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  • A ilusão da Maioria

    Autoria

    Zero

    Oi, para quem não sabe, essa é a minha aparência (uma das).

    Mas porque estou falando disso?

    Pelo menos para mim, uma das maiores questões de sermos quem somos é o receio de como as pessoas intolerantes na sociedade reagirão. Um receio das sanções que posso sofrer, algumas violências diretas ou indiretas que podem se dirigir à mim. Porém ja faz bastante tempo que fortaleço uma ideia que me encorajou e acredito também poder encorajar outras pessoas em situações que tenham receio do que as pessoas intolerantes farão. Digo isso também às situações em geral que possam levar pessoas a terem receio de serem elas mesmas por conta de outras que são intolerantes, seja por etnia, crença, costume, preferências, etc.

    Agora acompanhe meu raciocínio, vamos considerar os indivíduos de uma sociedade representados na imagem abaixo. Os gatinhos como as pessoas que respeitam as outras, e os quadradinhos as intolerantes. Olhando o todo, vemos que há 10 gatinhos e 6 quadradinhos, logo os gatinhos são a maioria.

    Porém vamos acrescentar as conexões. Digamos que todos os quadradinhos nessa sociedade interajam somente entre si. Nesse caso, teremos uma rede assim:

     

    Na visão desses quadradinhos, a sociedade se resume ao seu perfil, por exemplo, que a sociedade seja cis-heteronormatividade. Embora estes quadradinhos não formem a maioria, eles estão conectados uns aos outros dando-lhes a impressão de estarem em contato com uma parte grande da sociedade, como numa bolha, onde todos ali pensam parecido e forma-se a crença de que tal pensamento seja o predominante.

    Contudo, a ilusão da maioria também pode afetar os gatinhos. Imagine que 5 gatinhos interajam com outros 5 quadradinhos, de modo que nenhum quadradinho interaja com mais do que 5 gatinhos.

    Neste cenário, cada gatinho tem a percepção de que a sociedade seja formada por 5 quadradinhos e 1 gatinho (ou seja, seu grupo representa 16% da sociedade), enquanto cada quadradinho tem a percepção de que a sociedade seja formada por 6 quadradinhos e 4 gatinhos (ou seja, seu grupo representa 60% da sociedade).

    Agora imagine que os outros 5 gatinhos decidiram interagir na sociedade, e passaram a se conectar cada um deles com dois quadradinhos, de modo que cada quadradinho não se conecte com mais do que dois novos gatinhos.

    Neste cenário, metade dos gatinhos tem a percepção de que a sociedade seja formada por 5 quadradinhos e 1 gatinho (ou seja, seu grupo representa 16% da sociedade), a outra metade dos gatinhos tem a percepção de que a sociedade seja formada por 2 quadradinhos e 1 gatinho (ou seja, seu grupo representa 33% da sociedade). Por outro lado, cada quadradinho agora tem a percepção de que a sociedade seja formada por 6 quadradinhos e 6 gatinhos (ou seja, seu grupo representa 50% da sociedade).

    Essa é a ilusão da maioria. Pois embora os gatinhos sejam a maioria da sociedade, eles se enxergam como minoria. Pois os quadradinhos estão representando pivôs de conexões. Podemos contextualizar melhor este cenário quando pensamos em alguns pivôs de conexões na nossa sociedade, como líderes religiosos, atores, atletas, influenciadores, jornalistas, artistas, divulgadores científicos e professores. Sim, professores são pivôs de conexões, por exemplo, esse semestre eu tive 140 alunos se encontrando pessoalmente comigo toda semana por períodos de 90 a 300 minutos.

    Mas como explicado, a ilusão da maioria ocorre devido as conexões existentes serem muito direcionadas à minoria, e por isso parecem ser a maioria. Para romper com esta ilusão é necessário que duas técnicas sejam aplicadas em simultâneo!

    • Aumentar as conexões
    • Furar as bolhas

    No nosso caso, fazer com que os gatinhos tenham interação com uma parcela maior da sociedade, descobrindo assim que há mais gatinhos do que quadradinhos. Ao mesmo tempo, fazer com que os quadradinhos interajam não só com outros quadradinhos.

    Embora essa pareça uma solução simples, ela é deveras complicada quando nos sentimos a minoria, quando temos receio de sofrermos algum tipo de violência, de sermos sancionados pelo simples fato de querermos ser quem somos.

    A ilusão da maioria tem ainda um viés mais obscuro, que envolve não só sentir-se minoria, mas buscar participar da aparente minoria. Desde alisar o cabelo, fingir ser cis-heteronormativo, negar suas práticas religiosas ou simplesmente usar vestimentas e cores que não lhe agradam.

    Enfim, além de não serem questões simples de se resolver, são até certo ponto perigosas, mas definitivamente necessárias. Eu como docente de matemática e atuando na divulgação científica, tento trazer esse tema para os espaços que ocupo, abrindo assim conexões à outros gatinhos que assim como eu, já se sentiram minoria frente a uma minoria de quadradinhos.

     

    Sobre quem escreveu

    Podem me chamar de Zero, fiz Licenciatura em Matemática pela USP, Mestrado na UNESP sobre a aprendizagem de Pensamento Computacional, Doutorado na UNICAMP sobre a aprendizagem de Demonstrações Matemáticas, Especialização em Informática Aplicada à Educação no IFRJ e atualmente sou docente de Matemática e curso Licenciatura em Química, ambos no IFRJ.

    Como citar:  

    SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. A ilusão da maioria. Revista Blogs Unicamp, Vol.10, N.1, Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/a-ilusao-da-maioria/. Acesso em: DD/MM/AAAA

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Gatos ferais no parque Kakaako – CC BY 2.0Por Daniel Ramirez no Flickr (original)

    Bandeiras: Canva Pro

    Edição: clorofreela

  • Uma palavrinha sobre estágio supervisionado

    Autoria

    Zero

    Nos cursos de licenciatura e pedagogia no Brasil, temos algumas disciplinas de estágio supervisionado, parte da sua carga-horária tem como objetivo que o estudante vá para a escola e acompanhe os docentes em exercício.

    A alguns anos entrei em discussão com familiares que por suas próprias razões decidiram fazer como segunda graduação pedagogia e licenciatura na área em que é bacharel. No primeiro caso, a pessoa já tinha muitos anos de experiência docente em outras áreas de atuação, e negociou por fora com seu supervisor de estágio para que fosse liberado de acompanhar suas aulas, e este concordou e emitiu o documento declarando que frequentou as horas necessárias no estágio. No segundo caso, a pessoa não tinha experiência docente e julgando ser uma ação dispendiosa, também conseguiu negociar por fora para que seu supervisor de estágio declarasse que frequentou as horas necessárias na sala de aula.

    Ao trazer esse tema para debate, os argumentos que ouvi em defesa dessas ações foram:

    • fulano já é docente experiente, não faz sentido que ele fique assistindo as aulas;
    • sicrano quer apenas o diploma;
    • se fosse remunerado eu iria;
    • são muitas horas desperdiçadas;
    • a pessoa não sabia que teria que fazer estágio;
    • a pessoa escolheu fazer licenciatura pois foi o único curso que ela conseguiu;
    • a pessoa vai aprender a ensinar independente do estágio;
    • se a pessoa trabalha e estuda, não terá tempo de fazer o estágio.

