Falar que o Brasileiro não tem um minuto de sossego e que isso só tem piorado durante a pandemia já é um clichê. Essa semana não poderia ser diferente – e, realmente, não foi.
O código de Nuremberg.
Durante esses meses que estamos convivendo com a pandemia da COVID-19, parte da comunidade científica e dos divulgadores de ciência vêm fazendo um esforço hercúleo para compartilhar informações corretas e atualizadas, além de combater a enxurrada de fake news e desinformação que estão sendo disseminadas por tudo quanto é lugar.
Poderíamos falar que a falta de conhecimento do modus operandi da ciência pela população explicaria, mas parece que o buraco é bem mais embaixo. Principalmente quando vemos pessoas com formação em ciências atuando de forma anti-científica, fraudulenta ou pseudo-científica. Mais assustador do que isso foram os experimentos da Prevent Senior que vieram à público. Experimentos com cloroquina em pacientes com COVID-19. É assustador! Uma instituição de saúde, conduzindo experimentos científicos de forma anti-ética, mais de 70 anos após o famoso Código de Nuremberg.
Voltando no tempo…. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, 23 pessoas do regime nazista (20 das quais eram médicos) foram consideradas criminosas de guerra pelos experimentos realizados com seres humanos. Desse julgamento foi derivado um documento conhecido como “Código de Nuremberg”, divulgado em 1947, que representa um marco na condução ética de experimentos com seres humanos. As diretrizes listadas ali servem, até hoje, para o estabelecimento da legislação sobre o assunto – e no Brasil não é diferente.
E quais diretrizes são essas?
A participação do voluntário em um estudo deve consentida e ser precedida por um esclarecimento (feito pelo cientista responsável). Ao voluntario deve ser apresentado todo o processo experimental, além dos possíveis riscos e benefícios envolvidos.
Não apenas isso. Ao voluntário devem, ainda, ser garantidos o direito à desistência da participação a qualquer momento e à proteção (tratamento adequado; evitar danos e sofrimentos desnecessários; minimizar possibilidade de invalidez e morte). Em caso de grandes chances de morte ou invalidez decorrente do estudo, este não deve ser conduzido – ou deve ser interrompido caso o risco seja detectado ao longo do estudo. Isso faz com que o estudo possa ser interrompido a qualquer momento (a proteção ao voluntário vem em primeiro lugar).
Mas não acaba por aí. Estudos pré-clínicos (aqueles realizados em laboratório com células e animais*, por exemplo) passam a ser considerados essenciais para estabelecerem esses limites de riscos.
Por fim, os estudos, para serem realizados em humanos, devem objetivar uma vantagem para a sociedade e serem conduzidos por uma equipe capacitada para isso.
Hoje, no Brasil, temos uma centralização da análise ética dessas pesquisas que envolvem seres humanos. A base legal é estabelecida pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), um órgão vinculado ao Ministério da Saúde. Os pesquisadores devem cadastrar os projetos numa plataforma única (a Plataforma Brasil) para serem avaliados a nível local pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP).**
A história da @preventsenior é muito escabrosa, nível Mengele mesmo. Conversei com um dos médicos demitidos pela empresa e ele me contou vários absurdos para além das mortes no "estudo" da cloroquina. Por exemplo:
Não bastasse esse escândalo, fomos brindados com um pronunciamento alarmante de Marcelo Queiroga. A orientação do Ministro da Saúde era interromper a vacinação de jovens de 12 a 18 anos com a vacina da Pfizer contra a COVID-19. A manifestação do ministério veio, ainda, acompanhada de informações inverídicas e levantamento de incertezas acerca da segurança da vacina. Apesar de o movimento anti-vacinas no Brasil não ter a força que tem no exterior, jogar dúvida sobre uma vacina comprovadamente segura gera insegurança na população. E, num momento em que buscamos um percentual elevado de pessoas vacinadas na população, isso pode ter implicações importantes.
Hoje mais cedo, quando já estava com a ideia de escrever esse texto, vi esse tweet do Daniel Gontijo que acho que cai bem para fechar esse texto.
A ciência é importante para a vida — e por “ciência” quero dizer não só os fatos científicos, mas também o modo científico de pensar.
— Richard Dawkins
*No Brasil, a experimentação animal é regulamentada pela Lei Arouca (Lei 11.794/2008). A legislação brasileira é bem rigorosa e segue princípios semelhantes aos do código de Nuremberg. Apesar de a experimentação animal ainda ser necessária, há um esforço para que haja: 1) a redução do número de animais utilizados em pesquisas; 2) o refinamento das técnicas para que sejam garantidos o direito ao bem estar e à utilização de técnicas adequadas de manejo e experimentação; e 3) a substituição do uso de animais por métodos alternativos sempre que possível. O canal “Nunca vi 1 cientista”, fez um vídeo muito bom sobre o assunto.
**Aproveito para indicar dois podcasts recém lançados. O primeiro é o “Pelo Avesso”, que nesta temporada está falando sobre Eugenia. E o segundo é o “Ciência Suja”, que fala do impacto de fraudes científicas para a sociedade. Os dois trazem de forma explícita questões éticas que perpassam a ciência e não podem ser esquecidas.
Este texto foi escrito originalmente no blog Meio de Cultura
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os produziram-se textos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, os textos passaram por revisão revisado por pares da mesma área técnica-científica na Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Antibiótico não serve para tratar virose. Você já deve ter ouvido alguém falar isso. Mas se você não sabe por que isso acontece, hoje você vai entender.
Mas para isso precisamos introduzir alguns conceitos… falar sobre os diferentes antimicrobianos – afinal, você sabe por que falamos tanto sobre antibióticos, mas quase não ouvimos falar nos antifúngicos ou nos antivirais?
Então vem com a gente para termos uma visão bem ampla sobre esses medicamentos!
Esse post é a unificação de 3 fios que fiz no twitter e que chamei de “O fio dos agentes antimicrobianos”. Eles podem ser acessados clicando AQUI. Também já comentamos aqui no blog sobre o uso de Azitromicina para o tratamento de Covid; e como o uso de antibióticos na covid pode contribuir para acelerar a epidemia das bactérias multirresistentes (parte 1 e parte 2).
Os micróbios são muito diversos… e o que a gente chama de micróbio (ou de microrganismo) varia um pouquinho de acordo com que está falando. Aqui, neste post, a gente está considerando apenas os vírus, os fungos e as bactérias.
Na figura abaixo temos um comparativo de tamanho entre esses micróbios…
O círculo azul no fundo representa uma célula de levedura. Levedura é um fungo unicelular eucarioto (a gente vai falar sobre isso ali embaixo) e possui um tamanho relativamente grande. Depois, seguindo a ordem de tamanho, temos as células bacterianas (temos quatro no desenho, uma esférica cinza e três mais alongadas marrons – uma maior e duas menores). Veja que as bactérias variam no tamanho e na forma! Em seguida, temos os vírus, que são ainda menores. Eles estão indicados pelos números de 1 a 9 na figura. E o pontinho indicado pelo número 10 é uma molécula de hemoglobina, uma proteína que é encontrada nas células vermelhas do nosso sangue, e é responsável por transportar o oxigênio no nosso sangue.
Apresentados os microrganimos, temos que introduzir um outro conceito muito importante.
Quando falamos de agentes antimicrobianos (ou anti-infecciosos) esperamos que eles tenham uma característica que chamamos de TOXICIDADE SELETIVA. Isso significa que o fármaco deve ser tóxico para o microrganismo, mas deve causar o mínimo de dados ao hospedeiro(no caso, a gente mesmo!).
Para isso, temos que buscar medicamentos que atinjam alvos importantes dos microrganismos mas que sejam diferentes dos presentes no hospedeiro. É aí que está o pulo do gato – e que explica não só a dificuldade em desenvolver novos fármacos, mas também os efeitos colaterais causados por esses medicamentos.
Além disso, é a seleção desses alvos que faz com que os agentes antimicrobianos tenham um espectro ação amplo ou curto. Um espectro de ação amplo significa que o antimicrobiano atinge uma grande variedade de microrganismos, enquanto um espectro de ação curto, nos indica que esse antimicrobiano tem um uso mais restrito, apenas para alguns tipos de microrganismos. É isso que esta figura aqui embaixo nos mostra.
Feitas essas considerações, vamos começar a falar dos agentes antimicrobianos mais famosos! São eles: os ANTIBIÓTICOS ou ANTIBACTERIANOS
Quando falamos em células bacterianas, achar esses alvos é relativamente mais simples, sabe por quê? Olha a estrutura geral de uma célula bacteriana (procariótica) e de uma célula humana (eucarótica). Elas são muito diferentes (tanto no tamanho quanto nas estruturas)! – Ah! Você lembra da primeira figura? Os fungos são eucariotos assim como nós!
De forma bem resumida podemos dizer que os eucariotos (células animais, vegetais e de fungos e protozoários) possuem o DNA “guardado” numa região específica chamada núcleo e que é delimitada por uma membrana e, também, tem diversas organelas complexas também membranosas. Os procariotos (bactérias) possuem o DNA disperso no citoplasma da célula.
Com essas diferenças, a diversidade de alvos para os antibacterianos é bem extensa. Podemos dividi-los em grandes grupos de acordo com o alvo e seu nodo de ação. Como podemos ver nessa figura, os mecanismos de ação podem ser:
1. Inibição da formação da parede celular bacteriana
2. Inibição da fabricação de proteínas
3. Inibição da multiplicação do DNA (replicação) e da formação de RNA (transcrição)
4. Danos à membrana plasmática
5. Inibição de reações de vias metabólicas específicas
Apesar de vários desses processos acontecerem tanto nas células humanas quanto nas bacterianas, existem diferenças significativas entre eles. E são essas diferenças que serão usadas como alvo para os antibióticos. E a diversidade deles é bem grande!!!
Alguns desses medicamentos tem alta toxidade e causam danos, por exemplo, no fígado ou nos rins… esses efeitos colaterais são decorrentes, principalmente, da inibição da síntese de proteínas nas mitocôndrias das células humanas. Mitocôndrias são organelas responsáveis por gerarem energia e disponibilizá-la para que as células executem suas funções. Esses efeitos ocorrem devido ao fato de as mitocôndrias terem estruturas muito parecidas com as bactérias e, assim, elas podem acabar sendo alvos indiretos desses medicamentos.
A resistência a antibacterianos vem se agravando e as estimativas indicam de 700 mil pessoas morrem por ano por complicações causadas por bactérias resistentes. Para 2050, esse número deve subir para 10 milhões!
