 casos confirmados de COVID-19.

    Em resumo, sendo São Paulo o principal contribuinte para o número de casos de COVID-19 no Brasil, o meme basicamente errou porque São Paulo não seguiu curvas de crescimento no número de casos tão velozes quanto as italianas. De alguma maneira, conseguimos desacelerar esta curva.

    São Paulo se aproximou do cenário otimista na última semana.


    O vírus se espalhou até numa sauna

    Ainda que já tenhamos sido bombardeados por informações sobre porque o isolamento social nos ajuda a conter o número de mortos pelo coronavirus, estes gráficos por si só não provam que a quarentena seja a principal responsável pela aparente desaceleração do número de casos em São Paulo.

    Mas podemos argumentar em cima de algumas perguntas e hipóteses que circulam:

    O Brasil não é a Itália em termos de clima, logo não teremos tantas mortes quanto eles. Estudos sobre a COVID-19 e como ela é afetada por parâmetros climáticos ainda estão em andamento. Alguns estudos pequenos não conseguiram mostrar que o clima mais quente e úmido pode enfraquecer a transmissão da doença. Neste artigo por exemplo, eles analisam o caso de pacientes que foram infectados por terem frequentado uma sauna, ambiente com temperaturas entre 25°C e 41°C e umidade 60%. Ainda que o efeito climático possa existir, aparentemente ele não é tão relevante a ponto de frear fortemente a evolução da doença, por exemplo, no Amazonas, estado brasileiro de temperaturas altas e clima úmido. Por outro lado, é um fato que estamos caminhando para o inverno, período onde o número de doenças respiratórias comprovadamente aumenta no Brasil, principalmente no Sul e Sudeste.

    A Europa é um continente de idosos, por isso não temos que nos preocupar com tantas mortes quanto países europeus. Esta hipótese talvez já tenha sido enfraquecida pelo cenário triste que estamos observando nos Estados Unidos, com mais de 20.000 mortos pela COVID-19 (vamos escrever por extenso? vinte mil mortos). Porém, vale mencionar que apesar de um dos principais fatores de risco da COVID-19 ser a idade, existem outros fatores de risco ainda pouco estudados no caso do coronavirus: a pobreza, a má-nutrição, a falta de saneamento básico (ou seja, uma torneira para lavar as mãos), entre outros. Brasil e África certamente fornecerão dados para o resto do mundo sobre esta questão ao longo das próximas semanas.


    A hora do sacrifício

    De alguma maneira, parece que muitos estão com menos medo do coronavirus hoje, do que há 50 dias atrás.

    Talvez seja o medo de monstros (menos discretos e mais visíveis que os fantasmas), tais como: as dificuldades financeiras, a perda do emprego, a fome.

    Apesar dos memes agourentos do início deste post terem errado a data, infelizmente, em breve, eles terão acertado o número de mortos.

    O nosso terror diante desse número não deveria ter mudado…Algo de ruim aconteceu conosco nos últimos 50 dias que fez com que passássemos a relativizar a morte de mais ou menos pessoas em função de outros interesses.

    Como sociedade, deveríamos atuar como irmãos que apoiam uns aos outros, que protegem o mais fraco incondicionalmente, que abraçam o irmão que está em pânico e o ajuda a ter coragem. Não deveríamos nos comportar como o irmão que empurra o mais fraco para dentro de um quarto com fantasma…

    É hora do sacrifício. É hora de todos abrirmos mão de alguma coisa, incluindo convicções equivocadas.


    Uma descrição detalhada da análise de dados que gerou os gráficos deste artigo pode ser encontrada aqui. Os gráficos mudam diariamente, conforme novos casos são reportados. Este trabalho é o resultado do esforço conjunto de alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC), do Instituto de Computação (IC) , Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (IMECC) e Faculdade de Ciências Médicas (FCM). A força tarefa também conta com a parceria do Prof. Dalton Martins, da Faculdade de Ciência da Informação (FCI) da Universidade de Brasília (UnB).

    Para saber mais:

    Luo C, Yao L, Zhang L, et al. Possible Transmission of Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2) in a Public Bath Center in Huai’an, Jiangsu Province, China. JAMA Netw Open. 2020;3(3):e204583. doi:10.1001/jamanetworkopen.2020.4583

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Da pandemia à solidão: a distância física entre nós

    A pandemia causada pelo COVID-19 impôs estado de calamidade pública. A medida comprovadamente mais eficaz para frear o espalhamento do vírus é o isolamento físico. Confinados nos lares, nos sentimos sós. Nesta reportagem conversamos com Paulo Sérgio Boggio, professor e pesquisador em neuropsicologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, sobre a diferença entre estar só e sentir-se só, os efeitos negativos do isolamento e como transpor a solidão caso ela bata à porta.

