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  • Febre do Oropouche: Um Alerta Científico para a Região Norte do Brasil

    Autoria

    Mariene Amorim

    Aumento de casos de febre do Oropouche na região Norte

    O Brasil sofre com doenças causadas pelos arbovírus, que são vírus transmitidos por artrópodes, como os mosquitos. Caso exista alguma dúvida: de fato, estamos vivendo uma epidemia de Dengue, com incidência cerca de 2x maior que a observada no ano passado (Informe semanal de arboviroses). Outros arbovírus conhecidos são o Zika, Chikungunya e Febre Amarela. Mas hoje nós vamos falar sobre um vírus descoberto há mais de 60 anos, que causa doença em humanos, principalmente na região Amazônica. Dessa forma, esse é mais um vírus que causa uma doença que faz parte das chamadas “doenças tropicais negligenciadas”.

    Recentemente, em 2023, casos de uma doença de caráter febril transmitida por artrópodes têm sido diagnosticados nos estados do Amazonas, Roraima, Rondônia e Acre. 

    Trata-se da febre do Oropouche, já ouviu falar?

    Se você é da região norte do Brasil, provavelmente sim.

    Esse último surto, o qual ainda está acontecendo, já contabilizou mais de 2.000 casos. Até o dia 6 de março, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) contabilizou 1.821 casos no Amazonas, 172 em Rondônia, 51 no Acre e 12 em Roraima. A prefeitura de Manaus reportou 829 casos confirmados por critério laboratorial até o dia 2 de março de 2024 e o óbito de uma jovem, que apresentou infecção pelo vírus Oropouche (OROV) e que também estava com covid-19.

    Aqui vale ressaltar: a emergência e reemergência de arboviroses não é trivial. Dessa forma, serve de alerta para as intervenções humanas sobre o meio ambiente. Assim como para o descuido, carência em diagnóstico e a negligência em se entender o real impacto de muitas doenças tropicais.

    Entre o início de janeiro de 2024 e o dia 09 de abril de 2024 foram identificados 3.324 casos, divididos entre os estados da região Norte Amazonas (2.575),  Rondônia (592), Acre (110), Roraima (18), Pará (29). Um aumento de 400% em relação a 2023.

    Oropouche, que vírus é esse?

    Para entender a composição de um vírus, talvez seja importante entender que ele é divido em duas partes: o envelope e a partícula viral. No Oropouche o envelope é lipoproteico. Isto é, a parte de fora do vírus é uma camada composta por gordura (“lipo”) e proteínas (“proteico”).

    Já a partícula viral,  seu material genético, é de RNA de fita simples, dividido em três fragmentos: um pequeno (S), um médio (M) e um mais longo (L). A partícula possui glicoproteínas em sua superfície, e uma enzima responsável pela replicação viral, uma RNA polimerase RNA dependente (RdRp). Ou seja, uma enzima capaz de fazer molécula de RNA usando como molde uma outra molécula de RNA (Figura 1).

    Este vírus pertence à família Peribunyaviridae, junto com outros vírus causadores de doenças em seres humanos e animais. Foi descoberto em 1955, em um paciente febril na vila Vega de Oropouche em Trindade e Tobago. Desde então, já foram identificados surtos em países como Brasil, Peru, Colômbia, Guiana Francesa e Panama. Mais de 500 mil casos da doença foram reportados anteriormente. 

    Figura 1. Febre do Oropouche: partícula viral e sintomas comuns. S = fragmento pequeno, do inglês small; M = fragmento médio, L = fragmento longo; RdRp = RNA polimerase RNA dependente.

    É um número bem alto para uma doença infecciosa pouco conhecida, não acham? E não para por aí… 

    Estudos de vigilância imunológica, que avaliam a presença de anticorpos no sangue das pessoas indicando que houve uma infecção prévia, apontam que muitos outros casos podem ter passado despercebidos, sem diagnóstico, ao longo dos anos. Por exemplo, algumas regiões na Amazônia indicam uma alta soroprevalência (proporção de pessoas em uma população que têm anticorpos específicos em seu sangue, em um determinado momento), com até 50% das pessoas tendo anticorpos para Oropouche, indicando uma resposta à exposição prévia ao agente infeccioso.

    Características da Febre do Oropouche

    A doença, conhecida como febre do Oropouche, tem um período de incubação de 4 a 8 dias. Ou seja, desde a transmissão até o aparecimento dos sintomas. Os sintomas mais comuns são febre em torno de 39॰C, dores musculares (mialgia), dores nas articulações (artralgia), calafrios, náuseas, vômito e tontura.

    Além disso, algumas pessoas podem apresentar uma condição denominada fotofobia, que é quando os olhos se tornam muito sensíveis à luz, causando desconforto. Mas, também podem aparecer dor na região dos olhos, anorexia e fraqueza.

    Os sintomas duram em torno de 7 dias, sendo que aproximadamente 60% das pessoas podem apresentar recidiva (reaparecimento dos sintomas após um período de remissão ou recuperação) cerca de duas semanas depois, os quais podem voltar mais severos. Isto é, os sintomas podem voltar a aparecer como consequência desta infecção, não se configurando em uma nova infecção.

    Sintomas menos frequentes

    Sintomas menos frequentes descritos na literatura incluem fenômenos hemorrágicos como sangramento gengival e aparecimento de manchas vermelhas na pele, período menstrual intenso ou prolongado (menorragia) e aborto espontâneo.

    Por fim, o Oropouche é capaz de causar infecção no sistema nervoso central, como observado em surtos anteriores, com evidências também levantadas em estudos realizados em laboratório. Dessa forma, é importante ficar atento às dores de cabeça intensas. Este sintoma em particular torna-se relevante, uma vez que pode preceder o desenvolvimento de meningite asséptica ou viral. Assim, neste caso, os sintomas incluem rigidez no pescoço, tonturas, náuseas, vômitos, letargia, visão dupla (diplopia) e um movimento involuntário e repetitivo dos olhos (nistagmo), que podem persistir por até duas semanas.

    Apesar desta lista longa de sintomas (e alguns bem graves), a febre do oropouche pode ser tratada, sem deixar sequelas. Destacamos, nesse sentido, a importância da realização do diagnóstico e acompanhamento médico.

    Esse vírus tem grande potencial de disseminação?

    Primeiramente, vamos observar os dois ciclos de transmissão do vírus, como mostrado na figura 2. O Oropouche circula em regiões de floresta (ciclo silvestre), podendo infectar animais silvestres como preguiças, primatas não-humanos, pequenos roedores e pássaros. Os vetores do vírus, ou seja, os responsáveis por transmitir a doença, são mosquitos, que ainda são pouco estudados pela ciência.

    Além disso, o Oropouche também circula em áreas urbanas (ciclo urbano) em seres humanos, transmitido pela picada de pequenas moscas hematófagas, também conhecidas como maruim ou mosquito-pólvora. A espécie Culicoides paraensis, encontrada principalmente na região Norte do Brasil, é apontada como vetor principal (Figura 2). Os seres humanos, ao adentrar as florestas, podem contrair o vírus e levar para a área urbana, funcionando como uma “ponte” entre os dois ciclos (Figura 2).

    Figura 2. Os ciclos silvestre e urbano do vírus Oropouche.

    Figura 2. Culicoides paraensis, o maruim ou mosquito-pólvora. Créditos da imagem: Maria Luiza Felippe-Bauer, Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

    Figura 3. Culicoides paraensis, o maruim ou mosquito-pólvora. Créditos da imagem: Maria Luiza Felippe-Bauer, Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

    Sempre é relevante lembrar que as alterações severas no ambiente são parte do aumento de doenças como esta!

    Como as intervenções humanas sobre as florestas e vida silvestre tem se intensificado ao longo dos anos, as chances de aparecerem novos surtos também aumentaram. De fato, estudos apontam para um aumento do número de casos de Oropouche em regiões impactadas por queimadas e outras atividades que promovem o desmatamento.

    Agora temos um segundo ponto: os vetores. Além disso, sobre o C. paraensis já foi demonstrado que mosquitos mais comuns, como a espécie Culex quinquefasciatus (a famosa e insolente muriçoca), encontrada em diversas regiões do Brasil, nas Américas, entre outros continentes, também é um vetor potencial do vírus.

    Ou seja, precisamos ficar atentos, não é mesmo?

    Afinal, a diversidade de vetores pode favorecer a circulação do vírus além da região Amazônica. E casos de Oropouche já foram identificados em outros locais, como São Paulo, Bahia, Curitiba e mais recentemente no Rio de Janeiro, oriundos de viajantes que estiveram na região Norte. 

    Os rearranjos dos genomas e a variabilidade genética

    O universo dos vírus, assim como a sua história, é algo intrigante! E já sabemos o quanto é importante estudar a sua estrutura submicroscópica. Pesquisadores em Manaus conseguiram identificar uma particularidade no genoma do vírus Oropouche que está causando o surto atual.

    O que seria?

    Veja bem, depois da pandemia da covid-19, ficou claro que precisamos de uma vigilância genômica atrelada à vigilância epidemiológica, para acompanhar variações nos genomas virais que podem favorecer sua disseminação. E o que foi observado em amostras de Oropouche do surto atual foi uma variação genética em que houve um rearranjo dos segmentos virais, fenômeno conhecido como “rearranjo gênico”, do inglês reassortment

    Esse fenômeno pode acontecer entre vírus de genoma segmentado, em que duas partículas da mesma espécie, porém com algumas diferenças genéticas, infectam a mesma célula. Nesses casos, ocorre um rearranjo dos segmentos no momento da produção de novos vírus. Isso resulta na geração de descendentes virais híbridos, com uma combinação única de características genéticas (Figura 4).

    Figura 4. Rearranjo genético, ou reassortment. 

    É importante saber que isso pode ter um impacto no surgimento de novos surtos.

    Os vírus Influenza A, por exemplo, também são segmentados, podendo ocorrer rearranjo entre duas variantes, o que confere variabilidade genética. Esse evento é chave para o surgimento de novos vírus Influenza A causadores de grandes pandemias. 

    E o que sabemos sobre o aumento da variabilidade genética no contexto dos vírus?

    Sabemos que isso pode ocasionar alguns benefícios para o vírus, entre eles escape da resposta imunológica, ou até mesmo uma melhor adaptação a vetores, o que também é algo preocupante e precisa ser investigado!

    Mas esse assunto vai ficar para o nosso próximo texto!

    Sendo assim, vamos ficar alerta a emergência e reemergência das arboviroses, que são muitas. Você já conhecia a febre do Oropouche?

    Para mais informações

    Chiang, JO et al (2021) Neurological disease caused by Oropouche virus in northern Brazil: should it be included in the scope of clinical neurological diseases? Journal of NeuralVirology, v 27, p. 626–630.

    Naveca, FG et al (2024) Emergence of a novel reassortant Oropouche virus drives persistent outbreaks in the Brazilian Amazon region from 2022 to 2024. Virological

    Organização Pan-Americana da Saúde / Organização Mundial da Saúde. Atualização Epidemiológica: Oropouche na Região das Américas, 6 de março de 2024. Washington, D.C.: OPAS/OMS; 2024.

