Categoria: V.10 N.1 2024

  • Revista Blogs Unicamp se inspira na relação entre Educação, Ciência e Arte, tema do III EBDC | editorial n. 10 v.1

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    Autoria

    Jaqueline Nichi

    Querides leitores, 

    É com grande entusiasmo que apresentamos a mais recente edição da Revista Blogs Unicamp e a primeira de 2024, que surge em meio aos preparativos para o aguardado III Encontro Brasileiro de Divulgadores de Ciência (EBDC). Marcado para acontecer de 15 a 17 de novembro no Instituto Principia, em São Paulo, este evento representa um marco fundamental para a comunicação científica em nosso país, reunindo uma diversidade de profissionais, pesquisadores, estudantes e interessados nesse campo.

    Com o tema central “Educação, Ciência e Arte”, o III EBDC promete proporcionar um espaço rico em debates, trocas de experiências e reflexões fundamentais para o avanço da divulgação científica no Brasil. Convidamos a todos a participarem. As inscrições para a submissão de trabalhos estão abertas até 26 de maio no site do evento.

    Mas nem só de evento vive esse editorial…

    Nesta edição da revista, preparamos uma cuidadosa seleção de conteúdos que refletem a diversidade e a qualidade da ciência brasileira. Destacamos o artigo da nossa autora convidada, a biomédica Mariene Amorim, que nos alerta sobre a febre do Oropouche e sua repercussão na saúde pública, especialmente na região Norte do Brasil. A disseminação desse vírus demanda uma resposta coordenada das autoridades e pesquisadores, visando prevenir e controlar futuros surtos.

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    Em nosso artigo de capa, abordamos o atual cenário político brasileiro em ano de eleições municipais, com uma análise desta autora sobre a importância da adaptação climática nas propostas dos candidatos e o crescente protagonismo das questões ambientais nas agendas eleitorais.

    A conservação dos oceanos também recebe destaque com reflexões provocativas de Juliana Di Beo sobre a interligação entre o bem-estar da população brasileira, o sucesso econômico e a preservação dos nossos mares, além da abordagem de Ana de Medeiros Arnt sobre a relevância da Lei “Não é Não” na proteção dos direitos individuais das mulheres brasileiras.

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    Outros temas relevantes são explorados em artigos que incluem a contaminação por microplásticos em morcegos, a inclusão da PrEP nas ações de 2024 e os desafios do estágio supervisionado.

    As duas resenhas desta edição também oferecem reflexões instigantes. Leonardo Dias Nunes analisa a obra “A fratura brasileira do mundo: visões do laboratório brasileiro da mundialização, de Paulo Arantes” e discute a “brasilianização do mundo” e sua relação com a precarização do trabalho. Já Juliana Di Beo narra a coragem da nadadora Nyad em sua histórica travessia pelo Atlântico Norte aos 60 anos, em filme homônimo estrelado por Annette Benning. 

    Por fim

    Esperamos que esta edição seja uma fonte inspiradora de conhecimento para nossos leitores, contribuindo para um debate informado e consciente sobre os temas que moldam nosso mundo. Agradecemos a todos os autores, colaboradores e leitores por fazerem parte desta jornada para valorizar e ampliar a divulgação científica no Brasil.

    Boa Leitura!!

    Sobre o editorial

    O texto editorial foi escrito por Jaqueline Nichi, jornalista e editora da Revista Blogs Unicamp, doutora em Ambiente e Sociedade pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM/UNICAMP) e blogueira da rede no Blog Natureza Crítica.

    Como citar:  

    Nichi, Jaqueline (2024). Revista Blogs Unicamp se inspira na relação entre Educação, Ciência e Arte, tema do III EBDC. Revista Blogs Unicamp, V.10, N. 01. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/editorial-v10-n1-2024/.  Acesso em DD/MM/AAAA

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  • Lei “Não é Não”: algumas ideias para pensar

    Autoria

    Ana de Medeiros Arnt

    Durante a primeira semana de janeiro de 2024, muitos veículos de comunicação noticiaram a nova Lei n. 14786/23, promulgada no dia 28 de dezembro de 2023. A lei cria o protocolo “Não é Não” e trata da prevenção ao constrangimento e à violência contra a mulher e proteção à vítima. 

    No entanto, houve questionamentos acerca da lei, alguns deles irei esclarecer abaixo, em 5 itens. Considerando que o texto é mais longo que o usual, em função de eu trazer trechos da lei e outros documentos, se teu interesse for de um assunto mais específico, podes ir direto ao tópico marcado! 

    (1) não é não, (2) protocolo e lei 14.786/23, (3) PL 03/2023 e Relatório do PL, (4) problematizações acerca da Lei e, por fim, (5) falar sobre cultura, misoginia e violência contra a mulher.

    Não é não

    “Não é não” é uma frase afirmativa que podemos chamar de clássica dentro de qualquer campanha de proteção à mulher nos últimos anos. Ela parte do pressuposto de, a partir de uma frase curta, comunicar um ato básico de respeito. “Quando se diz não, queremos dizer NÃO”, e a partir disso, é preciso que se respeite como uma decisão da pessoa. Parece simples, mas dentro de uma cultura extremamente machista, sabemos que nem sempre mulheres são compreendidas e respeitadas a partir de suas escolhas e decisões sobre seus próprios corpos.

    Uma lei que busca implementar um protocolo de ação, a partir desta frase emblemática, diz ao que veio de maneira simples e rápida: é uma lei cujo princípio é proteger a mulher e suas decisões.

    O que é um protocolo?

    Protocolo nada mais é do que um conjunto de prescrições a serem seguidas, com um passo a passo. Um exemplo bem banal do cotidiano que pode ser entendido como protocolo são receitas. Sim! Fazer comida seguindo uma receita ao pé da letra é um protocolo. Há ingredientes que precisam de uma medida correta e uma ordem para serem misturados. Se nós mudamos a ordem, ou mudamos as medidas, tudo pode dar errado.

    Pois bem, protocolo é um conjunto de regras, organizadas para serem seguidas como um passo a passo, para que um determinado resultado seja alcançado. Os protocolos são importantes, dentro do campo jurídico, tanto quanto científico, exatamente por serem passíveis de serem conferidos. Com isso, sabemos em que ponto algo pode ter falhado, pois podemos conferir cada etapa de execução das nossas ações.

