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  • 1.000.000, 272, 200

    Sugestão para escutar enquanto a leitura segue
    Um milhão um mil quatrocentos e setenta e sete

    Duzentos e setenta e dois

    Duzentos.

    O quê? Mortos, dias de anúncio da China, dias de anúncio da Organização Mundial da Saúde (OMS).

    Não sabe do que se trata ainda?

    Do assunto que se tornou o grande tema a ser debatido neste ano. Coronavírus, também conhecido como SARs-CoV-2, o causador da COVID-19. Portanto, o protagonista de várias de nossas conversas atuais.

    Hoje ultrapassamos a marca de 1 milhão de mortos no mundo, aos 200 dias de pandemia decretada pela OMS, 272 dias do anúncio oficial do governo Chinês (31 de Dezembro de 2019) sobre o vírus.

    No Brasil, hoje foram mais 300 mortes registradas no site worldmeters, com 141.741 mortes acumuladas. Estamos em segundo lugar no mundo em mortes totais. Somos o terceiro país em quantidade de infectados, com 4.732.309 – oficialmente. Estamos em terceiro lugar em novos infectados confirmados HOJE, mais 14.194. Terceiro lugar, também, em “mortes novas” (ocorridas no dia de hoje, 27 de setembro). Temos 539.731 casos ativos confirmados, sendo 8.318 destes casos críticos.

    Em casos relativos, por milhão de habitantes, estamos em sétimo lugar (ufa, não é mesmo?), com 666 mortes por milhão. Somos o sexto país do mundo que fez mais testes (17.900.000) o que parece bastante. No entanto, isto representa estarmos em 82ª posição no mundo em quantidade de testes por milhão de habitantes.

    As mortes do Brasil representam 14% das mortes totais por coronavírus no mundo.

    São números.

    Como assim? Pois é, temos nos acostumado a eles, os assombros das primeiras semanas foram tornando-se nubladas e sem muito sentido ao longo destes 200 dias de pandemia. Não te parece?

    Com bares abertos, praias lotadas, kits covid sem comprovação científica sendo distribuídos, dizeres anti-vacina propagados pelo alto escalão do governo, dinheiros de pesquisa cortados em todos os âmbitos do governo (este ano e ano que vem também) e relativização dos riscos como pauta para abertura de escolas.

    O mundo apresenta o cenário perfeito para qualquer grande conto de ficção científica. Isto é, descrenças em cientistas, pânico moral pelo simples abraço, assujeitamento às condições de clausura ou às necessidades imperativas de pôr alimento à mesa. Vocês conseguem imaginar a narrativa?

    Nós poderíamos descrever com detalhes como vislumbramos uma cena. Mas pareceria cruel tal descrição e, claro, talvez não pareça ficção.

    [pausamos a escrita. respiramos fundo]

    Recarregamos a página com o placar Covid-19 do site Worldmeters. Enquanto escrevíamos até este ponto, mais 261 pessoas morreram – só com a Covid-19.

    Às vezes parece uma realidade paralela “Justo na nossa vez, na nossa vida”, podemos pensar… Mais mortes, mais vidas. No entanto, se estamos reclamando é por estarmos vivos. Mas não adianta esconder, o pensamento volta:

    Justo na nossa vez, na nossa vida

    A resiliência segue e parece pífio falar em necropolítica, em ACE2 ou Spike. Pífio pelo cansaço de uns, pela evidente resistência dos corpos que, no dia a dia, vivem desde o dia 1 de isolamento social, sem isolamento. Que trabalham, vivem, morrem cotidianamente.

    Tampouco parece funcional bradarmos por verbas para a ciência, seguirmos batalhando para que não cedamos para grandes abates por políticas públicas. Contudo, sei lá, montar notas de repúdio e tuitaços falando de nossa auto-importância não ajudou.

    Dessa forma, parece banal falar de esperança. Sentimos como se isso fosse minimizar as mortes até agora sentidas. Assim, destacamos, em um editorial de divulgação científica, que não há ciência suficiente para explicar a dor que estamos vivendo. Um milhão de mortes confirmadas de uma causa que, antes de 31 de Dezembro de 2019, não existia para o mundo.

    Um milhão de mortes!

    Todavia, mesmo não havendo ciência que explique toda a dor sentida pelas perdas desta doença (mortes reais e simbólicas) é através destes conhecimentos científicos produzidos nestes últimos 272 dias – que são também resultado de centenas de anos de busca pela compreensão dos fenômenos naturais, sociais e culturais – que temos conseguido permanecer firmes e avançar. E é nos passos destes conhecimentos, e por todas as pessoas que existem e por todas as que se despediram de nós este ano, que seguiremos batalhando para chegar a soluções mais justas e éticas, para a saúde de todos, com e pela ciência.

    E enquanto produzíamos este texto, ao fim, recarregando o painel mundial, 1.002.402 mortes. Isto é, 925 óbitos por coronavírus, enquanto cerca de 800 palavras foram escritas, lidas, revisadas, reescritas.

    Mas ‘Blogs’, são só números!

    Todavia, se os números te parecem monótonos e sem sentido, recomendamos a visita no projeto INUMERÁVEIS. Um memorial dedicado a cada uma das pessoas mortas pela Covid-19. Ou seja, Não são números: são pessoas, famílias, amigos. Com nomes, sorrisos, força, trabalho, frugalidades, e é disso que se trata. 

    Cópia de tela do projeto Inumeráveis.https://inumeraveis.com.br/

    E é por isso, também, por estes nomes, pessoas, sorrisos, forças e frugalidades que viveram e se despediram que, hoje, gostaríamos de acabar o texto com esperança, no meio de todo este pesar. Esperança pelos saberes que temos e produziremos pela ciência. E esperança, por respeito a todos os que nos deixaram este ano, de que seguiremos lutando, por outros dias que nos aguardam. Por ímpetos e intenções de esperança, mas sem tirar os pés do chão, com o som e a voz de Milton Nascimento, quando ele diz:

    E o que foi feito é preciso conhecer para melhor prosseguir
    Falo assim sem tristeza, falo por acreditar
    Que é cobrando o que fomos que nós iremos crescer
    Nós iremos crescer, outros outubros virão
    Outras manhãs, plenas de sol e de luz 
    (O que foi feito deveras (de Vera) letra de Fernando Brant)

    Para ler mais

    Academia Brasileira de Ciência (2020) CNPq pode sofrer novo corte em meio à pandemia

    Amado, Guilherme (2020) Depois da Capes, governo corta bolsas também do CNPq: redução chega a 85%. Revista Época

    Bessa, Eduardo (2020) Kits de HCQ e ivermectina são ilusão perigosa na pandemia; Instituto Questão de Ciência, 2 de Julho de 2020.

    Brasil, Ministério da Saúde (2020) Portaria nº 1.565 de 18 de Junho de 2020, Diário Oficial da União, ed 116; seção 1; p 64; 19/06/2020

    Bonora Junior, Maurilio (2020) Se o coronavírus é um vírus pulmonar, como ele infecta outros órgãos? (parte 1) Blogs de Ciência da Unicamp, Especial Covid-19

    Gallas, Daniel (2020) Coronavírus na escola: o que diz a ciência sobre os riscos da volta às aulas? BBC News Brasil, 7 de agosto de 2020.

    Oliveira, Leonardo (2020) Da fatalidade epidemiológica à ferramenta de extermínio: a gestão necropolítica da pandemia Blogs de Ciência da Unicamp, Especial Covid-19

    UOL (2020) Marcos Pontes diz que órgãos de pesquisa devem sofrer cortes no ano que vem

    Este texto é original e foi produzido com exclusividade para o Especial Covid-19, em nome da equipe editorial

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e que são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Se o coronavírus é um vírus pulmonar, como ele infecta outros órgãos? (parte 2)

    Há algum tempo atrás, vimos em um texto aqui no blog como o SARS-CoV-2, causador da Covid-19, é capaz de entrar em nossas células e causar sua infecção. Contudo um número cada vez maior de artigos têm sido apresentados à comunidade científica mostrando que a infecção causada por tal vírus não se restringe somente ao trato respiratório e sim a muitos outros órgãos. O SARS-CoV-2 já foi encontrado no cérebro, no fígado, rim, intestino e dessa forma surgem perguntas: quais são os efeitos do vírus nesses órgãos? Vem com a gente para entender melhor isso!

    Problemas Cardiovasculares

    Tudo começou com pacientes que relataram palpitações no coração e sensação de aperto no tórax. Mais tarde estes pacientes foram diagnosticados com Covid-19, de acordo com a Comissão Nacional de Saúde da China (NHC), um órgão responsável em formular políticas de saúde na China. De acordo com eles, 11.8% das pessoas que morreram de Covid-19 tinham algum dano no coração, apesar de não ter doenças cardíacas prévias1. Consequentemente, cientistas e médicas começaram a observar melhor problemas cardiovasculares relacionados ao Covid-19 2,3, como:

    • dano no miocárdio (o músculo responsável pela contração do coração), 
    • a inflamação deste mesmo músculo, 
    • arritmia (um descompasso no ritmo de batidas do coração, em geral mais lento no caso da Covid-19), 
    • insuficiência cardíaca,
    • choque cardiogênico (uma falha na irrigação de sangue no próprio coração, com consequente falha deste para continuar bombeando o sangue).

    Assim, para todos esses problemas, imagina-se (e a cada dia novas pesquisas tem sido feitas para se comprovar ou não) que a origem de todos esses problemas sejam duas. A primeira delas seria a própria infecção das células cardíacas pelo SARS-CoV-2, vide que tais células expressam o receptor ACE2.

    As tais Tempestades de Citocinas

    A outra origem pode ser um fenômeno conhecido como Tempestade de Citocinas. As citocinas são moléculas que servem de comunicação para as células, principalmente para as células do sistema imune. Dessa forma, quando um macrófago ou um linfócito reconhece um agente invasor no corpo, essa célula libera essas moléculas e acaba levando a uma inflamação no lugar, chamando mais células imunes para combater esse patógeno. O grande problema de toda essa questão ocorre quando o corpo reconhece que o invasor é muito perigoso e não tem meios de derrotá-lo facilmente. Nesse caso, as células imunes lançam mão de sua estratégia final: a liberação de grandes quantidades de citocinas que se espalham por todo o corpo, o que acaba gerando dano em outros órgãos (mesmo aqueles que não estão infectados). 

        No caso da Covid-19 podemos entender facilmente porque então a tempestade de citocinas não é uma boa coisa: para ela acontecer a pessoa já precisa estar comprometida, muitas vezes com a forma grave da doença, seus pulmões não estão bem. Assim, por causa da tempestade de citocinas, outros órgãos como o rim, fígado e principalmente o coração também começam a sofrer dano, fazendo com que muitas  vezes isso leve o paciente ao óbito.