    Romero-Alvarez, D & Escobar, LE (2017) Vegetation loss and the 2016 Oropouche fever outbreak in Peru Mem Inst Oswaldo Cruz, v112, n4, p 292-298. 

    ___ Oropouche fever, an emergent disease from the Americas Microbes and Infection, v20, n3, p135-146.

    Secretaria Municipal de Saúde (Semsa Manaus) (2024) Boletim Arboviroses 2024. Semsa.Wesselmann, KM et al (2024) Emergence of Oropouche fever in Latin America: a narrative review, Lancet Infectious Disease, p1-14.

    Bonora Junior, M (2023) O que é Dengue?, Blogs de Ciência da Unicamp, EMRC.

    Sobre quem escreveu

    Mariene Amorim Natural de Salvador, Bahia, e biomédica formada pela Universidade Tiradentes – Aracaju, Sergipe. Mestre em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, na área de Virologia. Trabalha com vírus emergentes desde 2015. Atualmente é doutoranda em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, e participa de um estudo genômico-epidemiológico e de multi ômicas do novo coronavírus (SARS-CoV-2), a fim de acompanhar a evolução molecular do vírus, entender o desenvolvimento da COVID-19 e acompanhar o avanço da pandemia na cidade de Campinas e região metropolitana. Mariene também é membro da Força-Tarefa contra a COVID-19 da Unicamp.

    Como citar:  

    Amorim, Mariene. (2024). Febre do Oropouche: Um Alerta Científico para a Região Norte do Brasil. Revista Blogs Unicamp, Vol. 10, N.1. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/febre-do-oropouche-um-alerta-cientifico-para-a-regiao-norte-do-brasil/. Acesso em: DD/MM/AAAA 

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Reprodução de figura integrante da tese: Fauna de Culicoides (Diptera: Ceratopogonidae) do estado de Rondônia, Brasil / Luis Paulo Costa de Carvalho. — Manaus: [s.n.], 2016.

    Edição: clorofreela

  • Nyad reflete a bravura de uma nadadora na implacável travessia pelo Atlântico Norte

    Autoria

    Juliana Di Beo

    As estrelas estavam alinhadas a seu favor  para cruzar o Estreito da Flórida. A corrente do Golfo foi “minha amiga”, disse Diana Nyad, “desta vez tive sorte”. Nyad aos 64 anos se tornou a primeira pessoa a cruzar a nado os 166 km entre Cuba e Flórida sem uma jaula protetora contra tubarões. Em 2023, sua façanha foi adaptada em um live-action de tirar o fôlego que teve seu roteiro baseado na autobiografia de Nyad, “Find a Way”.

    O filme narra a saga desta nadadora destemida em duas horas de cenas emocionantes, que mostram a incansável e resistente Diana Nyad, um esforço sobrehumano. Ultrapassar limites, colocar sua vida a todo o tipo de risco que o oceano abarca, de vespas do mar, caravelas portuguesas e tubarões, até correntes marinhas e tempestades em alto mar para superar condições extremas para o corpo humano, por impensáveis 52 horas de travessia.

    Mas Nyad, de tanta persistência, preparou seu corpo para as adversidades do mar em um processo de aclimatação e para além dele, um preparo mental que levou trinta anos. Para marcar a passagem do tempo, a super atleta decorou uma playlist com mais de 85 canções, tendo o guitarrista canadense Neil Young como seu preferido e a frase da poeta estadunidense Mary Oliver como inspiração para sua persistência:

    “Me diga, o que você está planejando fazer com esta sua vida preciosa e selvagem?”.

    A força do oceano, a força humana 

    Toda a tensão dramática deste filme se passa no oceano em contato íntimo com a água, de tal forma que se pode experimentar o barulho das ondas e até o sabor salgado das águas. A fotografia do filme também impressiona por representar cenas em larga escala mostrando o ambiente marinho com sua profundidade e vastidão e ao mesmo tempo que mostra o íntimo da protagonista trazendo o espectador para perto da luta travada entre Nyad e o mar.

    Nyad concorreu ao Oscar 2024 pelas interpretações de Annette Bening e Jodie Foster – Imagem: Netflix

    O oceano é colocado em um lugar simbólico por onde mergulhamos junto com Nyad em seu destemido destino dual, por um lado desconhecido e perigoso, entendendo que o oceano não é apenas um local onde se faz uma travessia. Mas uma grande massa de água viva pulsante, que precisa ser respeitada e compreendida, pois pertence aos seres marinhos que ali habitam e que podem ser mortais para seres humanos. E por outro lado, conhecido e previsível, através dos conhecimentos que Nyad obteve enquanto nadadora e a expertise e persistência dos membros de sua equipe, sem a qual o feito seria impossível.

    São muitas as mensagens que podemos filtrar dessa longa travessia de Diana Nyad que deixaram certamente muitos espectadores emocionados pela forma como a atleta encara sua vida e seus sonhos. O filme traz os desafios da idade que podem ser superados com uma boa dose de determinação e uma rede de apoio, os conhecimentos e a tecnologia que permitem superar as difíceis condições marítimas e marinhas. 

    A cena de chegada de Nyad retrata o momento mais esperado do filme ao revelar que até em uma situação de extremo esgotamento físico, a nadadora encontra forças para seu discurso de vitória. Diana segue surpreendendo fora das telas, com palestras motivacionais e em um outro esporte, o tênis, com o qual conquistou em janeiro deste ano, com sua treinadora e amiga Bonnie, a taça Los Angeles Tennis Club over 65 Silver Fox.

    Parceria:

    Sobre quem escreveu

    Juliana Di Beo: sou bióloga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bolsista Mídia-Ciência Fapesp pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp. Atuo com comunicação científica para fortalecer a cultura oceânica e o acesso aberto ao conhecimento na Rede Ressoa Oceano.

    Como citar:  

    Di Beo, Juliana. (2024). Nyad reflete a bravura de uma nadadora na implacável travessia pelo Atlântico Norte. Revista Blogs Unicamp, Vol. 10, N.1. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/nyad-reflete-a-bravura-de-uma-nadadora-na-implacavel-travessia-pelo-atlantico-norte/ Acesso em: DD/MM/AAAA 

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Divulgação Netflix

    Edição: clorofreela

  • O bem-estar do povo brasileiro e o êxito econômico dependem da conservação do oceano

    Qual a importância da conservação marinha para o Brasil e seu desenvolvimento econômico e bem-estar da população?

    Autoria

    Juliana Di Beo

    Arquipélago de Trindade e Martim Vaz. Foto: Wikimedia Commons

    Levantamento inédito sobre a biodiversidade marinha e costeira brasileira e seus serviços ecossistêmicos alerta os tomadores de decisão sobre a importância econômica da preservação do oceano.

    Salvador (BA) – Milhares de fiéis comparecem à Praia do Rio Vermelho, com oferendas para Iemanjá, durante as comemorações de seu dia. Foto: Wikimedia Commons

    O sumário para Tomadores de Decisão do “1º Diagnóstico Brasileiro Marinho-Costeiro sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos” foi lançado no dia 23 de novembro pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) e pela Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano. O relatório reúne os principais resultados de forma contundente e objetiva que demonstram o papel do oceano na economia, no bem estar, na regulação climática e na geração de benefícios imateriais – relacionados à cultura, aprendizagem e experiências –  inestimáveis.

    As atividades econômicas relacionadas a regiões marinhas e costeiras respondem por 20% do Produto Interno Bruto nacional e abrangem setores distintos, como pesca, aquicultura, turismo, mineração e navegação. Por outro lado, a degradação a que o oceano vem sendo submetido ameaça os ambientes marinhos  – que abrigam a rica diversidade de espécies, responsável por sustentar processos ecossistêmicos que são a base dos benefícios providos pelo oceano.

    A fragmentação e a perda dos ambientes marinhos  – explica o diagnóstico – são causadas, sobretudo, pela transformação no uso do solo e do mar; poluição, sobre-exploração de recursos, ou seja, a exploração para além da capacidade de recuperação natural; a introdução de espécies exóticas invasoras e mudanças climáticas.

    Dentre os ambientes marinhos que são mais impactados, estão os manguezais que perderam 2% de área entre 2000 e 2022, praias e dunas sofreram diminuição de 15% entre 1985 e 2019, e as pradarias e gramas marinhas perderam entre 30 e 50% no período de 1980 até os anos 2010. A perda gradativa desses ambientes expõe a zona costeira aos danos intensificados ou provocados pela mudança climática, como erosão, aumento do nível do mar e tempestades.

    Trazer à luz a agenda oceânica

    O relatório sistematiza conhecimentos que não deixam dúvidas sobre a urgência de ações de conservação para reverter essa crise ambiental. Mas, para Alexander Turra, professor do Instituto Oceanográfico da USP e um dos autores do diagnóstico, ainda são poucas as ações dos tomadores de decisão para conservação oceânica.

    Nas palavras dele: “as pessoas e os tomadores de decisão estão mais preocupados com a temática porque isso vem sendo fortalecido no âmbito da sociedade e com isso eles se sentem pressionados. Pontualmente, vemos alguns tomadores de decisão trabalhando com isso de forma muito estruturada e consistente, mas não necessariamente isso é algo generalizado”.

    O estudo lança luz para a importância da implementação efetiva de políticas públicas para frear a degradação dos ambientes, segundo o diagnóstico “o futuro do oceano e da biodiversidade da zona marinha-costeira depende da implementação efetiva e da avaliação de políticas públicas com vistas à sua adaptação”.

    É preciso também de ações de divulgação e difusão da cultura oceânica, um movimento global que tem a intenção de fazer as pessoas reconhecerem a influência do oceano em suas vidas e a influência humana sobre o oceano, com potencial de engajamento da população tornando o conhecimento acessível e democrático. Além disso, o relatório enfatiza que o oceano sustentável depende da sinergia entre conhecimentos científicos e das comunidades tradicionais, pesqueiras e indígenas.

    “A valorização dos diferentes saberes e o fomento à pesquisa preencherão importantes lacunas de informação para a tomada de decisão, como a compreensão da estrutura e do funcionamento dos sistemas ecológicos e sociais, o monitoramento das tendências sociais e ambientais ao longo do tempo e o desenvolvimento de novas tecnologias para a inovação”, concluem os autores do relatório.

    Fonte: BPBES – Adaptado (cores)

    Agora é preciso que os tomadores de decisão pautem o relatório em suas ações políticas para consolidar uma agenda oceânica robusta. Turra comenta sobre este próximo passo, “espero que o relatório seja usado para trazer bastante objetividade na forma como a gente discute a temática de oceano, para que a transição para um oceano sustentável ocorra, considerando os princípios de governança que nós trazemos, e que aqueles indicadores, ou aquela situação que a gente colocou seja alterada.

    Eu também imagino que seria muito importante que a gente conseguisse fortalecer um sistema de indicadores que pudesse permitir uma variação mais periódica do que a gente traz no diagnóstico, que são as importâncias do ambiente marinho, as informações sobre biodiversidade que sustentam essas importâncias e os vetores que vão pressionar. Precisamos colocar isso em prática”.