    Por muito tempo esse assunto ficou entalado, mas hoje decidi trazer pro blog. Quando fiz estágio, cumpri as horas à risca, frequentava as salas de aula, aguardava o intervalo, anotava no caderno o que acontecia na sala, fazia críticas sobre os docentes, sobre a sala, sobre o contexto todo, preparava a regência com base naquelas observações e sentindo o andamento da turma, e sem receber nenhum auxílio financeiro para isso, nem mesmo o transporte ou a alimentação eram fornecidos.

    Agora vamos para a resposta aos argumentos que escuto:

    Fulano já é docente experiente, não faz sentido que ele fique assistindo as aulas. Se a experiência docente já é na área em que está sendo feita a formação, deveria ser possível emitir alguma declaração da instituição que faça equivalência nessas horas a serem cumpridas. Mas a experiência docente por si em outra área não se equivale, isto é, as abordagens para ensino de matemática são diferentes daquelas para o ensino de química (estou fazendo licenciatura em química, então isso está mais do que evidente). Ainda que as disciplinas ou eixos curriculares tenham aspectos comuns, temos de considerar que na ocasião do estágio, estamos observando o trabalho de um profissional em exercício, assim, certamente há o que possamos aprender com isto.

    Sicrano quer apenas o diploma. Há nessa afirmação o interesse no título associado a essa formação, seja qual for a razão para esse interesse, ainda que nobre, coloca em xeque a garantia de que a certificação esteja sendo emitida com um controle de qualidade razoável. Isto não significa que querer o diploma seja errado, mas o “querer apenas o diploma” tem implícito a intenção de não cometer nenhum ato gravemente ilícito de modo que consiga seu nome timbrado no diploma daquela instituição. Pense assim, se houvesse 100% de certeza de que não seria descoberto e nem punido por isso, a pessoa com essa intenção emitiria seu diploma com as credenciais da instituição, já que não tem a intenção de passar por sua formação.

    Se fosse remunerado eu iria. Acho curioso como essa afirmação não se dá conta de que há uma carga-horária total no curso, e que o estágio cobre parte dela. Digo isso pois temos tantas horas de disciplinas e não somos remunerados para cursá-las, precisamos entregar certificados de atividades extra-curriculares equivalente também a um grande número de horas, e não há uma garantia de que essas horas gastas foram remuneradas. Contudo, a exigência de que o estágio supervisionado seja remunerado para realizá-lo, é inverter a relação de interesses nesse processo formativo. O interessado em se formar é o estagiário, não a instituição que o acolhe, e nos cenários que frequentei, o número de interessados é muito maior do que de instituições com vagas remuneradas disponíveis. Assim, por que esse argumento não se aplica com disciplinas teóricas? Ain… não vou assistir às aulas de Didática porque não sou remunerado para isso. Claro que preferiria ser remunerado para tudo, ter auxilio transporte, auxilio alimentação, mas a situação não é assim.

    São muitas horas desperdiçadas. Assistir a um profissional exercendo sua atividade com seu público-alvo e por vezes envolvido com os estagiários nestas ações é um tempo desperdiçado? Será que pensam que isso é verdade em estágios nas áreas de engenharia, arquitetura, enfermagem? Mas talvez aquele que afirme isso realmente esteja se visualizando como um profissional docente daqui a algum tempo. Digo isso pois há uma aprendizagem nesse ínterim, mas que dependerá do que o estagiário estará fazendo nestas horas. Se acompanhar a aula, observar, interagir, tomar nota e refletir sobre o evento, estará aprendendo muito, ainda que não seja uma aprendizagem quantificável em número de técnicas, quantidade de conceitos ou abordagens famosas.

    A pessoa não sabia que teria que fazer estágio. Quando nos inscrevemos em um curso de graduação, há uma série de documentos que são disponibilizados, dentre eles há o plano do curso, que delibera sobre as disciplinas, a carga-horária e outros requisitos. Para que a inscrição ocorra, assinamos dizendo que estamos cientes desses documentos, quer tenhamos realmente lido esses documentos ou não. Assim, a justificativa de que não sabia, remete a própria responsabilidade do individuo como um cidadão adulto em responder por si na sociedade (experimenta assinar algumas coisas no banco sem ler… veja se eles terão tanta pena de sua ingenuidade).

    A pessoa escolheu fazer licenciatura pois foi o único curso que ela conseguiu. De fato, os cursos de licenciatura de forma geral, costumam ter uma nota de corte menor, que permitem às pessoas acessá-los mais facilmente. Contudo, a escolha por cursá-los é espontânea, não há uma imposição que exigem à pessoa cursar esta graduação (diferente do serviço militar que é obrigatório). Assim, a decisão é voluntária, ainda que existam razões nobres por trás dela, não deveria caber a outros essa responsabilidade e suas consequências.

    A pessoa vai aprender a ensinar independente do estágio. Isso é verdade, definitivamente verdade. Assim como em outras áreas, o profissional aprenderá a exercer seu ofício mediante sua prática regular. A diferença é que podemos ter construções desmoronando e pessoas morrendo por conta dessa inexperiência. Mas parece que quando falamos em “ensinar”, os prejuízos que a inexperiência causa são minimizados, afinal não parece “ocorrer nada de grave” com isso, embora ocorra, e essas consequências serão percebidas (ou não) ao longo dos anos e de formas subjetivas. Razão esta, que reforça essa minização dos danos que a inexperiência em sala de aula ocasione. Digo que embora tenha feito os estágios certinho, quando entrei na sala de aula, ainda me sentia imatura e inexperiente, avaliando hoje minhas aulas de antigamente, considero-as muito ruins em comparação com hoje (isso não quer dizer que tenham realmente sido muito ruins, mas que hoje elas melhoraram bastante). O estágio assim serviu de uma base inicial dessa experiência, evitando assim que os danos ao meu público-alvo fossem maiores.

    Se a pessoa trabalha e estuda, não terá tempo de fazer o estágio. De fato, trabalhar, estudar e fazer estágio é algo bastante pesado para qualquer ser humano (ainda mais se considerarmos que há outras tarefas em casa a serem realizadas), mas daí entramos na questão de assumir um compromisso do qual não conseguirá cumprir. Se eu me comprometo a algo do qual não tenho condições de realizar, de quem é o erro? Digo isso, pois muitas vezes assumimos compromissos impossíveis por uma dificuldade em compreendermos nossas próprias limitações.

    Tive colegas de graduação que trabalhavam, estudavam, cuidavam de suas famílias, faziam PIBID e iam para o estágio… não sei que horas esses colegas dormiam, mas eles sabem seus próprios limites e julgaram conseguirem cumprir estes requisitos. Meus limites são diferentes dos seus, e das pessoas à nossa volta, há quem durma 4 horas por dia e está ótimo, há quem durma 10 horas por dia e vive com o corpo quebrado, há quem consiga estudar 10 horas seguidas, há quem estude 1 hora e precise descansar o resto do dia. Assim, essa questão não gira em torno do estágio, do trabalho e do estudo, e sim do quanto nos conhecemos antes de assumirmos um compromisso, para depois não culparmos o compromisso por nossa própria limitação.

     

    A discussão seguiu com um desfecho peculiar, pois quando devolvi a questão aos envolvidos sobre se eles na posição de docentes responsáveis pelo estágio supervisionado, viriam a permitir e deliberar que seus estudantes fizessem o mesmo que fizeram, a resposta foi negativa. Isto é, na hipótese de avaliarem seus próprios comportamentos, os mesmos não o aprovariam.