    Problemas Renais

    Depois do coração, começou-se a olhar para outros órgãos, dentre eles o rim. Assim, muitos médicos notaram que a Covid-19 tinha um certo envolvimento com o rim em casos mais severos. Alguns pacientes chegavam ao hospital com uma alta quantidade de proteínas na urina (a chamada proteinúria), o que é um sinal de que provavelmente havia algum problema nos rins.

    Além disso, pesquisadores e médicos viram que alguns pacientes – em geral aqueles que tinham a forma severa da doença – também desenvolveram lesão renal aguda (AKI), que é uma redução na capacidade de filtragem dos rins, que também acarreta em vários problemas 4. Uma pesquisa em específico, notou uma correlação entre doenças renais e um aumento no número de mortes de pacientes que precisavam de hospitalização 5. Enquanto isso, outras pesquisas já demonstraram que o SARS-CoV-2 possivelmente é mesmo capaz de infectar células renais 6,7 e isso pode ser uma das causas que levam ao dano, com um outro possível mecanismo sendo a Tempestade de Citocinas já citada acima 4.

    Problemas Hepáticos

    Todavia, como tudo tem sido complicado com o SARs-CoV-2, os problemas não pararam por aí. Assim, como o fígado também é um órgão que expressa o ACE2 na membrana de suas células, ele não também não ficaria de fora na Covid-19 8. O dano no fígado associado a Covid-19 é considerado como qualquer dano hepático que ocorra durante a progressão ou o tratamento da Covid-19 em pacientes sem precedentes de doenças no fígado. Dessa forma, o principal indicativo desse dano hepático é o aumento de algumas enzimas do fígado no sangue, fato que já foi notado em alguns pacientes com Covid-19 9. Os possíveis mecanismos que podem gerar esse dano são:

    • a tempestade de citocinas,
    • a infecção pelo próprio SARS-CoV-2 nas células do fígado, apesar disso ainda não ter sido demonstrado,
    • o baixo teor de oxigênio no sangue, e consequentemente no fígado e outros órgãos,
    • uso combinado de medicamentos que tem ação hepatotóxica, isso é, que em altas concentração acabam gerando dano ao fígado,
    • reativação de doenças hepáticas em pacientes que já as possuíam previamente, como em pacientes com hepatite B 10.

    Contudo, esse dano hepático foi muito mais frequente em pacientes severos de Covid-19, do que naqueles que tinham sintomas leves.

    Problemas Intestinais

    Quanto ao intestino, já se sabe que ele é um órgão que mais expressa o ACE2, e portanto logo se pensou que se o SARS-CoV-2 pudesse infectar outros órgãos, este seria um deles. Assim, o fato de que pacientes com Covid-19 também relatavam dor abdominal e diarréia só fortaleceu essa ideia. Tempos depois, várias pesquisas foram publicadas confirmando isso11,12.

    Ademais, também detectou-se o vírus nas fezes de vários pacientes, até mesmo após o vírus não ser mais detectado no trato respiratório, sugerindo que ele não só era capaz de infectar as células do intestino como também de liberar novas partículas virais, abrindo caminho para uma possível contaminação fecal-oral (aquela em que patógenos nas fezes acabam contaminando água ou alimentos, que são ingeridos posteriormente e infectam novas pessoas). Contudo, estudos in vitro já demonstraram que essas partículas virais são inativadas no trato gastrointestinal 12. Mesmo assim, mais pesquisas ainda são necessárias para se entender se in vivo esses vírus também são inativados ou se a contaminação fecal-oral é realmente possível. 

    Concluindo

    Por fim, como podemos ver, uma vez que o SARS-CoV-2 infecte as células dos pulmões – principalmente em casos mais graves – ele é capaz de desencadeando a tempestade de citocinas e, além disso, se espalhar pelo corpo inteiro, infectando novos órgãos. Em suma, esse processo já está sendo chamado de sepse viral14, e cogita-se que ele seja o principal fator relacionado à severidade da Covid-19. Apesar disso, mais pesquisas são necessárias para se entender essa questão.

    Para Saber Mais

    1.  Zheng, YY, Ma, YT, Zhang, JY, & Xie, X (2020) COVID-19 and the cardiovascular system Nature Reviews Cardiology, 17(5), 259-260. 
    1. Dhakal, BP, Sweitzer, NK, Indik, JH, Acharya, D, & William, P (2020) SARS-CoV-2 Infection and Cardiovascular Disease: COVID-19 Heart Heart, Lung and Circulation.
    1. Driggin, E, Madhavan, … & Brodie, D (2020) Cardiovascular considerations for patients, health care workers, and health systems during the COVID-19 pandemic Journal of the American College of Cardiology, 75(18), 2352-2371. 
    1. Ronco, C., Reis, T., & Husain-Syed, F. (2020). Management of acute kidney injury in patients with COVID-19. The Lancet Respiratory Medicine
    1. Cheng, Y, … & Xu, G (2020) Kidney disease is associated with in-hospital death of patients with COVID-19 Kidney international
    1. Varga, Z, Flammer, … & Moch, H (2020) Endothelial cell infection and endotheliitis in COVID-19 The Lancet, 395(10234), 1417-1418. 
    1. Su, H, Yang, M, … & Zhang, C (2020) Renal histopathological analysis of 26 postmortem findings of patients with COVID-19 in China Kidney international

    8. The Human Protein Atlas

    1. Sun, J, Aghemo, A, Forner, A, & Valenti, L (2020) COVID‐19 and liver disease Liver International.
    1.  Zhang, C, Shi, L., & Wang, FS (2020) Liver injury in COVID-19: management and challenges The lancet Gastroenterology & hepatology, 5(5), 428-430. 
    1. Xiao, F, Tang, M, Zheng, X, Liu, Y, Li, X, & Shan, H (2020) Evidence for gastrointestinal infection of SARS-CoV-2 Gastroenterology, 158(6), 1831-1833. 
    1. Zang, R, Castro, … & Diamond, MS (2020) TMPRSS2 and TMPRSS4 promote SARS-CoV-2 infection of human small intestinal enterocytes Science immunology, 5(47). 
    1. Lee, IC, Huo, TI, & Huang, YH (2020) Gastrointestinal and liver manifestations in patients with COVID-19 Journal of the Chinese Medical Association
    1. Li, H, Liu, L, Zhang, D, Xu, J, Dai, H, Tang, N, … & Cao, B (2020) SARS-CoV-2 and viral sepsis: observations and hypotheses The Lancet

    Outras Leituras:

    Coronavírus: muito além dos pulmões

    Verdecchia, P, Cavallini, C, Spanevello, A, & Angeli, F (2020) The pivotal link between ACE2 deficiency and SARS-CoV-2 infection European Journal of Internal Medicine

    Parte 1 deste texto

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e que são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Pelos olhos delas: relatos e reflexões durante a quarentena – parte 1

    Startup Stock Photos via Pexels. Creative Commons.

    A pandemia da COVID-19 afetou profundamente a forma como a sociedade se organiza e teve reflexos agudos no universo do trabalho. No meio acadêmico, já há dados iniciais que mostram que as mulheres estão sendo desproporcionalmente afetadas: as cientistas e pesquisadoras estão submetendo menos artigos durante a quarentena; em contrapartida, os periódicos observaram um aumento do número de envios de trabalhos realizados por homens.

    Nós, do Ciência Pelos Olhos Delas, temos conversado muito sobre esse contexto de isolamento social e como ele impacta a produtividade de todas as pessoas que atuam na área acadêmica – desde discentes de graduação até professores universitários. Por isso, elaboramos um questionário em português e em inglês para mensurar esse impacto e comparar as respostas de quem faz pesquisa no Brasil e em outras partes do mundo.

    Os resultados parciais de nossa pesquisa podem ser conferidos na reportagem escrita por Nayara Fernandes e publicada no Portal R7 em 25 de agosto de 2020. Além dessa iniciativa, também temos pensado a respeito das repercussões da quarentena em nosso dia a dia, o que nos fez chegar à proposta deste post: relatar nossas vivências ao longo dos últimos meses e também refletir sobre o momento atual e sobre o que vem depois dessa experiência coletiva. Confira abaixo a primeira parte.

    Relatos e reflexões da equipe do Ciência Pelos Olhos Delas durante a quarentena

    Bruna Bertol

    A Bruna é mestre em Ciências com ênfase em Imunologia Básica e Aplicada e está terminando seu doutorado na mesma área pela USP de Ribeirão Preto (SP). Em 2019, fez estágio na Universidade do Colorado, em Denver (EUA), onde conheceu a Marina e a Giovana, integrantes do blog.

    Ela trabalha com câncer de tireoide e sua relação com fatores genéticos e imunológicos, buscando avanços no seu diagnóstico/prognóstico e tratamento, e também tem interesse nas discussões relacionadas às áreas de política, história e ciências sociais.

    Bruna apresentando seu trabalho de doutorado em um congresso científico internacional em Amsterdam (2018). Arquivo pessoal.

    Natural de Joinville (SC), Bruna voltou dos EUA em janeiro de 2020 para iniciar o último ano do doutorado. Tinha planos de fazer viagens internacionais e de passar mais tempo com sua família em Santa Catarina este ano. Com a chegada da pandemia no Brasil, todo o seu planejamento foi afetado. Ela conta mais abaixo:

    “Eu optei por ficar em Ribeirão Preto pois eu sempre lidei bem com a minha própria companhia, mas a verdade é que a combinação de 1) me adaptar ao Brasil novamente, 2) morar sozinha a mais 800 km de distância da minha família, 3) escrever uma tese de doutorado, 4) medo da pandemia e 5) isolamento social absoluto em casa, tem sido um grande desafio emocional para mim.

    No início, queria muito ler e entender sobre o novo coronavírus para me manter informada, e acabei deixando minha tese em segundo plano, mas, com o avanço da pandemia, chegou o ponto em que sinto que o esgotamento mental tem afetado minha produtividade científica. No início, acreditei que até o mês de agosto as coisas estariam melhores, mas a verdade é que não sabemos como serão os próximos meses no país. 

    Ribeirão Preto tomou medidas de isolamento social que foram cumpridas no início, porém, como a maioria das cidades brasileiras, passou a afrouxá-las, principalmente em virtude da pressão econômica, antes de haver uma redução significativa dos casos diários.”

    Para a Bru, a pandemia expõe de forma escancarada no Brasil a desigualdade social, a precarização do trabalho e a violação constante de direitos fundamentais (como o acesso a um serviço de saúde público e de qualidade). 

    Ela destaca ainda que as mulheres são particularmente afetadas durante a quarentena: ficam mais expostas à violência doméstica e mais sobrecarregadas com os cuidados com a casa e com as atividades de reprodução social¹, além de serem a grande maioria dos profissionais na linha de frente nos hospitais e nos serviços de saúde. 

    A verdade é que é difícil prever nossa vida pós-pandemia, mas certamente o momento em que vivemos nos exige repensar nossa vida individual e em sociedade, bem como ressignificar nossas prioridades, nossos direitos e nosso trabalho.”