    Parceria:

    Sobre quem escreveu

    Juliana Di Beo: sou bióloga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bolsista Mídia-Ciência Fapesp pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp. Atuo com comunicação científica para fortalecer a cultura oceânica e o acesso aberto ao conhecimento na Rede Ressoa Oceano.

    Como citar:  

    Di Beo, Juliana. O bem-estar do povo brasileiro e o êxito econômico dependem da conservação do oceano. Revista Blogs Unicamp, Vol.10, N.1, Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/o-bem-estar-do-povo-brasileiro-e-o-exito-economico-dependem-da-conservacao-do-oceano/, Acesso em: DD/MM/AAAA

     

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Por keemkai villadums no Pexels (original) e expansão generativa Photoshop

    Edição: clorofreela

  • Estudo traz primeiro registro de contaminação por microplásticos em morcegos

    Autoria

    Paulo Andreetto de Muzio

    O plástico é um produto barato, versátil e bastante difundido por todo o mundo. Seu descarte inadequado constitui um problema ambiental que cresce cada vez mais. Microplásticos já haviam sido encontrados em peixes, aves, água engarrafada e até mesmo no leite materno humano. Neste contexto, uma pesquisa recém-publicada apresentou o primeiro registro de morcegos contaminados por microplásticos.

    O morcegos são uma ordem de mamíferos bastante diversa, prestando serviços ecossistêmicos imprescindíveis, como a polinização, a dispersão de sementes e o controle de insetos (inclusive pragas agrícolas). Algumas espécies de plantas pioneiras necessárias à regeneração de áreas degradadas, por exemplo, são polinizadas e dispersas exclusivamente por morcegos.

    Desde 2017, foram analisados 81 morcegos de 25 espécies diferentes, que ocorrem em 26 pontos rurais e urbanos do estado do Pará, como áreas de vegetação natural, de plantação de cacau e dentro de cidades ou próximo a elas. Os resultados mostraram que 96,3% dos morcegos possuíam resíduos plásticos em pelo menos um de seus órgãos analisados: pulmões, estômago e intestino.

    Os microplásticos compreendem tamanhos micro (1 a 5 milímetros) e nano (menores que 1 milímetro). Os resíduos plásticos estão distribuídos em todos os ambientes, seja no ar atmosférico, seja no ambiente terrestre. Aqueles do tipo fibra são os mais abundantes no ambiente e provêm principalmente das roupas, da degradação das fibras têxteis plásticas. Esse produto de degradação tem sido observado na precipitação atmosférica, transformando-se em microfibras respiráveis, o que por si só sugere potencial exposição das microfibras a organismos que apresentam respiração pulmonar.

    O estudo acende um alerta, já que seres humanos e morcegos possuem sistemas respiratórios semelhantes, podendo ser suscetíveis a contaminações semelhantes. Ainda assim, nos resultados da pesquisa, houve uma diferença significativa entre a contaminações do sistema respiratório e do digestivo, sendo que o segundo foi mais afetado.

    A ingestão de microplásticos causam efeitos adversos em diferentes espécies, como alteração das funções endócrinas alteradas, diminuição da massa corporal dos filhotes e inflamação dos tecidos. Nas aves, causa desaceleração no desenvolvimento sexual. Em altas concentrações, podem ainda causar uma falsa sensação de saciedade, levando os indivíduos à fome. Além disso, microrganismos e metais podem aderir às superfícies dos microplásticos, sendo contaminantes adicionais. Nos morcegos, a ingestão e a inalação de microplásticos podem causar até a extinção local de espécies, afetando as funções do ecossistema, como como polinização, dispersão de sementes e controle de insetos.

    Os morcegos possuem diferentes características de forrageamento, considerando tanto o tipo de alimento (flores, frutos, invertebrados e vertebrados) e estratégia de captura (áreas abertas, clareiras, bordas de vegetação) e habitat (urbano ou intocado). Assim, a contaminação de morcegos insetívoros e onívoros pode ser explicada pela transferência de resíduos plásticos entre diferentes níveis tróficos. As microfibras também podem ser depositadas nas superfícies de frutas e organismos terrestres. Dessa forma, os morcegos podem absorver alimentos e inalar microfibras em aerossol, permitindo a contaminação por ingestão e inalação, respectivamente.

     

    Sobre quem escreveu

    Paulo Andreetto de Muzio é graduado em Relações Públicas (2005) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP. Especializou-se em Jornalismo Científico (2016) pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo – Labjor, da Universidade de Campinas – Unicamp, e é mestre em Divulgação Científica e Cultural (2020), também pelo Labjor. Atua na Frente Ampla Democrática Socioambiental (FADS).

    Como citar:  

    Muzio, Paulo Andreetto. (2024). Estudo traz primeiro registro de contaminação por microplásticos em morcegos. Revista Blogs Unicamp, Vol. 10, N.1. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/estudo-traz-primeiro-registro-de-contaminacao-por-microplasticos-em-morcegos/. Acesso em: DD/MM/AAAA 

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Morcego – CC BY 2.0 por Andy Morffew no Wikimedia Commons (original); identificado na wikipedia como Carollia perspicillata

    Recipientes plásticos – Imagem por rawpixel.com (original)

    Edição: clorofreela

  • De onde vem a hegemonia do dólar?

    Autoria

    Victor Augusto Ferraz Young

    Introdução

    Conforme havíamos prometido, este ano trataremos de recortes sobre a economia global contemporânea. Não temos a pretensão de explicar aqui o funcionamento do sistema capitalista e as relações que este determina entre os países que dele fazem parte. Buscaremos trazer as questões mais relevantes para instigar aqueles que se interessam pelo tema e nos procuram com suas dúvidas. Tratarei primeiramente do que considero fundamental para o funcionamento do atual sistema econômico global, ou seja, o uso do dólar estadunidense como o principal meio internacional para as trocas comerciais e operações financeiras que é, ao mesmo tempo, o principal ativo financeiro de reserva de valor. Pretendo apresentar, dessa maneira, como a centralidade do dólar no sistema internacional se deu por determinações político históricas.

    O Ouro e a Libra Esterlina

    Primeiramente, e de forma bastante suscinta, podemos dizer que, antes do advento de um sistema econômico com base no dólar, o principal meio para a conservação da riqueza e para as trocas comerciais e financeiras internacionais era o ouro. Havia, até o início do século XX, moedas de diferentes países que podiam ter seu valor cotado em ouro, sendo a libra esterlina a referência mais estável. Este era o chamado padrão-ouro ou padrão libra-ouro. Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a crise financeira internacional desencadeada alguns anos depois com a Quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929, este padrão monetário internacional deixou de ser predominante até o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), momento em que o Sistema Financeiro Internacional foi redefinido.

    A Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e o Dólar-Ouro

    O fim da Segunda Guerra Mundial marca, ao mesmo tempo, a emergência da hegemonia norte-americana sobre o bloco de países capitalistas e dá início ao antagonismo norte americano em relação ao bloco de países comunistas sob a liderança da então União Soviética, a chamada Guerra Fria. A constituição desse bloco passou a ser vista pelos Estados Unidos como uma ameaça vital a seus interesses e até mesmo à sua própria existência, já que sua forma de organização sócio-política não considerava a propriedade privada do capital e dos meios de produção.

    Os Estados Unidos, que não haviam passado pela destruição da guerra em seu próprio território, eram, por sua vez, uma potência vencedora que havia projetado sua marinha e exército por todo o globo terrestre. Eles detinham a tecnologia da bomba atômica, haviam renovado sua capacidade industrial e tecnológica, contavam com superávits comerciais crescentes, eram os maiores credores das potências econômicas sobreviventes e possuíam um estoque de ouro equivalente a 70% das reservas mundiais. Os americanos, dessa maneira, se empenharam na reconstrução do sistema capitalista e buscaram estabelecer sua liderança sobre a nova ordem capitalista emergente. O desenho dessa ordem levaria em conta o objetivo de enfraquecer e/ou anular a chamada ameaça comunista.

    A reconstrução dos países capitalistas exigia certo controle sobre as relações econômicas dentro do sistema, assim, a determinação do dólar como a principal moeda internacional foi elemento de fundamental importância nas conferências para reestruturação do sistema financeiro em Bretton Woods em 1944. Naquela convenção, a proposta do representante norte-americano, Harry Dexter White, estabeleceu que o dólar lastreado em uma certa quantia de ouro seria a divisa internacional balizadora para o valor fixo (mas ajustável) de outras moedas dos outros países que fizeram parte da reunião[1].

    Com o poder que detinham, os EUA impuseram o dólar como moeda internacional em contraposição a ideia de uma unidade monetária alternativa, o bancor, sugerida na conferência pelo economista e representante inglês, John Maynard Keynes[2]. Esta outra seria uma moeda internacional a ser emitida por uma entidade internacional multilateral, não estando, dessa forma, sob supervisão do banco central norte-americano. Naquele momento, os EUA fizeram valer sua força política e econômica e ficou estabelecido o padrão dólar-ouro como divisa chave para todas as operações comerciais e financeiras entre os países. A vantagem desse modelo ficava, obviamente, para a economia norte-americana, já que seu governo poderia, no futuro, dispensar superávits comerciais e empréstimos internacionais para conseguir recursos para comprar e/ou financiar qualquer coisa que desejasse no exterior. Ou seja, o Estado americano não precisaria necessariamente acumular reservas internacionais, bastaria, grosso modo, emitir a sua própria moeda.[3]

    Além do Dólar

    Em Bretton Woods, além do dólar-ouro, havia por parte dos norte-americanos a preocupação com a reconstrução de um sistema capitalista destruído física e moralmente. Era necessário superar a atração exercida pela ideia de igualdade comunista. Naquela conferência, estabeleceu-se que os fluxos financeiros seriam controlados unilateralmente pelos estados, eliminando a livre circulação de capitais e seus consequentes efeitos especulativos. Além disso, as taxas de câmbio seriam fixadas em relação ao dólar. Estas iniciativas visaram estabilizar no longo prazos as finanças e o comércio internacional, permitindo crescimento econômico mais rápido. Além disso, duas novas instituições de auxílio ao novo sistema foram criadas. No caso em que os países viessem a ter reiterados déficits no balanço de pagamentos com eventual falta de divisas fortes, tais países poderiam recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI) em busca de socorro financeiro.

    Para a reconstrução do pós-guerra e o financiamento do desenvolvimento econômico, os países requerentes poderiam buscar financiamento junto ao Banco Mundial. O que ocorreu, todavia, foi que estas novas instituições tiveram seus aportes, em grande medida, reaizados pelos próprios EUA o que as tornou na maioria das vezes dependentes de suas decisões. Os recursos alocados também não foram suficientes para os objetivos propostos e as futuras demandas. Depois da conferência, e ainda no sentido de evitar a ameaça comunista, os Estados Unidos criaram o Plano Marshall para ajuda econômica à Europa e os planos de ajuda econômica ao Japão que tinham como objetivo acelerar a recuperação desses países. As empresas norte-americanas não deixaram de penetrar nos mercados europeu e japonês, assim como, em função dos interesses geopolíticos, os EUA permitiriam a expansão e penetração das empresas daqueles países em seus mercados.