    Para concluir esse texto, enxergo que a resolução sobre como funcionam os estágios supervisionados é uma pauta de colegiados e reuniões sobre a estruturação de cursos e disciplinas, daquelas que com bastante sofrimento conseguimos reunir docentes dispostos a participar. Ao mesmo tempo, que ocupar uma cadeira para tais decisões seja o resultado de uma longa e insistente caminhada dentro de uma série de instituições e aderindo às suas normas, sem as quais as mesmas não viriam a qualificá-lo para que viesse ocupar este lugar. Em minha posição como docente de matemática, aderi à causa das provas escritas não serem compulsórias, isto é, que os alunos possam ser aprovados com conceito máximo, sem a necessidade de realizá-las. Essa é minha causa, da qual defendo e enfrento oposição, mas sigo insistente nessa direção.

    Em relação ao estágio supervisionado, não me coloquei até o momento em posição de discuti-lo, nem de votar a seu respeito, uma vez que leciono na graduação em Química, não estou envolvida nessas disciplinas. Mas acredito que sua proposta pedagógica possa sim ser repensada com alternativas para dispor de mais opções aos estudantes que precisem realizá-las, contudo isso é algo a ser reformulado de cima para baixo, ou seja, cabe ao docente repensar a forma como validará o período de estágio supervisionado e não ao estudante procurar meios diferentes para realizá-lo. Salvo é claro sugestões e propostas que venham a ser aderidas pelo docente.

    // Esse é um texto que demorei bastante tempo para maturar, e pensei muito sobre se deveria ou não postá-lo aqui. Embora não seja um tema diretamente ligado à matemática, é uma discussão que acredito auxiliar a posição de docente como profissional, e dessa forma ter seus processos formativos respeitados e zelados em prol de seu exercício adequado. Assim, eu como licencianda em química do IFRJ venho cumprindo as disciplinas das quais não consegui equivalência, realizando os processos avaliativos propostos e frequentando as aulas.

    Alguns de meus colegas me tratam com indiferença em sala de aula, outros fazem uso de mim como uma ponte entre a disciplina que lecionam e minha expertise, e tais relações são proveitosas, tanto para mim que posso acompanhar meus colegas em seu exercício no magistério superior, como para eles que visualizam oportunidades incomuns de conexões. Então para aqueles em particular adeptos à filosofia, que consideram não terem nada a aprender assistindo as aulas de outros profissionais no estágio supervisionado, optando assim pela desonestidade frente à essa disciplina, encerro este post com uma frase do escritor grego Esopo.

    Ninguém é grande demais que não possa aprender, nem pequeno demais que não possa ensinar

    Créditos da imagem de capa a 41330 por Pixabay

    Sobre quem escreveu

    Podem me chamar de Zero, fiz Licenciatura em Matemática pela USP, Mestrado na UNESP sobre a aprendizagem de Pensamento Computacional, Doutorado na UNICAMP sobre a aprendizagem de Demonstrações Matemáticas, Especialização em Informática Aplicada à Educação no IFRJ e atualmente sou docente de Matemática e curso Licenciatura em Química, ambos no IFRJ.

    Como citar:  

    SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. Uma palavrinha sobre estágio supervisionado. Revista Blogs Unicamp, Vol.10, N.1, Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/uma-palavrinha-sobre-estagio-supervisionado/. Acesso em: DD/MM/AAAA

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Por @assumption111 no Freepik (original)

    Edição: clorofreela

  • O problema Água, Luz e Esgoto

    Quem sabe se ligar de um modo diferente você consiga conectar as 3 companhias nas 3 casas?

    Depois de tentar por muitas e muitas vezes unir as 3 casinhas com Água, Luz e Esgoto, ouvi que era impossível. Mas acreditei parcialmente…

    Passavam-se os anos, e de vez em quando eu pegava este desafio para tentar resolver, pensando de formas diferentes, tentando estratégias diferentes… Mas nunca chegando a uma solução.

    No começo de 2011 estava em meu quinto semestre de graduação em Matemática, quando conheci um professor pra lá de peculiar. Ele se apresentava como E.T. (as abreviações de seu nome), e suas aulas de Cálculo III eram estranhamente dinâmicas, bem humoradas e interativas. Meu trajeto até este semestre tinha sido bastante turbulento, muitas reprovações, dúvida constante sobre se eu estava no curso certo, se deveria ou não continuar, ao mesmo tempo que tinha um grande prazer por tudo aquilo que acontecia nas aulas, ainda que não conseguisse corresponder.

    Em meio a essas aulas, veio a notícia de que estaria começando naquele semestre um evento todas as sextas-feiras, chamado Seminários de Coisas Legais e ocorreria às 13h13. O professor convidava a toda a turma para quem quisesse compor as apresentações, bastava entrar em contato, a única condição é que o tópico apresentado deveria “ser legal”.

    Assistindo as apresentações ficava claro que eram realmente seminários legais, e dava vontade de apresentar também. Mas o que eu poderia levar de legal, se mal conseguia o 5.0 necessário pra passar nas disciplinas? Então veio a memória daquele desafio de ligar as 3 casinhas com Água, Luz e Esgoto. Entrei em contato com o professor e apresentei o problema, ele achou legal o suficiente para expor, mas queria ver o que eu faria antes de marcar a apresentação.

    Pesquisei bastante, em blogs, sites, e vários lugares e tentei escrever em matematiquês até formar um “argumento” que garantisse o problema não ter solução. Fiz várias análises, tentei reescrevê-lo de diferentes maneiras utilizando toda aquela matemática que conhecia, usei muitas imagens, e cheguei a um argumento que me convencia de realmente não ter solução. Estava perfeito aos meus olhos, até levar aos professores que estariam me auxiliando naquele momento, e descobri que minha demonstração não demonstrava nada XD. Era algo empírico, mostrava para alguns casos, mas nem de longe garantiria a abrangencia daquele resultado. Hoje analisando, realmente eu não poderia ter chegado naquela demonstração sozinha, já que faltavam algumas ferramentas que estavam para além do repertório conhecido de geometria.

    Enfim, com a orientação deles vim a aprender uma propriedade nova de geometria, um resultado que garantiria realmente não ter solução para este problema. Admito que precisei ler umas 20 vezes essa propriedade, fazer rascunhos com valores, testes e tudo mais pra começar a entender mais ou menos o que ela dizia. Mas a parte legal é que estava satisfatória para apresentar.

    Então essa jovem, com seus 19 anos, que até então teve um trajeto acadêmico de muitos tropeços e quedas nas disciplinas mais básicas do curso, ganha seu momento de palestrar.

    No dia fui de bicicleta para o campus, embaixo de uma chuva torrencial. Cheguei mais molhada do que se tivesse pulado numa piscina, e me sequei com papel toalha no banheiro uns 20 minutos antes de começar. Nervosismo, ansiedade, uma platéia que já seria intimidadora para uma aluna mediano, estava agora em silêncio para me ouvir falar de algo que eu segurava com dificuldade.

    Essa foi uma experiência que realmente me influenciou positivamente. Minha primeira palestra. Minha primeira apresentação de um tópico de matemática para o público acadêmico (fora as atividades dentro de disciplinas). Mas foi um momento que recebi coragem e apoio de vários professores, em particular deste que se apresentava como E.T. Depois disso tive uma maior segurança e estímulo para apresentar em outros lugares, para falar de matemática e me arriscar em aprender propriedades apenas por achá-las legais. Tanto que 12 anos depois estou aqui escrevendo sobre esta experiência.