    Carolina Francelin

    A Carolina é mestre e doutora pela UNICAMP em Genética e Biologia Molecular com ênfase em Imunologia. Logo após sua defesa de doutorado, no final de 2014, engravidou de sua filha Anna, hoje com 5 anos. 

    Em 2018, mudou-se com sua família para Birmingham (EUA), onde trabalha atualmente como pesquisadora na Universidade do Alabama. Além da pesquisa científica, ela tem interesse em acompanhar a produção intelectual sobre maternidade, criação e desenvolvimento infantil, e também adora fazer experimentos culinários acompanhada pela Anna.

    Carolina no laboratório onde trabalha na Universidade do Alabama em Birmingham (EUA). Arquivo pessoal.

    A Carol, que já conhecia a Marina e o blog antes de se juntar à nossa equipe no começo de 2019, nos conta como foi o início das medidas de quarentena na Universidade do Alabama e na cidade onde vive:

    Foi em uma reunião do laboratório, numa segunda-feira de manhã, que recebi o aviso sobre o fechamento da Universidade. Eu passei esse dia ‘fechando’ experimentos, congelando as células e me certificando que tudo ficaria seguro durante a quarentena – período esse que ninguém sabia dizer a duração. 

    Na quarta-feira da mesma semana as escolas fecharam. Meu esposo também foi enviado de quarentena para casa, sem previsão de volta ao trabalho. No fim daquela semana éramos eu em home office e eles (meu esposo e filha) de férias num apartamento fora da nossa terra natal. 

    Passei pelo desespero de produzir nesse período, o de manter o homeschooling, o de estudar, o de organizar a vida e por aí vai. Foi um processo de resiliência e auto-conhecimento diário, tentando manter os lemas ‘um dia de cada vez’ e ‘antes feito que perfeito’. 

    Voltamos para a rotina (quase) normal no meio de maio. Minha filha só tem aula porque frequenta escola particular, os colégios públicos continuaram fechados e reabriram agora em setembro. 

    Para o retorno ao laboratório, preparamos documentos de conduta de segurança, mantemos distância social, usamos máscaras e somos orientados a fazer de casa tudo o que for possível. As cafeterias estão fechadas, os restaurantes do campus foram abertos somente para a retirada de refeições e as aulas presenciais retornaram cheias de protocolo de segurança.”

    Para a Carol, a pandemia trouxe à tona importantes discussões, como as diferenças de classe, raça e gênero, o quanto grupos específicos são afetados de formas diferentes e o que pode ser feito para melhorar a sociedade como um todo:

    “As pessoas postam nas redes sociais que esperam pelo retorno à vida após a pandemia, e eu realmente espero que não seja um retorno. Eu espero que os processos tenham sido reavaliados e que, de alguma forma, a humanidade tenha mudado a forma de como tem construído o mundo.”

    Gabriela Mendes

    A Gabriela é biomédica e mestre em Biologia Celular pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Atualmente, ela realiza seu doutorado no Programa Interdisciplinar de Genética na Texas A&M University, em College Station, no Texas, onde trabalha desde 2016 com biomateriais.

    O objetivo principal do projeto da Gabi é utilizar esses biomateriais para promover a formação de novos vasos sanguíneos para acelerar a cicatrização local, visando o tratamento de doenças como diabetes e doenças cardiovasculares.

    Interessada em contribuir e aprender mais sobre a divulgação científica e o papel das mulheres nas diferentes áreas da ciência, ela integra o blog desde o início de 2019.

    Gabriela em 2019 no laboratório onde exerce sua pesquisa de doutorado, na Universidade Texas A&M em College Station (EUA). Arquivo pessoal.

    No final de fevereiro deste ano, durante uma reunião de laboratório, a Gabi foi alertada por sua orientadora sobre a possibilidade de passarem a trabalhar remotamente se o número de casos de COVID-19 aumentasse nos EUA e, mais especificamente, no Texas. No mês seguinte, essa possibilidade se concretizou, como ela nos conta a seguir:

    “Dia 13 de março foi o último dia que fui trabalhar no laboratório, antes que a universidade paralisasse todas as atividades de pesquisa que não fossem relacionadas ao novo coronavírus. A partir desse dia comecei a trabalhar em casa pelo computador e só saía para fazer compras de itens básicos. 

    Por mais de 2 meses somente pessoas consideradas essenciais tinham acesso aos laboratórios – aquelas pessoas que estavam trabalhando com o novo coronavírus e/ou que tivessem que cuidar de células e animais de laboratório. A universidade reabriu para as outras pesquisas no dia 1o de junho e foi quando pude retomar meus experimentos no laboratório seguindo as novas regras de segurança: uso obrigatório de máscaras dentro do prédio, somente 2 pessoas por laboratório no mesmo horário, distanciamento social, higiene das mãos com maior frequência, entre outras medidas. 

    Atualmente, o uso de máscaras continua sendo obrigatório em qualquer local público e no campus. As aulas presenciais na universidade recomeçaram em agosto, mas parte da carga horária de aulas continua sendo online. Os casos de COVID-19 continuam aumentando na cidade e no estado, ao mesmo tempo em que as pessoas tentam voltar às suas rotinas de atividades. Já são seis meses trabalhando de casa sempre que possível e convivendo somente com colegas do lab, além do meu marido. Nessa nova rotina, continuamos saindo de casa somente para fazer compras de mercado e algumas vezes vamos caminhar num parque.”

    A Gabi defenderia sua tese de doutorado em agosto, mas, devido à pandemia, a  defesa foi adiada para dezembro. Em meio ao estresse da finalização do doutorado e o fato de estar longe da família durante a quarentena imposta pela pandemia, ela ressalta a importância de continuar seguindo as recomendações de cientistas e de especialistas e continua:

    “Cada vez mais defendo a ciência e confio nela, e espero que com o nosso trabalho no blog a gente consiga conscientizar mais pessoas sobre a importância da pesquisa e do método científico. Além disso, acho que as desigualdades sociais e de gênero foram escancaradas no mundo todo com a pandemia, quando vemos que pessoas em situação de maior vulnerabilidade morrem mais de COVID-19, e que as mulheres têm acumulado afazeres domésticos e produzido menos no trabalho. Ao mesmo tempo, estes são problemas que tem sido bastante discutidos durante a pandemia e espero que essas reflexões tragam melhorias daqui pra frente.” 

    A parte 2, com os relatos das demais integrantes do Ciência Pelos Olhos Delas, será publicada no blog em 25 de setembro.

    Os relatos acima, escritos pelas integrantes do Ciência Pelos Olhos Delas, foram condensados e editados por Gabriela Mendes e Juliana Lobo. Este post passou pela revisão de toda a equipe do blog antes de ser publicado.

    Nota

    ¹ Para saber mais sobre reprodução social, recomendamos a videoaula “Divisão Sexual do Trabalho”, ministrada pela cientista política Flávia Biroli (UnB).

    Este texto publicado no Especial Covid-19 foi escrito originalmente no Blog Ciência Pelos Olhos Dela

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Do uso de máscaras à imunidade coletiva

    PENSANDO SOBRE BELO HORIZONTE/MG: DADOS EPIDEMIOLÓGICOS, ESTABILIDADE NOS PARÂMETROS E UM POUQUINHO DE ESTRANHEZA…

    Não sei se vocês sabem, mas moro em Belo Horizonte. Aqui, a prefeitura libera nos dias úteis um boletim epidemiológico. As emissões iniciaram no dia 20/04 e hoje (17/09) estamos no boletim de número 106.

    Um pouquinho do contexto da covid-19 aqui em BH: No dia 28/02 houve o início dos sintomas do primeiro caso confirmado. Além disso, e 18/03 é indicado como o dia do início da transmissão comunitária e início da fase de controle. A cidade permaneceu fechada por cerca de 2 meses para, então, no dia 25/05, iniciar uma reabertura que ocorreu em duas etapas e foi interrompida em 29/06, quando a cidade retornou à fase de controle. No dia 06/08, a prefeitura, novamente, iniciou a reabertura da cidade que hoje está funcionando com apenas algumas restrições de horário e de estabelecimentos. A reabertura se deu pela redução e estabilidade dos seguintes parâmetros: número de transmissão (RT) e ocupação de leitos de enfermaria e de UTI reservados para pacientes com covid.

    Nesses últimos dias comecei a me perguntar como andavam as notificações de SRAG (síndrome respiratória aguda grave) na cidade… A dúvida era: será que os casos de covid estão reduzindo e os de SRAG estão elevados? Mas, no próprio boletim, a prefeitura informa que os casos confirmados consistem na soma de casos com resultado de exame positivo para COVID-19 que evoluíram ou não para óbito; e inclui casos de síndrome gripal e síndrome respiratória aguda grave.

    A @lailanaciencia fez um post no Instagram comentando pontos relevantes na análise desses relatórios. Vale muito a pena dar um pulinho lá, já que não vou incorrer nessas colocações por aqui!

    Feitas as considerações, vamos analisar um pouquinho esses dados (boletim epidemiológico e assistencial #106 da Prefeitura de Belo Horizonte do dia 17/09/20):

    O boletim #106 mostra que, nesta data, a cidade possui 38.629 casos confirmados de covid-19 e um total de mortes confirmadas por covid-19 de 1.144. Considerando que a população de BH é estimada em 2.501.576 habitantes, a relação entre o número de casos e a população nos indica que 1,54% dos moradores da cidade foram contaminados e tiveram essa contaminação confirmada (esse número é provavelmente maior, mas não tenho ideia do quão maior, uma vez que muitos contaminados podem ter quadros assintomáticos ou leves e não procuram assistência para realização de testes, por exemplo).

    O gráfico abaixo nos mostra a evolução do número de casos confirmados por dia desde o início do primeiro caso em 28/02). Observe como ele aumenta até atingir um pico no dia 02/07 e então começa a redução. Os dados dos últimos dias podem estar defasados, mas para nossa linha de pensamento isso será irrelevante.

    Eu queria, então, saber como foi a evolução do número de transmissão (RT) ao longo do tempo. Esse dado não tinha nos boletins, então, tive o trabalho manual de ir abrindo os boletins e plotei o gráfico abaixo com os dados de ocupação de leitos de UTI (amarelo) e de enfermaria (verde), além do RT (linha vermelha).

    Vemos que a ocupação dos leitos de enfermaria diminuiu de 60% para 38% e os de UTI de 80% para 45%. O comportamento do valor de RT, porém é bem diferente… Observamos seu menor valor (0,85) no dia 10/08, seguido por um aumento que se manteve acima de 0,9, chegando hoje a 0,97.

    Não tenho formação epidemiológica, mas essa situação toda que apresentei me pareceu muito estranha e tem me chamado muito a atenção. Por quê?

    • A taxa da população comprovadamente contaminada é muito baixa (~1,5%), ainda que possa ser bem maior.
    • Os casos (principalmente os mais graves) estão reduzindo, como vemos pelas taxas de ocupação de leitos e de novos casos confirmados.
    • O RT está aparentemente aumentando e deve chegar/passar o RT=1 nos próximos dias, o que configuraria uma aceleração da doença)
    • Não mostrei aqui, mas o boletim mostra que o número de testes (PCR e rápido) vêm diminuindo muito na cidade.