    O redesenho da estrutura financeira e comercial internacional com base no dólar-ouro depois de 1944 foi o que definiu, num primeiro momento, sua preponderância até os dias de hoje. Assim, a recuperação do sistema capitalista do pós-Segunda Guerra Mundial foi feita com o uso do dólar e definiu que esta moeda seria a forma da reserva de riqueza propriamente dita. Até que sua validade fosse questionada em momento posterior houve duas décadas ininterruptas de recuperação e desenvolvimento econômico nos principais países capitalistas e em outros em desenvolvimento. No próximo texto veremos como foi o fim da ordem de Bretton Woods, o fim do dólar-ouro e o início da ordem globalizada com o advento do dólar flexível.

     

    Referências:

    ANDERSON, Perry. A política externa norte-americana e seus teóricos. São Paulo, SP: Boitempo, 2015.

    EICHENGREEN, Barry J. A globalização do capital: uma história do Sistema Monetário Internacional. São Paulo, SP: Editora 34, c2000.

    HOBSBAWM, E. J. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1998, 1994.

    MAZZUCCHELLI, Frederico Mathias. Os dias de sol: a trajetória do capitalismo no pós-guerra. Campinas, SP: FACAMP, 2013.

    MEAD, Walter Russell. Special providence: American foreign policy and how it changed the word. New York, NY; London: Routledge, 2002.

    VAROUFAKIS, Yanis. O Minotauro Global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia global. São Paulo, SP: Autonomia Literária, 2016.

    YOUNG, Victor Augusto Ferraz. O Governo de Ronald Reagan (1981-1989) e a Consolidação da Nova Ordem Econômica Internacional. 2018. 1 recurso online (220 p.) Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia, Campinas, SP.

    [1] Uma onça troy de ouro (31,104 gramas) passaria a valer 35 dólares.

    [2] Temos vários textos sobre Keynes e suas ideias em nosso blog. Ver: As ideias fundamentais de Keynes; As propostas de reforma social de Keynes; e A Teoria Geral de Keynes: uma apresentação didática.

    [3] Os detalhes sobre este ponto específico veremos no próximo texto.

    Sobre quem escreveu

    Victor Augusto Ferraz Young, economista, pesquisador do Centro de Estudos de Relações Econômicas Internacionais (CERI) do Instituto de Economia da UNICAMP, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico nesta mesma Universidade, é professor de graduação da FACAMP.

    Como citar:  

    Young, Victor Augusto Ferraz. (2024). De onde vem a hegemonia do dolar? Revista Blogs Unicamp, Vol. 10, N.1. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/de-onde-vem-a-hegemonia-do-dolar/ Acesso em: DD/MM/AAAA 

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Moeda do fundo – reproduzida de coleção de moedas (original)

    Mapa-mundi de moedas – por Monstera Production no Pexels (original)

    Edição: clorofreela

  • E se você adicionar a PREP nas suas ações de 2024?

    Autoria

    Alexandre Borin

    O HIV e a AIDS são um desafio para a ciência e a saúde pública desde meados de 1980. Uma das formas mais eficazes conhecidas de prevenção é a PREP.

    O que é PREP?

    Desde o surgimento do HIV e da AIDS na década de 80, a ciência já avançou muito em relação ao entendimento, tratamento e prevenção da infecção. Uma das formas mais eficazes conhecidas atualmente é a PREP. Mas por que ela é tão importante?

    A PREP é a Profilaxia Pré-Exposição, e serve como uma medida preventiva frente a possíveis infecções pelo vírus da imunodeficiência humana, o HIV. Seu fornecimento acontece pelo Sistema Único de Saúde do Brasil desde 2017. Atualmente existem dois protocolos para o uso de PREP: A PREP diária e a PREP sob demanda. A aplicação dos protocolos dependem de uma análise de risco, feita junto ao médico, levando em consideração a vida de cada pessoa.

    A PREP diária é a administração de um comprimido por dia, de forma contínua. Ela não tem efeito imediato, por isso é importante estar atento às orientações do serviço de saúde.

    Já a PREP sob demanda possui recomendação apenas em casos específicos. Costuma ser realizada no esquema de 2 comprimidos em um período de 2 a 24 horas antes da relação sexual, + 1 comprimido 24 horas após a dose inicial de dois comprimidos + 1 comprimido 24 horas após a segunda dose.

    Mas qual a importância da PREP, se ela só protege contra o HIV?

    Apesar da PREP em si ser uma prevenção ao HIV, para fazer a retirada do medicamento é necessário um acompanhamento médico a cada 3 meses, que consiste em uma série de exames para teste de HIV, e detecção de outras infecções sexualmente transmissíveis além do acompanhamento do bom funcionamento do seu fígado e rins.

     

     

    Mandala de Prevenção Combinada / Ministério da Saúde

    É importante lembrar que além de tratamento, o diagnóstico e monitoramento de infecções é uma das principais medidas de saúde pública. A visita clínica para o encaminhamento para PREP não está isolada de outras medidas. Isto é, existe sempre o incentivo ao uso de preservativos e de sexo seguro e consciente. Além disso, nos postos de saúde há, disponível para retirada, camisinhas e lubrificante. Esse esquema é chamado de Prevenção Cruzada. Ela busca articular sexo seguro, reduzir os estigmas e preconceitos em relação ao assunto, e realizar o controle de ISTs.

    Pensar em estratégias de proteção cruzada são um avanço nas medidas de contenção da AIDS e na melhora da qualidade de vida de toda a população!

    Rolou uma emergência e talvez eu esteja exposto ao HIV.  E agora?

    Em casos de imprevistos ou emergências, em que a pessoa possa estar exposta a uma infecção pelo HIV, é possível solicitar atendimento nos postos de saúde para o tratamento com a PEP, a Profilaxia Pós-Exposição. Ela também é uma combinação de antiretrovirais. O que isso quer dizer? Antiretrovirais são remédios que impedem que o vírus se instale e se replique nas células, o que ocasionaria uma infecção.

    Para que seja eficaz, os medicamentos para a PEP devem ser tomados durante 28 dias ininterruptos. 

    Desse modo, a pessoa que enfrentou uma situação de risco deve iniciar o tratamento logo após a exposição de risco. Preferencialmente, nas duas primeiras horas após a exposição. Mas o tratamento pode ter início em até 72 horas. Lembrando mais uma vez que os medicamentos devem ser tomados durante 28 dias ininterruptos.

    Diferente da PREP, que é de uso contínuo, a PEP deve ser utilizada apenas em casos excepcionais.

    E como a PREP funciona?

    Cada frasco de PrEP contém 30 comprimidos de uma combinação de dois compostos, o Tenofovir e a Emtricitabina. Essa combinação foi utilizada inicialmente para o tratamento de pessoas com HIV (talvez você já tenha ouvido falar do TRUVADA). Além de ser usado nessa população, vários estudos já comprovaram que esse remédio pode proteger as pessoas se tomado de maneira preventiva.

    Os dois compostos que compõem a PrEP atrapalham uma enzima do HIV, a transcriptase reversa. Ao impedir o funcionamento da transcriptase reversa, o DNA viral não será incorporado ao DNA da célula. Dessa forma, não será possível realizar a produção de novas partículas virais, impedindo que o HIV consiga se multiplicar nas células das pessoas.

    A novidade é ela, a PrEP injetável!

    A ANVISA aprovou em junho um novo tipo de PrEP, o cabotegravir. Ele é um medicamento que afeta outra enzima, a integrase. Ao impedir o funcionamento correto dessa enzima, ele impedirá que o DNA viral se integre ao DNA humano.

    Portanto, este medicamento atua em uma etapa diferente do ciclo de replicação do vírus. Além disso, ele é um medicamento injetável, que possui como atual recomendação a aplicação a cada 2 meses. Isso é ótimo para quem tem problemas em conseguir a rotina de tomar a PrEP de maneira contínua. O cabotegravir também está disponível em comprimido oral. No entanto, apenas para avaliação da tolerabilidade dos efeitos do medicamento e em casos de emergência para quem perdeu a dose programada da injeção.

    A PrEP tem efeitos colaterais?

    Assim como todo remédio, a PrEP pode causar efeitos colaterais. Mas sua frequência é baixa e possui pouca relevância em relação aos benefícios que a prevenção traz. A maioria dos efeitos acontecem na fase inicial, e podem ser dor de cabeça, dor de estômago, perda de apetite, náuseas, flatulência, dentre outros. Os efeitos, caso ocorram, desaparecem em poucos meses. Todavia, em casos de permanência, recomenda-se procurar o atendimento médico. Em alguns casos raros, também podem acontecer alterações no fígado e nos rins, por isso é importante o acompanhamento regular do serviço de saúde.

    Qualquer um pode usar PrEP?

    Não! Como falamos, o uso de PrEP deve realizar-se apenas com acompanhamento médico. Dessa maneira, torna-se necessária uma avaliação para saber se você, ou a pessoa que buscou o atendimento médico, se encaixa nas situações com recomendação desse tipo de prevenção. No quadro abaixo, apresentamos alguns exemplos.

    Algumas situações que podem indicar o uso da PrEP segundo recomendação do Ministério da Saúde:

    – Homens que fazem sexo com homens (HSH), travestis e mulheres transexuais

    – Frequentemente deixa de usar camisinha em suas relações sexuais (anais ou vaginais);

    – Faz uso repetido de PEP (Profilaxia Pós-Exposição ao HIV);

    – Apresentar histórico de episódios de Infecções Sexualmente Transmissíveis;

    – Contextos de relações sexuais em troca de dinheiro, objetos de valor, drogas, moradia, etc.

    – Chemsex: prática sexual sob a influência de drogas psicoativas (metanfetaminas, Gama-hidroxibutirato (GHB), MDMA, cocaína, poppers) com a finalidade de melhorar e facilitar as experiências sexuais.

    Usando PrEP ou não, não deixe de pensar na sua saúde e na prevenção e diagnóstico de ISTs neste novo ano!

    Saiba Mais!

    Ministério da Saúde, Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis:

    Serviços de Saúde por estado

    Prevenção combinada

    PEP (Profilaxia Pós-Exposição ao HIV)

    Ministério da Saúde, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)

    Anvisa aprova novo medicamento para prevenção do HIV

    São Paulo, Secretaria de Saúde

    Informações sobre PrEP

    Outras Informações

    CDC

    About PREP

    Pre-Exposure Prophylaxis (PrEP)

    Sobre quem escreveu

    Alexandre Borin, ou Koda, é biólogo, doutorando em genética e biologia molecular pela UNICAMP. Trabalha com vírus transmitidos por mosquitos e faz Divulgação Científica em diferentes redes sociais.