O uso indiscriminado de antimicrobianos ou seu uso incorreto tem contribuído muito para que isso aconteça… e ainda vamos ver os efeitos do uso de antibióticos no tratamento da COVID.
“Ah, mas eu compro antibiótico na farmácia perto da minha casa.”
Não compre, não é de bom tom, é perigoso e é ilegal! Sim, a Anvisa proibiu a venda de antibióticos sem receita desde o final de 2010.
Agora chegou a vez de falarmos dos ANTIFÚNGICOS. Quando comparamos a diversidade entre esses medicamentos e antibióticos, vemos que há uma diversidade muito menor de fármacos para o tratamento de infecções fúngicas.
Isso acontece porque, como já falamos, a célula fúngica é eucariótica, assim como a nossa. E, por isso, nossas células e as dos fungos compartilham muitas semelhanças genéticas, estruturais (em proteínas, por exemplo) e em processos celulares e moleculares.
Então é muito mais difícil achar um fármaco que tenha ação sobre um fungo, mas que não afete as nossas células. Por isso, muitos antifúngicos têm limitações, como: efeitos colaterais, espectro reduzido e baixa penetração em alguns tecidos.
Nos últimos anos, a terapia antifúngica tem sido reformulada e novos agentes menos tóxicos têm sido desenvolvidos. E a toxicidade implica inclusive na forma de administração: uso tópico (para os mais tóxicos) ou sistêmico (toxicidade seletiva).
Além disso tudo, também temos que nos preocupar com o desenvolvimento de resistência aos antifúngicos. Candida auris, por exemplo, é um patógeno fúngico de grande importância hospitalar, que é de difícil identificação e, para piorar, é resistente a diferentes classes de antifúngicos! Já falei sobre isso aqui no blog!
Assim, dentre os alvos para os quais direcionamos a busca de antifúngicos estão:
Síntese de proteínas
Síntese de ácidos nucleicos
Parede celular
Membrana celular (inibição da síntese ou dano direto)
Inibição da divisão celular
Dois alvos interessantes quando falamos de fungos são a parede celular (porque nossas células não a possuem) e a membrana celular (que apesar de também termos, na nossa há a presença do colesterol como principal esterol, enquanto nos fungos observa-se maior presença do ergosterol).
Acho que deu pra entender um pouquinho do motivo de a diversidade dos antifúngicos não ser muito grande…
Agora vamos falar sobre os antivirais…
Para falarmos sobre os ANTIVIRAIS precisamos antes falar um pouquinho sobre os vírus… Sabe por quê?
Os vírus possuem uma estrutura muito diferente dos fungos, das bactérias, e de nós! Pra início de conversa, nem células eles têm (e, por isso mesmos, eles nem são considerados como seres vivos por muitos pesquisadores)! Eles consistem basicamente em material genético (DNA ou RNA) dentro de uma cápsula de proteína (e às vezes um envoltório de gordura).
Mas é importante entendermos que, justamente por não possuírem células, para se multiplicarem os vírus utilizam da estrutura da célula do seu hospedeiro – que pode ser uma bactéria, um fungo, ou uma célula humana!
Em outras palavras:
A toxicidade seletiva é muito difícil pois os mecanismos utilizados para a replicação do vírus são os mecanismos básicos de sobrevivência das células hospedeiras – assim, a chance de o fármaco atingir uma função vital da célula é bem grande!
Por isso temos poucos antivirais e todos com espectro de ação bem restrito. A consequência é que poucas são as doenças tratáveis com esses agentes: Herpes, Catapora, Citomegalovirus, HIV, Gripe, Vírus respiratório sincicial, Hepatite B e C, Adenovirus, Papilomavirus.
Os antivirais têm, geralmente, como alvo as enzimas codificadas pelos vírus e que são importantes para sua multiplicação ou que atuam na ativação da resposta imune do hospedeiro.
Possíveis alvos para ação dos antivirais:
Inibição da ligação ou da penetração do vírus na célula hospedeira
Inibição da liberação, replicação ou síntese de material genético
Inibição da transcrição reversa do RNA (etapa importante do ciclo do HIV)
Inibição da síntese de proteínas
Inibição da montagem dos novos vírus
Inibição da disseminação do vírus pelo hospedeiro
A resistência aos antivirais também é um problema devido às altas taxas de mutação viral (principalmente dos vírus de RNA) e aos tratamentos de longa duração em pacientes com infecções crônicas, como os imunocomprometidos (p.ex. com HIV+).
FINALIZANDO… (Ou, por que antibiótico não serve para tratar virose?)
Acho que nesse post conseguimos fazer um caminho longo, mas que deixa claro por que um antibacteriano não serve para tratar uma virose…
Ou seja: bactérias e vírus são microrganismos com uma biologia muito diferente entre si – essas diferenças são estruturais, moleculares, bioquímicas, na forma como infectam seus hospedeiros, dentre outras tantas que falamos ali em cima… Como os medicamentos utilizados para combater esses microrganismos atingem justamente esses diferentes alvos, os antibacterianos não são eficazes contra vírus.
Ou, de forma simples e resumida: são microrganismos diferentes e os medicamentos para combatê-los também possuem alvos muito diferentes!
Antes de terminar, só uma palavrinha sobre resistência:
O uso de antimicrobianos, por si só, contribui para o aumento da resistência. Seu uso indiscriminado, bem como seu uso incorreto (dosagem ou tempo diferentes do recomendado) podem contribuir para o agravamento desenvolvimento da resistência entre os microrganismos. Isso é muito sério, mas é um assunto longo e vai ficar para um próximo post!
Nota do Editorial COVID-19
E qual a razão deste post estar no Especial COVID-19? Sabemos que existe uma grande busca por medicamentos que curem a doença e eliminem o vírus do nosso organismo. Também sabemos que existem antibióticos que têm sido usados, que existe toda uma “ansiedade”, expectativa e espera por novidades. Neste sentido, é fundamental uma discussão que consideramos “de base” tanto do funcionamento da ciência, quanto dos motivos pelos quais não usamos medicamentos de qualquer modo, para sanar mais uma expectativa de cura, do que uma realidade estabelecida que gerará resultados.
Este post tem esta ideia: nos mostrar alguns caminhos para compreendermos melhor o funcionamento do medicamentos! E em tempos de COVID-19, é importante estas relações bem delineadas!
Referências:
Madigan et al. (2016). Microbiologia de Brock – 14 ed.
Murray et al. (2021). Medical Microbiology – 9 ed.
Riedel et al. (2019). Jawetz’s Medical Microbiology – 28 ed.
Este texto foi escrito originalmente para o blog Meio de Cultura
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Desde o início da pandemia, criou-se um grande alvoroço sobre a polêmica hidroxicloroquina. Concomitante à possibilidade dela funcionar no tratamento e prevenção da Covid-19, no chamado Kit-Covid. Assim, nesse texto, nós vamos esclarecer tudo o que você precisa saber sobre esse assunto. E para começar, já podemos lhe dizer: não, ela não funciona.
Mas calma lá, “vamos por partes”, como diria o velho Jack (O Estripador)…
Para que serve e como funciona a Hidroxicloroquina?
A princípio, a hidroxicloroquina foi uma forma alternativa da cloroquina. Assim, desenvolveu-se esta forma para combater os variantes do patógeno da malária que tinham desenvolvido resistência a própria cloroquina. Isto acontece de maneira similar com as bactérias que desenvolvem resistência a antibióticos. Dessa forma, a hidroxicloroquina surgiu como um antimalárico. Contudo, alguns estudos demonstraram que ela também era capaz de atuar de forma benéfica no cenário de algumas doenças autoimunes. Tais como artrite reumatóide e lúpus eritematoso (1, 2).
Funcionamento da Hidroxicloroquina
Basicamente, o principal mecanismo da hidroxicloroquina no combate a malária é impedir que uma enzima muito específica do parasita destrua a hemoglobina das nossas hemácias. Além disso, a hidroxicloroquina se acumula em uma parte específica do parasita, chamada de lisossomo, aumentando o pH dessa região. Caso não tenha visto, temos um texto muito bom explicando o que é o pH.
Mas tem mais, esse medicamento tem a mesma capacidade de se acumular nos lisossomos (e endossomos, uma outra parte das células) nas nossas células humanas. Assim, isto dificulta a realização de alguns processos relacionados à resposta imune (3). E é daí que vêm a sua capacidade de influenciar doenças autoimunes, levando a uma consequente melhora dessas. Por fim, ainda se viu que a hidroxicloroquina tinha a capacidade de diminuir a formação de coágulos no corpo, também chamada de antitrombótica.
Entretanto, nem tudo é um mar de rosas. Ao mesmo tempo que esse remédio mostra vários benefícios em alguns cenários, ele também tem seus efeitos colaterais. Dentre eles, o principal e que mais chama atenção é o de causar arritmias nas pessoas. Isto é, um descompasso dos batimentos do coração, tornando-os mais lentos ou mais rápidos (4, 5). Além disso, essa informação, soma-se ao fato de que o SARS-CoV-2 pode infectar células do coração e causar danos a ele. Ou seja, como a própria arritmia e insuficiência cardíaca, que você pode entender melhor nesse texto aqui. Tais questões tornam mais delicada a tomada de decisão no uso ou não da hidroxicloroquina.
De onde vem a ideia de se usar um remédio de malária contra um vírus?
Mas foi justamente dessa capacidade de se armazenar nos nossos endossomos, aumentando o pH deles, que alguns cientistas começaram a questionar se isso poderia ajudar no combate ao SARS-CoV-2. Visto que os endossomos também são uma porta de entrada do vírus nas nossas células.
Com essa hipótese em mente, os pesquisadores decidiram investigar os impactos do tratamento da covid-19 com a hidroxicloroquina. Dessa forma, os primeiros estudos publicados, analisaram a ação do vírus in vitro. Isto é, em células numa placa de laboratório, portanto, um ambiente mega controlado. Assim, nestas pesquisas, a cloroquina e hidroxicloroquina conseguiram diminuir a infecção do SARS-CoV-2 em células de rim de macaco (6, 7). E aqui entra a nossa ressalva.
Esse tipo de estudo é muito importante pois é o pontapé inicial para mostrar se um medicamento é capaz ou não de combater uma infecção. Entretanto, definitivamente NÃO é a partir dele que podemos dizer com toda certeza (como muitos políticos tem feito) que esse remédio funcionará de verdade, no mundo real, quando for dado a nós.