    A pandemia de COVID-19 começou em Wuhan, China, em 12 de dezembro de 2019. A partir daí o espalhamento do vírus foi rápido. Em abril de 2020, a doença já é realidade para 179 países. A infecção de quase um milhão de pessoas ao redor do mundo vem lotando hospitais que sofrem com a falta de insumos, equipamentos e pessoal, mesmo nas nações mais ricas e desenvolvidas. Na falta de alternativas tecno-científicas para combater a doença, resta a população se resguardar, lavando as mãos com água e sabão frequentemente e evitando o contato físico através do isolamento.

    Estabelecimentos antes lotados, agora fechados; ruas dominadas por carros e transeuntes, esvaziadas; escolas e universidades presenciais, agora em modo digital para os mais privilegiados; conhecidos tratados como desconhecidos, sem as cortesias do contato físico; e o silêncio dominical invadindo os dias da semana representam grandes mudanças no cotidiano. Confinados dentro dos lares e ilhados por informação (de qualidade ou não), as emoções negativas podem dominar, entre elas confusão, ansiedade e, principalmente, solidão.

    Diante de um inimigo invisível, muitas pessoas buscam por explicações que julgam estar à altura da calamidade pública. Muitas vezes, o refúgio para o medo está nas desinformações, notícias falsas (fake news) e teorias conspiratórias. Ficamos vulneráveis ao espalhamento das notícias negativas, tão contagiosas quanto o próprio vírus, e os temores se amplificam. Nessa hora, o distanciamento social pode exacerbar a alienação, desumanização, discriminação e violência subjacentes à vida contemporânea na era da informação (ou digital).  

    Felizmente, fatos e realidade se impõem e o combate à pandemia com medidas drásticas, como os full lockdowns (bloqueios ou fechamento total de regiões), deletérias economicamente, se mostram eficazes para salvar vidas. O contato social remoto nessa hora é estratégico para promover a coesão e a cooperação entre pessoas e estimular proatividade e resiliência exigidas de cada um de nós. 

    Crédito imagem: Sofia Garza no Pexels

    Como espécie, humanos são seres sociais e, em boa medida, sociáveis. Recorremos aos afetos para aliviar as tensões e dividir angústias. Definidos pela nossa rede de relacionamentos, afastados ficamos fracos e opacos. A imposição do afastamento físico é, por isso, um martírio frente à tantas incertezas. A grande pergunta agora é como lidar com uma situação física e mentalmente extenuante?

    “O isolamento social ou a quarentena podem ter efeitos psicológicos importantes, caso esse isolamento signifique solidão. Apesar de parecerem a mesma coisa, estar só não necessariamente significa sentir-se só. Em vez de usarmos o termo isolamento social, deveríamos usar isolamento físico ou distanciamento físico”, explica Paulo Sérgio Boggio, professor e pesquisador em neuropsicologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em entrevista concedida para esta reportagem.

    Estar só não é sentir-se só

    A frase pode parecer um contra-senso. No entanto, na psicologia a regulação emocional da solidão é complexa e subjetiva, atrelada a forma individual como percebemos e julgamos nossas interações com os outros.

    “Recentemente, publicamos um estudo mostrando que o toque humano afetivo (tocar as mãos dos outros) tem um efeito positivo na percepção de cenários negativos. Ser tocado por outras pessoas ajuda a diminuir a percepção negativa de situações negativas. Veja então o tamanho do problema: temos um isolamento das pessoas e uma recomendação para diminuirmos o toque físico”, alerta Boggio.

    Apesar do toque físico ser uma balsamo para a alma, a conexão em rede usando a tecnologia garante que as relações se mantenham com certa normalidade e regularidade, sejam elas pessoais ou profissionais. Conversar cara a cara e partilhar atividades e interesses mútuos, mesmo quando distante fisicamente, ajuda a manter o bem-estar do corpo e da mente.