    Como citar:  

    Borin, Alexandre. E se você adicionar a PREP nas suas ações de 2024? Revista Blogs Unicamp, Vol.10, N.1, Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/e-se-voce-adicionar-a-prep-nas-suas-acoes-de-2024/. Acesso em DD/MM/AAAA.

     

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Renderização 3D de comprimidos da PREP por niphon no iStock (original) e expansão generativa Canva.

    Edição: clorofreela

  • Clima de eleição: adaptação climática estará nas propostas dos candidatos?

    Autoria

    Jaqueline Nichi

    A agenda dos candidatos a prefeitos e vereadores, na eleição de 2024, engloba diversos temas complexos com intersecção com o clima e meio ambiente, como saneamento, saúde e redução da poluição, segurança alimentar, gestão dos resíduos sólidos, transporte público, áreas verdes e eficiência energética.

    É quase impossível medir a sensibilidade ao tema dos milhares de candidatos que disputam prefeituras ou câmaras municipais no país, mas com base nos últimos pleitos, os temas ambientais ainda não são centrais nas campanhas da maioria dos aspirantes ao comando das cidades brasileiras.

    Nos últimos anos, o tema começa a ganhar relevância nas propostas que todos têm de apresentar ao registrarem suas candidaturas. E a população está cada vez mais atenta aos indicadores socioambientais que impactam diretamente as suas experiências como cidadãos. Em 2023, mais de 5 milhões de brasileiros, ou 7 em cada 10 cidadãos, foram afetados pelo impacto das chuvas e das secas no ano mais quente já registrado na história, segundo a Pesquisa Ipec encomendada pelo Instituto Pólis.

     

    Esta compreensão é ainda mais importante no Brasil de 2024, após um histórico de governo federal que agiu na contramão da agenda ambiental. O aumento dos riscos decorrentes das variações climáticas, como inundações e deslizamentos cada vez mais recorrentes, não nos deixa esquecer que um grande esforço coletivo e político precisa ser colocado em prática.

    A edição 2021 da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que apenas 390 dos 5.570 municípios do país têm alguma legislação sobre adaptação e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.

    A próxima eleição, portanto, não permite mais a inação ao custo de vidas, especialmente de pessoas em comunidades vulneráveis, mais propensas aos impactos negativos do clima. Em 2024, só no primeiro mês do ano, mais de 100 mil pessoas foram afetadas pelas chuvas na região metropolitana do Rio de Janeiro, resultando em 12 mortes​​. Porto Alegre também enfrentou inundações, deixando 1,3 milhão de pessoas sem energia.

     

    O que isso significa em ano de eleições?

    Os desastres ambientais e climáticos têm relação direta com a administração das cidades no Brasil. Os centros urbanos estão entre os principais agentes do aquecimento global, por emitirem a maior parte dos gases de efeito estufa. Ao mesmo tempo, são os espaços mais impactados por eventos extremos, devido à alta densidade populacional e baixa infraestrutura adaptada às alterações do clima.

    Embora algumas políticas ligadas ao combate à mudança climática sejam compartilhadas entre o ente federal, estados e municípios, é papel dos governos municipais gerir a drenagem urbana, zeladoria, mobilidade, moradia e gestão e uso do solo. Câmaras municipais podem propor leis e políticas que melhor preparem seus municípios para eventos extremos ou aperfeiçoem normas ligadas ao tema, como é o caso dos planos diretores e leis de uso e ocupação do solo.

    Moradores retiram móveis e objetos danificados com a chuva em comunidade carioca.

    Foto: Márcia Foletto

    É certo que os eleitores continuarão a valorar outras pautas emergentes, como o desemprego, a saúde, a segurança e a inflação. Mas essas questões têm, de forma cada vez mais evidente, ligação direta com as mudanças climáticas. Os preços dos alimentos variam conforme as secas, a saúde pública precisa lidar com novos vírus e epidemias relacionadas à mudança de habitat de animais selvagens, e a economia pode se beneficiar com a criação de empregos verdes.

    Outro tema fundamental nestas eleições é acatar as evidências científicas e rejeitar as notícias falsas que os negacionistas do aquecimento global costumam propagar. Nessas próximas eleições, o acesso a informações qualificadas e confiáveis para melhor analisar os candidatos é de suma importância. Por isso, é preciso votar com consciência e exigir planos de adaptação com base na avaliação de vulnerabilidades dos municípios com estratégias e medidas específicas para lidar com os riscos identificados.

     

    Referências:

    MUNIC, Informações Básicas. Perfil dos municípios brasileiros. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 2021. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/df/brasilia/pesquisa/1/74454?ano=2021

    IPEC. Crise Climática – Pesquisa de Opinião Pública. 2023. Instituto Polis. Disponível em: https://polis.org.br/estudos/crise-climatica-pesquisa-de-opiniao-publica/

     

     

    Sobre quem escreveu

    Jaqueline Nichi é jornalista e cientista social. É doutora em Ambiente e Sociedade pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM-UNICAMP) e mestre em Sustentabilidade (EACH-USP). Sua área de pesquisa é centrada nas dimensões sociais e políticas das mudanças climáticas, adaptação e planejamento urbano e governança multinível e multiatores.

    Como citar:  

    Nichi, Jaqueline. (2024). Clima de eleição: adaptação climática estará nas propostas dos candidatos? Revista Blogs Unicamp, Vol. 10, N.1. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/clima-de-eleicao-adaptacao-climatica-estara-nas-propostas-dos-candidatos/ Acesso em: DD/MM/AAAA 

    Sobre a imagem destacada:

    Ilustração digital e edição: clorofreela

  • Esse povo imprica com quarquér coisa…

    Autoria

    Beatriz Sayuri Higuti e Viviane Carvalho

    Por: @Guinanet – CC BY 2.0 DEED – Attribution 2.0

     

    Você sabia que essa “troca” é um fenômeno fonológico muito comum na história do português?

    Os linguistas deram até um nome pra ele e mostraram que todo esse estigma é, na verdade, um tipo de preconceito linguístico.

    Existem casos em que crianças em fase de aquisição de sua língua trocam sons durante muito tempo sem que esta seja uma característica do sotaque das pessoas que estão à sua volta. Porém, em alguns dialetos, é muito comum que os falantes “troquem” o L pelo R e pronunciem naturalmente, palavras como “crima” no lugar de “clima”, “sór” no lugar de “sol” e por aí vai.

    E mesmo que essa troca seja comum em alguns dialetos, muitas pessoas (inclusive alguns professores de língua portuguesa) afirmam que esse modo de falar é “errado” e deve ser corrigido a todo custo – quase como se esse modo de falar fosse um indício de distúrbios articulatórios, mas este não é o caso aqui, como veremos a seguir.

    O podcast SciKids responde uma pergunta mencionando o distúrbio articulatório: por que os balões em que o Cebolinha pensa estão com R e não com L?

    POR QUE ESSA TROCA ACONTECE?

    A fonologia é a área de estudos da Linguística que se interessa pelos fonemas, pelos sons (ou gestos no caso de línguas de sinais) presentes em uma língua.

    Em português, por exemplo, temos, dentre vários outros, os fonemas L ou U (/l/ ou /w/) e R (/r/), que se diferenciam no sistema dessa língua. Desse modo, “calo” e “caro” são palavras diferentes, assim como /mal/ e /mar/, justamente porque, para nós, esses dois pares de fonemas são diferentes. 

    O que acontece (e bastante!) na língua portuguesa é que, em alguns dialetos, tanto o fonema L (mais tecnicamente /l/) no meio da sílaba quanto o fonema U (/w/, oriundo de /l/) no final da sílaba são produzidos como o fonema R (/r/).

    Os linguistas chamam esse fenômeno de rotacismo.
    Vejamos alguns exemplos:

    • cli-en-te -> cri-en-te 
    • bi-ci-cle-ta -> bi-ci-cre-ta 
    • cal-do -> car-do
    • al-to -> ar-to

     

     

    E O QUE A HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA TEM A NOS DIZER SOBRE ISSO?

    A Linguística Histórica é a área que estuda a história das línguas: seu surgimento, suas mudanças e, em alguns casos, seu desaparecimento. Graças a essa área sabemos que o português é uma língua românica, ou seja, surgiu a partir do latim (mais especificamente, do latim popular). E desde esse surgimento, os falantes nativos de português já realizavam o rotacismo. São diversos os exemplos de palavras que, em latim, eram pronunciadas com L (/l/) no meio da sílaba e em português passaram a ser pronunciadas com R (/r/): 

    • blandu (latim) > brando (português)
    • clavicula (latim) > cravelha (português)
    • flaccu (latim) > fraco (português)
    • gluten (latim) > grude (português)
    • plancto (latim) > pranto (português)

    Tão disseminado foi o processo que, em “Os Lusíadas” de Luís de Camões (em domínio público), é possível encontrar várias palavras que hoje são, de modo geral, pronunciadas com L (/l/) escritas com R (/r/). Este é um grande indício de que, no século XVI, de fato se falava assim:

    “E não de agreste avena ou frauta ruda, 
    Mas de tuba canora e belicosa” (Canto I) 
    “Algüas, harpas e sonoras frautas; 
    Outras, cos arcos de ouro, se fingiam” (Canto IX) 
    “O frecheiro que contra o Céu se atreve 
    A recebê-la vem, ledo e contente” (Canto IX)

    Muitos anos depois disso, no século XX, diversos linguistas e filólogos, como Amadeu Amaral, estudaram o dialeto caipira do estado de São Paulo. Nesse dialeto, formas como “fror (flor)” (conservada do português mais antigo), “mér (mel)” e tantas outras que ouvimos/produzimos até hoje já eram muito comuns.

    Portanto, é certo afirmar que o rotacismo faz parte da própria história da língua portuguesa. 

     

     

    ENTÃO POR QUE ESSE ESTIGMA?

    Em qualquer sociedade, os grupos sociais se distinguem pela forma como falam, ou seja, têm uma norma linguística própria, que faz os falantes se identificarem uns com os outros e se sentirem pertencentes ao grupo (Faraco, 2002)

    Na escola, o objetivo dos professores de português é ensinar a norma padrão, porque a padronização é importante (principalmente para um país de tamanho continental como o nosso). É preciso que os alunos saibam seus direitos e deveres como cidadãos e consigam se posicionar diante de injustiças sociais.

    Mas o problema surge quando as pessoas afirmam que apenas a norma padrão deve ser utilizada e criticam qualquer coisa que não pertença a essa norma, como o rotacismo no dialeto caipira. Esse modo de pensar é, na verdade, preconceituoso, porque, como mostramos neste post, não tem fundamento no sistema próprio da língua. 

    Portanto, para combater esse e outros tipos de preconceito linguístico é preciso uma mudança de atitude: respeitar o conhecimento linguístico de todo e qualquer falante, valorizando o que ele já sabe, e reconhecer na língua que ele fala a sua própria identidade como ser humano. 

     

    Para Saber Mais

    AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. São Paulo: Iba Mendes, 2019 [1920]. BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 2007 [1999]. 

    BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola, e agora?: sociolingüística & educação. Parábola, 2005. 