    E então… cade a demonstração?

    Vamos lá, para a parte 3 deste texto, pois a demonstração merece todo um desenvolvimento cuidadoso.

    Trabalhar em cima desta demonstração, de certa forma, me incentivou a pesquisar e estudar matemática de forma séria e divertida.

    Vamos começar!

    Primeiramente devemos olhar nosso problema como uma questão de grafos no plano bidimensional:

    Cada casa ou companhia equivale a um vértice, ou seja, uma unidade pontual;

    Para facilitar a notação, vou redesenhá-los como pontinhos no plano, denotados por B (casa azul), Y (casa amarela), R (casa vermelha), G (companhia de água), C (companhia de luz) e P (companhia de esgoto).

    Vamos definir também que toda conexão entre uma casa e uma empresa será chamada de aresta.

    Mas não necessariamente estas arestas precisam ser segmentos de retas (basta que seja uma linha que comece e termine em vértices e não se cruze com nenhuma outra linha). Exemplo de duas arestas G-B e G-Y.

    Por fim, cada região do plano, totalmente cercada por arestas, será chamada de uma face. Por exemplo, se eu inserir as arestas C-B e C-Y, formamos duas faces cercada pelos vértices G, C, B e Y (sim, são duas faces, a interna em laranja e a externa que representa o restante do plano).

    Assim, temos 6 arestas (B, Y, R, G, C e P) e seeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee o problema tiver solução, então ele deverá ter 9 arestas:

    • G-B, G-Y, G-R

    • C-B, C-Y, C-R

    • P-B, P-Y, P-R

    Então, se sabemos o número de vértices e de arestas, podemos usar a fórmula de Euler para determinar o número de faces (eu falo um pouco sobre a fórmula de Euler no contexto tridimensional neste texto O Garlon faz vários cortes no poliedro, mas a fórmula de Euler é implacável).

    Para o plano: (número de faces) + (número de vértices) – (número de arestas) = ​​2

    (número de faces) + 6 – 9 = ​​2

    (número de faces) = ​​5

    Assim, seeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee houver solução, teremos 5 faces, 9 arestas e 6 vértices.

    Vamos agora analisar como será a relação destas 5 faces com nossas 9 arestas.

    Faces formadas por 1 aresta (chamaremos de Faces-1): besteira! Pois teríamos um vértice ligado a ele mesmo com uma mesma aresta. Veja que na figura abaixo temos duas faces foramadas pela aresta G-G, a face interna e a face externa.

    Faces formadas por 2 arestas (chamaremos de Faces-2): estranho! Pois estamos fazendo ligando duas vezes uma mesma companhia de uma casa. Veja que na figura abaixo temos duas faces foramadas por duas arestas G-B e B-G, a face interna e a face externa.

    Faces formadas por quantidades ímpares de arestas: sem sentido… pois teríamos uma ligação entre duas casas, ou entre duas companhias (o famoso “gato”). Veja que na figura abaixo temos duas faces foramadas por três arestas G-B, B-C, G-C, a face interna e a face externa.

    Veja que na figura abaixo temos duas faces foramadas por cinco arestas B-Y, Y-P, P-R, R-C, C-B, a face interna e a face externa.

    Com isso, as faces da nossa solução devem ser formadas por um número par de arestas, maior ou igual a 4.

    No entanto, existe um teorema matemático válido para grafos no plano, que diz:

    2*(número de arestas) = ​​1*Face-1 + 2*Face-2 + 3*Face-3 + 4*Face-4 + 5*Face-5 + 6*Face-6 + …

    onde Face-N representa o número de faces formadas por N arestas.

    Agora combinando o resultado da fórmula de Euler, de quando supomos que o problema teria solução, com este novo teorema, temos que:

    2*9 = ​​1*Face-1 + 2*Face-2 + 3*Face-3 + 4*Face-4 + 5*Face-5 + 6*Face-6 + …

    Mas como vimos antes, faces com 1 aresta, 2 arestas e qualquer quantidade ímpar de arestas, não faz sentido para nossa solução. Então temos:

    18 = ​​1*0 + 2*0 + 3*0 + 4*Face-4 + 5*0 + 6*Face-6 + 7*0 + 8*Face-8 + …

    Simplificando fica:

    18 = 4*Face-4 + 6*Face-6 + 8*Face-8 + …

    Mas observe que pela fórmula de Euler, eu tenho 5 faces, então:

    Face-4 + Face-6 + Face-8 + Face-10 + Face-12 + … = 5

    Ou seja,

    18 = 4*Face-4 + 6*Face-6 + 8*Face-8 + 10*Face-10 + 12*Face-12 … ≥ 4*5 + 6*0 + 8*0 + 10*0 + 12*0 + …

    Concluímos com isso que:

    18 ≥ 20

    Mas isso é um absurdo!

    Logo, como consequência temos que aquela hipótese inicial de que o problema teria solução no plano, é falsa.


     

    Sobre o autor

    Podem me chamar de Zero, fiz Licenciatura em Matemática pela USP, Mestrado na UNESP sobre a aprendizagem de Pensamento Computacional, Doutorado na UNICAMP sobre a aprendizagem de Demonstrações Matemáticas, Especialização em Informática Aplicada à Educação no IFRJ e atualmente sou docente de Matemática e curso Licenciatura em Química, ambos no IFRJ.

Como citar:  

SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. O problema Água, Luz e Esgoto. (2023). Revista Blogs Unicamp, Vol. 9, N.2. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/11/29/o-problema-agua-luz-e-esgoto/. Acesso em: dd/mm/aaaa.

Sobre a imagem destacada:

Fotografia Freepik. Arte por Juliana Luiza.

O problema Água, Luz e Esgoto

Autor

Zero

Eu era criança quando o tio Marcelo (um amigo bem próximo de meus pais) me apresentou o seguinte desafio:

Existem 3 casinhas (Azul, Amarela e Vermelha) e 3 companhias (Água, Luz e Esgoto).

Então cada casa precisa ser conectada com cada uma dessas companhias, traçando uma linha no papel sem que se cruzem.

Vamos fazer um exemplo, comecei ligando as três casas com Água.

Então liguei a casa vermelha com Luz e Esgoto.

Então liguei a casa amarela com Luz e Esgoto.

Então liguei a casa azul com Luz.

Agora só falta ligar a casa azul com Esgoto… mas por onde? Observe que todas as regiões ao redor da companhia de Esgoto já estão fechadas.

Ou seja, por onde quer que passemos, precisaremos cruzar uma dessas linhas.

Gostou desse problema?

Que tal tentar resolvê-lo?

Quem sabe se ligar de um modo diferente você consiga conectar as 3 companhias nas 3 casas?

Depois de tentar por muitas e muitas vezes unir as 3 casinhas com Água, Luz e Esgoto, ouvi que era impossível. Mas acreditei parcialmente…

Passavam-se os anos, e de vez em quando eu pegava este desafio para tentar resolver, pensando de formas diferentes, tentando estratégias diferentes… Mas nunca chegando a uma solução.