    “Outros estudos têm mostrado que o simples fato de você saber que alguém está simultaneamente assistindo ou acompanhando algum evento faz com que as pessoas percebam os estímulos como mais positivos. Temos visto nesse momento várias ações coordenadas com características semelhantes à desses estudos: desde pessoas nas janelas em um mesmo horário para cantar, bater panelas, aplaudir equipes médicas até ações como a da Netflix de promover sessões conjuntas entre assinantes. Essas atividades aumentam o nosso senso de conexão com os outros, nos ajudando a cruzar esse momento de crise”, comenta o pesquisador.

    Crédito imagem: Matthias Zomer no Pexels

    A solidão durante a quarentena parece ser mais uma opção do que uma imposição. Infelizmente, não para todos, como explica Boggio. “Vários grupos são mais vulneráveis nesse momento e merecem maior acompanhamento como, por exemplo, pacientes com quadros depressivos. Daí a importância do uso da tecnologia para atendimentos psicológicos e médicos a distância. Os efeitos da solidão também podem agravar outros aspectos além da saúde mental, como o sistema imunológico e cardiovascular. Estar isolado e não receber contato de outros (algo semelhante ao ostracismo ou exclusão) impacta as chamadas necessidades básicas: autoestima, significado de existência, noção de pertencimento e de controle. Fizemos no laboratório um experimento sobre isso anos atrás e mostramos que uma simples sala de bate-papo na qual alguém é excluído da conversa seguidas vezes abala essas necessidades básicas.”

    Como evitar a solidão?

    “Para lidar com a solidão é importante usar as várias tecnologias de conexão de duas vias, que permitam encontros simultâneos entre as pessoas. A forma como interagimos tem origem na sincronização de movimentos, de sons, etc. Nesse momento, muito disso está restrito pelo isolamento. Mas o velho e bom telefone assim como as salas de conversa, como Zoom e Google Hangouts, podem ajudar bastante”, enfatiza Boggio e acrescenta, “A solidão também pode ser combatida com atividades em que as pessoas se sintam coletivamente engajadas tanto em ambientes virtuais (por exemplo, aulas de meditação online, clubes de leitura e conversa, apresentações musicais), quanto por atividades reais (por exemplo, rodízio de pessoas entregando medicamentos e alimentos àquelas que fazem parte dos principais grupos de risco).”

    Belos exemplos de solidariedade, cooperação, altruísmo, empatia e compaixão também transbordam mundo afora seja entre familiares, vizinhos ou desconhecidos. Simples atitudes como ajudar com compras, entregar correspondências e falar ao telefone ganham novos contornos e significados em uma sociedade antes magnetizada e hibernada pelos smartphones, mesmo em meio ao convívio social intenso.

    Crédito imagem: Andrea Piacquadio no Pexels

    No entanto, o uso da tecnologia digital pode ser um desafio para os idosos, mais suscetíveis aos sentimentos de solidão e desconexão com o mundo. O isolamento, físico e/ou social, pode ser ainda mais danoso em tempos de pandemia, por elevar os níveis de estresse e afetar negativamente o sistema imune e cardiovascular.

    “A situação dos idosos é preocupante. Muitos já estavam isolados socialmente por diferentes motivos. Para eles, as alternativas tecnológicas não necessariamente serão fáceis de implementação. Nesses casos, os familiares terão um papel fundamental para auxiliá-los a usar esses recursos. Mas esse papel deve se estender inclusive para além dos contatos sociais; a preocupação deve estar em garantir alimentação, cuidados com a casa e com a saúde, dando condições para que os mais idosos de fato fiquem protegidos em casa”, finaliza o pesquisador.

    Hoje é imperativo a manutenção dos afetos e da sensação de pertencimento à um grupo para o enfrentamento do COVID-19. A distância física entre nós pode ser uma barreira, mas pontes são facilmente erguidas com auxílio da tecnologia da comunicação disponível. Cuidar dos mais vulneráveis nesse momento é um ato de amor imensurável.

    Referências

    Dong, E.; Du, H.; Gardner, L. An interactive web-based dashboard to track COVID-19 in real time. The Lancet Infectious Disease, 2020. doi: 10.1016/S1473-3099(20)30120-1

    Van Bavel, J. J. et al. Using social and behavioural science to support COVID-19 pandemic response. PsyArXiv Preprints, 2020. Disponível em: https://psyarxiv.com/y38m9 Acesso em 31 mar. 2020. doi: 10.31234/osf.io/y38m9

    Wingenbach, T. S. H. et al. Evaluations of affective stimuli modulated by another person’s presence and affiliative touch. Emotion, 2019. doi: 10.1037/emo0000700

    Donate, A. P. G. et al. Ostracism via virtual chat room – effects on basic needs, anger and pain. PLoS ONE, v. 12, n. 9, p. E0184215, 2017. doi: 10.1371/journal.pone.0184215

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Morte pela Covid-19 ou pela fome, será esta a questão?