    ESPÍRITO SANTO, Júlia Maria França. Entre o campo e a cidade: rotacismo em São Miguel Arcanjo. Dissertação (Mestrado em em Linguística) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. p. 116. 2019.

    FARACO, Carlos Alberto. Norma-padrão brasileira: desembaraçando alguns nós. In: BAGNO, Marcos (org.). Lingüística da norma. São Paulo: Loyola, 2002. p. 37-61.

    Sobre quem escreveu

    Beatriz Sayuri Higuti e Viviane Carvalho são alunas do curso de graduação em Linguística da Unicamp

    Como citar: 

    Higuti, Beatriz Sayuri e Carvalho, Viviane. (2024). Esse povo imprica com quarquér coisa… Revista Blogs Unicamp, Vol.10, N.1, Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/esse-povo-imprica-com-quarquer-coisa/. Acesso em: DD/MM/AAAA

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Colagem com bocas em movimento (Freepik – original) e elementos ilustrados.

    Edição: clorofreela

  • Revista Blogs Unicamp se inspira na relação entre Educação, Ciência e Arte, tema do III EBDC | editorial n. 10 v.1

    Adicione o texto do seu título aqui

    Autoria

    Jaqueline Nichi

    Querides leitores, 

    É com grande entusiasmo que apresentamos a mais recente edição da Revista Blogs Unicamp e a primeira de 2024, que surge em meio aos preparativos para o aguardado III Encontro Brasileiro de Divulgadores de Ciência (EBDC). Marcado para acontecer de 15 a 17 de novembro no Instituto Principia, em São Paulo, este evento representa um marco fundamental para a comunicação científica em nosso país, reunindo uma diversidade de profissionais, pesquisadores, estudantes e interessados nesse campo.

    Com o tema central “Educação, Ciência e Arte”, o III EBDC promete proporcionar um espaço rico em debates, trocas de experiências e reflexões fundamentais para o avanço da divulgação científica no Brasil. Convidamos a todos a participarem. As inscrições para a submissão de trabalhos estão abertas até 26 de maio no site do evento.

    Mas nem só de evento vive esse editorial…

    Nesta edição da revista, preparamos uma cuidadosa seleção de conteúdos que refletem a diversidade e a qualidade da ciência brasileira. Destacamos o artigo da nossa autora convidada, a biomédica Mariene Amorim, que nos alerta sobre a febre do Oropouche e sua repercussão na saúde pública, especialmente na região Norte do Brasil. A disseminação desse vírus demanda uma resposta coordenada das autoridades e pesquisadores, visando prevenir e controlar futuros surtos.

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    Em nosso artigo de capa, abordamos o atual cenário político brasileiro em ano de eleições municipais, com uma análise desta autora sobre a importância da adaptação climática nas propostas dos candidatos e o crescente protagonismo das questões ambientais nas agendas eleitorais.

    A conservação dos oceanos também recebe destaque com reflexões provocativas de Juliana Di Beo sobre a interligação entre o bem-estar da população brasileira, o sucesso econômico e a preservação dos nossos mares, além da abordagem de Ana de Medeiros Arnt sobre a relevância da Lei “Não é Não” na proteção dos direitos individuais das mulheres brasileiras.

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    Outros temas relevantes são explorados em artigos que incluem a contaminação por microplásticos em morcegos, a inclusão da PrEP nas ações de 2024 e os desafios do estágio supervisionado.

    As duas resenhas desta edição também oferecem reflexões instigantes. Leonardo Dias Nunes analisa a obra “A fratura brasileira do mundo: visões do laboratório brasileiro da mundialização, de Paulo Arantes” e discute a “brasilianização do mundo” e sua relação com a precarização do trabalho. Já Juliana Di Beo narra a coragem da nadadora Nyad em sua histórica travessia pelo Atlântico Norte aos 60 anos, em filme homônimo estrelado por Annette Benning. 

    Por fim

    Esperamos que esta edição seja uma fonte inspiradora de conhecimento para nossos leitores, contribuindo para um debate informado e consciente sobre os temas que moldam nosso mundo. Agradecemos a todos os autores, colaboradores e leitores por fazerem parte desta jornada para valorizar e ampliar a divulgação científica no Brasil.

    Boa Leitura!!

    Sobre o editorial

    O texto editorial foi escrito por Jaqueline Nichi, jornalista e editora da Revista Blogs Unicamp, doutora em Ambiente e Sociedade pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM/UNICAMP) e blogueira da rede no Blog Natureza Crítica.

    Como citar:  

    Nichi, Jaqueline (2024). Revista Blogs Unicamp se inspira na relação entre Educação, Ciência e Arte, tema do III EBDC. Revista Blogs Unicamp, V.10, N. 01. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/editorial-v10-n1-2024/.  Acesso em DD/MM/AAAA

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    Descubra o futuro na economia espacial! Exploramos dimensões atuais, mudanças desde o século XX e conexão com a transformação digital.

  • Lei “Não é Não”: algumas ideias para pensar

    Autoria

    Ana de Medeiros Arnt

    Durante a primeira semana de janeiro de 2024, muitos veículos de comunicação noticiaram a nova Lei n. 14786/23, promulgada no dia 28 de dezembro de 2023. A lei cria o protocolo “Não é Não” e trata da prevenção ao constrangimento e à violência contra a mulher e proteção à vítima. 

    No entanto, houve questionamentos acerca da lei, alguns deles irei esclarecer abaixo, em 5 itens. Considerando que o texto é mais longo que o usual, em função de eu trazer trechos da lei e outros documentos, se teu interesse for de um assunto mais específico, podes ir direto ao tópico marcado! 

    (1) não é não, (2) protocolo e lei 14.786/23, (3) PL 03/2023 e Relatório do PL, (4) problematizações acerca da Lei e, por fim, (5) falar sobre cultura, misoginia e violência contra a mulher.

    Não é não

    “Não é não” é uma frase afirmativa que podemos chamar de clássica dentro de qualquer campanha de proteção à mulher nos últimos anos. Ela parte do pressuposto de, a partir de uma frase curta, comunicar um ato básico de respeito. “Quando se diz não, queremos dizer NÃO”, e a partir disso, é preciso que se respeite como uma decisão da pessoa. Parece simples, mas dentro de uma cultura extremamente machista, sabemos que nem sempre mulheres são compreendidas e respeitadas a partir de suas escolhas e decisões sobre seus próprios corpos.

    Uma lei que busca implementar um protocolo de ação, a partir desta frase emblemática, diz ao que veio de maneira simples e rápida: é uma lei cujo princípio é proteger a mulher e suas decisões.

    O que é um protocolo?

    Protocolo nada mais é do que um conjunto de prescrições a serem seguidas, com um passo a passo. Um exemplo bem banal do cotidiano que pode ser entendido como protocolo são receitas. Sim! Fazer comida seguindo uma receita ao pé da letra é um protocolo. Há ingredientes que precisam de uma medida correta e uma ordem para serem misturados. Se nós mudamos a ordem, ou mudamos as medidas, tudo pode dar errado.

    Pois bem, protocolo é um conjunto de regras, organizadas para serem seguidas como um passo a passo, para que um determinado resultado seja alcançado. Os protocolos são importantes, dentro do campo jurídico, tanto quanto científico, exatamente por serem passíveis de serem conferidos. Com isso, sabemos em que ponto algo pode ter falhado, pois podemos conferir cada etapa de execução das nossas ações.

    Dito isso, vamos entender agora qual a relação entre essa noção de protocolo, na Lei 14.786/23.

    Onde será implementado o protocolo, segundo a lei?

    No caso da Lei 14.786/23, o objetivo é implementar um protocolo, chamado “Não é não”, tal como consta no Artigo 2º:

    O protocolo “Não é Não” será implementado no ambiente de casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica, para promover a proteção das mulheres e para prevenir e enfrentar o constrangimento e a violência contra elas.

    Parágrafo único. O disposto nesta Lei não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa. (grifos nossos)

    O que caracteriza constrangimento e violência?

    Já no Artigo 3º, existe a definição de constrangimento e de violência, caracterizando o que é necessário para que o protocolo seja operacionalizado:

    I – constrangimento: qualquer insistência, física ou verbal, sofrida pela mulher depois de manifestada a sua discordância com a interação;

    II – violência: uso da força que tenha como resultado lesão, morte ou dano, entre outros, conforme legislação penal em vigor. (grifos nossos)

    Quais são os direitos da mulher e os princípios do protocolo?

    Ainda nesta lei, consta os princípios a serem seguidos para o Protocolo (artigo 4º) e os direitos da mulher (Artigo 5º). Vamos a eles:

    Art. 4º Na aplicação do protocolo “Não é Não”, devem ser observados os seguintes princípios:

    I – respeito ao relato da vítima acerca do constrangimento ou da violência sofrida;

    II – preservação da dignidade, da honra, da intimidade e da integridade física e psicológica da vítima;

    III – celeridade no cumprimento do disposto nesta Lei;

    IV – articulação de esforços públicos e privados para o enfrentamento do constrangimento e da violência contra a mulher.

    Art. 5º São direitos da mulher:

    I – ser prontamente protegida pela equipe do estabelecimento a fim de que possa relatar o constrangimento ou a violência sofridos;

    II – ser informada sobre os seus direitos;

    III – ser imediatamente afastada e protegida do agressor;

    IV – ter respeitadas as suas decisões em relação às medidas de apoio previstas nesta Lei;

    V – ter as providências previstas nesta Lei cumpridas com celeridade;

    VI – ser acompanhada por pessoa de sua escolha;

    VII – definir se sofreu constrangimento ou violência, para os efeitos das medidas previstas nesta Lei;

    VIII – ser acompanhada até o seu transporte, caso decida deixar o local.

    No caso, o artigo 4º diz respeito ao atendimento à vítima e sua proteção nos estabelecimentos e para relatos da violência para a produção de boletins de ocorrência, por exemplo. Já o artigo 5º aponta para ações e comportamentos que devem ser seguidos assim que for detectado ou relatado um constrangimento, ou violência. 

    Quem é responsável pela tomada de ações em caso de violência e assédio?

    Estas medidas, apontadas nos Artigos 4º e 5º devem ser tomadas pelo estabelecimento em que esta mulher se encontra, com pessoas treinadas para isto. Isto está descrito no Artigo 6º, que versa sobre os deveres dos estabelecimentos:

    I – assegurar que na sua equipe tenha pelo menos uma pessoa qualificada para atender ao protocolo “Não é Não”;

    II – manter, em locais visíveis, informação sobre a forma de acionar o protocolo “Não é Não” e os números de telefone de contato da Polícia Militar e da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180;

    III – certificar-se com a vítima, quando observada possível situação de constrangimento, da necessidade de assistência, facultada a aplicação das medidas previstas no art. 7º desta Lei para fazer cessar o constrangimento;

    IV – se houver indícios de violência:

    a) proteger a mulher e proceder às medidas de apoio previstas nesta Lei;
    b) afastar a vítima do agressor, inclusive do seu alcance visual, facultado a ela ter o acompanhamento de pessoa de sua escolha;
    c) colaborar para a identificação das possíveis testemunhas do fato;
    d) solicitar o comparecimento da Polícia Militar ou do agente público competente;
    e) isolar o local específico onde existam vestígios da violência, até a chegada da Polícia Militar ou do agente público competente;

    V – se o estabelecimento dispuser de sistema de câmeras de segurança:

    a) garantir o acesso às imagens à Polícia Civil, à perícia oficial e aos diretamente envolvidos;
    b) preservar, pelo período mínimo de 30 (trinta) dias, as imagens relacionadas com o ocorrido;

    VI – garantir todos os direitos da denunciante previstos no art. 5º desta Lei.