Um dos motivos: testou-se em células de macaco, e não humanas. Essas “linhagens celulares” como chamamos, são muito efetivas nesse tipo de teste por serem extremamente resistentes a toxicidade. Todavia, aí entramos em outro ponto! A dose de hidroxicloroquina dada para essas células para impedir a infecção do SARS-CoV-2 foi muito superior àquela permitida para nós, humanos, consumirmos. Ou seja, em um cenário em que nós ingeríssemos a mesma dose, ela seria extremamente danosa e até mesmo LETAL para nós.
Como então a hidroxicloroquina foi liberada para uso?
No início da pandemia, publicou-se estes primeiros artigos. Alguns médicos começaram a utilizar a hidroxicloroquina em casos graves da Covid-19, em que não havia mais o que ser feito. Assim, a partir daí, começaram-se a publicar alguns artigos. Dessa forma, o argumento relacionava-se ao fato de que mesmo uma dose menor do medicamento era capaz de auxiliar na melhora dos pacientes. Isto incluía casos em que a administração do medicamento acontecia junto com a azitromicina, parte disso, gerou o conhecido kit covid. Esses estudos foram recebidos com animação por parte de alguns cientistas. Mas também com muitas dúvidas. Várias perguntas baseava-se em limitações dos estudos como um baixo número de pessoas analisadas e pequeno tempo de acompanhamento (8, 9).
Pois com base nesses primeiros artigos, muitas figuras políticas (como o presidente Trump e Bolsonaro), começaram a divulgar os aparentes “benefícios” da hidroxicloroquina. Tais ações se encaminham na contra-mão de várias entidades como o Ministério da Saúde dos respectivos países. Além disso, órgãos regulamentadores e a própria OMS diziam ser muito cedo para falar esse tipo de coisa com 100% de certeza.
Mas então, a hidroxicloroquina funciona ou não?
Após essas publicações preliminares de pesquisa, um grupo cada vez maior de pesquisadores começou a se questionar. Será que a hidroxicloroquina era realmente eficaz no combate a Covid-19? A proposta neste momento vinculava-se a estudos randomizados com um número muito maior de pessoas.
Pois então, agora, trago algumas das conclusões que esses estudos tiveram:
A hidroxicloroquina é incapaz de impedir o desenvolvimento dos sintomas da Covid-19.Isto em pessoas que começaram a tomar o remédio após terem contato com alguém que estava com Covid-19 (10).
Neste trabalho, os cientistas analisaram cerca de 800 pessoas que tiveram contato com alguém da família que estava com Covid-19 (confirmado por RT-qPCR). Dessas pessoas, 400 delas foram tratadas por 5 dias com hidroxicloroquina, enquanto as outras 400 receberam o tratamento comum. Assim, ao final do estudo, o que se concluiu? Os pesquisadores viram que a porcentagem de pessoas que tratadas com hidroxicloroquina se aproximava muito parecido do havia recebido o tratamento padrão (11,8% vs 14,8%).
O tratamento com hidroxicloroquina não reduz a mortalidade de pacientes internados. (11).
Nesse estudo, os pesquisadores acompanharam 4.500 pessoas que tiveram Covid-19 (confirmada com RT-qPCR) e acabaram sendo internados. Algumas pessoas precisaram de ventilação mecânica (os casos graves, de UTI). Outras precisaram somente de oxigênio e outros não precisando de nenhuma das opções. O que foi visto é que em nenhum dos cenários observados houve melhora dos pacientes com o uso de hidroxicloroquina por 6 dias. O tratamento com ela não diminuiu o número de mortes, o número de intubações e tempo no hospital comparado com o tratamento sem ela.
O tratamento combinado de hidroxicloroquina e azitromicina não melhora a recuperação de pacientes internados com casos leves e moderados (12).
Nessa publicação, os cientistas avaliaram cerca de 600 pacientes que tinham casos confirmados leves ou moderados (com uso de oxigênio mas sem intubação) de Covid-19. Esses pacientes foram divididos em três grupos: 1º recebeu o tratamento comum; 2º recebeu o tratamento com hidroxicloroquina; 3º recebeu tratamento combinado de hidroxicloroquina e azitromicina. Ao final da pesquisa, os autores viram que não havia diferença na evolução da Covid-19 com o tratamento de hidroxicloroquina sozinha ou combinada com azitromicina. Como sempre, em estudos assim, quando comparada com o tratamento comum. Em outras palavras, o medicamento sozinho ou combinado não influenciou a melhora ou piora dos pacientes de alguma forma.
Dito tudo isso…
Quero terminar esse texto relembrando para todos: até o momento não há qualquer medicamento aprovado que seja eficaz no combate a Covid-19! Até agora a nossa melhor ferramenta contra a pandemia ainda são as vacinas. Mas somente elas não nos salvarão. Temos que continuar usando máscara (mesmo você que já foi vacinado). Ficar em casa o máximo possível, cobrar medidas de restrição em escala nacional e, principalmente, respeitá-las o máximo possível.
As vacinas são medidas de prevenção. Os medicamentos são medidas de tratamento. Para o controle da pandemia e recuperação da economia (como muitos desejam) é muito mais eficaz nós evitarmos a contaminação de pessoas. Não adianta confiarmos que poderemos ser tratados caso nos infectemos, sem qualquer indício de que teremos tratamento – pois não existe mesmo. Com a infecção há um gasto muito maior relacionado a outros medicamentos, intubação e hospitalizações. Enquanto com a prevenção da infecção com a vacina, o dinheiro gasto é muito menor.
Fiquem em casa, se vacinem. E cobrem (cada vez mais) que o investimento na ciência, na produção de vacinas e na importação das IFAs aconteça.
Outros artigos mostrando a ineficácia da hidroxicloroquina sozinha ou combinada com azitromicina:
Magagnoli, J, et al. “Outcomes of hydroxychloroquine usage in United States veterans hospitalized with Covid-19.”Med 1.1 (2020): 114-127.
Fiolet, T, Guihur, A, Rebeaud, ME, Mulot, M., Peiffer-Smadja, N, & Mahamat-Saleh, Y (2021). Effect of hydroxychloroquine with or without azithromycin on the mortality of coronavirus disease 2019 (COVID-19) patients: a systematic review and meta-analysis.Clinical Microbiology and Infection, 27(1), 19-27.
Mitjà, O, Corbacho-Monné, M, Ubals, M, Alemany, A, Suñer, C, Tebé, C, … & Clotet, B (2020). A cluster-randomized trial of hydroxychloroquine for prevention of Covid-19,New England Journal of Medicine.
Bakadia, BM, He, F, Souho, T, Lamboni, L, Ullah, MW, Boni, BO, … & Yang, G (2020). Prevention and treatment of COVID-19: Focus on interferons, chloroquine/hydroxychloroquine, azithromycin, and vaccine.Biomedicine & Pharmacotherapy, 111008.
Gautret, P, Lagier, JC, Parola, P, Meddeb, L, Mailhe, M, Doudier, B, … & Raoult, D (2020). Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial. International journal of antimicrobial agents, 56(1), 105949.
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Vamos supor que você está andando de bicicleta pela sua cidade, quando de repente seu pneu fura. Naquele momento você não consegue ir até um borracheiro, ou comprar um pneu novo. Então você pega o chiclete que você estava mascando, e tenta interromper a saída de ar naquele momento emergencial. Mesmo sabendo que depois você precisará dedicar mais tempo para arrumar o pneu, o chiclete conseguiu te ajudar durante um período. Essa analogia está relacionada com o que vimos de reposicionamento de fármacos durante a pandemia de COVID-19.
Sobre o reposicionamento de fármacos
O reposicionamento é uma estratégia rápida, barata, e segura, desde que siga algumas etapas! Basicamente ele utiliza moléculas conhecidas para tratar algumas doenças e tenta utilizá-las em outras. O exemplo mais famoso de reposicionamento de fármacos é o viagra. Inicialmente, desenvolveu-se para tratar hipertensão e angina, uma dor no peito. Mas durante as etapas de estudo clínico acabou reposicionado e agora utiliza-se para tratar disfunção erétil.
Com o aparecimento da COVID-19, vimos tentativas de reposicionamento serem muito utilizadas e comentadas até mesmo por pessoas leigas. Esse método de pesquisa trouxe resultados para algumas respostas. No entanto, ele não pode ser levado como uma verdade absoluta. Afinal, nada na ciência é irrefutável.
Reposicionar por quê?
Reposicionar um remédio custa aproximadamente 300 milhões de dólares, enquanto que desenvolver um remédio “do zero” pode custar até bilhões de dólares! Além de economizar dinheiro, também é possível reduzir o tempo de pesquisa, já que “pulamos” algumas etapas, como por exemplo a criação e descrição da molécula. Apesar disso, algumas outras etapas não podem ser puladas, e é aí que o remédio pode dar resultados negativos.
Assim como outras pesquisas, o reposicionamento começa com a formulação de uma hipótese e reconhecimento de moléculas que possam apresentar algum tipo de efeito no que está sendo estudado, no caso a COVID-19. Depois de uma primeira rodada de testes, é necessário realizar uma etapa de estudos pré-clínicos, ou seja, dentro do laboratório. Normalmente esses testes realizam-se em culturas de célula para determinar qual a concentração efetiva do remédio, tentar entender como ele age, se ele de fato elimina o vírus, ou se ele interfere nas células, entre outros. Além dos testes in vitro, é nessa etapa que ocorrem os testes com modelos in vivo, ou seja, utilizando algum modelo animal. Seres vivos são organismos bem mais complexos do que uma cultura de um único tipo de célula, então testes que possivelmente foram positivos in vitro, podem não ser efetivos in vivo.
Entretanto…
Aqui temos alguns exemplos de remédios que não passaram dessa segunda fase de testes de reposicionamento. A cloroquina funcionou em um tipo de cultura de células, mas quando testada em outros não funcionou. Já a ivermectina apresentou uma boa atividade. Todavia, a quantidade necessária era tão grande que inviabilizava tornar-se um remédio para a covid-19.
E você acha que acabou? NÃO! Os remédios podem funcionar muito bem nas etapas 1 e 2 de reposicionamento de fármacos, mas depois disso eles precisam dos testes nos ensaios clínicos. Nessa etapa, os remédios são dados para pacientes voluntários, que vão tomar de forma “cega” ou o remédio, ou um placebo. Depois disso, os resultados são coletados, analisados e o remédio pode ser aprovados ou não. O exemplo mais atual de um ensaio clínico foi o SOLIDARITY, organizado pela OMS que testou diversos remédios de reposicionamento.