    Ante a atual crise de saúde mundial provocada pela disseminação do vírus da gripe Covid-19, entidades políticas, mídia e setores da sociedade civil em diversos países, e inclusive no Brasil, têm considerado que, para enfrentar a crise sanitária e econômica provocada pela pandemia, haveria apenas uma entre duas possíveis opções. A primeira seria atender às recomendações dadas pela maioria dos órgãos de saúde pública nacional e internacional(1), realizando o chamado isolamento horizontal em que escolas, universidades, órgãos estatais, negócios e serviços não essenciais são fechados e eventos públicos são proibidos. Esta opção, dada a estrutura de economia de mercado em que vivemos, tem como consequência a ruptura de um grande número de relações econômicas entre fornecedores e consumidores de produtos e serviços. Simplificando, podemos afirmar que um número considerável de trocas comerciais e financeiras efetuadas entre indivíduos e empresas fica paralisada, limitando um fluxo de valores que, em grande medida, garante a renda da sociedade em termos de salários, lucros, juros e etc. Esta alternativa, como demonstra a experiência em outros países e conforme reiterados estudos estatísticos(2), tem a perspectiva de reduzir consideravelmente o número de mortes pelo vírus já que permitiria ao sistema público e privado de saúde manter condições mínimas de atendimento aos casos graves da doença. Em termos econômicos, sem considerar qualquer outro elemento, o isolamento horizontal levaria a uma queda acentuada do consumo e da atividade produtiva, podendo-se conjecturar um cenário de recessão profunda durante e depois do pico da epidemia(3).

    A segunda opção para o problema, que excluiria o isolamento amplo, seria a de isolar apenas pessoas consideradas mais vulneráveis. Neste caso, o contato social deveria ser restringido para os idosos, pessoas com outras doenças ou com defesas imunológicas deficientes. Situações de grande aglomeração também poderiam ser proibidas, mas o restante das atividades funcionaria normalmente. Neste caso, espera-se que o impacto na demanda e na oferta dos setores produtivo e de serviços seja muito menor, que as demissões se reduzam e que a recuperação da economia aconteça de maneira mais rápida após os efeitos da pandemia se atenuarem. Conforme um estudo estatístico do Imperial College do Reino Unido, o número de mortes para o Brasil para uma restrição precoce e intensa ao trânsito de pessoas seria por volta de 44 mil. Uma restrição moderada, porém intensa somente para os idosos, semelhante ao isolamento vertical, levaria a aproximadamente 472 mil óbitos em função da doença(4).

    Esta dicotomia, em que a sociedade haveria que escolher, de um lado, a depressão econômica e o empobrecimento das pessoas, sobrevivendo ao vírus e, de outro, o sacrifício de maior número vidas para que a renda das empresas e os empregos sejam mantidos é, no mínimo, desumana. A situação de pandemia mundial, com rápidos e elevados índices de mortalidade, não pode ser tratada de uma forma tão vulgar como esta. A solução deve estar acima dos dois problemas, tendo como foco um elemento que é fundamental, a manutenção da vida de todos em termos de saúde pública e de garantia de renda. A melhor maneira de tratar a saúde pública, conforme as experiências recentes e os estudos científicos realizados até o momento, seria mediante o isolamento horizontal, sendo esta a opção mais adequada para que o número de vidas salvas frente ao vírus seja o maior possível. A renda das famílias e das empresas, pequenas e médias principalmente, também é uma questão de sobrevivência para as pessoas, pois o organismo físico de todos cidadãos depende de produtos básicos a serem consumidos.

    O pior do problema econômico é que, além dos altos níveis de desemprego já existentes mesmo antes da crise, soma-se com esta um novo contingente de demitidos e um adicional de autônomos impedidos de trabalhar que estariam no limite de seu sustento e de suas famílias(5). Não possuem reservas para manterem-se minimamente nos meses de quarentena. As empresas, por sua vez, principalmente as de pequeno porte, não sobreviverão a esse período sem o retorno financeiro mensal de seus negócios. São elas também responsáveis por grande número de empregos que deixarão de existir. Portanto, um colapso no consumo das famílias pode levar a um colapso nos negócios mais frágeis financeiramente, afetando inclusive as grandes empresas que possuem maiores recursos para sua sobrevivência. Esta calamidade econômica também não será resolvida pelo automatismo das forças de mercado como pregam os economistas liberais. Em situações de crise, quase inexistem empresas que se proponham a assumir riscos e investimentos suficientemente capazes de impulsionar grande conjunto de setores produtivos.