    Dito isso, vamos entender agora qual a relação entre essa noção de protocolo, na Lei 14.786/23.

    Onde será implementado o protocolo, segundo a lei?

    No caso da Lei 14.786/23, o objetivo é implementar um protocolo, chamado “Não é não”, tal como consta no Artigo 2º:

    O protocolo “Não é Não” será implementado no ambiente de casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica, para promover a proteção das mulheres e para prevenir e enfrentar o constrangimento e a violência contra elas.

    Parágrafo único. O disposto nesta Lei não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa. (grifos nossos)

    O que caracteriza constrangimento e violência?

    Já no Artigo 3º, existe a definição de constrangimento e de violência, caracterizando o que é necessário para que o protocolo seja operacionalizado:

    I – constrangimento: qualquer insistência, física ou verbal, sofrida pela mulher depois de manifestada a sua discordância com a interação;

    II – violência: uso da força que tenha como resultado lesão, morte ou dano, entre outros, conforme legislação penal em vigor. (grifos nossos)

    Quais são os direitos da mulher e os princípios do protocolo?

    Ainda nesta lei, consta os princípios a serem seguidos para o Protocolo (artigo 4º) e os direitos da mulher (Artigo 5º). Vamos a eles:

    Art. 4º Na aplicação do protocolo “Não é Não”, devem ser observados os seguintes princípios:

    I – respeito ao relato da vítima acerca do constrangimento ou da violência sofrida;

    II – preservação da dignidade, da honra, da intimidade e da integridade física e psicológica da vítima;

    III – celeridade no cumprimento do disposto nesta Lei;

    IV – articulação de esforços públicos e privados para o enfrentamento do constrangimento e da violência contra a mulher.

    Art. 5º São direitos da mulher:

    I – ser prontamente protegida pela equipe do estabelecimento a fim de que possa relatar o constrangimento ou a violência sofridos;

    II – ser informada sobre os seus direitos;

    III – ser imediatamente afastada e protegida do agressor;

    IV – ter respeitadas as suas decisões em relação às medidas de apoio previstas nesta Lei;

    V – ter as providências previstas nesta Lei cumpridas com celeridade;

    VI – ser acompanhada por pessoa de sua escolha;

    VII – definir se sofreu constrangimento ou violência, para os efeitos das medidas previstas nesta Lei;

    VIII – ser acompanhada até o seu transporte, caso decida deixar o local.

    No caso, o artigo 4º diz respeito ao atendimento à vítima e sua proteção nos estabelecimentos e para relatos da violência para a produção de boletins de ocorrência, por exemplo. Já o artigo 5º aponta para ações e comportamentos que devem ser seguidos assim que for detectado ou relatado um constrangimento, ou violência. 

    Quem é responsável pela tomada de ações em caso de violência e assédio?

    Estas medidas, apontadas nos Artigos 4º e 5º devem ser tomadas pelo estabelecimento em que esta mulher se encontra, com pessoas treinadas para isto. Isto está descrito no Artigo 6º, que versa sobre os deveres dos estabelecimentos:

    I – assegurar que na sua equipe tenha pelo menos uma pessoa qualificada para atender ao protocolo “Não é Não”;

    II – manter, em locais visíveis, informação sobre a forma de acionar o protocolo “Não é Não” e os números de telefone de contato da Polícia Militar e da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180;

    III – certificar-se com a vítima, quando observada possível situação de constrangimento, da necessidade de assistência, facultada a aplicação das medidas previstas no art. 7º desta Lei para fazer cessar o constrangimento;

    IV – se houver indícios de violência:

    a) proteger a mulher e proceder às medidas de apoio previstas nesta Lei;
    b) afastar a vítima do agressor, inclusive do seu alcance visual, facultado a ela ter o acompanhamento de pessoa de sua escolha;
    c) colaborar para a identificação das possíveis testemunhas do fato;
    d) solicitar o comparecimento da Polícia Militar ou do agente público competente;
    e) isolar o local específico onde existam vestígios da violência, até a chegada da Polícia Militar ou do agente público competente;

    V – se o estabelecimento dispuser de sistema de câmeras de segurança:

    a) garantir o acesso às imagens à Polícia Civil, à perícia oficial e aos diretamente envolvidos;
    b) preservar, pelo período mínimo de 30 (trinta) dias, as imagens relacionadas com o ocorrido;

    VI – garantir todos os direitos da denunciante previstos no art. 5º desta Lei.

    O estabelecimento tem, portanto, o dever de acolher e proteger a vítima, tanto quanto de denunciar e identificar o(s) agressor(es). Também deve manter informações visuais sobre como acionar o protocolo.

    Notas sobre o Não é Não

    Alguns estabelecimentos já possuem este tipo de ação. Eventualmente vemos nas portas e paredes de banheiros, indicativos de que podemos comunicar uma situação de constrangimento ou violência, realizando algum pedido específico (com nomes específicos, por exemplo), que sinalize o problema. Neste caso, o estabelecimento já possui um protocolo de atendimento e proteção, que agora se soma à lei.

    Todavia, também sabemos que nem sempre é simples acionar alguém do estabelecimento para pedir proteção. Estarmos em uma sociedade extremamente machista torna os pedidos de ajuda muito difíceis. Retomarei isto mais à frente, mas queria deixar aqui duas ressalvas antes.

    1. Sempre é importante haver um protocolo, com treinamento dos funcionários, mais do que aguardar uma mulher solicitar ajuda, apenas. Muitas vezes um treinamento para observar situações e oferecer ajuda, também é uma medida importante. Isto está previsto no Artigo 6º, inciso III “certificar-se com a vítima, quando observada possível situação de constrangimento, da necessidade de assistência”. Assim, não é obrigatório o pedido de proteção partir da vítima. O próprio estabelecimento pode se dispor a prestar acolhimento e proteção, caso suspeite ou perceba estar em uma situação de constrangimento ou violência.
    2. Além de sempre, como prevê o protocolo da Lei Não é Não, (Artigo 4º, Inciso I) “respeito ao relato da vítima acerca do constrangimento ou da violência sofrida”. Ou seja, ao ouvir um pedido de proteção, respeitar e agir, sem descredibilizar a vítima.