    Olhando para isso, pare que a conta não fecha… Foi então que… Bom, continue a leitura para saber o que aconteceu!

    A POSSÍVEL RELAÇÃO ENTRE O USO DE MÁSCARA, A REDUÇÃO DA GRAVIDADE DA COVID E O AUMENTO DA IMUNIDADE COLETIVA

    Foi então que… nesta semana saiu um artigo no The New England Journal of Medicine que trouxe um pouco de luz e acho que ajudou a colocar aquelas peças no lugar… Não é um artigo experimental, mas um artigo de opinião no qual os autores (Ganghi e Rutherford), a partir de diversas observações fazem comentários e propõem hipóteses… vem comigo pra gente entender as ideias desses autores e tentar montar esse quebra-cabeça!

    Há meses estamos falando e ouvindo falar sobre a importância do uso de máscara pela população. Elas têm um importante papel na redução da eliminação e dispersão de partículas virais a partir de pessoas infectadas e, também, reduz a carga viral inalada pelas pessoas suscetíveis à infecção. Isso seria ainda mais importante no caso de pessoas assintomáticas que transmitem o vírus sem nem mesmo saber que estão contaminadas. Podemos dizer que o uso das máscaras hoje é universal, ainda que estejamos vendo pela rua pessoas sem máscara ou usando-a de forma errada (no queixo; com o nariz de fora; pendurada na orelha).

    Para muitas doenças infecciosas, a quantidade de microrganismos inoculados no indivíduo está relacionada à gravidade da manifestação de sintomas da doença. Para os vírus, entretanto, esse ainda é um ponto controverso. Assim, os autores hipotetizam que a máscara, ao bloquear parte das partículas virais de serem inaladas, poderia ajudar a reduzir a gravidade da covid – que já sabemos tem diversas manifestações (de paciente assintomáticos, a pacientes que desenvolvem quadros de pneumonia, síndrome respiratória e morte).

    Ou seja: caso a hipótese de Gandhi e Rutherford esteja correta, as máscaras estariam contribuindo para o aumento de infecções assintomáticas pelo novo coronavírus (o SARS-Cov-2). Estimativas sugerem que os assintomáticos que no início da pandemia corresponderiam a 20% dos casos, hoje poderiam chegar a 80% nos locais em que o uso de máscaras é universal; além das consideráveis reduções nos números de covid grave e de mortes.

    O grande ponto de tudo isso seria que os pacientes com covid, mesmo aqueles assintomáticos e com sintomas leves poderiam desenvolver uma resposta imune contra o vírus… Assim, estaríamos passando por um momento no qual estaríamos aumentando a imunidade da população contra o vírus e, se chegarmos a um percentual grande da população, atingiríamos a imunidade coletiva (de rebanho).  Este seria um processo semelhante à variolação/variolização que foi utilizada por muitos anos até a introdução da vacinação e que consistia em coletar material de pacientes com varíola e inocular em indivíduos suscetíveis à doença. Estes, por sua vez, desenvolviam uma infecção leve e ficavam imunizados.

    Observe que o uso de máscaras não induz imunidade nem produz anticorpo, mas ela cria condições que possibilitariam que o indivíduo entre em contato com uma quantidade reduzida de vírus e (aí, sim!) essa infecção induziria a resposta imunológica no hospedeiro.

    RESUMINDO A PROPOSTA DO ARTIGO…

    CONCLUSÃO

    Apesar da redução de novos casos confirmados, a taxa de pessoas contaminadas em BH pode estar aumentando realmente (aumento do RT) mas grande parte dessas infecções pode ser assintomática ou leve – o que explicaria o número de leitos livres e a redução na realização de novos testes.

    O sucesso das medidas de prevenção nos dá a impressão de que elas são inúteis mas, como vimos, elas continuam muito necessárias! Isso tudo mostra que o uso universal das máscaras é muito importante tanto para a saúde individual quanto a coletiva.

    Lembre-se, a pandemia não acabou. Proteja-se!

    REFERÊNCIA

    Gandhi M, Rutherford GW. Facial Masking for Covid-19 – Potential for “Variolation” as We Await a Vaccine. N Engl J Med. 2020 Sep 8. doi: 10.1056/NEJMp2026913. Epub ahead of print. PMID: 32897661.

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    Este texto publicado no Especial Covid-19 foi escrito originalmente no Blog Meio de Cultura

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • E essa roupa diferentona para fazer ciência serve para quê?

    Se você é fã de ficção científica provavelmente já viu cientistas usando roupas especiais para lidar com um micro-organismo perigoso. Entretanto, essa cena também virou algo comum nos noticiários, atualmente, para mostrar as pesquisas com o coronavírus causador da COVID-19. Como assim? Luvas, macacões, máscaras, viseiras e muitos materiais descartáveis. Mas, você já se perguntou como o cientista escolhe qual tipo de roupa usar?

    No Brasil, quem regulamenta as práticas de segurança em laboratórios de microbiologia é a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança). Biossegurança é o conjunto de práticas que minimizam os riscos de acidente nos laboratórios. Dessa forma, existe redução das chances dos profissionais se contaminarem com os micro-organismos que estão trabalhando, ou contaminarem o meio-ambiente e outras pessoas.

    Como se define níveis de biossegurança dos laboratórios?

    Para definir o nível de Biossegurança necessário para que um laboratório possa funcionar, são analisados fatores como: O micro-organismo, sua origem, rota e taxa de transmissão, infectividade (que significa o quão fácil e rápido ele consegue causar uma infecção), a severidade da doença e o tipo de trabalho que está sendo realizado. 

    Assim como personagens de videogame, para realizar sua “missão” o cientista deve contar com a “armadura” e os equipamentos corretos para cada tipo de situação. Ao todo, são 4 níveis de risco biológico, que possuem uma classificação proporcional ao nível de segurança necessário para o trabalho. Ou seja, o nível 1 é o menos perigoso e o 4 o mais. 

    O coronavírus é um agente transmitido pelo ar, com alta taxa de transmissão entre pessoas e que pode causar a morte. Por isso, pesquisas com ele devem ser realizadas apenas em ambientes com nível de biossegurança 3. Já a dengue é um vírus que possui um risco menor, podendo ser pesquisada em ambientes de nível 2.

    Manter um laboratório seguro custa muito dinheiro, e quanto mais alto o nível, maior o nível de investimento que precisa ser realizado. No Brasil, ainda não possuímos nenhum Laboratório de Nível de Biossegurança 4 e pouquíssimos de nível 3. Investir na ciência é investir também em infraestruturas para que pesquisas sejam realizadas com segurança!

    Conhecendo os Níveis de Biossegurança

    Nível de Biossegurança 1:

    O laboratório que é menos perigoso! Os micro-organismos manipulados neste laboratório não representam altos riscos à saúde dos pesquisadores, nem ao meio-ambiente. Portanto, é mais barato de ser mantido do que os outros. Nele, são seguidas práticas convencionais de laboratório, para que não ocorra nenhum tipo de acidente.  Neste tipo de laboratório podemos trabalhar com a bactéria E.coli, por exemplo.

    A infraestrutura do laboratório conta com portas que separam a área de experimentos do resto do prédio, uma pia para lavagem e uma bancada, onde será realizado o trabalho. 

    Equipamentos de Proteção Individual: Jaleco, luva e óculos de proteção.

    Fotos: Acervo pessoal; Laboratório do CNPEM

    Nível de Biossegurança 2: 

    Os laboratórios de Biossegurança classe 2 servem para trabalhar com micro-organismos que possuem um risco de segurança moderado para os cientistas e para o meio ambiente. Geralmente, esses micro-organismos são nativos, ou estão presentes naquela região. Assim, pesquisadores brasileiros trabalham com organismos do Brasil, e pesquisadores da Ásia trabalham com micro-organismos da Ásia.  

    Além disso, os cientistas que pesquisam no Nível de Biossegurança 2 devem ser treinados para compreender os riscos daquele trabalho, usar EPIs como jalecos descartáveis, luvas, óculos ou viseiras de proteção. Todas as regras dos laboratórios NB-1 ainda valem aqui. Todavia, ainda existem algumas regras a mais: o laboratório deve possuir uma entrada controlada, portas que fecham sozinhas, prevenindo que alguém as esqueça abertas, e sempre ter um chuveiro com lavador de olhos próximo do laboratório. Todos os procedimentos que podem resultar em derramamentos ou partículas suspensas no ar devem ser feitos numa cabine de proteção, chamada de Fluxo Laminar.  Por fim, é necessária uma autoclave, que é como uma panela de pressão gigante, para descontaminar tudo que precisar sair do NB2.

    Fotos: Acervo pessoal; Laboratório do CNPEM

    Nível de Biossegurança 3: 

    Mais biosseguro do que os laboratórios anteriores, temos poucos desses laboratórios no Brasil por conta do custo elevado de manutenção e construção. Aqui, podemos trabalhar com micro-organismos da região, ou de outros lugares do mundo, além disso eles apresentam um risco mais elevado para a saúde dos cientistas e para o meio ambiente, caso ocorra algum tipo de acidente que resulte na liberação dele em áreas não controladas. A construção desse laboratório conta com um rigoroso sistema de circulação e filtração do ar, e um sistema de portas que realmente isole a área de trabalho de áreas externas.

    Por conta desses riscos, o laboratório deve ser restrito e o acesso controlado para que apenas pessoas treinadas possam entrar nele. Os cientistas também devem fazer um acompanhamento médico constante, de forma que saibam que não se contaminaram com nada. 

    Para a proteção dos cientistas, é necessário um acompanhamento da saúde deles, EPIs mais seguros, como uso de macacões, viseiras, luvas descartáveis, e em alguns casos até respiradores. Neste laboratório, o Fluxo Laminar é onde acontecem todos os procedimentos envolvendo materiais biológicos, obrigatoriamente.

    Fotos: Acervo pessoal; Laboratório da UNICAMP

    Nível de Biossegurança 4:

    O NB-4 é aquele que tem pesquisas com vírus como o Ebola. Os micro-organismos são quase sempre exóticos e perigosos, facilmente transmitidos por vias aéreas. Ou seja, frequentemente fatais e não possuem nenhum tipo de vacina ou tratamento. O prédio tem que ter uma área isolada só para este laboratório. Além do sistema de ar de um NB-3, o NB-4 também deve contar com linhas de vácuo e de descontaminação para que não circule ar de dentro do laboratório para fora. 

    Os cientistas que trabalham no NB-4 devem trocar de roupa ao entrar, e tomar um banho na hora de sair do Laboratório. Dessa forma, os EPIs obrigatoriamente devem cobrir o corpo inteiro do pesquisador e possuir um respiradouro. 

    Woman working in a BSL-4 laboratory. She is wearing a full positive pressure suit. No skin is exposed; her air supply can be seen on the back of her suit. She working within a BSC.
    Fonte: Center for Disease Control

    Quer saber mais?