    Pois bem, eis que o Estado, aquele que economistas da grande mídia costumam demonizar como entrave à economia de mercado, é o único ente institucional adequado para o tratamento da situação sanitária e econômica ao mesmo tempo. Além de já ser uma representação institucionalizada da sociedade é o único com capacidade de mobilização econômica, social e política para enfrentar a situação nas duas frentes. No Brasil, já existe uma proposta em termos de saúde em andamento, a de isolamento horizontal. Em função dos números verificados acima, não seria recomendável desmontá-la, mas sim partir para o enfrentamento do problema econômico no sentido de minimizar todos os efeitos negativos da pandemia sobre a economia ao máximo.

    Assim, se o problema agravado pela pandemia é o que interfere na cadeia de fornecimento e consumo, o governo deve imediatamente trabalhar para a recuperação dos laços transacionais de compra e venda, planejando e criando iniciativas para a manutenção da renda dos assalariados no sentido de manterem o consumo, por um lado, e para o reequilíbrio das finanças das empresas para que sobrevivam a redução de suas vendas e mantenham o fornecimento necessário no período de dificuldade, por outro. É nesse sentido que ações para a transferência de recursos governamentais para que assalariados e autônomos, que vem ocorrendo em muitos países, são fundamentais(6). Mas, além disso, as empresas, compromissadas com dívidas, tributos e salários, no curto prazo, necessitam de medidas governamentais para respaldar seus débitos, suspender seus impostos temporariamente e facilitar o crédito para que não demitam. Sustentar a demanda e a oferta agregadas é fundamental. O Estado, deve, além disso, manter a expectativa de que esses laços serão mantidos após a crise sanitária. Seria, dessa maneira, oportuno que o governo viesse a compor com empresários iniciativas para concentração de recursos para o enfrentamento da pandemia, convertendo linhas de produção, ampliando a utilização de tecnologias de informação e apoiando internamente setores importantes como o de saúde, alimentos, higiene, limpeza, logística e outros capazes de se manterem operantes nesse momento. Adicionalmente, o governo pode planejar e mobilizar recursos no sentido de realizar investimentos que permitiriam o estabelecimento de condições mínimas de recuperação depois de atenuada a crise. O foco, portanto, seria o de manter o consumo no nível mais elevado que a situação permitisse ao mesmo tempo em que novos empreendimentos pudessem apresentar perspectivas mais promissoras de recuperação para o setor privado. Países como China, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos já deram início a medidas semelhantes que caminham nesse sentido. Estes governos compreenderam a gravidade da situação econômica e não estão realizando tais ações por altruísmo, mas vislumbram estas medidas como ações para a sobrevivência do sistema econômico e para a manutenção da condição civilizada da sociedade contemporânea. No Brasil, o componente da ação econômica que exigiria maior coragem política por parte dos gestores do Estado é justamente o de enfrentar as contrariedades internas e escapar da imposição da doutrina econômica vigente assentada em preceitos neoliberais. Há setores sociais que fazem forte oposição a uma maior intervenção do governo no âmbito econômico. Não consideram, porém, a experiência passada, como a do período que vai da Grande Depressão dos anos 1930 aos anos do pós Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, o Estado foi o único capaz de mobilizar instrumentos de intervenção e coordenação econômica que permitiram superar a crise em favor de empresas e da sociedade civil e conduzi-los a patamares de desenvolvimento mais elevados. Manter não só um nível mínimo de operação na economia, mas talvez aproveitar a situação para mobilizá-la e melhorá-la em termos de organização e inovação pode ser tanto uma solução, quanto talvez um novo caminho para uma economia já anteriormente debilitada. O problema da Covid-19 pode nos mostrar, pelos falsos extremos que se apresentam – o de escolher entre morrer enfermo ou morrer de fome – que não devemos acentuar aqui e no resto do mundo um sistema de economia liberal que sempre nos leva a medidas extremas em que a vida valeria menos do que a riqueza acumulada. O Estado que hoje, na maioria dos países, é em grande medida uma representação da população deve, dessa maneira, em primeiro lugar, zelar pela proteção dos cidadãos para secundariamente avaliar e ajustar perdas econômicas do setor produtivo.