    Por fim, o poder público é o responsável por campanhas educativas e ações de formação periódica para implementar o protocolo nos estabelecimentos. Ainda estou vendo com mais detalhes como isto funciona para trazer à discussão.

    Como o Projeto de Lei (PL) Não é Não foi proposto e o quê mudou?

    Esta lei foi proposta pela deputada Maria do Rosário (PT) e tinha uma redação diferente da lei que foi aprovada. Isto é comum. De maneira geral, um PL, quando proposto, passa por discussões e análises em comissões temáticas, recebe sugestões de mudanças, passa por negociações, que modificam o seu “teor original” (a escrita original do PL). Também são analisados outros PLs que são “parecidos” ou versam sobre temas próximos. Neste caso, estes outros PLs viram “apensados”, ou seja, documentos que vão ser debatidos e analisados conjuntamente, pois fazem parte de ideias similares.

    Por fim, há uma relatoria do PL, que se propõe a indicar qual a justificativa desta lei e sua relevância, quais apensados se relacionam e indica uma redação final para o PL. As próprias comissões que analisaram podem aprovar o PL em sua redação final ou, se não houver concordância, acontece a votação na Câmara de Deputados, antes de ir ao Senado. Para entender melhor o detalhamento deste processo, eu sugiro assistir ao conteúdo “Entenda o Processo Legislativo

    No caso da Lei 14.786/23, a proposta inicial pode ser acessada no site da Câmara dos Deputados, que possui todo o histórico desde que ela foi apresentada, até sua versão final. Isso inclui a versão original do Projeto de Lei 03/2023. Lá já se percebe que o nome do protocolo, por exemplo, consta desde a primeira versão do PL.

    Redação Original do PL 03/2023

    No Artigo 1º esse protocolo se destinava ao atendimento de mulheres, vítimas de violência sexual ou assédio 

    em discotecas ou estabelecimentos noturnos, eventos festivos, bailes, espetáculos, shows, bares, restaurantes, ou qualquer outro estabelecimento de grande circulação de pessoas

    O PL incluía locais de realização de eventos esportivos. Na justificativa, a autora do PL indica que se inspirou em Lei semelhante, espanhola, nomeada “Solo si es si” (só o sim é sim, em espanhol). Além desta lei, o protocolo No Callem criado em Barcelona, 2018, fortalece e fundamenta as ações para a lei, e é baseado em 5 princípios

    O primeiro é que a atenção prioritária deve ser dada à pessoa atacada. Em caso de agressão, ela deve receber a devida atenção. Em casos graves, ela não pode ser deixada sozinha, a não ser que queira. 

    O segundo princípio orientador é o respeito às decisões da pessoa agredida. Ela deve receber as informações e conselhos corretos, e ela deve tomar a decisão final, mesmo que esta pareça incompreensível para os demais.

    Terceiro princípio: o foco não deve estar num processo criminal. Estes são complexos, difíceis também para quem foi agredido e muitas vezes terminam de uma forma não satisfatória para quem sofreu uma agressão. Isso pode gerar frustração, e por isso é importante informar e levar em conta que existem outras formas de tratar a situação e dar importância ao processo de recuperação da pessoa agredida.

    O quarto princípio é a atitude de rejeição ao agressor. Deve-se evitar sinais de cumplicidade com ele, mesmo que seja apenas para reduzir o clima de tensão. É importante mostrar que há uma clara rejeição à agressão e envolver o entorno do agressor nessa rejeição.

    O quinto e último princípio é o da informação rigorosa. Tanto a privacidade da pessoa agredida como a presunção de inocência da pessoa acusada devem ser respeitadas. Por isso, é aconselhável não repassar informações oriundas de fontes não confiáveis ou espalhar boatos.

    Outras iniciativas

    Ainda é citado, na justificativa do PL, outras leis e movimentos internacionais, como “Ask for Angela” (Inglaterra) e “Me Too” (inicialmente estadunidense). Além disso, cita campanhas nacionais, como “He for She” (Rio Grande do Sul) e acontecimentos como o julgamento de estupro, com descrédito da vítima, ocorrido com Mariana Ferrer, em Santa Catarina.

    Quais são as ressalvas que eu gostaria de demarcar neste texto? Não havia no PL, nem na justificativa da lei, quaisquer ressalvas sobre bebidas alcoólicas ou cultos e eventos religiosos. Onde isso apareceu e foi inserido na Lei aprovada então?

    Relatório do PL 03/2023

    Buscando mais informações, encontrei o Relatório do PL 03/2023, que analisa também os PLs apensados (indicados logo após o título lá no início). Ao final do Relatório, consta o texto Substitutivo ao Projeto de Lei nº 03, de 2023 (página 13), que falarei mais adiante. Eu fui buscando cada um dos apensados, abrindo e realizando a leitura. Após a leitura do relatório também, um detalhe me chamou a atenção: não há, em nenhum PL apensado nenhuma ressalva a cultos e eventos religiosos. Tampouco há, nestes PLs, indicação de vínculo com bebidas alcoólicas a necessidade da proteção de mulheres vítimas de violência e constrangimento em estabelecimentos e eventos.

    No relatório aparece, na página 8, ao se falar do mérito da proposta, que apesar de “não existirem estatísticas sobre isso [episódios de constrangimentos], temos a percepção de que são condutas mais frequentes e também são precursoras de atos de mais intensa violência”. Para exemplificar, é falada a relação com o álcool. Conforme o documento:

    “Este é o caso, por exemplo, das insistentes tentativas de aproximação realizadas por alguns homens nos ambientes de diversão, principalmente aqueles que funcionam durante a noite e onde existe consumo de bebidas alcoólicas” (p.8).

    Em relação aos apensados, essa relação aparece somente em uma justificação, no PL 2614/2023, em que consta, na página 2

    O assédio em casas noturnas é um problema que, dentre outras ocorrências, se dá em casas noturnas e está associado ao consumo de bebidas alcoólicas. Nesse sentido, a proteção das mulheres é essencial em casas noturnas que oferecem consumo de bebidas alcoólicas.

    Apesar disso constar na justificação, não há a presença da obrigatoriedade do combate ao assédio sexual (que é a proposta do PL) se vincular a espaços com venda de bebidas alcoólicas.