    FioCruz: Biossegurança, o que é?

    Comissão Tecnica Nacional de Biossegurança

    Manual de Biossegurança da OMS (em inglês)

    Curso rápido de biossegurança do CDC (em inglês)

    Força Tarefa da Unicamp

    Esta postagem faz parte de um conjunto de textos sobre as pesquisas científicas que a Unicamp vem fazendo desde o início da pandemia, no que chamamos “Força Tarefa”. O Especial Covid-19, do Blogs de Ciência da Unicamp, participa da Força Tarefa desde o início, com a divulgação científica sobre a doença. Mas também vai se dedicar à publicação destes conhecimentos produzidos especificamente pelos pesquisadores da Unicamp cada vez mais! Acompanhe as próximas postagens!

    Nossos sites institucionais:

    Força Tarefa da Unicamp

    Unicamp – Coronavírus

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Como acontece a interação da levedura com o coronavírus?

    Texto escrito por Fellipe Mello, Carla Maneira da Silva e Ana Arnt

    Até esse ponto, nos textos anteriores, introduzimos uma variedade de conceitos importantes no desenvolvimento do conceito da CORONAYEAST. Vocês podem recapitular as ideias aqui e aqui.

    Vamos revisar as modificações genéticas que a S. cerevisiae deve apresentar para detectar o vírus:

    • O receptor do vírus e regulador da Angiotensina II (ACE2),
    • O “detector” de angiotensina (AT1)
    • As proteínas que fazem a levedura biossensora mudar de cor (os genes repórter).

    Tá, e como isso tudo vai funcionar de forma que a levedura irá acusar a presença do vírus? 

    Primeiro, você precisa saber que, pra funcionar, o biossensor atua na presença de Angiotensina II – que será adicionado ao CORONAYEAST da mesma forma que “tampões de corrida” são adicionadas ao teste rápido – ou seja, um conjunto de reagentes que permite que a reação ocorra e o sinal seja visível. Vamos pensar então nos dois cenários: a levedura na presença e ausência do vírus.

    Na ausência do vírus, a levedura modificada está em um meio contendo uma concentração conhecida de Angiotensina II. Neste cenário, o ACE2 está disponível para converter a Angiotensina II em Angiotensina 1-7, diminuindo a concentração do primeiro. Desta forma, o AT1 não será ativado, uma vez que seu receptor – a Angiotensina II – não estará lá. Receptor não ativado: gene repórter não produzido e levedura não muda de cor.

    Na presença do vírus, a alta afinidade que a proteína Spike do SARS-CoV-2 possui com a ACE2 faz com que sua atividade enzimática fique comprometida. Desta forma, quanto mais vírus, menos ACE2 disponível. Logo: Angiotensina II acumula no meio extracelular, uma vez que a ACE2 está “ocupada” com o SARS-CoV-2, ou, em termos biológicos: a função enzimática de conversão em Angiotensina 1-7 foi capturada pelo vírus. Isto quer dizer que: mais Angiotensina II no meio extracelular significa maior a ativação do receptor AT1.

    É aqui que entra o resultado da nossa pesquisa! Na presença do vírus, portanto, o receptor AT1 ativado da levedura modificada geneticamente emitiria um sinal que faria o gene repórter ativar e produzir uma proteína que faria a levedura mudar de cor: fluorescente ou vermelha, a olho nu.

    Nossa! Que legal! Eu estou com suspeita de COVID-19, onde posso fazer este teste diagnóstico?

    Calma! O CORONAYEAST ainda está sendo desenvolvido pelo LGE!

    Benefícios da pesquisa, caso os resultados sejam positivos

     Uma vez que o CORONAYEAST estiver pronto e funcional, seus benefícios serão extensos. Vamos falar um pouco disso agora…

    Primeiro, o preço. Imagine a diferença de custo entre produzir um diagnóstico dependente de insumos importados e infraestrutura especializada (como é o caso do qRT-PCR) e um teste em que um microorganismo faz tudo. A levedura cresce fácil – coloque um pouco de açúcar e pronto. Sem contar que o Brasil tem uma infraestrutura bastante robusta para isso. Isto é, já produzimos bastante desse fungo para usarmos na produção de etanol, por exemplo. E o diagnóstico só dependeria dela, a S. cerevisiae modificada (com um pouco de Angiotensina II). Estimamos custo de produção até 100 vezes menor que para o teste de PCR!

    Outra vantagem importante é a especificidade. Como falamos, a detecção do SARS-CoV-2 é permeada por um GPCR e, por isso, é bastante específica. A única possibilidade de se alterar o sinal captado pelo AT1 é a ligação do vírus com ACE2. Aliás, usarmos a ACE2 também é outra garantia de especificidade, porque sabemos que esta é a única forma que o coronavírus da covid-19 reconhece uma célula hospedeira. Também não prevemos a alteração da funcionalidade desta enzima por qualquer outro composto presente na saliva. Esta é uma característica do CORONAYEAST que o coloca à frente dos atuais testes rápidos, porque sabemos o quanto estes têm altas taxas de resultados falsos.

    Ademais, o diagnóstico para Covid-19 a partir do biossensor baseado em levedura detecta o vírus inteiro. Isso quer dizer que 1) não precisamos extrair material genético viral, como o teste de PCR; 2) não é baseado em anticorpos, como nos atuais testes rápidos imunológicos, permitindo identificar potenciais vetores da doença, ainda que assintomáticos; 3) poderia ser usado em superfícies para teste da presença do vírus, permitindo a correta desinfecção de ambientes. CORONAYEAST se apresenta como um conceito disruptivo e inovador que está sob atual desenvolvimento e poderá mudar a forma como fazemos diagnósticos virais!

    E sabe o que é mais interessante de tudo isto? É tecnologia brasileira, pesquisa nacional, feita por cientistas do nosso país. Barateando o custo para diagnóstico e o tempo de resposta do resultado. 

    Este texto foi elaborado a partir de uma pesquisa financiada pela FAPESP, cujo processo é n.2018/03403-2

    Força Tarefa da Unicamp

    O artigo que embasou esta postagem faz parte de um conjunto de postagens sobre as pesquisas científicas que a Unicamp vem fazendo desde o início da pandemia, no que chamamos “Força Tarefa”. O Especial Covid-19, do Blogs de Ciência da Unicamp, participa da Força Tarefa desde o início, com a divulgação científica sobre a doença. Mas também vai se dedicar à publicação destes conhecimentos produzidos especificamente pelos pesquisadores da Unicamp cada vez mais! Acompanhe as próximas postagens!

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    Unicamp – Coronavírus

    Para Saber mais

    Chauhan DS, Prasad R, Srivastava R et al. Comprehensive Review on Current Interventions, Diagnostics, and Nanotechnology Perspectives against SARS-CoV-2. Bioconjug Chem 2020:acs.bioconjchem.0c00323.

    Nakamura, Y., Ishii, J. and Kondo, A. (2014), Construction of a yeast‐based signaling biosensor for human angiotensin II type 1 receptor via functional coupling between Asn295‐mutated receptor and Gpa1/Gi3 chimeric Gα. Biotechnol. Bioeng., 111: 2220-2228. doi:10.1002/bit.25278

    Tang Y-W, Schmitz JE, Persing DH et al. Laboratory Diagnosis of COVID-19: Current Issues and Challenges. McAdam AJ (ed.). J Clin Microbiol 2020;58:e00512-20.

    Os Autores

    Ana Arnt é Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência!

    Carla Maneira da Silva Mestranda em Genética de Micro-organismos pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Realiza suas atividades de pesquisa no Laboratório de Genética e Bio-Energia (LGE). Possui experiência na área de genética e engenharia metabólica. Mais especificamente na produção de compostos de interesse econômico a partir de micro-organismos. Assim como na produção de biossensores baseados em levedura.

    Fellipe Mello é Engenheiro químico (2014) e doutor em ciências (2019) pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é post doc em engenharia genética no Laboratório de Genômica e bioEnergia no Instituto de Biologia da Unicamp. Tem experiência na área de engenharia química, com ênfase em termofluidodinâmica, no reaproveitamento de biomassas e purificação de proteínas; e na área de genética, com ênfase em engenharia metabólica e estudo de QTLs.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • O 7 de setembro de Jair Bolsonaro: defesa histórica da violência como fundamento da ordem

    Texto por Ulisses Rubio e Gustavo Zullo.*

    Consideramos que no pronunciamento realizado por Jair Bolsonaro no 7 de setembro algo foge ao estereótipo paradigmático dos discursos do atual presidente. Bolsonaro não repetiu as falas aparentemente desconexas, que têm deixado os analistas atônitos e os leva a análises no mínimo insuficientes, uma vez que enfatizam a incoerência e ressaltam um burro Bolsonaro. Ao contrário, consideramos que, na comemoração da independência, o presidente apresentou um discurso elucidativo e, na medida do possível, sereno sobre sua seleção do passado nacional e dos seus valores. Mais ainda, Jair Bolsonaro explicitou a sua visão de Brasil, na qual os dominantes desenharam a identidade nacional:

    “Naquele histórico 7 de setembro de 1822, às Margens do Ipiranga, o Brasil dizia ao mundo que nunca mais aceitaria ser submisso a qualquer outra nação”.

    Quem é o sujeito da ação? O Brasil. Mas quem é o Brasil? Mais que isso, quais seriam os “brasileiros [que] jamais abririam mão de sua liberdade”?

    Certamente não estão incluídos aí os negros escravizados, que permaneceram privados de sua liberdade ainda por mais de um quarto de século após a independência. Seriam os indígenas? Isto não seria coerente com as atuais políticas do executivo federal em relação aos povos indígenas, especialmente atingidos pela boiada incandescente que avança de modo acelerado sobre a Amazônia e o Pantanal.

     “A identidade nacional começou a ser desenhada, com a miscigenação entre índios, brancos e negros”.

    Nesse trecho do discurso, a vírgula após “desenhada” não é gratuita. Repare. A miscigenação não é o agente da passiva. O agente da passiva do verbo “desenhada” não aparece. A miscigenação é um aspecto muito importante da identidade nacional, mas não a sua realizadora. Assim, nos perguntamos quem seria este agente da passiva e por que ele teria sido ocultado? Para responder a estas questões, recorremos a um dos ícones do pensamento conservador brasileiro do século XX, Oliveira Vianna. Segundo ele, os principais acontecimentos que marcam a História do Brasil, inclusive a independência, foram protagonizados pela “Nobreza rural”. Coerente ao pensamento conservador, acreditamos que Bolsonaro está assumindo que são os dominantes que “desenharam” a identidade nacional.