    Notas:

    (1) Ver recomendações da Organização Mundial de Saúde: WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO) et al. Consideration for quarantine of individuals in the context of containment for coronavirus disease (COVID-19). Disponível em: https://apps. who. int/iris/bitstream/handle/10665/331497/WHO-2019-nCoV-IHR_Quarantine-2020.2-eng. Pdf. Acessado em: 12 de abr. 2020.

    (2) Para maiores informações, recomendamos a reportagem da BBC Brasil: “Coronavírus: por que é fundamental ‘achatar a curva’ da transmissão no Brasil”, 13 de março de 2020. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51850382. Acessado em: 12 de abr. de 2020.

    (3) O ministro da economia, Paulo Guedes, chegou a afirmar a congressistas sobre a perspectiva de redução de 4% no PIB caso o pico da pandemia chegue até o mês de julho de 2020. LEMOS, Iara. “Guedes diz a senadores que PIB pode recuar até 4% se isolamento passar de julho”. O Estado de São Paulo. São Paulo, 10 de abril de 2020.

    (4) “The Global Impact of COVID-19 and Strategies for Mitigation and Suppression”, Walker, P.G.T., et. al. Imperial College COVID-19 Response Team, 2020. Disponível em: https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/medicine/sph/ide/gida-fellowships/Imperial-College-COVID19-Global-Impact-26-03-2020v2.pdf

    (5) Conforme o IBGE o índice de desemprego para o último trimestre de 2019 era de 11% da população economicamente ativa. Painel de Indicadores. IBGE. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/indicadores#desemprego. Acesso em: 12 de abr. 2020.

    (6) Um auxílio emergencial de R$600,00 está sendo liberado pelo governo federal, todavia este valor ainda não chega a um salário mínimo (R$1.045,00), o que significa que, em termos totais, dificilmente se aproximará de um patamar mínimo de consumo de toda a economia em uma situação como esta.

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • COVID-19 e os riscos da modernidade: modernização como causa e como consequência

    Na sociologia contemporânea, principalmente na obra de Ulrich Beck, as pandemias já eram identificadas como um dos principais riscos da modernização. O caso atual da COVID-19 veio para confirmar isso, e mais que isso, é fácil identificar como o processo de modernização aparece como causa, mas também como consequência da pandemia. O difícil é vislumbrar quais serão os impactos das mudanças nos processos sociais no período pós-pandemia.

    A modernização como causa se apresenta a partir de duas transformações fundamentais vivenciadas pela humanidade no último século: degradação ambiental e desenvolvimento de meios de transportes, principalmente aéreo. A degradação ambiental, com redução das áreas de floresta, expansão das cidades, presença do homem em áreas de vida selvagem, propiciou o chamado spillover, isto é, o vírus deixou de ser hospedado apenas pelo morcego, migrando para outras espécies de hospedeiros. A alteração do meio natural é fruto direto do processo de modernização, e um fator importante para a ocorrência de epidemias, como da dengue, malária, zyca, etc.

    A modernização do sistema de transporte possibilitou intenso deslocamento de sujeitos por entre diversos territórios. O grande volume de voos, que passavam dos 250 mil voos diários no período pré-COVID-19, e o barateamento do transporte aéreo, sem dúvida foram fundamentais para a disseminação tão rápida da COVID-19 por praticamente todos os países do mundo. Em outros tempos, quando os meios de transporte não eram tão rápidos e acessíveis, as epidemias se restringiam a determinados territórios, como foi o caso da peste negra, que se desenvolveu ao longo da rota da seda.

    Ao analisarmos as rotas aéreas e a propagação do vírus entre as diversas localidades, percebemos que nas áreas com maior número de voos houve maior número de casos. As pessoas se deslocam entre países e com isso facilitam a propagação. A África e América do Sul, regiões com menor volume de tráfego aéreo, também tem apresentado até o momento menor número de casos. Obviamente, numa segunda fase, o contágio ocorre a partir da mobilidade dos indivíduos dentro do próprio país, e já não é possível traçar paralelo com o transporte aéreo. 