    Texto do Substitutivo ao Projeto de Lei n.03 de 2023

    Para encerrar esta seção, antes de falar sobre as duas ressalvas, vamos retomar a redação final, que consta no texto Substitutivo do PL 03/2023, do relatório (páginas 13 a 17). Esta versão que está no relatório foi aprovada na Câmara e, sem qualquer modificação, é a que vale neste momento.

    Art. 2º O protocolo “Não é Não” será implementado no ambiente de casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica, para promover a proteção das mulheres e para prevenir e enfrentar o constrangimento e a violência contra elas.

    Parágrafo único. O disposto nesta Lei não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa.

    Como podemos perceber, a lei faz duas ressalvas que não estavam na escrita original do PL. A primeira sobre o protocolo relaciona-se apenas a “casas noturnas e boates” com consumo de bebidas alcoólicas e a segunda ao retirar cultos e eventos religiosos a obrigatoriedade com a implementação do protocolo.

    Uma demarcação importante, neste caso, é que saíram da lei estabelecimentos como bares, restaurantes, eventos festivos e eventos com grande circulação de pessoas, como constava no PL original. Este ponto é relevante, uma vez que existem associações específicas para estabelecimentos diferentes, que irão aderir ou não à lei. No entanto, sem obrigações legais de cumprir o protocolo, por exemplo.

    A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (ABRASEL), por exemplo, aponta que esta lei não diz respeito aos estabelecimentos que a organização representa. Ao buscar me informar sobre como a entidade vê a Lei 14.786/2023, fui informada que a Abrasel entende que a lei que institui o protocolo “Não é Não”, sancionada pelo presidente Lula no dia 29 de dezembro, é bem-vinda e ressalta que o esforço para combater a violência de gênero deve ser coletivo e não pode se restringir somente às boates e casas de show. Para isso, acredita que a educação é fundamental.

    A entidade defende que é importante que o Poder Público forneça ferramentas e metodologias para treinamento dos funcionários, de forma que consigam agir de maneira adequada diante de uma situação de constrangimento ou violência sexual. 

    A missão de combater essas situações de abuso não deve estar restrita somente às boates e casas de show, considerando que essa violência pode acontecer em diversos lugares, como no trabalho e no transporte público, por exemplo. “O protocolo é positivo porque nos coloca enquanto sociedade na posição de trabalhar o enfrentamento a esse problema e, evidentemente, punir os que cometerem abusos. Devemos fortalecer uma resposta coletiva para evitar que esse tipo de situação continue a acontecer em qualquer ambiente”, afirma o presidente-executivo da Abrasel, Paulo Solmucci.

    As modificações em relação a este artigo da lei, portanto, trazem diferentes nuances e problemáticas que devem ser questionadas e pensadas de forma mais ampla. Uma vez que tais modificações excluíram espaços sociais e culturais, é preciso que se compreenda que a aplicação do protocolo não está assegurado – e portanto não necessariamente temos uma ação rápida e que poderia gerar segurança de mulheres.

    No estado de São Paulo, a Lei nº 17.635 de 2023, dispõe sobre “a capacitação de funcionários de bares, restaurantes, boates, clubes noturnos, casas de espetáculos e congêneres, de modo a habilitá-los a identificar e combater o assédio sexual e a cultura do estupro praticados contra as mulheres”. Neste caso, a formação de funcionários é obrigação dos estabelecimentos. Além disso, é obrigatória a fixação de cartazes ou avisos sobre o atendimento e proteção à mulher em uma situação de risco.

    Neste caso em específico, em âmbito federal as campanhas e a formação são obrigação do poder público (Artigo 8º), enquanto no âmbito estadual são de obrigação dos estabelecimentos. E na lei estadual de São Paulo, não há protocolo estabelecido para socorrer e proteger as vítimas. São leis que versam sobre um tema próximo, mas com procedimentos (e, possivelmente, resultados) diferentes.

    Problematizações necessárias: vulnerabilidades e restrições

    Desde que a lei foi promulgada, alguns eventos importantes aconteceram e, além disso, outras questões anteriores já se faziam importantes (e se relacionam aos eventos recentes…). Falarei primeiramente do caso do ex-jogador de futebol Daniel Alves e, posteriormente, da cultura de estupro.

    Lei Solo Si es Si e protocolo No Callen, no caso de Daniel Alves

    O caso do ex-jogador de futebol Daniel Alves por estupro em um bar, em Barcelona, foi decorrência da aplicação do protocolo No Callem e da lei Solo Si es Si, comentada anteriormente. A vítima, ao final do julgamento, falando “acreditaram em mim” é a demarcação de um protocolo seguido – de não duvidar da vítima em relação à violência. Seguir o protocolo é, neste sentido, suporte e proteção imediata da vítima. Junto a isto, uma condição para apuração e investigação da violência.

    A presunção de inocência e a dúvida da existência da violência

    Grande parte dos casos de violência sexual – incluindo abusos e assédios – tem um entrave inicial para denúncias e investigações que é a palavra da vítima sendo colocada em questão. Estes atos intimidam, invalidam e fragilizam a vítima denunciante. Além disso, podem atrasar e dificultar a apuração dos fatos e investigação do caso, uma vez que há, antes de tudo, a dúvida se a denúncia de fato é pertinente.

    Perceba que a presunção de inocência do acusado não é colocada à prova ao se acatar uma denúncia. Mais que duvidar se a vítima foi mesmo vítima torna a denúncia frágil, por não se acreditar que a violência ocorreu. E são estas situações que o protocolo visa diminuir (e eventualmente acabar). Ao implementar um procedimento em que a vítima deve ser escutada e levada em consideração, a ideia é exatamente não duvidar de que uma violência ocorreu e criar a condição para que uma investigação aconteça.

    Dessa forma, nem tudo são flores e, como diz Fhoutine Marie, não… Nós não dormimos em um mundo de opressão e, quando acordamos, o feminismo finalmente venceu. Bem pelo contrário, como ficou muito evidente posteriomente, não basta que uma vítima seja escutada e a justiça condene. A precificação da liberdade – em especial quando se trata de uma violência sexual – traz à tona o quanto nossa sociedade ainda entende este tipo de violência como algo menor. E se vincula (e fortalece) o que conhecemos como cultura do estupro – temática que já abordamos em outros momentos por aqui…

    Cultura do estupro, perigos do bar e o mito da destruição da vida do acusado

    Quando vemos o debate acerca de estupro, violência sexual, assédio sexual ou abuso sexual, a horda que pergunta às vítimas “o que roupa estava vestindo”, “o que estava fazendo lá”, “por que não se defendeu” sempre se faz presente.