No começo de 2011 estava em meu quinto semestre de graduação em Matemática, quando conheci um professor pra lá de peculiar. Ele se apresentava como E.T. (as abreviações de seu nome), e suas aulas de Cálculo III eram estranhamente dinâmicas, bem humoradas e interativas. Meu trajeto até este semestre tinha sido bastante turbulento, muitas reprovações, dúvida constante sobre se eu estava no curso certo, se deveria ou não continuar, ao mesmo tempo que tinha um grande prazer por tudo aquilo que acontecia nas aulas, ainda que não conseguisse corresponder.

Em meio a essas aulas, veio a notícia de que estaria começando naquele semestre um evento todas as sextas-feiras, chamado Seminários de Coisas Legais e ocorreria às 13h13. O professor convidava a toda a turma para quem quisesse compor as apresentações, bastava entrar em contato, a única condição é que o tópico apresentado deveria “ser legal”.

Assistindo as apresentações ficava claro que eram realmente seminários legais, e dava vontade de apresentar também. Mas o que eu poderia levar de legal, se mal conseguia o 5.0 necessário pra passar nas disciplinas? Então veio a memória daquele desafio de ligar as 3 casinhas com Água, Luz e Esgoto. Entrei em contato com o professor e apresentei o problema, ele achou legal o suficiente para expor, mas queria ver o que eu faria antes de marcar a apresentação.

Pesquisei bastante, em blogs, sites, e vários lugares e tentei escrever em matematiquês até formar um “argumento” que garantisse o problema não ter solução. Fiz várias análises, tentei reescrevê-lo de diferentes maneiras utilizando toda aquela matemática que conhecia, usei muitas imagens, e cheguei a um argumento que me convencia de realmente não ter solução. Estava perfeito aos meus olhos, até levar aos professores que estariam me auxiliando naquele momento, e descobri que minha demonstração não demonstrava nada XD. Era algo empírico, mostrava para alguns casos, mas nem de longe garantiria a abrangencia daquele resultado. Hoje analisando, realmente eu não poderia ter chegado naquela demonstração sozinha, já que faltavam algumas ferramentas que estavam para além do repertório conhecido de geometria.

Enfim, com a orientação deles vim a aprender uma propriedade nova de geometria, um resultado que garantiria realmente não ter solução para este problema. Admito que precisei ler umas 20 vezes essa propriedade, fazer rascunhos com valores, testes e tudo mais pra começar a entender mais ou menos o que ela dizia. Mas a parte legal é que estava satisfatória para apresentar.

Então essa jovem, com seus 19 anos, que até então teve um trajeto acadêmico de muitos tropeços e quedas nas disciplinas mais básicas do curso, ganha seu momento de palestrar.

No dia fui de bicicleta para o campus, embaixo de uma chuva torrencial. Cheguei mais molhada do que se tivesse pulado numa piscina, e me sequei com papel toalha no banheiro uns 20 minutos antes de começar. Nervosismo, ansiedade, uma platéia que já seria intimidadora para uma aluna mediano, estava agora em silêncio para me ouvir falar de algo que eu segurava com dificuldade.

Essa foi uma experiência que realmente me influenciou positivamente. Minha primeira palestra. Minha primeira apresentação de um tópico de matemática para o público acadêmico (fora as atividades dentro de disciplinas). Mas foi um momento que recebi coragem e apoio de vários professores, em particular deste que se apresentava como E.T. Depois disso tive uma maior segurança e estímulo para apresentar em outros lugares, para falar de matemática e me arriscar em aprender propriedades apenas por achá-las legais. Tanto que 12 anos depois estou aqui escrevendo sobre esta experiência.

E então… cade a demonstração?

Vamos lá, para a parte 3 deste texto, pois a demonstração merece todo um desenvolvimento cuidadoso.

Trabalhar em cima desta demonstração, de certa forma, me incentivou a pesquisar e estudar matemática de forma séria e divertida.

Vamos começar!

Primeiramente devemos olhar nosso problema como uma questão de grafos no plano bidimensional:

Cada casa ou companhia equivale a um vértice, ou seja, uma unidade pontual;

Para facilitar a notação, vou redesenhá-los como pontinhos no plano, denotados por B (casa azul), Y (casa amarela), R (casa vermelha), G (companhia de água), C (companhia de luz) e P (companhia de esgoto).

Vamos definir também que toda conexão entre uma casa e uma empresa será chamada de aresta.

Mas não necessariamente estas arestas precisam ser segmentos de retas (basta que seja uma linha que comece e termine em vértices e não se cruze com nenhuma outra linha). Exemplo de duas arestas G-B e G-Y.

Por fim, cada região do plano, totalmente cercada por arestas, será chamada de uma face. Por exemplo, se eu inserir as arestas C-B e C-Y, formamos duas faces cercada pelos vértices G, C, B e Y (sim, são duas faces, a interna em laranja e a externa que representa o restante do plano).

Assim, temos 6 arestas (B, Y, R, G, C e P) e seeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee o problema tiver solução, então ele deverá ter 9 arestas:

  • G-B, G-Y, G-R

  • C-B, C-Y, C-R

  • P-B, P-Y, P-R

Então, se sabemos o número de vértices e de arestas, podemos usar a fórmula de Euler para determinar o número de faces (eu falo um pouco sobre a fórmula de Euler no contexto tridimensional neste texto O Garlon faz vários cortes no poliedro, mas a fórmula de Euler é implacável).

Para o plano: (número de faces) + (número de vértices) – (número de arestas) = ​​2

(número de faces) + 6 – 9 = ​​2

(número de faces) = ​​5

Assim, seeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee houver solução, teremos 5 faces, 9 arestas e 6 vértices.

Vamos agora analisar como será a relação destas 5 faces com nossas 9 arestas.

Faces formadas por 1 aresta (chamaremos de Faces-1): besteira! Pois teríamos um vértice ligado a ele mesmo com uma mesma aresta. Veja que na figura abaixo temos duas faces foramadas pela aresta G-G, a face interna e a face externa.

Faces formadas por 2 arestas (chamaremos de Faces-2): estranho! Pois estamos fazendo ligando duas vezes uma mesma companhia de uma casa. Veja que na figura abaixo temos duas faces foramadas por duas arestas G-B e B-G, a face interna e a face externa.

Faces formadas por quantidades ímpares de arestas: sem sentido… pois teríamos uma ligação entre duas casas, ou entre duas companhias (o famoso “gato”). Veja que na figura abaixo temos duas faces foramadas por três arestas G-B, B-C, G-C, a face interna e a face externa.

Veja que na figura abaixo temos duas faces foramadas por cinco arestas B-Y, Y-P, P-R, R-C, C-B, a face interna e a face externa.

Com isso, as faces da nossa solução devem ser formadas por um número par de arestas, maior ou igual a 4.

No entanto, existe um teorema matemático válido para grafos no plano, que diz:

2*(número de arestas) = ​​1*Face-1 + 2*Face-2 + 3*Face-3 + 4*Face-4 + 5*Face-5 + 6*Face-6 + …

onde Face-N representa o número de faces formadas por N arestas.