Até agora, o único reposicionamento aprovado para uso é o do remdesivir, que já era estudado para Hepatite C e Ebola. Por isso, é muito importante que a população em geral tenha calma! Muitos testes são necessários para que um remédio, mesmo que seja de reposicionamento, seja considerado seguro para uso.
Isso significa que o reposicionamento é ruim?
Não! Como não conhecíamos todos os efeitos da COVID-19 e do coronavírus causador da doença, tivemos que realizar muita pesquisa de base antes de poder encontrar tratamentos efetivos. No início da pandemia não sabíamos quase nada sobre o novo coronavírus e diversos testes de reposicionamento ajudaram a entendermos mais sobre como o vírus se comporta dentro das células e do nosso organismo.
E porque não posso tomar remédio por minha conta e risco?
Apesar de serem remédios que possuem aprovação de órgãos reguladores como a Agência Americana de Alimentos e Medicamentos (FDA) e a ANVISA, todo remédio possui uma faixa de segurança para uso e o uso indiscriminado de remédios pode causar tanto problemas de saúde para quem está tomando, como por exemplo hepatite medicamentosa, até problemas mais sérios que podem nos levar a pandemias futuras, como bactérias e parasitas super resistentes a remédios!
Além disso, é importante destacar que em humanos, o uso de medicamentos como um “combo” ou “coquetel” ou “kit” precisam, também, de testes específicos para analisar as interações entre os medicamentos. E não faz sentido isto, sem um controle rígido laboratorial, pois não temos como medir os efeitos dos medicamentos nos organismos com precisão. Isto é, os medicamentos podem interagir entre si e provocar outros efeitos colaterais (ou benéficos), completamente desconhecidos. Para isto, não apenas o reposicionamento precisa de várias etapas de análise, a medicalização por kits ou coquetéis também são tratamentos que necessitam análises específicas!
Por isso, esteja sempre atento à medicação que você irá tomar, e continue utilizando as únicas medidas que são efetivas até agora: o distanciamento social, a máscara e o apoio à vacinação!
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.
2015, o ano em que pesquisadores que descobriram um medicamento que contribuiu para uma diminuição drástica de doenças parasitárias em países tropicais, ganharam o tão almejado Prêmio Nobel de Medicina. William Campbel, da Merk, e Satoshi Omura, do Kitasato, foram laureados pela pesquisa que levou ao descobrimento da ivermectina!
No entanto, o que parecia um conto de fadas em formato de uma parceria público-privada bem-sucedida sofreu uma reviravolta. Isto é, Uma pesquisa voltada para o bem-estar social tão importante como esta ganhou um tom mais realista na pandemia do novo coronavírus. Qual? Nem toda história tem um final feliz.
Causos recentes: a persistência e manutenção da desinformação…
No fim de janeiro de 2021, começou a circular em alguns grupos e mídias sociais do Brasil, uma “Meta análise”. Mas, o que é uma Meta análise? É um estudo que coleta TODAS as informações disponíveis sobre um determinado assunto. Posteriormente a isto, avalia a qualidade e homogeneidade dos dados, para verificar se os estudos concordam entre si. Assim, o pilar da meta análise é o rigor científico. Isto quer dizer que existem critérios que devem ser seguidos para validar um estudo de Meta Análise.
No caso desta “meta análise” que estava circulando nas redes sociais e grupos, havia uma suposta “prova” que a ivermectina funciona no tratamento da COVID-19. Todavia, ressaltamos: no caso da Meta Análise divulgada sobre a ivermectina na COVID-19, nenhum critério científico que valide o estudo foi seguido.
Recentemente, um estudo clínico concluiu que o tratamento à base de ivermectina não apresentou benefícios clínicos em pacientes com COVID-19. Esta pesquisa cumpriu os protocolos de metodologia com duplo-cego randomizado e envolvendo mais de 400 pacientes. Sua conclusão foi de que o tratamento à base de ivermectina não apresentou benefícios clínicos em pacientes com COVID-19. O trabalho foi publicado no início de março (2021) na JAMA, uma das revistas de medicina mais prestigiadas do mundo.
Sobre a criação do mito da ivermectina
O Brasil é um dos únicos países do mundo que insiste em destinar recursos públicos para comprar ivermectina para tratamento da COVID-19. Mesmo sem comprovação científica. Isso ao invés de investir em estratégias que realmente funcionam, como VACINAS. Mas de onde veio a ideia de que esse medicamento funciona para o tratamento da COVID-19?
A ivermectina se tornou uma das drogas mais populares no mundo devido à pandemia do novo coronavírus, disso todo mundo sabe. O frenesi em relação à droga fez com que a medicação se esgotasse das farmácias por todo o Brasil. Lembrando que nós estamos entre os países que mais investem no medicamento para tratamento da COVID-19 (ao lado de México, Egito e Argentina).
Em março de 2020, um trabalho publicado mostrou que doses altas de ivermectina reduziram 99.98% do RNA viral em células infectadas com SARS-CoV-2 in vitro.
UM ALERTA: AS PALAVRAS “CÉLULAS” E “IN VITRO” INDICAM QUE A PESQUISA AINDA NÃO ACONTECEU NO SER VIVO “INTEIRO” – O TESTE ACONTECE NUMA PLACA DE LABORATÓRIO
Isto ocorreu pouco depois de a OMS declarar a pandemia de COVID-19, e a pesquisa era de um grupo australiano da Universidade de Monash.
Um trabalho aparentemente promissor, uma vez que o reposicionamento de fármacos reduz o tempo do descobrimento de drogas para uma doença emergente.
Este tipo de pesquisa, busca diferentes aplicações para compostos que já passaram por ensaios clínicos de segurança. Assim, por já terem cumprido uma etapa de segurança com sucesso, já estão aprovados para uso em humanos por órgãos regulatórios. Entretanto, bom lembrar que os “ensaios clínicos de segurança” incluem testes de toxicidade. Além disso, há prescrição de dose máxima e análise de doses letais para seres humanos. Ou seja, há indicação clara de qual dose é DANOSA ao ser humano (informação que vem na bula, por exemplo).
É importante ressaltar que esse estudo foi publicado em um momento de tensão em que o mundo assistia o sistema de saúde italiano colapsar. Dessa forma, viralizou como uma faísca de esperança no combate do novo coronavírus.
No entanto, antes de acabar com os estoques de ivermectina das farmácias achando que a ivermectina previne, trata, ou cura COVID-19, devemos considerar alguns pontos desse estudo:
1. Tratava-se de um estudo preliminar in vitro.
Os testes in vitro são realizados em cultura de células (ambiente artificial, controlado) para verificar a atividade e toxicidade de um composto ou medicamento. Assim, com esses testes, são selecionadas moléculas promissoras para testes em modelos animais, os chamados testes in vivo. Isto é, estes testes são modelos um pouco mais próximos do organismo humano (ensaios pré-clínicos). Os compostos promissores nos modelos animais avançam para serem testados em humanos quanto à eficácia e segurança (ensaios clínicos), antes de serem comercializados.
Nesse estudo, a ivermectina foi testada em doses altas em células de rim de macaco in vitro. Outros estudos já haviam reportado atividade antiviral da ivermectina contra vírus de RNA in vitro.
No entanto, nenhum trabalho demonstrou atividade antiviral da ivermectina in vivo.
Apesar de inibição in vitro, o tratamento à base de ivermectina não mostrou benefícios na prevenção da infecção letal de Zika vírus em camundongos. Isto é, mesmo funcionando in vitro, no modelo in vivo não obtivemos resultados. E todo o experimento com fármacos precisam desta fase pois é ela que PROVA que dentro do corpo, existe combate à doença.
Apesar de atividade contra dengue in vitro, um ensaio clínico de fase III feito na Tailândia mostrou que o tratamento com ivermectina não reduziu a viremia. Além disso, os resultados também não apontaram benefícios no quadro clínico de pacientes com dengue. Vale frisar que no pipeline de descobrimento de drogas existem dezenas de milhares de compostos testados. No entanto, quando vamos olhar o número de compostos aprovados para uso comercial cai para casa de um dígito. Ou seja, é MUITO difícil encontrar uma molécula que passe por todas as fases do pipeline. Em suma, a pesquisa in vitro e as análises in vivo são etapas fundamentais e representam resultados parciais em um trabalho INICIAL.
2. A dose de ivermectina utilizada no estudo é alta.
O estudo constatou que em tratamentos in vitro realizados com a dose de 5 µM, a ivermectina foi capaz de reduzir em 99.98% a quantificação de RNA viral da célula infectada com SARS-CoV-2. Aparentemente a ivermectina tem uma atividade potente contra o novo coronavírus in vitro. No entanto, quando consideramos as propriedades farmacocinéticas desse composto, observamos outra coisa. Essa concentração é mais 17 vezes maior do que a concentração sérica máxima mais alta (Cmax) de ivermectina reportada na literatura.
Assim, isso significa que para testar se a ivermectina tem um potencial clínico no tratamento da COVID-19, precisaríamos de uma dose de ivermectina muito maior do que as reportadas nos testes de segurança desse medicamento. Ou seja, a dose necessária para o teste clínico equivale a uma dose maior do que a segurança para as pessoas. Em suma, de novo, traduzindo: esta dose equivale a uma intoxicação grave e as pessoas podem MORRER tomando as doses reportadas no estudo.
3. O reposicionamento de fármacos só funciona em uma situação específica
O reposicionamento funciona? Sim, mas com uma ressalva fundamental! Se as doses utilizadas para tratar uma doença nova se encontram dentro do intervalo de segurança clínica para qual o composto obteve aprovação! Dessa forma, nesse caso, o estudo utilizou uma concentração de droga extremamente alta e inatingível, mesmo com dosagens excessivas do medicamento. Isto é, a ivermectina tem ação in vitro contra o vírus. Mas no corpo humano, na concentração usada no estudo, ele mataria o hospedeiro também (ou seja: nós…). Conclusão: a concentração de ivermectina utilizada no estudo é IRRELEVANTE do ponto de vista clínico, pois pode (e eventualmente vai) matar o ser humano.