    Aparentemente, o mundo segue não sendo possível de se viver, sem que vítimas sejam postas em questão e mulheres possam existir sem riscos. Recentemente, quando eu vejo estes debates, não consigo pensar em nada mais além do vídeo de Jana Viscardi sobre “o álcool ser muito perigoso”.

    Tudo é muito perigoso, menos o agressor em si.

    Quando falamos de cultura de estupro, não estamos falando de casos isolados – e muitas vezes não estamos nem falando do ato do estupro em si. Mas dos inúmeros acontecimentos cotidianos de nossa cultura e sociedade, de culpabilização de vítimas da violência (em geral mulheres) e apoio a pessoas violentas (em geral homens).

    Falar em cultura é falar de tudo o que envolve a produção de sentidos, significados e identidades de uma sociedade. E cultura do estupro diz respeito ao quanto nossa sociedade normaliza a violência sexual.

    E a nossa sociedade normaliza a violência sexual todos os dias

    E o que tudo isto tem a ver com a Lei Não é Não? 

    Uma das surpresas da lei promulgada foi a retirada de alguns estabelecimentos da lei e, além disso, a centralidade (e necessidade) da venda de bebidas alcoólicas para validar a violência, no texto final da lei. Algumas questões ressoam continuamente para mim, citadas a seguir:

    • Ao acaso é apenas nestes casos que a violência acontece?
    • E nos cultos e festas religiosas, não existe violência sexual nunca?
    • De onde veio esta demarcação no texto final da lei?
    • Quais os efeitos sociais, na prática, da retirada de bares e restaurantes da lei?

    Ao que tudo indica, só é possível ocorrer violência sexual em espaços fechados, escuros e lotados, além de regados a bebidas alcóolicas. Tal como o imaginário social parece ainda imperar, tais violências não estariam presentes em espaços públicos amplos – incluindo cultos – em que todos têm intenções puras e não há lugar para algo tão grave impetrado contra mulheres. Será mesmo? Conforme apurado pela Agência Pública em 2019, a denúncia mais comum contra lideranças religiosas é de violência sexual. 

    A limitação de outros estabelecimentos também é uma questão. Faz sentido retirar estabelecimentos comerciais da adoção deste tipo de protocolo que protege vítimas de violência sexual? O texto do PL original trazia uma grande quantidade de espaços em que os protocolos deveriam ser adotados, não condicionando à venda de bebidas alcóolicas. 

    em discotecas ou estabelecimentos noturnos, eventos festivos, bailes, espetáculos, shows, bares, restaurantes, ou qualquer outro estabelecimento de grande circulação de pessoas”

    Dizia o texto original. Precisamos assumir que as vulnerabilidades à violência sexual estão em nossa sociedade. Não se restringem a atos isolados e lugares específicos, não são vinculados às ruas escuras. A violência se faz na rotina, no descrédito às vítimas, na necessidade da boa vontade de quem atende a denúncia, na compreensão de que a violência desdenha dos limites e fronteiras de estabelecimentos em que a versão final da lei descreveu.

    O que poderia ser uma importante etapa para debatermos uma mudança social acerca da cultura do estupro, parece ter-se tornado a delimitação de onde a violência ocorre, com disputa de poderes entre bancadas eleitas.

    Após a publicação do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e o Relatório Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, em 2023, em que a violência contra mulheres é notificada como a maior de todos os tempos, vemos se esvair o debate sobre a segurança em espaços públicos.

    Mais uma vez somos tomadas pelo sentimento de que não é (e nunca foi) sobre as vítimas que sofrem violência

    Para Saber Mais

    ABREU, R (2023) Relatório Projeto de Lei nº 3 de 2023, Apresentação: 01/08/2023 18:29:03.437 – PLEN PRLP 1 => PL 3/2023, PRLP n.1 Câmara de Deputados

    ARNT, AM (2018) Sobre a Cultura do estupro: senta aqui, vamos conversar, Blog PEmCie

    ___ (2020) Nós, Mulheres, como a cigarra: uma nota sobre a cultura do estupro, Revista Blogs Unicamp, V6, N11

    ___ (2022) Cultura do estupro, rotina e nossa existência cotidiana, Revista Blogs Unicamp, V8, N10. 

    BBC NEWS MUNDO (2022) “Solo sí es sí”: en qué consiste la nueva y polémica ley de consentimiento sexual en España, BBC NEWS MUNDO, 26 de Agosto de 2022.

    BRASIL (2023) Lei n. 14786/2023.

    ___ (2023) PL 2/2023, Propostas Legislativas, Câmara dos Deputados

    BUENO, S, MARTINS, J, LAGRECA, A, SOBRAL, I, BARROS, B, BRANDÃO, J (2023) O crescimento de todas as formas de violência contra a mulher em 2022, In: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, p136-145.

    BUENO, S, MARTINS, J, BRANDÃO, J, SOBRAL, I, LAGRECA, A (2023) Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil, In: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

    CANAL UOL (2024) Vítima de Daniel Alves chora ao ouvir sentença ‘eles acreditaram em mim’ UOL, 22 de Fevereiro de 2024

    FONSECA, B (2019) Governo registrou 167 denúncias de violação sexual por líderes religiosos em três anos, Agência Pública, 25 de Junho de 2019.

    FONSECA, PAA, ALVES, VL,  LIMA, LM (2017) Cultura do Estupro: uma análise de conteúdo sobre a percepção dos usuários via Twitter, Revista Idealogando, v1, n1, p75-84.

    LEOCADIO, B (2023) Projeto de Lei 2614/2023, Brasil, Congresso Nacional.

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    MARIE, FHOUTINE (2023) O feminismo publicitário venceu, agora ele precisa acabar, Interesse Nacional, 26 de Abril de 2023.