Agora combinando o resultado da fórmula de Euler, de quando supomos que o problema teria solução, com este novo teorema, temos que:

2*9 = ​​1*Face-1 + 2*Face-2 + 3*Face-3 + 4*Face-4 + 5*Face-5 + 6*Face-6 + …

Mas como vimos antes, faces com 1 aresta, 2 arestas e qualquer quantidade ímpar de arestas, não faz sentido para nossa solução. Então temos:

18 = ​​1*0 + 2*0 + 3*0 + 4*Face-4 + 5*0 + 6*Face-6 + 7*0 + 8*Face-8 + …

Simplificando fica:

18 = 4*Face-4 + 6*Face-6 + 8*Face-8 + …

Mas observe que pela fórmula de Euler, eu tenho 5 faces, então:

Face-4 + Face-6 + Face-8 + Face-10 + Face-12 + … = 5

Ou seja,

18 = 4*Face-4 + 6*Face-6 + 8*Face-8 + 10*Face-10 + 12*Face-12 … ≥ 4*5 + 6*0 + 8*0 + 10*0 + 12*0 + …

Concluímos com isso que:

18 ≥ 20

Mas isso é um absurdo!

Logo, como consequência temos que aquela hipótese inicial de que o problema teria solução no plano, é falsa.


 

Sobre o autor

Podem me chamar de Zero, fiz Licenciatura em Matemática pela USP, Mestrado na UNESP sobre a aprendizagem de Pensamento Computacional, Doutorado na UNICAMP sobre a aprendizagem de Demonstrações Matemáticas, Especialização em Informática Aplicada à Educação no IFRJ e atualmente sou docente de Matemática e curso Licenciatura em Química, ambos no IFRJ.

Como citar:  

SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. O problema Água, Luz e Esgoto. (2023). Revista Blogs Unicamp, Vol. 9, N.2. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/11/29/o-problema-agua-luz-e-esgoto/. Acesso em: dd/mm/aaaa.

Sobre a imagem destacada:

Fotografia Freepik. Arte por Juliana Luiza.

  • Os povos indígenas ameaçados por uma empresa auxiliar dos carros elétricos?

    Os povos indígenas ameaçados por uma empresa auxiliar dos carros elétricos?

    No dia 09 de agosto tivemos o dia internacional dos povos indígenas e o Blog Conexão Natural produziu um texto voltado à questão energética, mineração e territórios indígenas. Vamos saber mais sobre baterias elétricas e territórios indígenas?

    A empresa Sigma e os povos indígenas

    A empresa Sigma é uma empresa que passa a imagem de ser verde e sustentável. Atualmente ela esta operando no Vale Jequitinhonha, na qual extraí lítio. Este lítio é vendido para baterias de carros elétricos, sendo estes uma das principais apostas para controlar as emissões de gases poluentes, já que este possui zero emissões.

    Porém, segundo esta reportagem do Observatório da Mineração, as atividades da empresa estão afetando as comunidades indígenas no local. Uma lista das comunidades pode ser visualizada no site Cultural Survival. Porém, estes impactos estão sendo escondidos pelo forte marketing que a empresa possuí.

    Indígenas e mineração

    Não é de muito tempo que há esse conflito entre preservação ambiental e mineração. Por exemplo, a mineração de ouro no território Yanomami gerou vários efeitos colaterais a esta comunidade. Isto e outros abusos que esta sofreu durante a gestão Bolsonaro. E com a pandemia, essa exploração de minério em território indígena ficou mais forte, conforme este estudo da FioCruz demonstra. E obvio que há outros casos de comunidades que sofrem com garimpo, que vocês podem pesquisar após a leitura deste texto.

    E porque há esse conflito? Justamente porque as pessoas querem ganhar dinheiro, nem que isso custe a vida de varias pessoas indígenas, sendo que estas por muitos são vistos como “intrusos” ou até mesmo “obstáculos” para o desenvolvimento econômico. Essa é a logica da economia hoje, a qual também atrapalha na questão do combate as mudanças climáticas. Isto devido ao lobby pesado de varias empresas de energia “suja”, que de forma alguma querem parar de produzir para continuarem vendendo.

    E como ficam os carros elétricos, dentre outros minerais importante para criação de energia renovável?

    Bem, não sei se você acompanha o trabalho do Conexão Na7ural via Instagram ou outras redes. Mas algumas vezes falei que os carros elétricos, mesmo sendo mais sustentáveis em termos de emissão que os carros convencionais, não vão ser a solução definitiva. Primeiramente, porque a energia dos carros elétricos pode vir de termelétricas, pois estas geram energia elétrica, a qual também pode carregar baterias. E as termelétricas podem ser abastecidas com combustíveis fósseis, aos quais emitem gases que prejudicam para a atmosfera. E também tem a questão de onde o material para a fabricação dos componentes destes carros vai ser extraído.

    A notícia de hoje é justamente para reforçar este segundo ponto. Os carros elétricos são sim bem vindos para o desenvolvimento sustentável, ainda mais pela sua questão de “zero” emissões. Mas, do que adianta extrair um lítio sustentável, se a extração do mesmo prejudica as comunidades indígenas locais? E o desenvolvimento sustentável, conforme até as reuniões da COP reforçam, devem atender as comunidades mais fragilizadas, dentre estas, os indígenas.

    E obvio que isso não só vale apenas a carros elétricos. Vale também para outros minérios importantes, como o sal-gema, cuja extração causou uma das maiores tragédias ambientais do Brasil. Mas é isso. Um feliz mês dos povos indígenas. E até a próxima.

    Para Saber Mais

    ANGELO, M (2023) Vendido como “verde”, lítio da canadense Sigma afeta indígenas e quilombolas no Jequitinhonha, Observatório da Mineração.

    BRASIL DE FATO (2023) Braskem: moradores de bairro que afundou em Maceió cobram há 4 anos reparação de mineradora, Brasil de Fato, Direitos Humanos.

    KRENAK, E (2023) The Violent Cartography of Lithium in Brazil: Indigenous and Traditional Communities Struggle with the Giant of Transition Minerals in Brazil, Cultural Survive.

    ROCHA, DF da; PORTO, MFS (2020) A vulnerabilização dos povos indígenas frente ao COVID-19: autoritarismo político e a economia predatória do garimpo e da mineração como expressão de um colonialismo persistente, Observatório Covid-19 Fiocruz, Rio de Janeiro, p. 1-17.

    ROSSI, V (2023) Mineração ilegal de ouro trouxe morte, doenças e violência aos Yanomami no Brasil Amazon Watch.

    SILVA, C (2023) Brasil começa a exportar ‘lítio verde’ e atrai multinacionais para o Vale do Jequitinhonha, Estadão.

     

    Sobre autor

    Rafal Henrique é graduado em Engenharia de Energia pela PUC Minas e mestre em Planejamento de Sistemas Energéticos pela Unicamp. Decidiu ingressar no projeto Blogs de Ciências da Unicamp, com o blog Conexão Na7ural, para abrir espaço de divulgação relacionado a energia e temas correlatos.

    Como citar:  

    Henrique, Rafael. (2023). Os povos indígenas ameaçados por uma empresa auxiliar dos carros elétricos. Revista Blogs Unicamp, V.9, N.2. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/11/29/os-povos-indigenas-ameacados-por-uma-empresa-auxiliar-dos-carros-eletricos/ Acesso em dd/mm/aaaa.

    Sobre a imagem destacada:

    Fotografia de Vecstock no Freepik, arte por Juliana Luiza.