Sobre a Ivermectina e o Tratamento precoce no Brasil
Em janeiro de 2021, durante o colapso do sistema de saúde de Manaus, o Ministério da Saúde lançou o aplicativo TratCov. Este aplicativo estava estruturado em uma pontuação de sintomas do paciente. Qualquer sintoma mínimo de COVID-19 (qualquer pontuação), sugeria a prescrição de um coquetel de medicamentos. Este coquetel tinha indicações SEM EFICÁCIA CIENTÍFICA para tratamento da COVID-19 (ivermectina estava incluída na lista).
Nesse mesmo período, o Twitter reconheceu as postagens do Ministério da Saúde do Brasil referentes ao “Tratamento Precoce” como “enganosas”.
Nós fomos o único país do mundo a ter posts de um ministério ocultados por uma rede social.
No início de fevereiro de 2021, a Merk publicou uma nota dizendo que não existem evidências científicas de que o medicamento funcione para tratar COVID-19. Quem é a Merk? A farmacêutica fabricante de ivermectina e principal beneficiada com as vendas do medicamento.
Além disso, apesar do silêncio dos Conselhos de Medicina do Brasil, muitos médicos fizeram um alerta sobre o surgimento de casos de hepatite medicamentosa causada por excesso de ivermectina. Até mesmo o Conselho Federal de Farmácia se manifestou contra o uso de ivermectina e do “tratamento precoce” como estratégia de tratamento para a COVID-19.
Por fim…
Não existem evidências científicas. Como assim? Não há estudos clínicos que passaram por revisão e publicadas em revistas científicas endossando ou justificando o uso de ivermectina no tratamento da COVID-19. Assim, Não existe tratamento precoce para COVID-19. A Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Pan-Americana de Saúde (PAHO), o FDA e a ANVISA não recomendam o uso de ivermectinapara tratamento ou prevenção da COVID-19.
Conclusão: a ivermectina não cura, não trata e não previne COVID-19 e seu uso prolongado PODE LEVAR A PESSOA À ÓBITO!
Tatyana Tavella, Farmacêutica pela Universidade de São Paulo, doutora em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, atualmente trabalha na área de descobrimento de fármacos no Laboratório de Doenças Tropicais da Unicamp.
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Um ano atrás a OMS declarou que a COVID-19 passou ao status de pandemia. Desde então, cientistas ao redor do mundo estão em busca de um tratamento específico para essa doença, sem muito sucesso até o momento.
No começo, a principal estratégia de busca utilizada foi o reposicionamento de fármacos. Assim, essa alternativa utiliza remédios já aprovados para uso em certas doenças, e tenta tratar novas doenças com o mesmo remédio. Por serem remédios conhecidos, já existem diversos estudos de como agem no corpo, e quais doses são seguras de serem tomadas. Dessa forma, eles necessitam de menos investimento de tempo e dinheiro para as pesquisas com as novas doenças, como a COVID-19. Contudo, a “pressa” para encontrar uma resposta contra a pandemia provocou a disseminação de algumas informações equivocadas que acabaram sendo adotadas como verdade absoluta por parte da população.
Testes in vitro
Boa parte dos experimentos iniciais realizados com esses remédios foram feitos em um sistema in vitro. Ou seja, isso significa que os cientistas cultivaram células em pequenas placas, e fizeram os testes. Em situações normais, depois que os testes in vitro são feitos, os remédios acabam em uma etapa de testes em animais. Esses testes se fazem necessários. Pois, diferente de um sistema in vivo, ou seja, em um animal, os experimentos em culturas de células são muito controlados e não representam toda a complexidade que um corpo possui. Assim, muitas coisas podem apresentar resultados promissores nos testes com células, mas falham quando testados para os animais.
No contexto da Pandemia, esses remédios de testes de reposicionamento podem pular a etapa de segurança e acabam nos estudos clínicos com humanos. Afinal já conhecia-se a relação de segurança do remédio. Só não sabíamos se ele funcionava para COVID-19. Dois grandes estudos clínicos foram realizados, o SOLIDARITY, organizado pela OMS e o RECOVERY, organizado pela Universidade de Oxford. Entretanto, foram nesses estudos clínicos, realizados com milhares de pessoas, que os resultados mostraram que a maioria dos remédios falharam.
Um pouco de calma, antes de sair tomando remédio nunca fez mal a ninguém…
Mas por que não podemos tomar esses remédios, ao passo que eles constam na bula como seguros, mesmo sem um efeito comprovado? Primeiro que ser seguro, não quer dizer “de qualquer jeito” e “tomando enquanto eu estiver com vontade ou a pandemia durar” (o que acabar primeiro).
Segundo, que mesmo aqueles aprovados e vendidos em farmácias possuem uma dose e um tempo certo de administração. Por exemplo, você já reparou que todo remédio possui uma bula que relata efeitos adversos que podem ser simples, ou até mesmo muito graves?
Já existem relatos de pessoas que tiveram problemas de saúde decorrente do uso profilático de remédios sem prescrição médica, como por exemplo ivermectina e cloroquina. Em uma entrevista dada ao Jornal “O Globo”, o médico hepatologista Paulo Bittencourt informou que 27% das hepatites agudas graves ou fulminantes são de origem de medicamentos.
Além disso, outros problemas podem surgir, como por exemplo a falta desses remédios para quem realmente precisa tomar. Assim, cria-se uma falsa sensação de segurança, e as pessoas param de adotar medidas que realmente funcionam para o enfrentamento da pandemia, como uso de máscaras e distanciamento social. E também, investir em um remédio que não funciona significa que o dinheiro disponível para o combate a pandemia está sendo mal gasto
Abaixo, preparamos uma lista com as principais tentativas de tratamento utilizadas durante esse primeiro ano de pandemia.
Hidroxicloroquina e Cloroquina
A dupla de remédios mais comentada em 2020, e também uma das mais pesquisadas. São remédios desenvolvidos para o tratamento de malária e algumas doenças inflamatórias, como artrite reumatóide e lupus. Tudo começou com um estudo in vitro na China e um estudo clínico na França, que indicavam que o remédio reduzia a carga viral e também sintomas graves em pacientes com COVID-19. Esses estudos deram esperança para que outras pessoas pesquisassem mais.
Todavia, o problema é que em outras células, o vírus realiza a infecção e a entrada por um sistema diferente daquele que foi observado na China. No corpo humano, o vírus pode usar ambas as formas de infecção e entrada nas células, e por isso esses remédios não funcionam! Atualmente, esses remédios são contra indicados pela Organização Mundial da Saúde.
Ivermectina
Esta segue polêmica! A ivermectina é remédio aprovado para uso no tratamento de parasitas em humanos, e dependendo da dose ela é dada até para pets. A história da ivermectina e a COVID-19 começou com um estudo realizado na Austrália em meados de abril de 2020, que demonstrou que a ivermectina tinha ação em culturas de células. Depois, esse estudo foi refutado por outros, já que as doses necessárias eram mais altas que a faixa de segurança do remédio para o tratamento no corpo humano.
Remdesivir
Remédio criado para o tratamento de Ebola e de Hepatite C. Ele é um antiviral que age no processo de produção de novos vírus, se ligando a molécula de RNA que está sendo produzida nas células infectadas. Em outubro de 2020 a FDA (organização americana de administração de remédios e comidas) aprovou seu uso emergencial em adultos e crianças com mais de 12 anos que estão internadas com COVID-19. Os resultados de estudos clínicos mostram que ele pode reduzir o tempo de internação dessas pessoas.
Mas esse não é aquele que a Anvisa liberou ontem mesmo? Sim, No dia 12 de março de 2021 a ANVISA aprovou o uso de Remdesivir em pacientes hospitalizados acima de 12 anos com necessidade de oxigênio. Logo mais teremos atualização sobre este tópico.
Lopinavir e Ritonavir
Essa dupla de remédios foi aprovada como tratamento para HIV, e algumas pesquisas mostraram que eles também poderiam agir atrapalhando a multiplicação do coronavírus dentro de células. No entanto, os estudos clínicos foram desanimadores e a OMS suspendeu novos estudos com esses remédios em Julho de 2020. Todavia, ainda está sendo pesquisado se a combinação desses remédios com outros, algo como um coquetel, podem ajudar a reduzir a gravidade da doença. Mas, o NIH (Instituto Nacional de Saúde dos EUA) não recomenda o uso desses medicamentos.
Azitromicina
Azitromicina é um antibiótico utilizado para tratar doenças causadas por bactérias. Por possuir uma ação anti inflamatória, ele passou a ser considerado como um candidato para estudos clínicos que observavam se como esse remédio poderia reduzir os sintomas dos pacientes. Contudo, em dezembro de 2020 comprovou-se que pacientes que usaram esse remédio não tiveram nenhuma melhora significativa em relação a pacientes que não tomaram esse remédio. Além disso, vale lembrar que o uso descontrolado de antibióticos pode ocasionar o surgimento de bactérias super resistentes a tratamentos, e ninguém quer sair de uma pandemia de vírus e entrar numa era de superbactérias, não é mesmo?
Dexametasona
Umas das principais formas de minimizar o quadro de gravidade de um paciente é através da minimização dos sintomas. Assim, os corticosteróides estão sendo utilizados como remédios para reduzir a resposta do sistema imune ao vírus, que chamamos de “tempestade de citocinas”. As citocinas são pequenas moléculas do nosso próprio corpo, e que aumentam a resposta do sistema imune. Todavia, quando temos uma quantidade muito grande dessas moléculas, como uma tempestade, elas podem acionar uma resposta tão grande do nosso sistema imune que resultam na danificação de diversos órgãos, dentre eles o pulmão.
A dexametasona é um desses remédios capazes de reduzir a inflamação e a resposta do sistema imune, além de ser um remédio barato. No entanto, sempre importante ressaltar que o NIH recomenda o uso de dexametasona em pacientes hospitalizados. Essa recomendação se dá a partir dos resultados obtidos no estudo RECOVERY, em que 6 mil pacientes hospitalizados foram divididos no grupo tratado com procedimentos “padrão” ou com dexametasona, e aqueles que receberam dexametasona tiveram uma melhora maior do que a do grupo “padrão”.
Interferon
Os interferons são proteínas que nosso sistema imune produz naturalmente. Ao encontrar um vírus, o corpo produz Interferons do tipo beta. Além da produção natural, também existem tratamentos em que os médicos receitam a administração dessas proteínas aos pacientes. O tratamento com essas moléculas procura estimular uma resposta do sistema imune, ativando as células para que elas combatam a infecção, e dessa forma reduzam as chances de agravamento da doença.