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    SOUZA, RF (2017) Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres, Revista Estudos Feministas, 25(1), 9-29

    TV CAMARA (s/d) Entenda o Processo Legislativo, Brasil TV Câmara

    VISCARDI, J (2023) O ÁLCOOL É MUITO PERIGOSO? | JANA VISCARDI

    Sobre quem escreveu

    Ana de Medeiros Arnt é Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência! 😉

    Como citar:  

    ARNT, Ana de Medeiros. (2024). Lei “Não é Não”: algumas ideias para pensar. Revista Blogs Unicamp, Vol.10, N.1, Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/lei-nao-e-nao-algumas-ideias-para-pensar/. Acesso em: DD/MM/AAAA

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Freepik [original]

    Letras e edição: clorofreela

  • A ilusão da Maioria

    Autoria

    Zero

    Oi, para quem não sabe, essa é a minha aparência (uma das).

    Mas porque estou falando disso?

    Pelo menos para mim, uma das maiores questões de sermos quem somos é o receio de como as pessoas intolerantes na sociedade reagirão. Um receio das sanções que posso sofrer, algumas violências diretas ou indiretas que podem se dirigir à mim. Porém ja faz bastante tempo que fortaleço uma ideia que me encorajou e acredito também poder encorajar outras pessoas em situações que tenham receio do que as pessoas intolerantes farão. Digo isso também às situações em geral que possam levar pessoas a terem receio de serem elas mesmas por conta de outras que são intolerantes, seja por etnia, crença, costume, preferências, etc.

    Agora acompanhe meu raciocínio, vamos considerar os indivíduos de uma sociedade representados na imagem abaixo. Os gatinhos como as pessoas que respeitam as outras, e os quadradinhos as intolerantes. Olhando o todo, vemos que há 10 gatinhos e 6 quadradinhos, logo os gatinhos são a maioria.

    Porém vamos acrescentar as conexões. Digamos que todos os quadradinhos nessa sociedade interajam somente entre si. Nesse caso, teremos uma rede assim:

     

    Na visão desses quadradinhos, a sociedade se resume ao seu perfil, por exemplo, que a sociedade seja cis-heteronormatividade. Embora estes quadradinhos não formem a maioria, eles estão conectados uns aos outros dando-lhes a impressão de estarem em contato com uma parte grande da sociedade, como numa bolha, onde todos ali pensam parecido e forma-se a crença de que tal pensamento seja o predominante.

    Contudo, a ilusão da maioria também pode afetar os gatinhos. Imagine que 5 gatinhos interajam com outros 5 quadradinhos, de modo que nenhum quadradinho interaja com mais do que 5 gatinhos.

    Neste cenário, cada gatinho tem a percepção de que a sociedade seja formada por 5 quadradinhos e 1 gatinho (ou seja, seu grupo representa 16% da sociedade), enquanto cada quadradinho tem a percepção de que a sociedade seja formada por 6 quadradinhos e 4 gatinhos (ou seja, seu grupo representa 60% da sociedade).

    Agora imagine que os outros 5 gatinhos decidiram interagir na sociedade, e passaram a se conectar cada um deles com dois quadradinhos, de modo que cada quadradinho não se conecte com mais do que dois novos gatinhos.

    Neste cenário, metade dos gatinhos tem a percepção de que a sociedade seja formada por 5 quadradinhos e 1 gatinho (ou seja, seu grupo representa 16% da sociedade), a outra metade dos gatinhos tem a percepção de que a sociedade seja formada por 2 quadradinhos e 1 gatinho (ou seja, seu grupo representa 33% da sociedade). Por outro lado, cada quadradinho agora tem a percepção de que a sociedade seja formada por 6 quadradinhos e 6 gatinhos (ou seja, seu grupo representa 50% da sociedade).

    Essa é a ilusão da maioria. Pois embora os gatinhos sejam a maioria da sociedade, eles se enxergam como minoria. Pois os quadradinhos estão representando pivôs de conexões. Podemos contextualizar melhor este cenário quando pensamos em alguns pivôs de conexões na nossa sociedade, como líderes religiosos, atores, atletas, influenciadores, jornalistas, artistas, divulgadores científicos e professores. Sim, professores são pivôs de conexões, por exemplo, esse semestre eu tive 140 alunos se encontrando pessoalmente comigo toda semana por períodos de 90 a 300 minutos.

    Mas como explicado, a ilusão da maioria ocorre devido as conexões existentes serem muito direcionadas à minoria, e por isso parecem ser a maioria. Para romper com esta ilusão é necessário que duas técnicas sejam aplicadas em simultâneo!

    • Aumentar as conexões
    • Furar as bolhas

    No nosso caso, fazer com que os gatinhos tenham interação com uma parcela maior da sociedade, descobrindo assim que há mais gatinhos do que quadradinhos. Ao mesmo tempo, fazer com que os quadradinhos interajam não só com outros quadradinhos.

    Embora essa pareça uma solução simples, ela é deveras complicada quando nos sentimos a minoria, quando temos receio de sofrermos algum tipo de violência, de sermos sancionados pelo simples fato de querermos ser quem somos.

    A ilusão da maioria tem ainda um viés mais obscuro, que envolve não só sentir-se minoria, mas buscar participar da aparente minoria. Desde alisar o cabelo, fingir ser cis-heteronormativo, negar suas práticas religiosas ou simplesmente usar vestimentas e cores que não lhe agradam.

    Enfim, além de não serem questões simples de se resolver, são até certo ponto perigosas, mas definitivamente necessárias. Eu como docente de matemática e atuando na divulgação científica, tento trazer esse tema para os espaços que ocupo, abrindo assim conexões à outros gatinhos que assim como eu, já se sentiram minoria frente a uma minoria de quadradinhos.

     

    Sobre quem escreveu

    Podem me chamar de Zero, fiz Licenciatura em Matemática pela USP, Mestrado na UNESP sobre a aprendizagem de Pensamento Computacional, Doutorado na UNICAMP sobre a aprendizagem de Demonstrações Matemáticas, Especialização em Informática Aplicada à Educação no IFRJ e atualmente sou docente de Matemática e curso Licenciatura em Química, ambos no IFRJ.