    Implícita nesta posição está que a identidade nacional teria sido formada pelo andar de cima e para o andar de cima a partir da preservação da segregação social. E esta questão possui uma curiosidade quando a associamos à época da independência. Naquele período, a segregação social assumia a forma de um sistema escravista extremamente violento que, contudo, foi romantizado pelo conservadorismo brasileiro como um sistema em que se formaram afetos espontâneos entre negros e brancos. Como consequência, a interpretação conservadora da identidade nacional cancela a possiblidade dos dominados acessarem a cidadania sem que se o anuncie explicitamente – e aqui reside um dos grandes dilemas brasileiros.

    Na atual conjuntura, isto significa a supressão de todos os ensaios emancipatórios que se vislumbraram nos últimos anos, uma ofensiva a pautas sociais, culturais e econômicas que apontam para a construção de uma sociedade mais justa ou, se quiserem, menos injusta.

    Na visão conservadora da formação histórica do Brasil, a miscigenação cumpre um papel fundamental, mas não fundador, da identidade nacional. Para deixar ainda mais evidente o significado da miscigenação no discurso de Bolsonaro, recorremos a outro autor importantíssimo para o pensamento conservador brasileiro: Gilberto Freyre, autor que consolidou a ideia de que, no Brasil, vivemos numa “democracia racial” e que nos ajudará a decifrar a sequência do discurso de Bolsonaro.

    Assim, seguimos com o presidente: “Posteriormente, ondas de imigrantes se sucederam, trazendo esperanças que em suas terras haviam perdido. Religiões, crenças, comportamentos e visões eram assimilados e respeitados. O Brasil desenvolveu o senso de tolerância”.

    Bem… já identificamos “quem era o Brasil”. Agora vemos estes brasileiros serem “tolerantes”, “assimilando” e “respeitando” diferentes “religiões, crenças, comportamentos e visões”. A fala do presidente claramente retoma a “plasticidade” do português, o elemento branco da miscigenação exacerbada por Gilberto Freyre. Portanto, a suposta “democracia” racial decorreria da benevolência dos dominantes, caracterizada por sua plasticidade, isto é, por sua capacidade de “tolerar” e “assimilar” o caldo cultural dos dominados – e a esta altura já notamos que o termo “assimilação” significa dominar/sufocar. Mas esta não é uma dominação explícita – e esta tradição de se fazer parecer tolerante é preservada até por Bolsonaro, apelidado de “cavalão” nos seus tempos de exército. Isto é, se na frente das câmeras o discurso é de tolerância e mesmo de exaltação da diversidade, a prática é de perseguição social e policial de tradições e costumes não-hegemônicos, como ocorre com o candomblé.

    E aqui insistimos. O agente que integra é o mesmo brasileiro que realiza o movimento de independência. Este brasileiro absorve outros elementos culturais, mas não confere o mesmo valor à cultura dos povos escravizados e, consequentemente, não os concebe como dignos de fazerem reivindicações. Assim, a sua presença é tão somente tolerada na medida em que se preserva à sombra da sociedade. Portanto, compreendemos como “os diferentes tornavam-se iguais”, proferido na continuação da fala de Bolsonaro.

    Simula-se uma igualdade, posto que os povos dominados e as suas respectivas culturas jamais foram aceitos em pé de igualdade – isto é, o conflito nunca foi aceito como parte da construção de um ambiente verdadeiramente democrático. Esta “igualdade” a que Jair Bolsonaro se refere foi construída pelos dominadores. Isto é, uma igualdade que, na verdade, é absolutamente incompatível com a valorização real daquilo que o presidente ostenta orgulhosamente como um “conjunto de preciosidades culturais, éticas e religiosas”.

    Assim, a “plasticidade” que constrói a democracia racial de Gilberto Freyre pode se juntar à “placidez” da formação social brasileira de Oliveira Vianna, para quem “à sombra patriarcal deste grande senhor de engenhos, de estâncias, de cafezais vivem o pobre e o fraco com segurança e tranquilidade”.

    Com isto, Bolsonaro assume a figura de patriarca nacional, de defensor da ordem conservadora, entendendo que mobilizações sociais são bem vistas apenas quando subsidiam a sua ordem. E este detalhe é importante: a atuação do governo Bolsonaro não se restringe à perseguição de negros e indígenas, mas tem a relação histórica de perseguição e tutela a estes grupos como experiência a ser repetida quantas vezes forem necessárias para preservar privilégios.

    Podemos, assim, entender a narrativa que o presidente constrói no que segue de seu discurso:

    “Passados quase dois séculos da independência, nos quais enfrentou e superou inúmeros desafios, o Brasil consolidou sua posição no concerto das nações. Ainda no século XIX, durante o período do império, fomos invadidos e agredidos, derrotando a todos. Já no século XX, durante a II Guerra Mundial, a Força Expedicionária Brasileira foi à Europa para ajudar o mundo a derrotar o nazismo e o fascismo. Nos anos 60, quando a sombra do comunismo nos ameaçou, milhões de brasileiros, identificados com os anseios nacionais, de preservação das instituições democráticas, foram às ruas contra um país tomado pela radicalização ideológica, greves, desordem social, e corrupção generalizada”.

    O que vemos é a exaltação de três governos autoritários que sufocaram manifestações sociais que chacoalhavam a ordem.

    Estamos, portanto, preparados para entender a coerência do discurso do presidente quando ele afirma defender a democracia e a liberdade:

    “O sangue dos brasileiros sempre foi derramado por liberdade. Vencemos ontem, estamos vencendo hoje e venceremos sempre. No momento que celebramos esta data tão especial, reitero, como presidente da República, meu amor à Pátria e meu compromisso com a Constituição e com a preservação da soberania, democracia e liberdade, valores dos quais nosso País jamais abrirá mão. A independência do Brasil merece ser comemorada hoje, nos nossos lares e em nossos corações. A independência nos deu a liberdade para decidir nossos destinos e a usamos para escolher a democracia”.

    Nesta narrativa, já sabemos que quem teve a liberdade para fazer a independência e manter a ordem posteriormente foi o patriarca branco, intolerante e eugenista, oposto à imagem benevolente da miscigenação apresentada por Bolsonaro. Sabemos também que a democracia de que se fala, é a dita “democracia racial”.

    *Ulisses Rubio. Economista, Professor Universitário, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da UNICAMP.

    *Gustavo Zullo. Economista, Professor Universitário, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da UNICAMP.

    Referências:

    FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da familia brasileira sob o regime da economia patriarcal. 17. ed. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio, 1975.

    VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: historia – organização – psicologia. Belo Horizonte, MG; Niterói, RJ: Itatiaia: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1987.

    Pronunciamento do Presidente Jair Bolsonaro, 7 de Setembro de 2020. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=2iomceoXjOY. Acessado em 7 de setembro de 2020.

  • Leveduras, genes modificados e diagnóstico de Covid-19

    Texto escrito por Fellipe Mello, Carla Maneira da Silva e Ana Arnt

    No primeiro texto, falamos um pouco do desenvolvimento do teste diagnóstico para Covid-19 baseado em uma levedura modificada geneticamente. Mas agora, neste segundo texto, vamos explicar um pouco mais sobre o que são estas modificações e de que modo ela acontece na levedura. Isto é, vamos entrar um pouco mais a fundo no mundo da Engenharia Genética para entender melhor como a ciência trabalha e é produzida!

    Levedura modificada geneticamente – o que estamos modificando nela?

    Organismos geneticamente modificados (OGM) são mais comuns do que imaginamos. O ser humano tem utilizado vastamente o melhoramento genético em benefício da nossa sociedade. Por exemplo, a seleção de características de interesse em animais e plantas – que é traço de nossa organização social desde os primórdios. Além disso, temos a produção de químicos específicos por microrganismos,  

        O CORONAYEAST não é diferente: é um biossensor viral baseado em uma levedura que precisa ter seu genoma editado para servir a esse propósito. Para tal, precisamos inserir no microorganismo alguns genes heterólogos. Calma, o nome é difícil, mas a explicação é simples…  Isto é, o que quisemos dizer é que são genes que a espécie Saccharomyces cerevisiae não possui naturalmente.

    Como já falamos sobre o funcionamento do CORONAYEAST, podemos dividir essas modificações genéticas em três grupos principais: 1) proteína ACE2 de humano, responsável tanto pela percepção do SARS-CoV-2 quanto pelo controle do hormônio angiotensina II (já vamos explicar!); 2) receptor AT1 de humano, receptor de membrana da classe das proteínas do tipo G que consegue detectar angiotensina II e enviar um sinal pra célula; 3) os genes repórter, que produzem proteínas que conferem a mudança de cor e fluorescência na levedura e que são ativados pelo receptor AT1.

    Agora é que vem a parte complicada e cheia de termos. Mas respira fundo aí que a gente vai explicar com calma um por um!

    ACE2, AT1 e SARS-CoV-2: quê?

    A ACE2 – Enzima Conversora de Angiotensina 2 é encontrada naturalmente em humanos. Assim, ela tem o papel de regular os níveis de Angiotensina II no nosso organismo, convertendo-a em Angiotensina 1-7.

     A Angiotensina II é um hormônio peptídeo que atua na vasoconstrição e, junto com a ACE2, faz parte do sistema renina-angiotensina (RAS), que é um intricado e complexo sistema de regulação da nossa pressão arterial. Além disso, também estão presentes os receptores de membrana, como o AT1. O AT1, como dissemos, consegue perceber a concentração de angiontesina II no meio e enviar um sinal para a célula reagir em conformidade. Ou seja, a resposta celular varia de acordo com a quantidade do hormônio detectado. Ademais, esse receptor de membrana faz parte da classe dos GPCR. Ou seja: o AT1 reage apenas à presença de angiotensina II e consegue detectar baixas concentrações deste hormônio. 

    Todavia, o entendimento de todo esse sistema é importante não apenas para entender o CORONAYEAST. Foi essencial também para elucidar os efeitos da COVID-19 em pacientes. O SARS-CoV-2 tem apenas uma forma de infectar nossas células: através da ligação com a ACE2 . Portanto, ao detectar uma possível célula hospedeira, o SARS-CoV-2 se liga a essa enzima e faz com ela não consiga desempenhar seu papel normalmente. Resumindo: quando o vírus nos infecta, o ACE2 fica comprometido e, por isso, apresentamos maiores níveis de angiotensina II.

    Mas e o gene repórter? Pois é, Faltou explicar este último dos 3 elementos que precisamos modificar na levedura: o ACE2, o AT1 e o Gene Repórter…

    Gene Repórter: o que é e por que ele é necessário?

    Para fechar o sistema biossensor, precisamos de um, ou mais, gene repórter. Entretanto, para ficar claro o porquê e como vamos usar esse artefato, precisamos de uns conceitos básicos de genética. Mas calma, não é nada muito complicado. O que precisamos saber é que os genes são estruturas formadas de subunidades que regulam sua expressão. Ou seja: pra um gene ativar e produzir uma proteína ele precisa estar sob uma condição específica. Por fim, quem regula essa condição e diz se o gene deve ativar é o promotor. Isto é: não basta um ser vivo “ter um gene” para determinada função. Assim, este gene precisa de um agente externo (o promotor) para ser ativado (e produzir uma proteína que funcione!).