Colchicina
Remédio utilizado no tratamento de gota, e testado por pesquisadores da USP de Ribeirão Preto e por pesquisadores da Inglaterra. Ela demonstrou resultados promissores em reduzir a quantidade de pessoas que precisam ir para hospitais, mas ainda não se sabe como ela ajuda no tempo, no controle da gravidade da doença e na redução de sintomas.
Os pesquisadores da USP acreditam que ela ajuda principalmente a reduzir a inflamação do pulmão, e que isso está relacionado com a redução no tempo de sintomas de pacientes com as formas moderada e grave da doença. Na Inglaterra, um novo estudo clínico será feito com pacientes no início da infecção por COVID-19.
Terapia com soro e plasma convalescente
O sangue de pacientes que já tiveram COVID-19 está repleto de anticorpos que o sistema imune dessa pessoa produziu como resposta à doença. O soro é a parte do sangue em que ficam esses anticorpos, e é possível coletar essa parte e dar para pacientes que ainda estão em tratamento. Isso acontece também quando alguém precisa tomar um soro para a picada de uma cobra, por exemplo.
Um estudo, publicado em Janeiro de 2021, mostra que pacientes que receberam o soro em até 3 dias depois de começar a sentir os sintomas tiveram uma chance 48% menor de desenvolver um quadro severo de COVID, quando comparado com pacientes que não receberam soro.
Dessa forma, o FDA autorizou de forma emergencial o uso de soro de pacientes para tratamento de COVID-19 em Agosto de 2020. Aqui no Brasil, o Instituto Butantan já pediu a autorização da ANVISA para começar a disponibilizar soro e plasma para o tratamento da COVID-19 no país.
Por fim, e o desenvolvimento de novos remédios?
E porque não começar a falar sobre o desenvolvimento de novos remédios, que sejam específicos para a COVID-19? Graças à ciência de base, que estudou os mecanismos de infecção e a biologia do vírus, agora podemos desenvolver remédios que funcionem efetivamente contra a COVID-19. Em suma, nos resta esperar os resultados de várias pesquisas que ainda estão sendo desenvolvidas!
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Provavelmente você já deve ter ouvido falar sobre o mangá e anime “Naruto”, de 2007. Na história, o ninja adolescente enfrenta diversos vilões com o sonho de se tornar o líder da aldeia em que vive. Se você conhece um pouco da história, com certeza já viu o “Jutsu Clone das Sombras”, em que o Naruto cria diversas cópias de si mesmo para combater um inimigo. Mas o que isso tem a ver com COVID-19?
Fig.1. Naruto e os Clones (2007). Imagem de Masashi Kishimoto
Nosso sistema imune possui diferentes tipos de células e, dentre elas, os linfócitos B. Essas células são capazes de produzir um tipo de molécula, chamada de anticorpo, que se liga a corpos estranhos que invadem nosso organismo. Por exemplo, podemos produzir anticorpos contra o pólen das flores, vírus e bactérias. Porém, a nossa produção de anticorpos naturais acontece através de vários linfócitos B diferentes, sendo chamada de resposta policlonal. Com o objetivo de simular a resposta natural do nosso organismo, mas de maneira mais direcionada e eficiente, a ciência desenvolveu uma maneira de criar clones específicos, assim como o Naruto, para combater agentes agressores no nosso corpo: anticorpos monoclonais.
Os anticorpos monoclonais são feitos em laboratório e conseguem se ligar a lugares específicos do agente causador da doença. Isto é, com o objetivo de “imitar” uma resposta que nosso corpo teria contra ela, por exemplo a COVID-19. Os anticorpos monoclonais têm surgido como uma classe nova de remédios e já são utilizados para tratar alguns tumores e doenças autoimunes, como a esclerose.
Esses anticorpos são produzidos através de um linfócito B diferenciado, chamado de plasmócito. Cada plasmócito é um clone, e esse clone irá produzir um único tipo de anticorpo, que é chamado de anticorpo monoclonal. Em um laboratório, é possível identificar qual é a especificidade desse anticorpo, e se ele será útil para um tratamento ou não.
Mas como é possível criar um clone para o que eu quero?
Essa técnica foi descrita pela primeira vez por Georges Kohler e Cesar Milstein em 1975. Primeiro, é necessário infectar um animal com o patógeno (vírus ou bactéria da doença que estamos estudando), normalmente um camundongo. Este processo é chamado de imunização. Depois disso, pegamos as células B (plasmócitos) desse camundongo e provocamos a junção dessas células com células tumorais, através de um processo chamado de fusão, igualzinho a fusão que acontece em Dragon Ball.
Essa fusão é importante pois células tumorais têm uma capacidade de se dividir muito rápido. Dessa forma, ajudará o plasmócito a criar mais clones. Se a fusão funciona, essas células passam a ser chamadas de hibridomas. Cada hibridoma produzirá apenas um tipo de anticorpo.
Esses anticorpos são testados para saber se são específicos ou não, e, se a resposta for positiva, nós expandimos esse clone. Assim como o Naruto, essas células são capazes de criar muitas cópias de si mesmas, e a produção de anticorpos passa a ser tão grande que é possível tratar os pacientes.
Ficou confuso ainda assim? Então olha o esquema abaixo que montamos para ti!
Figura 02. Produção de anticorpos monoclonais
Os anticorpos monoclonais e a Covid-19
Recentemente, a FDA (Food and Drug Administration) autorizou o uso de dois anticorpos monoclonais como forma de tratamento emergencial, o bamlanivimab e o etesevimab em casos de COVID-19 leve e moderada de adultos e crianças, incluindo pacientes com comorbidades. As duas moléculas agem especificamente na proteína spike, ou espinho, do SARS-CoV-2, impedindo que o vírus infecte as células humanas. Em um estudo clínico, esses anticorpos foram capazes de reduzir tanto a hospitalização, quanto a taxa de mortalidade de pacientes quando comparado com o grupo placebo (que não recebeu o tratamento).
Diferentemente dos anticorpos monoclonais, as vacinas fornecem uma proteção mais longa, mas demoram mais para gerar essa proteção, já que o corpo precisa gerar a resposta imune. Neste momento, onde precisamos de respostas rápidas, o uso desse tipo de tratamento é muito importante, já que ele oferece uma proteção “instantânea” e que pode durar de semanas até meses.
O distanciamento social, uso correto de máscaras e tratamentos cientificamente comprovados, associados com uma campanha de vacinação efetiva são as principais chaves para o fim dessa pandemia!
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Anticorpos monoclonais? Clones de anticorpos? Que isso, voltamos para 2001 junto com o Dr. Albieri? (vocês eram nascidos já para esta referência?)
Vamos com calma! Não é bem assim.
Já falamos bastante de resposta imune humoral, anticorpos e até o uso de plasma convalescente aqui no Blogs, e hoje vamos explicar mais uma ferramenta que temos para combater cânceres, doenças autoimunes e doenças infecciosas, entre elas a própria Covid-19.
Respira fundo e vêm comigo entender o que são esse tipo de anticorpos.
História
A descoberta dos anticorpos data do final do século XIX, por volta de 1890. Nesses anos, dois cientistas – Kitasato e von Behring – observaram que animais que tinham contraído difteria ou tétano possuíam no soro do seu sangue uma “anti-toxina” capaz de neutralizar a toxina causadora de ambas as doenças. Em 1891, um ano depois, outro cientista – Paul Ehrlich – propôs o nome de Anticorpo (Antikörper em alemão) para essa “antitoxina” (1, 2). Nos anos que se seguiram foram feitos grandes avanços no desenvolvimento do conhecimento sobre o que são os anticorpos, suas estruturas e funções (algo que você pode conferir em outros textos já publicados aqui no blog).
Anticorpos Policlonais vs Monoclonais.
Com todo o conhecimento acumulado atualmente sobre anticorpos, hoje sabemos que o que torna a resposta imune humoral tão potente é (dentre outros fatores) a capacidade de produzir milhares de cópias de anticorpos diferentes contra uma única molécula (ou antígeno, como se diz no meio científico), que são os chamados de Anticorpos Policlonais. Achou confuso?
Vamos exemplificar: quando um linfócito B reconhece um antígeno estranho, ele começa a produzir milhares e milhares de cópias de um único anticorpo. Essa célula B específica produz esse anticorpo específico. Ao mesmo tempo, essa mesma célula B começa a se multiplicar, gerando várias células filhas dela mesma (ou clones). Cada um desses clones vai produzir anticorpos ligeiramente diferentes daquele produzido pela célula mãe. Vamos considerar que a partir dessa célula B mãe foram produzidos três clones (ou células filhas). Cada uma delas reconhece três porções diferentes daquele mesmo antígeno estranho que a célula B mãe reconheceu, produzindo milhares de cópias de três outros anticorpos. Novamente, não podemos esquecer que cada um desses linfócitos B filhos produzem um anticorpo específico, que é único de cada célula, mas que pode ser produzido aos milhares.
Agora, o exemplo que nós demos foi de uma célula mãe reconhecendo um antígeno e gerando três células filhas, mas o que acontece na realidade são centenas de linfócitos B reconhecendo centenas de diferentes pedaços de diferentes antígenos de um mesmo patógeno (como um vírus ou bactéria), e dando origem a dezenas de células filhas, que originam outras dezenas de células filhas. No final, o que nós temos são centenas de milhares de clones (ou células filhas), cada um produzindo um anticorpo em específico, cada um ligeiramente diferente de todos os outros, e reconhecendo diferentes partes do antígeno estranho. Daí que surge o nome Policlonal, ou seja, muitos clones, muitas cópias). Nosso sistema imunológico sempre vai produzir uma resposta policlonal de anticorpos para contra atacar a uma ameaça.
Por outro lado, também existem os chamados Anticorpos Monoclonais. Isso é, anticorpos produzidos em laboratório com o uso de engenharia genética para que várias células (ou clones de células) produzam o mesmo anticorpo e assim tenha-se acesso em larga escala a esse tipo em específico (e daí o nome monoclonal, ou único clone). Essa nova biotecnologia surgiu em 1975 quando Georges Köhler e César Milstein desenvolveram uma forma de isolar anticorpos a partir de células híbridas (chamadas de Hibridomas) originadas da fusão de uma célula de mieloma (cancerígena) com uma célula produtora de anticorpos. Essa linhagem celular híbrida era capaz de se multiplicar indefinidamente em placas de cultura ao mesmo tempo que mantinha a capacidade de produzir milhares de anticorpos idênticos (monoclonais), consequentemente, com a mesma especificidade e afinidade (3, 4, 5).