  • Cobertura sobre mudanças climáticas é distante, técnica e limitada, diz estudo

    Cobertura sobre mudanças climáticas é distante, técnica e limitada, diz estudo

    Autora

    Jaqueline Nichi

     Brasil enfrentou o mês mais quente em 62 anos e foi só mais um reflexo do recorde de calor registrado em todo o mundo: a China estabeleceu um novo recorde de temperatura nacional de 52,2 °C, geleiras da Antártida alcançaram recordes de derretimento e inundações na Índia e na Coreia do Sul deixaram milhares de desabrigados. Um sistema de alta pressão chamado Cerberus — em homenagem ao cachorro de três cabeças da mitologia grega — causou incêndios florestais e condições extremas de calor na Europa, resultando na morte de mais de 60 mil pessoas.

    O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, anunciou que entramos na era da “fervura global” devido aos eventos climáticos destacados em 114 primeiras páginas de 84 jornais em 32 países, segundo o Carbon Brief.

    Ao avaliar a cobertura do tema em jornais e revistas de todo o mundo, fica evidente que a notícia precisa se aproximar mais do público e reduzir o jargão técnico. Essa análise também é resultado de uma pesquisa do Instituto Modefica, em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que também aponta ser preciso ir além das pautas sobre Amazônia e explorar com mais profundidade as causas e os responsáveis pelas crises ambientais.

    De fato, o jornalismo é um instrumento relevante para conscientizar e gerar diálogo a respeito das mudanças climáticas. A cobertura da pauta climática pode influenciar as políticas públicas, as ações individuais e empresariais e mobilizar soluções.

    A partir da análise do estudo e da cobertura midiática global sobre a crise climática, cinco aspectos se destacam:

    1. Enquadramento da notícia: como a mídia apresenta as histórias climáticas é crucial. Isso inclui a escolha de palavras, títulos, manchetes e imagens utilizadas. Enquadramentos positivos podem inspirar ações, enquanto enquadramentos negativos podem causar desânimo e apatia. A cobertura também pode se concentrar em impactos locais ou globais, bem como em diferentes setores da sociedade.
    2. Precisão e evidências: as questões climáticas são complexas e multidisciplinares, o que exige que os jornalistas tenham um entendimento sólido dos conceitos científicos subjacentes. A utilização de fontes confiáveis e cientificamente embasadas é fundamental para manter a credibilidade.
    3. Diversidade de vozes: a pauta climática deve refletir uma variedade de perspectivas, incluindo científicas, políticas, econômicas e a visão das comunidades mais afetadas. Isso ajuda a enriquecer o debate e oferece uma compreensão mais completa das implicações das mudanças ambientais.
    4. Soluções e ações: além de relatar os problemas, a mídia deve destacar soluções e ações concretas. Isso pode envolver apresentar iniciativas aplicáveis, políticas inovadoras, tecnologias verdes e mudanças de comportamento que contribuam para a mitigação e adaptação às mudanças do clima.
    5. Contextualização e intersecções: as questões climáticas não estão isoladas de outros eventos e tendências sociais, políticas e econômicas. As notícias climáticas devem compor um cenário mais amplo e destacar as conexões entre clima, saúde pública, justiça social, economia e outros aspectos relevantes.

    A cobertura das mudanças climáticas também enfrenta desafios, como a polarização política, a desinformação e o ceticismo em relação à ciência. É importante que a mídia aborde esses desafios de maneira eficaz para fornecer uma compreensão precisa e completa dos diferentes cenários e evitar o negacionismo climático.

    Em última análise, a cobertura da pauta climática pela mídia desempenha um papel crucial na educação pública e na promoção de ações significativas para enfrentar os desafios impostos por esta questão que afeta a todos. Assim, a qualidade e a abrangência dessa cobertura têm o potencial de moldar atitudes, influenciar políticas e contribuir para um presente com mais esperança para um futuro possível.

    Para Saber Mais

    CARBON BRIEF (2023) From Africa to Antarctica, all seven of Earth’s continents have experienced extraordinary extreme weather events this month, Carbon Brief, Clear on Climate

    FONSECA, B, GAMA, G (2023) Dados do Instituto de Meteorologia apontam novo recorde de temperaturas no meio do inverno Agência Pública

    MODEFICA (2023) Jornalismo e Engajamento Climático, São Paulo.

    Sobre o autora

    Jaqueline Nichi é jornalista e cientista social com mestrado em Sustentabilidade pela EACH-USP. Atualmente, é doutora pelo Programa Ambiente e Sociedade do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM-UNICAMP). Sua área de pesquisa é centrada nas dimensões sociais e políticas das mudanças climáticas nas cidades e governança multinível e multiatores.

    Como citar:  

    Nichi, Jaqueline. (2023). Cobertura sobre mudanças climáticas é distante, técnica e limitada, diz estudo. Revista Blogs Unicamp, V.9, N.2. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/11/29/cobertura-sobre-mudancas-climaticas-e-distante-tecnica-e-limitada-diz-estudo/
    Acesso em dd/mm/aaaa.

    Sobre a imagem destacada:

    Imagem Freepik, arte por Juliana Luiza.

  • A permissividade dos discursos do trote: caso UNISA

    A permissividade dos discursos do trote: caso UNISA

    Autor

    Matheus Naville Gutierrez

     O caso dos estudantes de medicina da UNISA expulsos por importunação sexual escancara problemas sobre as práticas violentas normalizadas nas universidades.

    As redes sociais e a mídia foram tomados por uma cena desprezível e extremamente problemática nestas últimas semanas. Homens, estudantes de medicina de uma faculdade particular, em um evento esportivo, saíram nus e se masturbaram publicamente durante uma partida de vôlei feminino. No meio de uma multidão de pessoas, sem alarde e sustos por parte daqueles presentes, toda esse escárnio com a normalidade toma palco em um evento universitário. 20 estudantes já foram expulsos pelo crime, que ocorreu em abril e só tomou repercussão agora em setembro. Incrivelmente, a justiça já reverteu a decisão de expulsar os estudantes.

    As análises e críticas (necessárias e até mesmo escassas) tomaram um rumo sobre o simbolismo, a possibilidade desse tipo de importunação sexual acontecer de forma impune; o privilégio dos estudantes, homens brancos, cometerem crimes e só repercutir meses depois na mídia. Sim, todas essas críticas são extremamente importantes e necessárias, principalmente na conjuntura machista, racista e extremamente problemática que temos nas nossas faculdades. Mas um ponto me chamou muito a atenção, que foram as defesas dos acusados.

    Defender o indefensável, normalizar o abjeto: a função do trote universitário

    Após toda a repercussão inicial, a defesa dos estudantes e da universidade começaram a se armar para possibilitar uma contra argumentação ao caso, buscando uma solução. A universidade alega que a situação toda não passava de um trote, pedindo até o arquivamento da apuração que estava sendo conduzida. A defesa dos estudantes identificados no caso também usaram do mesmo argumento, alegando que eram todos calouros e que foram coagidos através do trote a realizar os atos obscenos e criminosos. Como não sou juiz e nem atuo com direito criminal, não vou pesar sobre a veracidade e o julgamento da defesa. Mas vejo como uma reflexão necessária: você aqui que lê, acredita que seja completamente impossível que isso tenha acontecido? 

    A discussão que proponho aqui é que o trote universitário, a sua estrutura, história e formas de existir possibilitam que essa defesa deste crime deplorável através dele. Se existe o trote, enquanto esta instituição de perpetuação e normalização da violência, da humilhação, da hierarquização, esses argumentos nefastos continuarão existindo. 