    Mas, e o Gene Repórter? É um gene que é inserido junto com os genes de interesse da nossa pesquisa. Dessa forma, no nosso caso da Levedura Saccharomyces cerevisiae, o gene que produz o ACE2 e o gene que produz o AT1. Isto é, quando produzimos um Organismo Geneticamente Modificado, podemos também inserir um gene repórter junto com os genes que queremos que funcionem naquele organismo. Por quê? O gene repórter tem uma atividade facilmente rastreável – produz proteínas luminescentes ou que promovem mudança de cor, por exemplo. Em suma, com isto conseguimos saber que os genes que inserimos estão “funcionando”.

    Assim, no caso desta levedura, o gene repórter produz proteínas que conferem a mudança de cor e fluorescência. Quer dizer, isso quando ativadas pela sinalização dentro da célula gerada pelo receptor AT1!

    Para finalizar: o que tudo isto têm a ver com o teste CORONAYEAST?

    Por fim, depois de explicar todos os genes, receptores, hormônios e enzimas que estão envolvidos na técnica, vamos voltar ao RAS? Lembra que o AT1 percebe a presença de angiotensina II e envia um sinal para a célula?

    Pois bem, esse sinal diz pra um promotor específico, o FIG1, que ele deve ativar um gene. No caso do nosso biossensor, a gente vai colocar um gene repórter regulado pelo FIG1. Na verdade, vamos colocar dois (e por isso falamos que o CORONAYEAST pode ser usado no laboratório ou em casa). Quais? Um gene que produz uma proteína fluorescente e um gene que produz um pigmento visível à olho nu.

    Mas, como isso tudo funciona na presença e ausência do vírus? Agora que explicamos tudo isso, no próximo texto vamos falar com mais detalhes sobre a interação da levedura com o vírus mais apropriadamente!

    Este texto foi elaborado a partir de uma pesquisa financiada pela FAPESP, cujo processo é n.2018/03403-2

    Força Tarefa da Unicamp

    A pesquisa que embasou esta postagem é fruto da “Força Tarefa da Unicamp”. Assim, faz parte de um conjunto pesquisas científicas que a Unicamp vem fazendo desde o início da pandemia. O Especial Covid-19, do Blogs de Ciência da Unicamp, participa da Força Tarefa desde o início, com a divulgação científica sobre a doença. Mas também vai se dedicar à publicação destes conhecimentos produzidos especificamente pelos pesquisadores da Unicamp cada vez mais! Acompanhe as próximas postagens!

    Nossos sites institucionais:

    Força Tarefa da Unicamp

    Unicamp – Coronavírus

    Para saber mais

    Adeniran A, Sherer M, Tyo KEJ (2015) Yeast-based biosensors: Design and applications FEMS Yeast Res;15:1–15.

    Azzi L, Carcano G, Gianfagna F et al (2020) Saliva is a reliable tool to detect SARS-CoV-2 J Infect 2020;81:e45–50.

    Burrell LM, Johnston CI, Tikellis C et al. ACE2, a new regulator of the renin–angiotensin system. Trends Endocrinol Metab 2004;15:166–9.

    Imai Y, Kuba K, Rao S et al (2005) Angiotensin-converting enzyme 2 protects from severe acute lung failure Nature 2005;436:112–6.

    Nakamura Y, Ishii J, Kondo A (2014) Construction of a yeast-based signaling biosensor for human angiotensin II type 1 receptor via functional coupling between Asn295-mutated receptor and Gpa1/G i3 chimeric Gα. Biotechnol Bioeng;111:2220–8

    Takata, R (2010) O que é um gene repórter afinal?Gene Repórter

    Verdecchia, P, Cavallini, C, Spanevello, A, & Angeli, F (2020) The pivotal link between ACE2 deficiency and SARS-CoV-2 infection European journal of internal medicine, 76, 14–20.

    Zhang H, Penninger JM, Li Y et al (2020) Angiotensin-converting enzyme 2 (ACE2) as a SARS-CoV-2 receptor: molecular mechanisms and potential therapeutic target Intensive Care Med 2020;46:586–90.

    Os Autores

    Ana Arnt é Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência!

    Carla Maneira da Silva Mestranda em Genética de Micro-organismos pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Realiza suas atividades de pesquisa no Laboratório de Genética e Bio-Energia (LGE). Possui experiência na área de genética e engenharia metabólica. Mais especificamente na produção de compostos de interesse econômico a partir de micro-organismos. Assim como na produção de biossensores baseados em levedura.

    Fellipe Mello é Engenheiro químico (2014) e doutor em ciências (2019) pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é post doc em engenharia genética no Laboratório de Genômica e bioEnergia no Instituto de Biologia da Unicamp. Tem experiência na área de engenharia química, com ênfase em termofluidodinâmica, no reaproveitamento de biomassas e purificação de proteínas; e na área de genética, com ênfase em engenharia metabólica e estudo de QTLs.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Sabia que leveduras podem fazer diagnóstico de Covid-19?

    Texto escrito por Fellipe Mello, Carla Maneira da Silva e Ana Arnt

    Existem vários testes diagnósticos para a Covid-19, com maior ou menor precisão. Além de ter um resultado altamente confiável, uma das questões que é relevante pra este momento é, termos também uma agilidade nos resultados, com o menor valor possível!

    No Laboratório de Genômica e bio-Energia (LGE) da Unicamp, tivemos a ideia de aplicar leveduras na fabricação de um novo tipo de teste diagnóstico para COVID-19. Este laboratório é especializado, há mais de vinte anos na engenharia genética e aplicação de leveduras em processos industriais.

    O diagnóstico foi denominado CORONAYEAST e será baseado em leveduras que mudam de cor e emitem fluorescência na presença do vírus. Mas antes de falar do teste diagnóstico, vamos conhecer um pouco melhor as leveduras!

    Mas porque leveduras?

    Leveduras são microorganismos unicelulares pertencentes ao reino Fungi. Apesar de não ouvirmos muito falar seu nome, algum dos alimentos mais comuns do nosso cotidiano, como pães e vinhos, são produzidos com uma ajudinha desses pequenos seres. Além disso, leveduras podem ser aplicadas na fabricação de diversos outros produtos industriais, muitas vezes substituindo matérias-primas não-renováveis.

    Devido à sua grande importância histórico-econômica as leveduras – principalmente a espécie Saccharomyces cerevisiae – foram um dos primeiros seres a terem seu genoma sequenciado! E, a partir daí, diversas ferramentas genéticas, capazes de realizar modificações genéticas direcionadas e específicas foram desenvolvidas para esses organismos. Uma das ferramentas mais conhecidas e utilizadas por pesquisadores para a edição genética, não apenas de leveduras, mas também de diversos outros organismos, é o CRISPR/Cas9. É essa técnica que está sendo aplicada pelos pesquisadores do LGE para construir o CORONAYEAST. Ficou curioso? Acesse este vídeo e saiba mais sobre o CRISPR.

    De levedura alimentar à levedura para diagnóstico

    A utilização de leveduras como biossensores não é de hoje. Biossensores são organismos capazes de identificar compostos e acusar sua presença por meio de mudanças estruturais visíveis e/ou mensuráveis. A ideia por trás desse conceito fundamenta-se na compreensão de como as leveduras são e se “comportam” para detectar potenciais parceiros sexuais. Isso acontece através de uma série de reações químicas, com respostas fisiológicas bem específicas. São estas reações que nos interessam, quando estudamos biossensores, pois elas podem ser, digamos assim, “hakeadas” por meio da realização de edições genéticas.

    Basicamente, o que acontece é que leveduras apresentam em sua parede celular um receptor de hormônios reprodutivos (também conhecidos como feromônios). Esse receptor faz parte da classe dos Receptores Acoplados à Proteína G (GPCRs). Estes receptores, apesar deste nome longo e difícil, são comuns em uma variedade de espécies e particularmente  abundantes em mamíferos.

    O que fazemos em laboratório é substituir o GPCR original da levedura por outros GPCRs provenientes de outros organismos. Dessa forma, esta levedura será capaz de perceber outros tipos de sinais – pois cada receptor reconhece hormônios bem específicos. Assim, a substituição do tipo de ação efetuada por esse sinal permite que leveduras tornem-se verdadeiras plataformas de detecção de compostos diversos. No caso do CORONAYEAST, o GPCR que inserimos conseguirá detectar mudanças extracelulares causadas pelo vírus  da COVID-19: SARS-CoV-2!

    Como a levedura detecta o vírus

    É por meio de uma linhagem modificada geneticamente da levedura S. cerevisiae que funcionará o diagnóstico por CORONAYEAST. A linhagem biossensora será capaz de expressar um sistema de recepção viral, assim como um GPCR humano que percebe mudanças fisiológicas que ocorrerem apenas mediante a infecção. Ficou confuso?

    Isto quer dizer que a levedura, funcionando com um GPCR modificado, também expressará (vai produzir proteínas específicas que são) um sistema de recepção viral – como um sensor de movimento, que detecta quando algo passa na frente, por exemplo, só que neste caso, detecta apenas o SARS-CoV-2! 

    E como a levedura nos avisa que o está presente na amostra? 

    Vocês podem estar se perguntando como a levedura nos indica a presença do vírus! Esta é uma das partes interessantes! Quando há presença no novo coronavírus, a levedura muda de cor e emite fluorescência (basicamente: a levedura brilha!). Isso acontece porque o SARS-CoV-2, ao se ligar a este receptor viral, irá causar uma mudança fisiológica no meio onde está a levedura. O GPCR irá captar exatamente essa mudança e isso irá desencadear uma cascata de sinalização dentro da célula que irá orientá-la a mudar de cor. 

    Sua aplicação poderá ocorrer de duas formas:

    (1) Como um teste quantitativo de laboratório. Neste caso, as amostras incubadas com a levedura poderão ser lidas por um aparelho capaz de medir fluorescência – a intensidade de fluorescência das amostras corresponderá a quantidade de partículas virais na amostra ou;

    (2) Como um teste qualitativo em domicílio. Este teste funcionará como um aparato de leitura, semelhante a um teste de gravidez, acusará a presença viral por meio de mudança de cor, após a adição de saliva.

    Finalizando

    Neste primeiro texto, apresentamos um pouquinho do projeto que o LGE, da Unicamp, vem desenvolvendo, ainda com resultados iniciais apenas. Vamos explicar ainda como funciona a pesquisa e de que maneira trabalhamos no laboratório, para alcançar os resultados, nos próximos textos. Aguarde e acompanhe esse trabalho!

    Este texto foi elaborado a partir de uma pesquisa financiada pela FAPESP, cujo processo é n.2018/03403-2

    Força Tarefa da Unicamp

    O artigo que embasou esta postagem faz parte de um conjunto de postagens sobre as pesquisas científicas que a Unicamp vem fazendo desde o início da pandemia, no que chamamos “Força Tarefa”. O Especial Covid-19, do Blogs de Ciência da Unicamp, participa da Força Tarefa desde o início, com a divulgação científica sobre a doença. Mas também vai se dedicar à publicação destes conhecimentos produzidos especificamente pelos pesquisadores da Unicamp cada vez mais! Acompanhe as próximas postagens!