Imagem original Nature, traduzida pelo autor
E quais são suas aplicações na medicina?
Hoje, quase 50 anos após essa descoberta, o uso de anticorpos monoclonais já é amplo e muito utilizado no combate a diversos tipos de cânceres e doenças autoimunes, por se ligarem especificamente a uma única molécula de interesse terapêutico. Nas terapias contra doenças autoimunes, já se utilizam anticorpos monoclonais para impedir que células como linfócitos T e monócitos entrem em órgãos e ataquem células deste; que citocinas sejam reconhecidas por essas células imunes ou até mesmo para “desligá-las” (2).
Já no combate a cânceres, os anticorpos monoclonais são usados de maneiras ainda mais variadas. Alguns servem como “caminhões”, levando drogas ligadas em si que são entregues somente para as células cancerígenas ou ativando moléculas na superfície das células tumorais, que fazem com que estas células entrem em processo de morte programada. Outros anticorpos monoclonais funcionam “mostrando” aos linfócitos T Citotóxicos e macrófagos (se não lembra quem eles são, aconselho dar uma olhadinha nesse texto aqui) onde estão e quem são as células cancerígenas que devem ser mortas, visto que muitas vezes tumores conseguem se esconder do sistema imunológico, além de gerarem ambientes imunossupressores, isso é, capazes de fazer com que linfócitos T e outras células imunes não se ativem próximo dali (2, 3).
Além disso, assim como Kitasato e von Behring começaram fazendo há mais de 100 anos atrás, atualmente cientistas também estão desenvolvendo anticorpos monoclonais capazes de combater doenças infecciosas como malária, influenza e AIDS, testando eles individualmente ou na forma de coquetéis (2, 4, 6). Oficialmente, já existem três anticorpos monoclonais aprovados pelo FDA (agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos) para uso no combate a doenças infecciosas, sendo essas o vírus sincicial respiratório, anthrax, e Clostridioides difficile (uma bactéria gastrointestinal) (7).
Mais uma arma contra a Covid-19.
No que diz respeito à Covid-19, muitas estratégias foram e estão sendo pensadas para o combate à pandemia, como a vacinação em massa da população, o uso de plasma convalescente em pacientes internados, e claro, o uso de anticorpos monoclonais, apesar deste último ter tido menos atenção nos noticiários dos últimos meses. O principal alvo desses anticorpos é a proteína viral (Spike), na tentativa de impedir a ligação dela com o receptor nas nossas células – a molécula ACE2 – (8, 9), uma estratégia similar a que foi usada no desenvolvimento dos anticorpos monoclonais contra os vírus SARS-CoV-1 e MERS-CoV (7, 10). Contudo, outros alvos também estão sendo estudados, como as tentativas de se controlar a tempestade de citocinas liberada no corpo, levando aos casos graves (9, 11, 12).
Entretanto, um problema quanto ao uso de anticorpos monoclonais para o tratamento da Covid-19 é a falta de informação sobre a quantidade de anticorpos que vão chegar nos principais órgãos afetados, como os pulmões (uma medida chamada de biodisponibilidade). Além desse fator, também é necessário monitorar a diversidade viral do SARS-CoV-2 na população, visto que eventuais mutações nas proteínas alvos dos anticorpos podem diminuir drasticamente sua eficácia (7). Por causa disso, já está se considerando o uso de dois anticorpos em conjunto, mirando em diferentes porções da Spike.
Finalizando, apesar dos anticorpos monoclonais poderem ser utilizados de forma preventiva como em casos de pré-exposição (quando a pessoa sabe que vai ser exposta ao patógeno) ou pós-exposição (quando a pessoa sabe que se expôs mas não sabe se infectou-se), é muito mais comum seu uso de forma terapêutica, isto é, após ter certeza que se contraiu a doença e estar apresentando sintomas delas. Nessa forma, apesar de termos mais essa arma para combater a Covid-19, é necessário ressaltar que somente vacinando toda a população que venceremos a pandemia de uma vez por todas.
Referências:
Llewelyn, MB, Hawkins, RE, & Russell, SJ (1992) Discovery of antibodies, British Medical Journal, 305(6864), 1269-1272.
Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Quem está habituado à discussão teológica está familiarizado com a afirmação de que seria “impossível demonstrar uma negativa”. Ela é rotineiramente usada por crentes e apologetas para argumentar que, “segundo a lógica”, é impossível dizer que Deus não existe, mesmo na total ausência de evidências da sua existência. Logo se você crê em Deus por fé apenas (sem evidencia), você não estaria sendo irracional ou ilógico. Esse argumentos sempre me soou estranho, mas eu honestamente não havia pensado nele por anos até que me deparei com alguns debates recentes na internet envolvendo a hidroxicloroquina e sua eficácia. A discussão segue mais ou menos assim:
Crítico da hidroxicloroquina – Foi demonstrada a ineficácia da hidroxicloroquina
Defensor da hidroxicloroquina – Não foi demonstrada sua ineficácia, porque é impossível demonstrar uma negativa.
O que para mim o curioso nessa história toda é que a frase de efeito, ou truísmo, usado para corroborar esse raciocínio, de que “é impossível demonstrar uma negativa” é obviamente falso. É completamente lógico derivar um argumento formal no qual a conclusão é a inexistência de algo. Por exemplo, digamos que estejamos argumentando sobre a existência de unicórnios. Eu poderia montar o seguinte argumento
P1 – Se unicórnios existem, deveria haver alguma evidência deles no registro fóssil.
P2 – Não existe evidência de unicórnios no registro fóssil.
Conclusão- Unicórnios não existem.
Esse é um argumento logicamente válido no qual a conclusão (uma negativa) é a consequência lógica das premissas. Proposições negativas são tão demonstráveis quanto proposições positivas.
“Mas, calma lá”, você pode pensar “o registro fóssil é notoriamente incompleto. Espécies podem simplesmente não estar representadas sem que isso signifique que elas nunca existiram”.
Esse argumento remete ao problema da indução, que diz basicamente que nenhuma generalização baseada em observações limitadas pode ser bem sucedida. O exemplo clássico é a ideia de que, não importa quantos cisnes brancos você encontre na natureza, você nunca vai poder dizer que todos os cisnes são brancos, visto que você ainda pode encontrar um cisne negro que refute essa generalização. É importante ressaltar que, enquanto isso não invalida a ideia que proposições negativas são demonstráveis, isso parece levantar um problema sério para premissas que sustentem supostas inexistências.
Porém, nem todas proposições são iguais. Imagine que, ao invés de você estar buscando cisnes negros, você que saber se um gene X está associado com a cor das penas em cisnes negros. Uma prática em genética para entender o funcionamento de um dado gene é exatamente deletar esse gene de um embrião, ou “nocautear” o gene. Se o gene era associado com a cor das penas, você espera que o embrião com o gene nocauteado desenvolva penas brancas (ou não-negras). Se o embrião continua desenvolvendo penas negras, você pode afirmar que o gene X não tem efeito sob a coloração negra das penas. Em forma de argumento formal:
P1- Se o gene X determina a cor negra da pena, sua remoção produziria penas sem essa coloração
P2- A remoção do gene não afeta a cor da pena
Conclusão- O gene X não afeta a cor da pena.
Nesse caso não há ambiguidade alguma: uma vez que o mecanismo é proposto e testado, a ausência de um efeito implica que sua hipótese foi refutada: o mecanismo, como designado, não existe. A diferença é que, quanto mais específica é sua premissa inicial, mais certeza você pode conferir à sua conclusão.
O caso de medicamentos tem mais a ver com o encontrar um mecanismo genético do que buscar unicórnios no registro fóssil: a ação de um remédio depende de que um mecanismo proposto seja verdadeiro, ou potencialmente verdadeiro. O que nos trás à hidroxicloroquina.
Presidente Jair Bolsonaro no jardim do Palácio da Alvorada alimentando as emas e mostrando a caixa do remédio cloroquina para as emas, a mesma caixa que mostrou para os apoiadores no ultimo domingo 19/07. Sérgio Lima/Poder360. 23.07.2020
Querida de três em cada três líderes com tendências autoritárias no continente americano (Trump, Bolsonaro e Maduro), a hidroxicloroquina foi alardeada com um possível tratamento ao COVID19 com base em um estudo feito em células in vitro (em placas de petri; aqui e aqui). Esse estudo demonstrou que a hidroxicloroquina em conjunto com azitromicina era capaz de prevenir a entrada do vírus em células vivas. Em investigações sobre a eficácia de medicamentos, a existência de algum tipo de efeito in vitro é considerado premissa básica para que mais estudos sejam realizados, para observar se um remédio pode ter efeito em seres vivos e, em última analise, humanos. De qualquer maneira, esse estudo deu o pontapé inicial à investigação sobre a eficiência da hidroxicloroquina contra o COVID19, resultando em diversos trabalhos que buscaram encontrar um efeito da droga em seres humanos infectados.
Nada disso seria particularmente problemático se políticos não tivessem tomado para si o papel de decidir, com base em evidências problemáticas, quais são os tratamentos que devem ser seguidos. O que temos agora é a pior situação possível: enquanto a ciência demonstra a total ineficácia da hidroxicloroquina no tratamento de COVID19 (ver aqui e aqui, por exemplo), políticos e entusiastas destes mesmos governantes se veem na posição de ter que defender pseudociência por motivos meramente ideológicos. E é nesse momento que vemos as pessoas se agarrarem cada vez mais desesperadamente à argumentos falaciosos para defender sua posição. No caso da hidroxicloroquina, como coloquei anteriormente, surge essa ideia de que seu efeito positivo não pode ser negado, pois seria impossível demonstrar uma negativa. Como já argumentei, essa afirmação é falsa (é incrivelmente simples demonstrar um negativo). Mas seria esse o caso da hidroxicloroquina?
Pra entender isso, precisamos entender um pouco como supostamente a hidroxicloroquina deveria funcionar. Para entrar nas células animais, o coronavírus pode se valer de dois mecanismos. O primeiro é se ligando a receptores de superfície das células do hospedeiro para introduzir o seu material genético diretamente no interior da célula. No segundo mecanismo, o vírus é absorvido por invaginações da membrana celular (endossomos) e invadem o citoplasma celular a partir daí. Esse segundo mecanismos, o realizado por endossomos, necessita de uma proteína funcional chamada catepsina L, que necessita de um meio ácido para funcionar. Nesse contexto, a hidroxicloroquina atua diminuindo a acidez do meio intracelular, impedindo a ação da catepsina L, impedindo a entrada do coronavírus na célula. Para voltar para nossas preposições, podemos descrever a atuação da hidroxicloroquina da seguinte forma:
P1- Para a hidroxicloroquina funcionar no combate a COVID19 ela necessita prevenir a entrada do coronavírus nas celulas pulmonares humanas.