    Como citar:  

    SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. A ilusão da maioria. Revista Blogs Unicamp, Vol.10, N.1, Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/a-ilusao-da-maioria/. Acesso em: DD/MM/AAAA

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Gatos ferais no parque Kakaako – CC BY 2.0Por Daniel Ramirez no Flickr (original)

    Bandeiras: Canva Pro

    Edição: clorofreela

  • Uma palavrinha sobre estágio supervisionado

    Autoria

    Zero

    Nos cursos de licenciatura e pedagogia no Brasil, temos algumas disciplinas de estágio supervisionado, parte da sua carga-horária tem como objetivo que o estudante vá para a escola e acompanhe os docentes em exercício.

    A alguns anos entrei em discussão com familiares que por suas próprias razões decidiram fazer como segunda graduação pedagogia e licenciatura na área em que é bacharel. No primeiro caso, a pessoa já tinha muitos anos de experiência docente em outras áreas de atuação, e negociou por fora com seu supervisor de estágio para que fosse liberado de acompanhar suas aulas, e este concordou e emitiu o documento declarando que frequentou as horas necessárias no estágio. No segundo caso, a pessoa não tinha experiência docente e julgando ser uma ação dispendiosa, também conseguiu negociar por fora para que seu supervisor de estágio declarasse que frequentou as horas necessárias na sala de aula.

    Ao trazer esse tema para debate, os argumentos que ouvi em defesa dessas ações foram:

    • fulano já é docente experiente, não faz sentido que ele fique assistindo as aulas;
    • sicrano quer apenas o diploma;
    • se fosse remunerado eu iria;
    • são muitas horas desperdiçadas;
    • a pessoa não sabia que teria que fazer estágio;
    • a pessoa escolheu fazer licenciatura pois foi o único curso que ela conseguiu;
    • a pessoa vai aprender a ensinar independente do estágio;
    • se a pessoa trabalha e estuda, não terá tempo de fazer o estágio.

    Por muito tempo esse assunto ficou entalado, mas hoje decidi trazer pro blog. Quando fiz estágio, cumpri as horas à risca, frequentava as salas de aula, aguardava o intervalo, anotava no caderno o que acontecia na sala, fazia críticas sobre os docentes, sobre a sala, sobre o contexto todo, preparava a regência com base naquelas observações e sentindo o andamento da turma, e sem receber nenhum auxílio financeiro para isso, nem mesmo o transporte ou a alimentação eram fornecidos.

    Agora vamos para a resposta aos argumentos que escuto:

    Fulano já é docente experiente, não faz sentido que ele fique assistindo as aulas. Se a experiência docente já é na área em que está sendo feita a formação, deveria ser possível emitir alguma declaração da instituição que faça equivalência nessas horas a serem cumpridas. Mas a experiência docente por si em outra área não se equivale, isto é, as abordagens para ensino de matemática são diferentes daquelas para o ensino de química (estou fazendo licenciatura em química, então isso está mais do que evidente). Ainda que as disciplinas ou eixos curriculares tenham aspectos comuns, temos de considerar que na ocasião do estágio, estamos observando o trabalho de um profissional em exercício, assim, certamente há o que possamos aprender com isto.

    Sicrano quer apenas o diploma. Há nessa afirmação o interesse no título associado a essa formação, seja qual for a razão para esse interesse, ainda que nobre, coloca em xeque a garantia de que a certificação esteja sendo emitida com um controle de qualidade razoável. Isto não significa que querer o diploma seja errado, mas o “querer apenas o diploma” tem implícito a intenção de não cometer nenhum ato gravemente ilícito de modo que consiga seu nome timbrado no diploma daquela instituição. Pense assim, se houvesse 100% de certeza de que não seria descoberto e nem punido por isso, a pessoa com essa intenção emitiria seu diploma com as credenciais da instituição, já que não tem a intenção de passar por sua formação.

    Se fosse remunerado eu iria. Acho curioso como essa afirmação não se dá conta de que há uma carga-horária total no curso, e que o estágio cobre parte dela. Digo isso pois temos tantas horas de disciplinas e não somos remunerados para cursá-las, precisamos entregar certificados de atividades extra-curriculares equivalente também a um grande número de horas, e não há uma garantia de que essas horas gastas foram remuneradas. Contudo, a exigência de que o estágio supervisionado seja remunerado para realizá-lo, é inverter a relação de interesses nesse processo formativo. O interessado em se formar é o estagiário, não a instituição que o acolhe, e nos cenários que frequentei, o número de interessados é muito maior do que de instituições com vagas remuneradas disponíveis. Assim, por que esse argumento não se aplica com disciplinas teóricas? Ain… não vou assistir às aulas de Didática porque não sou remunerado para isso. Claro que preferiria ser remunerado para tudo, ter auxilio transporte, auxilio alimentação, mas a situação não é assim.

    São muitas horas desperdiçadas. Assistir a um profissional exercendo sua atividade com seu público-alvo e por vezes envolvido com os estagiários nestas ações é um tempo desperdiçado? Será que pensam que isso é verdade em estágios nas áreas de engenharia, arquitetura, enfermagem? Mas talvez aquele que afirme isso realmente esteja se visualizando como um profissional docente daqui a algum tempo. Digo isso pois há uma aprendizagem nesse ínterim, mas que dependerá do que o estagiário estará fazendo nestas horas. Se acompanhar a aula, observar, interagir, tomar nota e refletir sobre o evento, estará aprendendo muito, ainda que não seja uma aprendizagem quantificável em número de técnicas, quantidade de conceitos ou abordagens famosas.

    A pessoa não sabia que teria que fazer estágio. Quando nos inscrevemos em um curso de graduação, há uma série de documentos que são disponibilizados, dentre eles há o plano do curso, que delibera sobre as disciplinas, a carga-horária e outros requisitos. Para que a inscrição ocorra, assinamos dizendo que estamos cientes desses documentos, quer tenhamos realmente lido esses documentos ou não. Assim, a justificativa de que não sabia, remete a própria responsabilidade do individuo como um cidadão adulto em responder por si na sociedade (experimenta assinar algumas coisas no banco sem ler… veja se eles terão tanta pena de sua ingenuidade).

    A pessoa escolheu fazer licenciatura pois foi o único curso que ela conseguiu. De fato, os cursos de licenciatura de forma geral, costumam ter uma nota de corte menor, que permitem às pessoas acessá-los mais facilmente. Contudo, a escolha por cursá-los é espontânea, não há uma imposição que exigem à pessoa cursar esta graduação (diferente do serviço militar que é obrigatório). Assim, a decisão é voluntária, ainda que existam razões nobres por trás dela, não deveria caber a outros essa responsabilidade e suas consequências.