    Imagem: World Airline routemap 2009. Wikipedia.org

    Imagem: Genomic epidemiology of novel coronavirus. Nextstrain.org

    A situação atual ilustra perfeitamente a afirmação de Ulrich Beck “é o fim dos ‘outros’”. Todos os habitantes do planeta se veem ameaçados pela pandemia e, nesse momento, categorias tradicionais de análise sociológica, como as classes sociais, se veem fragilizadas, afinal a pandemia é, aparentemente, mais democrática, no sentido de ameaçar e atingir a todos, porém situações de vulnerabilidades podem potencializar a pandemia. Se dinheiro não impede a contaminação, a falta dele fragiliza ainda mais a população. Se todos somos igualmente atingíveis, o pobre, o negro, a mulher, o morador de rua, tem seus riscos amplificados.

    Essa situação é típica de países que ainda não solucionaram problemas da primeira modernidade, e num momento de modernização comprimida, tal qual o que vivemos agora, temos os riscos da modernidade intensificados, pois eles são cumulativos: não resolvemos o problema da distribuição de renda, da igualdade de gênero (problemas da 1ª modernidade) e temos novos problemas surgindo, como as pandemias, os riscos ecológicos, o desemprego por robotização (problemas da 2ª modernidade). Os países do sul global, de maneira geral, vivenciam essa tal de modernização comprimida, o que dificulta ainda mais a solução dos problemas atuais. 

    E dentro dessa ideia de modernização comprimida é que precisamos analisar a noção de modernização como consequência. Nas últimas semanas temos vivenciados uma modernização forçada em diversas esferas da nossa vida: seja pela obrigatoriedade do ensino à distância, pelo home office ou pelas teleconsultas médicas ou psicológicas. Por tantos anos essas atividades foram barradas pelos conselhos de classe, e ,de repente, nos vemos impelidos a executar.

    Essa modernização forçada ocorre sem infra-estrutura necessária (afinal, quantos lares possuem um computador para cada criança e cada adulto? Quantos dispõe de internet em velocidade adequada?) e sem formação adequada (quantos professores sabem usar as ferramentas para propiciar um ensino adequado? Quantos realizaram cursos para isso?). As empresas foram obrigadas a passarem por uma revolução digital que vinha sendo protelada ao longo das últimas décadas e o resultado disso é incerto. Será que o desemprego vai aumentar? O desenvolvimento de novos softwares para facilitar o trabalho remoto irá impactar no cotidiano das empresas e na maneira como estamos habituados a trabalhar? 

    A pandemia do COVID-19 forçou a modernização digital e se antes a internet era vista como responsável pelo distanciamento das pessoas, hoje ela é salvação para o encontro semanal entre amigos ou para a conversa com os pais. As relações sociais estão passando por uma profunda reestruturação, e essa mudança em um curtíssimo período de tempo pode estar repleta de efeitos adversos. Saberemos lidar com a depressão e ansiedade? Substituiremos bem o contato pessoal pelo encontro virtual? Como ficarão as relações quando a pandemia passar?

    A modernização como consequência nos traz dúvidas e ela materializa a noção de sociedade de risco. Estamos imersos em incertezas, ambiguidades, complexidades. O risco é invisível e ele só se materializa quando se confirma. A COVID-19 é um risco invisível, mas potente o suficiente para mudar as relações sociais e de trabalho, impactando tantas esferas de nossa vida, que é capaz de criar um novo mundo, uma nova ordem social – e não se sabe se ela será melhor ou pior que a atual.

    E por se tratar de um impacto global, já se discute a necessidade de uma governança global, o que coloca em questão as fronteiras geográficas, as respostas políticas locais, assim como os processos de individualização. A humanidade pode estar entrando em um novo momento e a imaginação sociológica deve estar aflorada entre nós, para que possamos captar essas mudanças, analisando-as com criticidade, propondo alternativas e soluções possíveis aos novos problemas que surgirão. 

    Para saber mais: 

    BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.

    NEXTSTRAIN. Real-time tracking of pathogen evolution. Novel coronavirus (2019-nCoV). Disponível em https://nextstraing.org

    QUAMMEN, David. Spillover: animal infections and the next human pandemic. New York: W. W. Norton & Company, 2012. 

    RICHARDS, Sarah Elizabeth. Como mutações do coronavírus podem ajudar a traçar rota de propagação e refutar conspirações. National Geographic, 3 de abril de 2020. Disponível em https://www.nationalgeographicbrasil.com/ciencia/2020/04/como-mutacoes-do-coronavirus-podem-ajudar-tracar-rota-de-propagacao-e-refutar

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

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