    O estabelecimento tem, portanto, o dever de acolher e proteger a vítima, tanto quanto de denunciar e identificar o(s) agressor(es). Também deve manter informações visuais sobre como acionar o protocolo.

    Notas sobre o Não é Não

    Alguns estabelecimentos já possuem este tipo de ação. Eventualmente vemos nas portas e paredes de banheiros, indicativos de que podemos comunicar uma situação de constrangimento ou violência, realizando algum pedido específico (com nomes específicos, por exemplo), que sinalize o problema. Neste caso, o estabelecimento já possui um protocolo de atendimento e proteção, que agora se soma à lei.

    Todavia, também sabemos que nem sempre é simples acionar alguém do estabelecimento para pedir proteção. Estarmos em uma sociedade extremamente machista torna os pedidos de ajuda muito difíceis. Retomarei isto mais à frente, mas queria deixar aqui duas ressalvas antes.

    1. Sempre é importante haver um protocolo, com treinamento dos funcionários, mais do que aguardar uma mulher solicitar ajuda, apenas. Muitas vezes um treinamento para observar situações e oferecer ajuda, também é uma medida importante. Isto está previsto no Artigo 6º, inciso III “certificar-se com a vítima, quando observada possível situação de constrangimento, da necessidade de assistência”. Assim, não é obrigatório o pedido de proteção partir da vítima. O próprio estabelecimento pode se dispor a prestar acolhimento e proteção, caso suspeite ou perceba estar em uma situação de constrangimento ou violência.
    2. Além de sempre, como prevê o protocolo da Lei Não é Não, (Artigo 4º, Inciso I) “respeito ao relato da vítima acerca do constrangimento ou da violência sofrida”. Ou seja, ao ouvir um pedido de proteção, respeitar e agir, sem descredibilizar a vítima.

    Por fim, o poder público é o responsável por campanhas educativas e ações de formação periódica para implementar o protocolo nos estabelecimentos. Ainda estou vendo com mais detalhes como isto funciona para trazer à discussão.

    Como o Projeto de Lei (PL) Não é Não foi proposto e o quê mudou?

    Esta lei foi proposta pela deputada Maria do Rosário (PT) e tinha uma redação diferente da lei que foi aprovada. Isto é comum. De maneira geral, um PL, quando proposto, passa por discussões e análises em comissões temáticas, recebe sugestões de mudanças, passa por negociações, que modificam o seu “teor original” (a escrita original do PL). Também são analisados outros PLs que são “parecidos” ou versam sobre temas próximos. Neste caso, estes outros PLs viram “apensados”, ou seja, documentos que vão ser debatidos e analisados conjuntamente, pois fazem parte de ideias similares.

    Por fim, há uma relatoria do PL, que se propõe a indicar qual a justificativa desta lei e sua relevância, quais apensados se relacionam e indica uma redação final para o PL. As próprias comissões que analisaram podem aprovar o PL em sua redação final ou, se não houver concordância, acontece a votação na Câmara de Deputados, antes de ir ao Senado. Para entender melhor o detalhamento deste processo, eu sugiro assistir ao conteúdo “Entenda o Processo Legislativo

    No caso da Lei 14.786/23, a proposta inicial pode ser acessada no site da Câmara dos Deputados, que possui todo o histórico desde que ela foi apresentada, até sua versão final. Isso inclui a versão original do Projeto de Lei 03/2023. Lá já se percebe que o nome do protocolo, por exemplo, consta desde a primeira versão do PL.

    Redação Original do PL 03/2023

    No Artigo 1º esse protocolo se destinava ao atendimento de mulheres, vítimas de violência sexual ou assédio 

    em discotecas ou estabelecimentos noturnos, eventos festivos, bailes, espetáculos, shows, bares, restaurantes, ou qualquer outro estabelecimento de grande circulação de pessoas

    O PL incluía locais de realização de eventos esportivos. Na justificativa, a autora do PL indica que se inspirou em Lei semelhante, espanhola, nomeada “Solo si es si” (só o sim é sim, em espanhol). Além desta lei, o protocolo No Callem criado em Barcelona, 2018, fortalece e fundamenta as ações para a lei, e é baseado em 5 princípios

    O primeiro é que a atenção prioritária deve ser dada à pessoa atacada. Em caso de agressão, ela deve receber a devida atenção. Em casos graves, ela não pode ser deixada sozinha, a não ser que queira. 

    O segundo princípio orientador é o respeito às decisões da pessoa agredida. Ela deve receber as informações e conselhos corretos, e ela deve tomar a decisão final, mesmo que esta pareça incompreensível para os demais.

    Terceiro princípio: o foco não deve estar num processo criminal. Estes são complexos, difíceis também para quem foi agredido e muitas vezes terminam de uma forma não satisfatória para quem sofreu uma agressão. Isso pode gerar frustração, e por isso é importante informar e levar em conta que existem outras formas de tratar a situação e dar importância ao processo de recuperação da pessoa agredida.

    O quarto princípio é a atitude de rejeição ao agressor. Deve-se evitar sinais de cumplicidade com ele, mesmo que seja apenas para reduzir o clima de tensão. É importante mostrar que há uma clara rejeição à agressão e envolver o entorno do agressor nessa rejeição.

    O quinto e último princípio é o da informação rigorosa. Tanto a privacidade da pessoa agredida como a presunção de inocência da pessoa acusada devem ser respeitadas. Por isso, é aconselhável não repassar informações oriundas de fontes não confiáveis ou espalhar boatos.

    Outras iniciativas

    Ainda é citado, na justificativa do PL, outras leis e movimentos internacionais, como “Ask for Angela” (Inglaterra) e “Me Too” (inicialmente estadunidense). Além disso, cita campanhas nacionais, como “He for She” (Rio Grande do Sul) e acontecimentos como o julgamento de estupro, com descrédito da vítima, ocorrido com Mariana Ferrer, em Santa Catarina.

    Quais são as ressalvas que eu gostaria de demarcar neste texto? Não havia no PL, nem na justificativa da lei, quaisquer ressalvas sobre bebidas alcoólicas ou cultos e eventos religiosos. Onde isso apareceu e foi inserido na Lei aprovada então?

    Relatório do PL 03/2023

    Buscando mais informações, encontrei o Relatório do PL 03/2023, que analisa também os PLs apensados (indicados logo após o título lá no início). Ao final do Relatório, consta o texto Substitutivo ao Projeto de Lei nº 03, de 2023 (página 13), que falarei mais adiante. Eu fui buscando cada um dos apensados, abrindo e realizando a leitura. Após a leitura do relatório também, um detalhe me chamou a atenção: não há, em nenhum PL apensado nenhuma ressalva a cultos e eventos religiosos. Tampouco há, nestes PLs, indicação de vínculo com bebidas alcoólicas a necessidade da proteção de mulheres vítimas de violência e constrangimento em estabelecimentos e eventos.

    No relatório aparece, na página 8, ao se falar do mérito da proposta, que apesar de “não existirem estatísticas sobre isso [episódios de constrangimentos], temos a percepção de que são condutas mais frequentes e também são precursoras de atos de mais intensa violência”. Para exemplificar, é falada a relação com o álcool. Conforme o documento:

    “Este é o caso, por exemplo, das insistentes tentativas de aproximação realizadas por alguns homens nos ambientes de diversão, principalmente aqueles que funcionam durante a noite e onde existe consumo de bebidas alcoólicas” (p.8).

    Em relação aos apensados, essa relação aparece somente em uma justificação, no PL 2614/2023, em que consta, na página 2

    O assédio em casas noturnas é um problema que, dentre outras ocorrências, se dá em casas noturnas e está associado ao consumo de bebidas alcoólicas. Nesse sentido, a proteção das mulheres é essencial em casas noturnas que oferecem consumo de bebidas alcoólicas.

    Apesar disso constar na justificação, não há a presença da obrigatoriedade do combate ao assédio sexual (que é a proposta do PL) se vincular a espaços com venda de bebidas alcoólicas.

    Texto do Substitutivo ao Projeto de Lei n.03 de 2023

    Para encerrar esta seção, antes de falar sobre as duas ressalvas, vamos retomar a redação final, que consta no texto Substitutivo do PL 03/2023, do relatório (páginas 13 a 17). Esta versão que está no relatório foi aprovada na Câmara e, sem qualquer modificação, é a que vale neste momento.

    Art. 2º O protocolo “Não é Não” será implementado no ambiente de casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica, para promover a proteção das mulheres e para prevenir e enfrentar o constrangimento e a violência contra elas.

    Parágrafo único. O disposto nesta Lei não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa.

    Como podemos perceber, a lei faz duas ressalvas que não estavam na escrita original do PL. A primeira sobre o protocolo relaciona-se apenas a “casas noturnas e boates” com consumo de bebidas alcoólicas e a segunda ao retirar cultos e eventos religiosos a obrigatoriedade com a implementação do protocolo.

    Uma demarcação importante, neste caso, é que saíram da lei estabelecimentos como bares, restaurantes, eventos festivos e eventos com grande circulação de pessoas, como constava no PL original. Este ponto é relevante, uma vez que existem associações específicas para estabelecimentos diferentes, que irão aderir ou não à lei. No entanto, sem obrigações legais de cumprir o protocolo, por exemplo.

    A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (ABRASEL), por exemplo, aponta que esta lei não diz respeito aos estabelecimentos que a organização representa. Ao buscar me informar sobre como a entidade vê a Lei 14.786/2023, fui informada que a Abrasel entende que a lei que institui o protocolo “Não é Não”, sancionada pelo presidente Lula no dia 29 de dezembro, é bem-vinda e ressalta que o esforço para combater a violência de gênero deve ser coletivo e não pode se restringir somente às boates e casas de show. Para isso, acredita que a educação é fundamental.

    A entidade defende que é importante que o Poder Público forneça ferramentas e metodologias para treinamento dos funcionários, de forma que consigam agir de maneira adequada diante de uma situação de constrangimento ou violência sexual. 

    A missão de combater essas situações de abuso não deve estar restrita somente às boates e casas de show, considerando que essa violência pode acontecer em diversos lugares, como no trabalho e no transporte público, por exemplo. “O protocolo é positivo porque nos coloca enquanto sociedade na posição de trabalhar o enfrentamento a esse problema e, evidentemente, punir os que cometerem abusos. Devemos fortalecer uma resposta coletiva para evitar que esse tipo de situação continue a acontecer em qualquer ambiente”, afirma o presidente-executivo da Abrasel, Paulo Solmucci.