    A pessoa vai aprender a ensinar independente do estágio. Isso é verdade, definitivamente verdade. Assim como em outras áreas, o profissional aprenderá a exercer seu ofício mediante sua prática regular. A diferença é que podemos ter construções desmoronando e pessoas morrendo por conta dessa inexperiência. Mas parece que quando falamos em “ensinar”, os prejuízos que a inexperiência causa são minimizados, afinal não parece “ocorrer nada de grave” com isso, embora ocorra, e essas consequências serão percebidas (ou não) ao longo dos anos e de formas subjetivas. Razão esta, que reforça essa minização dos danos que a inexperiência em sala de aula ocasione. Digo que embora tenha feito os estágios certinho, quando entrei na sala de aula, ainda me sentia imatura e inexperiente, avaliando hoje minhas aulas de antigamente, considero-as muito ruins em comparação com hoje (isso não quer dizer que tenham realmente sido muito ruins, mas que hoje elas melhoraram bastante). O estágio assim serviu de uma base inicial dessa experiência, evitando assim que os danos ao meu público-alvo fossem maiores.

    Se a pessoa trabalha e estuda, não terá tempo de fazer o estágio. De fato, trabalhar, estudar e fazer estágio é algo bastante pesado para qualquer ser humano (ainda mais se considerarmos que há outras tarefas em casa a serem realizadas), mas daí entramos na questão de assumir um compromisso do qual não conseguirá cumprir. Se eu me comprometo a algo do qual não tenho condições de realizar, de quem é o erro? Digo isso, pois muitas vezes assumimos compromissos impossíveis por uma dificuldade em compreendermos nossas próprias limitações.

    Tive colegas de graduação que trabalhavam, estudavam, cuidavam de suas famílias, faziam PIBID e iam para o estágio… não sei que horas esses colegas dormiam, mas eles sabem seus próprios limites e julgaram conseguirem cumprir estes requisitos. Meus limites são diferentes dos seus, e das pessoas à nossa volta, há quem durma 4 horas por dia e está ótimo, há quem durma 10 horas por dia e vive com o corpo quebrado, há quem consiga estudar 10 horas seguidas, há quem estude 1 hora e precise descansar o resto do dia. Assim, essa questão não gira em torno do estágio, do trabalho e do estudo, e sim do quanto nos conhecemos antes de assumirmos um compromisso, para depois não culparmos o compromisso por nossa própria limitação.

     

    A discussão seguiu com um desfecho peculiar, pois quando devolvi a questão aos envolvidos sobre se eles na posição de docentes responsáveis pelo estágio supervisionado, viriam a permitir e deliberar que seus estudantes fizessem o mesmo que fizeram, a resposta foi negativa. Isto é, na hipótese de avaliarem seus próprios comportamentos, os mesmos não o aprovariam.

    Para concluir esse texto, enxergo que a resolução sobre como funcionam os estágios supervisionados é uma pauta de colegiados e reuniões sobre a estruturação de cursos e disciplinas, daquelas que com bastante sofrimento conseguimos reunir docentes dispostos a participar. Ao mesmo tempo, que ocupar uma cadeira para tais decisões seja o resultado de uma longa e insistente caminhada dentro de uma série de instituições e aderindo às suas normas, sem as quais as mesmas não viriam a qualificá-lo para que viesse ocupar este lugar. Em minha posição como docente de matemática, aderi à causa das provas escritas não serem compulsórias, isto é, que os alunos possam ser aprovados com conceito máximo, sem a necessidade de realizá-las. Essa é minha causa, da qual defendo e enfrento oposição, mas sigo insistente nessa direção.

    Em relação ao estágio supervisionado, não me coloquei até o momento em posição de discuti-lo, nem de votar a seu respeito, uma vez que leciono na graduação em Química, não estou envolvida nessas disciplinas. Mas acredito que sua proposta pedagógica possa sim ser repensada com alternativas para dispor de mais opções aos estudantes que precisem realizá-las, contudo isso é algo a ser reformulado de cima para baixo, ou seja, cabe ao docente repensar a forma como validará o período de estágio supervisionado e não ao estudante procurar meios diferentes para realizá-lo. Salvo é claro sugestões e propostas que venham a ser aderidas pelo docente.

    // Esse é um texto que demorei bastante tempo para maturar, e pensei muito sobre se deveria ou não postá-lo aqui. Embora não seja um tema diretamente ligado à matemática, é uma discussão que acredito auxiliar a posição de docente como profissional, e dessa forma ter seus processos formativos respeitados e zelados em prol de seu exercício adequado. Assim, eu como licencianda em química do IFRJ venho cumprindo as disciplinas das quais não consegui equivalência, realizando os processos avaliativos propostos e frequentando as aulas.

    Alguns de meus colegas me tratam com indiferença em sala de aula, outros fazem uso de mim como uma ponte entre a disciplina que lecionam e minha expertise, e tais relações são proveitosas, tanto para mim que posso acompanhar meus colegas em seu exercício no magistério superior, como para eles que visualizam oportunidades incomuns de conexões. Então para aqueles em particular adeptos à filosofia, que consideram não terem nada a aprender assistindo as aulas de outros profissionais no estágio supervisionado, optando assim pela desonestidade frente à essa disciplina, encerro este post com uma frase do escritor grego Esopo.

    Ninguém é grande demais que não possa aprender, nem pequeno demais que não possa ensinar

    Créditos da imagem de capa a 41330 por Pixabay

    Sobre quem escreveu

    Podem me chamar de Zero, fiz Licenciatura em Matemática pela USP, Mestrado na UNESP sobre a aprendizagem de Pensamento Computacional, Doutorado na UNICAMP sobre a aprendizagem de Demonstrações Matemáticas, Especialização em Informática Aplicada à Educação no IFRJ e atualmente sou docente de Matemática e curso Licenciatura em Química, ambos no IFRJ.

    Como citar:  

    SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. Uma palavrinha sobre estágio supervisionado. Revista Blogs Unicamp, Vol.10, N.1, Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/uma-palavrinha-sobre-estagio-supervisionado/. Acesso em: DD/MM/AAAA

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Por @assumption111 no Freepik (original)

    Edição: clorofreela

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