    Nossos sites institucionais:

    Força Tarefa da Unicamp

    Unicamp – Coronavírus

    Para saber mais

    Adeniran A, Sherer M, Tyo KEJ (2015) Yeast-based biosensors: Design and applications. FEMS Yeast Res ;15:1–15.

    Lengger B, Jensen MK (2020) Engineering G protein-coupled receptor signalling in yeast for biotechnological and medical purposes. FEMS Yeast Res ;20:87

    Morales-Narváez E, Dincer C (2020) The impact of biosensing in a pandemic outbreak: COVID-19. Biosens Bioelectron ;163:112274.

    Outros textos do Especial Covid-19

    Diagnóstico por RT-qPCR, o que é isso?

    Como se detecta o coronavírus?

    Os Autores

    Ana Arnt é Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência! 😉

    Carla Maneira da Silva Mestranda em Genética de Micro-organismos pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), realiza suas atividades de pesquisa no Laboratório de Genética e Bio-Energia (LGE), possui experiência na área de genética e engenharia metabólica, mais especificamente na produção de compostos de interesse econômico a partir de micro-organismos, assim como na produção de biossensores baseados em levedura.

    Fellipe Mello é Engenheiro químico (2014) e doutor em ciências (2019) pela Universidade Estadual de Campinas, atualmente é post doc em engenharia genética no Laboratório de Genômica e bioEnergia no Instituto de Biologia da Unicamp. Tem experiência na área de engenharia química, com ênfase em termofluidodinâmica, no reaproveitamento de biomassas e purificação de proteínas; e na área de genética, com ênfase em engenharia metabólica e estudo de QTLs.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e que são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Covid-19: um exército invisível combatendo a doença!

    Em textos prévios, nós vimos vários conceitos relacionados à imunidade inata, adaptativa, humoral e celular. Nesse último, entendemos como as principais células trabalham para combater diferentes tipos de ameaças, desde vírus e bactérias, até fungos e vermes. Mas então surge a grande dúvida: e no caso do SARS-CoV-2, como combatemos ele? 

    Para responder essa pergunta, vamos olhar para várias pesquisas que estão sendo feitas ao redor do mundo. Pesquisas que estão tentando entender melhor a imunidade celular. Além disso, buscam compreender sua relação com o vírus causador da Covid-19, dando foco um pouco maior para os linfócitos T. Antes, vamos retomar a estrutura do SARS-CoV-2. Primeiramente, destacamos a Spike, que é a proteína responsável pela entrada dele nas células. Há, também, as proteínas do Nucleocapsídeo, que forma a capa que protege o material genético. O Envelope, que é a membrana de gordura que envolve o nucleocapsídeo. Por fim, as proteínas não estruturais, relacionadas principalmente à replicação viral). Caso tenha mais dúvidas, não deixe de conferir dois textos muito bons que já explicaram sobre elas aqui no blog 1, 2.

    Uma descoberta surpreendente

    A cada dia um número maior de artigos vêm sendo publicados e mostrando aquilo que muitos pesquisadores já imaginavam que poderia acontecer. Isto é, desde pessoas que tiveram a forma assintomática e leve da Covid-19 até as que tiveram a forma severa, desenvolvem linfócitos T de memória. Estes linfócitos são capazes de responder ao vírus de forma eficiente, caso sejam expostos ao vírus novamente. Apesar de vários estudos mostrarem que células de memória reagem contra partes diferentes do SARS-CoV-2 3-8, desde a Spike, até a proteína do envelope, nucleocapsídeo e NSPs.

    Sobre a Imunidade ou Reatividade Cruzada, de novo

    Contudo, o que mais tem chamado a atenção dos pesquisadores é o fenômeno chamado de Imunidade ou Reatividade Cruzada de linfócitos T de memória de outros coronavírus contra proteínas do SARS-CoV-2. Já explicado em outro texto aqui no Blogs . Um artigo publicado na Nature 3, mostrou que uma parte das pessoas infectadas com o vírus da SARS de 2002-2003 (SARS-CoV-1), isto é, há 17 anos atrás, ainda tinham células que conseguiam responder e se multiplicar ao reconhecerem a proteína N (de Nucleocapsídeo) do SARS-CoV-2.

    Esse mesmo artigo também viu que indivíduos que não haviam contraído a SARS e Covid-19, tinham linfócitos T de memória. Estes linfócitos T respondiam principalmente à duas NSPs do SARS-CoV-2, e a proteína N. Além disso, os linfócitos reconheciam um pedaço da proteína N que era muito parecido com pedaços da mesma proteína de outros coronavírus de humanos. No entanto, com os fragmentos das NSPs isso não acontecia, levantando a hipótese que essas células poderiam responder a fragmentos de proteínas de coronavírus animais.

    Um segundo artigo4, mostrou que uma parte dos pacientes saudáveis que não tinham sido expostos a Covid-19 também possuíam linfócitos T de memória funcionais. Estes respondiam há um fragmento da proteína S, assim como pacientes que haviam se infectado com o SARS-CoV-2. Além disso, esse fragmento da Spike (que as células respondiam) é bastante parecido com a Spike de outros coronavírus de humanos (os HCoVs).

    A partir de experimentos utilizando tanto a proteína Spike dos HCoVs, quanto os HCoVs inteiros, os pesquisadores viram que essas células de memória reagentes, presente em pacientes que nunca tinham se infectado com SARS ou Covid-19, respondiam muito bem e eram capazes de se multiplicar tanto na presença da proteína quanto do vírus completo.

    O que tudo isso significa?

    A essa altura do campeonato, vocês devem estar se perguntando o que toda essa quantidade absurda de siglas e dados tem a ver com vocês. O ponto todo desses estudos é indicar que existe uma certa quantidade de imunidade em pessoas não expostas ao causador da Covid-19. Além disso, as pesquisas buscam mostrar a imunidade celular que geramos contra o SARS-CoV-2. É claro que grandes dúvidas ainda ficam no ar, como por exemplo: da onde vêm essas células? Qual o grau de proteção que elas garantem? O que poderia ter levado a formação delas? 

    Como já comentado anteriormente, muitos pesquisadores especulam que essas células possam surgir a partir de eventos prévios de infecção pelos Coronavírus Endêmicos de Humanos (HCoVs)9. Estes coronavírus são causadores dos ciclos de resfriado comum nas estações secas e que circulam amplamente entre a população humana, assim como o vírus influenza. Dessa forma, acredita-se que as pessoas que já tivessem entrado em contato com esses vírus teriam uma maior chance de ter células de memória. As células de memória poderiam responder a alguma proteína ou fragmento de proteína que fosse compartilhado entre os HCoVs e o SARS-CoV-2.

    Mas qual a implicação disso?  

    A principal hipótese levantada é que a presença de linfócitos de memória em parte da população seja o porquê algumas pessoas desenvolvem a forma leve da doença. Ou, até mesmo, permanecem de forma assintomática – estes seriam os casos em que há a presença dessas células de memória. Enquanto isso, a Covid-19 poderia estar relacionada à presença de comorbidade (como já foi muito discutido) somada a falta dessas células de memória. Isso, claro, em sua forma mais severa. Aqui é necessário lembrar que as pessoas que teriam os linfócitos de memória poderiam gerar a forma leve ou assintomática. Isto em decorrência delas conseguirem montar uma resposta mais rápida e forte contra o SARS-CoV-2, dessa forma limitando a severidade da doença. 

    Um outro impacto que a existência de uma imunidade celular cruzada entre SARS-CoV-2 e HCoVs poderia ter é relacionada ao desenvolvimento de vacinas. A pré-existência de linfócitos T de memória, principalmente nas primeiras fases de testes, poderia gerar um fator de confusão durante a análise dos resultados. Assim, não seria possível saber se essas células que respondem à vacina seriam novos linfócitos gerados a partir dessa imunização, ou linfócitos de memória que foram reativados após a vacinação. Assim, esta informação, obviamente, não é banal dentro do que precisamos compreender sobre o coronavírus…

    Por fim…

    Apesar disso tudo, muitos estudos (principalmente com grupos maiores e mais diversos de humanos) ainda precisam ser realizados. Tais estudos necessitam verificar a pré-imunidade ao SARS-CoV-2 – decorrente dos HCoVs. Além disso, analisar o potencial de infecção e severidade da doença nesses casos, através da medição dessa pré-imunidade antes e após os testes. Como vocês podem ver, ainda há muito o que descobrir sobre esta doença e nosso sistema imune!

    Para saber mais

    1. A Joia da Coroa (2020) https://www.blogs.unicamp.br/covid-19/a-joia-da-coroa/
    2. Valentões dentro da célula, sensíveis fora dela: os vírus (2020) https://www.blogs.unicamp.br/covid-19/valentoes-dentro-da-celula-sensiveis-fora-dela-os-virus/
    3. Le Bert, N, Tan, AT, Kunasegaran, K, Tham, CY, Hafezi, M, Chia, A, & Chia, WN (2020) SARS-CoV-2-specific T cell immunity in cases of COVID-19 and SARS, and uninfected controls, Nature, 584(7821), 457-462. 
    4. Braun, J, Loyal, L, Frentsch, M, Wendisch, D, Georg, P, Kurth, F, & Baysal, E (2020) SARS-CoV-2-reactive T cells in healthy donors and patients with COVID-19 Nature, 10
    5. Ni, L, Ye, F, Cheng, M. L, Feng, Y, Deng, YQ, Zhao, H, … & Sun, L (2020) Detection of SARS-CoV-2-specific humoral and cellular immunity in COVID-19 convalescent individuals Immunity
    6. Sekine, T, Perez-Potti, A, Rivera-Ballesteros, O, Strålin, K, Gorin, JB, Olsson, A, … & Wullimann, DJ (2020) Robust T cell immunity in convalescent individuals with asymptomatic or mild COVID-19 Cell
    7. Meckiff, BJ, Ramírez-Suástegui, C, Fajardo, V, Chee, SJ, Kusnadi, A, Simon, H, … & Ay, F (2020) Single-cell transcriptomic analysis of SARS-CoV-2 reactive CD4+ T cells Available at SSRN 3641939.
    8. Grifoni, A, Weiskopf, D, Ramirez, SI, Mateus, J, Dan, JM, Moderbacher, CR, … & Marrama, D (2020) Targets of T cell responses to SARS-CoV-2 coronavirus in humans with COVID-19 disease and unexposed individuals Cell
    9. Sette, A, & Crotty, S (2020) Pre-existing immunity to SARS-CoV-2: the knowns and unknowns Nature Reviews Immunology, 20(8), 457-458. 

    Para mais informações:

    Chen, Z, & Wherry, E J (2020) T cell responses in patients with COVID-19 Nature Reviews Immunology, 1-8. 

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e que são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

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