    As modificações em relação a este artigo da lei, portanto, trazem diferentes nuances e problemáticas que devem ser questionadas e pensadas de forma mais ampla. Uma vez que tais modificações excluíram espaços sociais e culturais, é preciso que se compreenda que a aplicação do protocolo não está assegurado – e portanto não necessariamente temos uma ação rápida e que poderia gerar segurança de mulheres.

    No estado de São Paulo, a Lei nº 17.635 de 2023, dispõe sobre “a capacitação de funcionários de bares, restaurantes, boates, clubes noturnos, casas de espetáculos e congêneres, de modo a habilitá-los a identificar e combater o assédio sexual e a cultura do estupro praticados contra as mulheres”. Neste caso, a formação de funcionários é obrigação dos estabelecimentos. Além disso, é obrigatória a fixação de cartazes ou avisos sobre o atendimento e proteção à mulher em uma situação de risco.

    Neste caso em específico, em âmbito federal as campanhas e a formação são obrigação do poder público (Artigo 8º), enquanto no âmbito estadual são de obrigação dos estabelecimentos. E na lei estadual de São Paulo, não há protocolo estabelecido para socorrer e proteger as vítimas. São leis que versam sobre um tema próximo, mas com procedimentos (e, possivelmente, resultados) diferentes.

    Problematizações necessárias: vulnerabilidades e restrições

    Desde que a lei foi promulgada, alguns eventos importantes aconteceram e, além disso, outras questões anteriores já se faziam importantes (e se relacionam aos eventos recentes…). Falarei primeiramente do caso do ex-jogador de futebol Daniel Alves e, posteriormente, da cultura de estupro.

    Lei Solo Si es Si e protocolo No Callen, no caso de Daniel Alves

    O caso do ex-jogador de futebol Daniel Alves por estupro em um bar, em Barcelona, foi decorrência da aplicação do protocolo No Callem e da lei Solo Si es Si, comentada anteriormente. A vítima, ao final do julgamento, falando “acreditaram em mim” é a demarcação de um protocolo seguido – de não duvidar da vítima em relação à violência. Seguir o protocolo é, neste sentido, suporte e proteção imediata da vítima. Junto a isto, uma condição para apuração e investigação da violência.

    A presunção de inocência e a dúvida da existência da violência

    Grande parte dos casos de violência sexual – incluindo abusos e assédios – tem um entrave inicial para denúncias e investigações que é a palavra da vítima sendo colocada em questão. Estes atos intimidam, invalidam e fragilizam a vítima denunciante. Além disso, podem atrasar e dificultar a apuração dos fatos e investigação do caso, uma vez que há, antes de tudo, a dúvida se a denúncia de fato é pertinente.

    Perceba que a presunção de inocência do acusado não é colocada à prova ao se acatar uma denúncia. Mais que duvidar se a vítima foi mesmo vítima torna a denúncia frágil, por não se acreditar que a violência ocorreu. E são estas situações que o protocolo visa diminuir (e eventualmente acabar). Ao implementar um procedimento em que a vítima deve ser escutada e levada em consideração, a ideia é exatamente não duvidar de que uma violência ocorreu e criar a condição para que uma investigação aconteça.

    Dessa forma, nem tudo são flores e, como diz Fhoutine Marie, não… Nós não dormimos em um mundo de opressão e, quando acordamos, o feminismo finalmente venceu. Bem pelo contrário, como ficou muito evidente posteriomente, não basta que uma vítima seja escutada e a justiça condene. A precificação da liberdade – em especial quando se trata de uma violência sexual – traz à tona o quanto nossa sociedade ainda entende este tipo de violência como algo menor. E se vincula (e fortalece) o que conhecemos como cultura do estupro – temática que já abordamos em outros momentos por aqui…

    Cultura do estupro, perigos do bar e o mito da destruição da vida do acusado

    Quando vemos o debate acerca de estupro, violência sexual, assédio sexual ou abuso sexual, a horda que pergunta às vítimas “o que roupa estava vestindo”, “o que estava fazendo lá”, “por que não se defendeu” sempre se faz presente.

    Aparentemente, o mundo segue não sendo possível de se viver, sem que vítimas sejam postas em questão e mulheres possam existir sem riscos. Recentemente, quando eu vejo estes debates, não consigo pensar em nada mais além do vídeo de Jana Viscardi sobre “o álcool ser muito perigoso”.

    Tudo é muito perigoso, menos o agressor em si.

    Quando falamos de cultura de estupro, não estamos falando de casos isolados – e muitas vezes não estamos nem falando do ato do estupro em si. Mas dos inúmeros acontecimentos cotidianos de nossa cultura e sociedade, de culpabilização de vítimas da violência (em geral mulheres) e apoio a pessoas violentas (em geral homens).

    Falar em cultura é falar de tudo o que envolve a produção de sentidos, significados e identidades de uma sociedade. E cultura do estupro diz respeito ao quanto nossa sociedade normaliza a violência sexual.

    E a nossa sociedade normaliza a violência sexual todos os dias

    E o que tudo isto tem a ver com a Lei Não é Não? 

    Uma das surpresas da lei promulgada foi a retirada de alguns estabelecimentos da lei e, além disso, a centralidade (e necessidade) da venda de bebidas alcoólicas para validar a violência, no texto final da lei. Algumas questões ressoam continuamente para mim, citadas a seguir:

    • Ao acaso é apenas nestes casos que a violência acontece?
    • E nos cultos e festas religiosas, não existe violência sexual nunca?
    • De onde veio esta demarcação no texto final da lei?
    • Quais os efeitos sociais, na prática, da retirada de bares e restaurantes da lei?

    Ao que tudo indica, só é possível ocorrer violência sexual em espaços fechados, escuros e lotados, além de regados a bebidas alcóolicas. Tal como o imaginário social parece ainda imperar, tais violências não estariam presentes em espaços públicos amplos – incluindo cultos – em que todos têm intenções puras e não há lugar para algo tão grave impetrado contra mulheres. Será mesmo? Conforme apurado pela Agência Pública em 2019, a denúncia mais comum contra lideranças religiosas é de violência sexual. 

    A limitação de outros estabelecimentos também é uma questão. Faz sentido retirar estabelecimentos comerciais da adoção deste tipo de protocolo que protege vítimas de violência sexual? O texto do PL original trazia uma grande quantidade de espaços em que os protocolos deveriam ser adotados, não condicionando à venda de bebidas alcóolicas. 

    em discotecas ou estabelecimentos noturnos, eventos festivos, bailes, espetáculos, shows, bares, restaurantes, ou qualquer outro estabelecimento de grande circulação de pessoas”

    Dizia o texto original. Precisamos assumir que as vulnerabilidades à violência sexual estão em nossa sociedade. Não se restringem a atos isolados e lugares específicos, não são vinculados às ruas escuras. A violência se faz na rotina, no descrédito às vítimas, na necessidade da boa vontade de quem atende a denúncia, na compreensão de que a violência desdenha dos limites e fronteiras de estabelecimentos em que a versão final da lei descreveu.

    O que poderia ser uma importante etapa para debatermos uma mudança social acerca da cultura do estupro, parece ter-se tornado a delimitação de onde a violência ocorre, com disputa de poderes entre bancadas eleitas.

    Após a publicação do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e o Relatório Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, em 2023, em que a violência contra mulheres é notificada como a maior de todos os tempos, vemos se esvair o debate sobre a segurança em espaços públicos.

    Mais uma vez somos tomadas pelo sentimento de que não é (e nunca foi) sobre as vítimas que sofrem violência

    Para Saber Mais

    ABREU, R (2023) Relatório Projeto de Lei nº 3 de 2023, Apresentação: 01/08/2023 18:29:03.437 – PLEN PRLP 1 => PL 3/2023, PRLP n.1 Câmara de Deputados

    ARNT, AM (2018) Sobre a Cultura do estupro: senta aqui, vamos conversar, Blog PEmCie

    ___ (2020) Nós, Mulheres, como a cigarra: uma nota sobre a cultura do estupro, Revista Blogs Unicamp, V6, N11

    ___ (2022) Cultura do estupro, rotina e nossa existência cotidiana, Revista Blogs Unicamp, V8, N10. 

    BBC NEWS MUNDO (2022) “Solo sí es sí”: en qué consiste la nueva y polémica ley de consentimiento sexual en España, BBC NEWS MUNDO, 26 de Agosto de 2022.

    BRASIL (2023) Lei n. 14786/2023.

    ___ (2023) PL 2/2023, Propostas Legislativas, Câmara dos Deputados

    BUENO, S, MARTINS, J, LAGRECA, A, SOBRAL, I, BARROS, B, BRANDÃO, J (2023) O crescimento de todas as formas de violência contra a mulher em 2022, In: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, p136-145.

    BUENO, S, MARTINS, J, BRANDÃO, J, SOBRAL, I, LAGRECA, A (2023) Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil, In: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

    CANAL UOL (2024) Vítima de Daniel Alves chora ao ouvir sentença ‘eles acreditaram em mim’ UOL, 22 de Fevereiro de 2024

    FONSECA, B (2019) Governo registrou 167 denúncias de violação sexual por líderes religiosos em três anos, Agência Pública, 25 de Junho de 2019.

    FONSECA, PAA, ALVES, VL,  LIMA, LM (2017) Cultura do Estupro: uma análise de conteúdo sobre a percepção dos usuários via Twitter, Revista Idealogando, v1, n1, p75-84.

    LEOCADIO, B (2023) Projeto de Lei 2614/2023, Brasil, Congresso Nacional.

    MARIA, V (2023) Daniel Alves precisa aprender que “solo si es si”, EBC Radios, 25 de Janeiro de 2023.

    MARIE, FHOUTINE (2023) O feminismo publicitário venceu, agora ele precisa acabar, Interesse Nacional, 26 de Abril de 2023.

    ___ (2024) ‘Eles acreditaram em mim’ – o caso Daniel Alves e o Brasil, Interesse Nacional, 6 de março de 2024.

    ROSÁRIO, M (2023) Projeto de Lei n3 de 2023, Brasil, Congresso Nacional.

    SCHOSSLER, A (2023) O que é o protocolo No Callem, aplicado no caso Daniel Alves, DW em destaque,  25 de Janeiro de 2023.

    SOUZA, RF (2017) Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres, Revista Estudos Feministas, 25(1), 9-29

    TV CAMARA (s/d) Entenda o Processo Legislativo, Brasil TV Câmara

    VISCARDI, J (2023) O ÁLCOOL É MUITO PERIGOSO? | JANA VISCARDI

    Sobre quem escreveu

    Ana de Medeiros Arnt é Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência! 😉

    Como citar:  

    ARNT, Ana de Medeiros. (2024). Lei “Não é Não”: algumas ideias para pensar. Revista Blogs Unicamp, Vol.10, N.1, Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/lei-nao-e-nao-algumas-ideias-para-pensar/. Acesso em: DD/MM/AAAA

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Freepik [original]

    Letras e edição: clorofreela

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