P2- Hidroxicloroquina diminui a acidez intracelular, afetando o funcionamento da catepsina L.
P3- Catepsina L é usada pelo coronavírus para entrar na célula.
Segundo essa lógica – e essa era a lógica que poderíamos aceitar no começo do ano – a hidroxicloroquina (potencialmente) funcionaria no combate a COVID19. Mas o diabo mora nos detalhes. As células usadas inicialmente para demostrar que a hidroxicloroquina funciona in vitro eram culturas de células de rins de macacos. Essas células normalmente apresentam resultados bons o suficiente para a maior parte dos fármacos, porém no caso do coronavírus a coisa parece ser mais complicada. Enquanto é verdade que em células de rim a Catepsina L é essencial para a ação de entrada do vírus, células pulmonares humanas não apresentam essa enzima em grandes quantidades.
Ao invés, o mecanismo de entrada do coronavírus na célula é mediada por uma enzima chamada TMPRSS2. O problema é que, diferente da Catepsina L, o funcionamento da TMPRSS2 não é afetado pela alteração da acidez do meio celular. De fato, um estudo recente em células pulmonares humanas demonstrou que a hidroxicloriquina é incapaz de impedir a invasão das células pelo coronavirus. Assim, podemos atualizar a descrição da atuação da hidroxicloroquina da seguinte forma:
P1- Para a hidroxicloroquina funcionar no combate a COVID19 ela necessita prevenir a entrada do coronavírus nas celulas pulmonares humanas.
P2- Hidroxicloroquina diminui a acidez intracelular, afetando o funcionamento da catepsina L.
P3- Catepsina L é usada pelo coronavírus para entrar em células de rim.
P4- TMPRSS2, que é usada pelo coronavirus para entrar em células pulmonares, não é afetada pela hidroxicloroquina.
E disso segue que
C- Hidroxicloroquina não funciona no combate a COVID19 através do mecanismo proposto.
O que mostra que é plenamente lógico afirmar que a hidroxicloroquina não funciona.
Óbvio que isso não vai satisfazer os defensores da droga, pois inúmeros outros mecanismos podem ser propostos, inclusive mecanismos sem o menor respaldo científico, como foi o caso da “pílula do câncer”, uma droga sem efeito também defendida pelo presidente da república.
Eu acredito que a luta pela hidroxicloroquina vai durar muito mais tempo depois que sua discussão acadêmica estiver de fato encerrada. Estamos entrando em um caminho onde teorias conspiratórias, pseudociência e pseudofilosofia estarão intrinsecamente ligados com a política nacional. Vai ser um caminho tortuoso. Boa sorte a todos nós.
*Para os nerds: sim, eu estou mais que ciente das problemáticas sobre o grau de confiabilidade em resultados experimentais e estatísticos. Você pode transformar todos esses argumentos em probabilísticos e chegar a conclusão que a hidroxicloroquina muito provavelmente não funciona (o que é basicamente a mesma, visto que a única “certeza” que podemos ter em termos científicos são aquelas referentes à altas probabilidades).
Para saber mais
Boulware DR, Pullen MF, Bangdiwala AS, et al. A Randomized Trial of Hydroxychloroquine as Postexposure Prophylaxis for Covid-19. N Engl J Med. 2020;383(6):517-525. doi:10.1056/NEJMoa2016638
Liu, J., Cao, R., Xu, M. et al. Hydroxychloroquine, a less toxic derivative of chloroquine, is effective in inhibiting SARS-CoV-2 infection in vitro. Cell Discov 6, 16 (2020). https://doi.org/10.1038/s41421-020-0156-0
Wang, M., Cao, R., Zhang, L. et al. Remdesivir and chloroquine effectively inhibit the recently emerged novel coronavirus (2019-nCoV) in vitro. Cell Res 30, 269–271 (2020). https://doi.org/10.1038/s41422-020-0282-0
O autor
Fabio Machado é Biologo Evolutivo, pesquisador e professor. Amante dos animais, defensor da natureza, amigo do vento.
Este texto foi escrito originalmente no Blog Haeckeliano.
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Já vimos o que são os anticorpos em um texto anterior, como eles são formados, quais as suas funções, mas resta uma dúvida: será que podemos usá-los como alguma forma de tratamento? E a resposta é sim!
Toda a ideia por trás de usar anticorpos no combate a doenças infecciosas gira em torno do conceito de Imunidade Passiva e Plasma Convalescente. Assim, por causa disso, precisamos entender tais conceitos.
A imunidade passiva (já comentada no texto sobre vacinas) é aquela que ocorre quando há somente a transferência de anticorpos de uma pessoa para outra. Dessa forma, o segundo indivíduo consegue melhorar da infecção, mas acaba não gerando uma memória imunológica contra o patógeno. Usa-se como indivíduo doador alguém que já foi infectado pelo patógeno em questão, pois ele já teve tempo de montar toda uma resposta imune adaptativa, o que inclui os anticorpos. Assim, esse conceito já é antigo, ele usado desde o final do século XIX, no combate a toxinas bacterianas, em uma era pré-antibióticos(1).
Mas aí podemos perguntar: por que então não damos o patógeno ou a toxina para todo mundo e todos montam essa resposta imune? Nesse caso, estamos falando de uma vacina, que leva a um processo de imunidade ativa, aquela que gera uma memória imunológica (já falamos de vacina, e você pode conferir aqui). Contudo, nesse momento aparecem alguns problemas para essa ideia, como as dificuldades em criar uma vacina: todo o processo é muito caro, difícil e demorado.
Sobre o Plasma Convalescente
Em momentos como o que estamos passando agora, cada minuto e hora que se passa é essencial para salvar uma vida. Apesar de ser necessário desenvolver vacinas para gerar uma memória imunológica na população, é também preciso usar de métodos para ajudar aqueles que já foram infectados e podem desenvolver a forma grave da doença. Pois, em muitos casos, a severidade da doença pode ser grande, com um alto grau de letalidade, ou ela pode ser muito contagiosa e tem a chance de causar uma forma agravada que pode levar a complicações (como a Covid-19).
É nesse momento que entramos no uso do Plasma Convalescente. Em palavras mais simples, esse termo se refere a parte líquida do sangue, que não inclui hemácias e células de defesa, de pessoas que já ficaram doentes e se recuperaram. Dessa forma, é justamente nessa parte do sangue que estão os anticorpos neutralizantes contra o patógeno que queremos combater – no caso da Covid-19, o vírus SARS-CoV-2.
Essa técnica já é usada há um século e os primeiros estudos do uso de plasma convalescente em uma infecção viral datam da gripe espanhola em 1919 e 1920(2). Um outro momento que o uso de plasma convalescente foi tido como uma possibilidade foi durante os recentes surtos de Ebola na África, uma doença altamente infecciosa e letal, que infelizmente até hoje não possui vacina ou medidas terapêuticas muito eficientes(3). E, é claro, atualmente tem se falado muito sobre esse procedimento no tratamento dos casos graves da Covid-19, enquanto não há uma vacina ou medicamento totalmente seguro e 100% eficiente para ela.
Outras técnicas
Um ponto que também precisamos citar aqui é o uso de anticorpos monoclonais no combate ao SARS-CoV-2 até uma vacina ficar pronta. Anticorpos monoclonais são um conjunto de anticorpos produzidos em laboratório que são exatamente iguais uns aos outros e que se ligam a uma única parte do patógeno, escolhida a dedo pelos cientistas, e dessa forma, sendo essencial para o patógeno. Mas além de combater vírus, bactérias e outros patógenos, essa ferramenta é tão poderosa que tem sido usada até mesmo no tratamento de diferentes tipos de cânceres e doenças autoimunes. Contudo, diferente do uso de plasma convalescente (que usa uma mistura de anticorpos – chamados policlonais – e moléculas contra diferentes partes do vírus), essa abordagem é muito mais cara e complexa de se manejar, levantando a questão (4): países e pessoas mais pobres vão ter condições de pagar por esse tipo de tratamento enquanto uma vacina não sair?
Mas voltemos ao Plasma Convalescente
Recentemente, a Food and Drug Administration (FDA) – uma agência dos Estados Unidos responsável pela proteção e promoção da saúde pública – aprovou o uso de plasma convalescente para o tratamento de pacientes com a forma grave da Covid-19(5). Assim, foi permitido o início de testes clínicos para analisar a eficiência do procedimento em diferentes aspectos da doença. Até agora cinco testes clínicos já foram começados na tentativa de verificar a eficácia de plasma convalescente nos seguintes aspectos(6):
prevenção dos sintomas após contaminação;
tratamento de casos sintomáticos leves para evitar complicações e a hospitalização;
casos moderados de pacientes hospitalizados para prevenir a entrada na UTI e uso de equipamentos de ventilação;
última alternativa (chamada de “terapia de resgate”) em pacientes graves que estão sendo ventilados;
casos pediátricos.
Por fim…
O uso do plasma convalescente vem se provando uma poderosa ferramenta que poderemos adicionar em nosso arsenal para combater a Covid-19. Mas é claro que ela tem seus prós e contra. A favor dela temos a provável eficiência clínica, a disponibilidade quase que imediata de doadores (visto os mais de 2 milhões e meio de brasileiros recuperados e 15 milhões de pessoas ao redor do mundo). Ademais, temos o custo relativamente mais baixo do que o desenvolvimento de novos antivirais, ou mesmo o reposicionamento de fármacos (que já mencionamos nestes textos aqui e aqui).
Além disso, o uso de plasma convalescente pode se provar uma ótima medida preventiva, principalmente para os agentes de saúde que ficam na linha de frente, combatendo a infecção e se expondo a contaminação. Já os contras se concentram principalmente na parte administrativa e logística, focando na identificação, consentimento, coleta e teste dos possíveis doadores (7). Assim, os prós e contras devem ser pesados, analisando principalmente o que a literatura irá falar nos próximos meses, caso novas pesquisas corroborem o uso de tal medida ou descubram problemas.
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.