    Parece-me óbvio o problema aqui. O arcabouço jurídico utilizado pela defesa dos acusados só é possível pois o trote existe como ele é hoje. Este discurso problemático da defesa existe porque o trote existe. Neste processo, perde-se o ponto daquilo que foi registrado: homens importunando sexualmente outras pessoas. A universidade, os advogados e toda a argumentação da defesa se baseia unicamente na existência do trote. Veja, a existência do trote serviu justamente o seu propósito em um dos níveis mais grotescos da sociedade. Ele normalizou crimes, defende atitudes abjetas, desumaniza todos aqueles ao seu redor. 

    A pequena resposta não resolve o problema todo 

    Logo, mostra-se mais um ponto do porque o seu fim é extremamente necessário para preservarmos as universidades brasileiras. Contudo, para além da possível verdade sobre o trote ou não neste caso viral, as estruturas das relações universitárias que passam pelo trote precisam ser reestabelecidas para que este tipo de defesa não exista mais. Para que não passemos pano para crimes por uma prática “tradicional”.

    E o fio condutor desta problemática toda continua sendo a frágil e patética defesa da existência do trote enquanto brincadeira integradora. Já existe uma base teórica expondo que o trote, enquanto prática universitária, só causa a formação de discursos e atitudes machistas, racistas, LGBTQIAfóbicas, com o troco de um sentimento muito superficial de pertencimento e exclusividade. 

    Obviamente, cabe aqui reforçar que não, acabar com o trote não vai acabar com todos os problemas que foram citados aqui. Porém, o seu fim possibilita a existência da diversidade nas universidades e exima a existência da defesa do indefensável, a normalização do absurdo, a humilhação gratuita que forma profissionais imersos nestes discursos. É um passo pequeno, mas é um passo necessário.

    Para saber mais:

    Machado, L, Viana, H, Marques, P, Honório, G, (2023) Após decisão judicial, Unisa vai reintegrar os 15 alunos expulsos. TV Globo e G1 SP.

    Barreto Filho, H (2023) Polícia investiga dois possíveis crimes em caso de estudantes nus da UNISA UOL.

    Rodrigues, B (2023) UNISA trata atos de simulação de masturbação como “trote” e pede para MEC arquivar apuração, CNN Brasil

    Fantástico (2023) Nudez na quadra: alunos de medicina dizem que foram expulsos sem direito de defesa. G1, Fantástico


    Sobre o autor

    Matheus Naville Gutierrez é Mestre e doutorando em ensino de Ciências e Matemática pela UNICAMP e licenciado em Ciências Biológicas pela UNESP. Sempre dialogando sobre educação, tecnologia, ensino superior, cultura e algumas aleatoriedades que podem pintar por ai.

     

    Como citar: 

    Gutierrez, Matheus Naville. (2023). A permissividade dos discursos do trote: caso UNISA. Revista Blogs Unicamp, V9, N2. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/11/29/a-permissividade-dos-discursos-do-trote-caso-unisa/. Acesso em dd/mm/aaaa.

    Sobre a imagem destacada:

    Imagem de vecstock no Freepik. Arte por Juliana Luiza.

  • Raça, classe e fascismo no Brasil

    Raça, Classe e fascismo no Brasil

    Autor

    Gustavo Zullo

    De início, é importante destacar que este texto foi elaborado inicialmente como uma sequência de alguns ensaios, que para a edição final da revista foram reorganizados em um só texto. Neste ensaio, verso sobre os eixos de um projeto de pesquisa que articula raça, classe e fascismo.

    O texto está dividido em três partes. Nesta primeira parte, apresento alguns determinantes sociais, socioeconômicos e psicossociais importantes para entender a estrutura da segregação social no Brasil, do que destaco a formação do trabalho informal e suas relações raciais. Na segunda parte, determinantes econômicos nacionais e internacionais, me detenho no período mais recente, em que articulo a estrutura social apresentada aqui a alguns aspectos da economia contemporânea nacional e internacional. Já na terceira parte, violência e autoritarismo no Brasil, organizo o texto a partir da estrutura socioeconômica brasileira apresentada nos dois primeiros textos para estabelecer alguns nexos importantes do fascismo brasileiro contemporâneo.

    Determinantes sociais, socioeconômicos e psicossociais

    O padrão de exploração do trabalho no Brasil se consolidou como uma adaptação das formas de proscrever e marginalizar o negro forjadas na colonização e adaptadas ao regime de classes sociais (Fernandes, 1965, vol I). A extrema intolerância ao conflito, típico da sociedade moderna que conviveu por mais tempo com a escravidão, desaguou em um padrão de exploração do trabalho assalariado que não generalizou o trabalho como elemento de classificação social. O trabalhador de baixa escolaridade e que não possuía maior especialização foi obrigado a buscar estratégias de sobrevivência, o que hoje é identificado à informalidade e ao emprego informal (Fernandes, 1968; Portugal Júnior, 2012). Ao contrário das economias capitalistas desenvolvidas, essa sempre foi a norma da economia brasileira, acostumada a conviver e articular estas duas dimensões da existência social, o que muitas vezes foi confundido com dualidade.

    Essas formas de atrofiar o elemento do trabalho no Brasil não apenas se baseou na exploração do trabalho escravo, que consolidou um nível tradicional de vida muito baixo, como preservou o negro na parte de baixo da pirâmide social. Em outras palavras, o nível de exploração da escravidão no Brasil e o nível tradicional de vida do escravo se constituíram no parâmetro histórico da constituição e consolidação do padrão de exploração do trabalho assalariado. Ao mesmo tempo, na medida em que as hierarquias raciais foram preservadas, o trabalhador negro teve de se contentar com as posições sociais que na maioria das, sob o regime de classes, não classificava nem valorizava socialmente o indivíduo. Nos primeiros 50 anos após a abolição praticamente não havia indivíduos negros que trabalhavam como médico, dentista, jornalista, proprietário de pequeno comércio, etc. E os pouco que superaram a barreira imposto pelo preconceito e discriminação o fizeram sob grande terror psicológico em meio às formas adaptadas de proscrever o negro.

    O movimento negro que se consolidou nos anos 1930, embora de orientação varguista, foi importante para impulsionar mudanças neste padrão (Fernandes, 1972). Embora este movimento tenha alcançado uma parcela relativamente reduzida da população negra naquele momento, ele foi o gérmen de movimentos importantes, como o Teatro Experimental do Negro, o TEN, liderado por Abdias Nascimento. Essas e outras expressões do movimento negro no Brasil foram importantes para educar a população negra a navegar no regime de classes, inclusive no que se refere a ocupar melhores postos de trabalho, e a criar redes de proteção e amparo social e psicológico (Fernandes, 1965, vol. II). Mais que isso, esse movimento educou também o branco que, em alguma medida, teve que aprender a conviver com o negro no trabalho, no sindicato e em outros lugares sociais novos para o negro – o que não significa que esta convivência estivesse livre de formas de proscrever o negro. Se o golpe militar de 1964 e outros processos autoritários não tivessem concorrido para a sua interrupção e articulação com outros movimentos mais amplos de luta pela democracia no Brasil, talvez hoje vivêssemos uma sociedade mais livre e afastada do fascismo. Além de possíveis benefícios sociais, econômicos e políticos, a consolidação de formas mais tolerantes e construtivas de vida seguramente teria conformado indivíduos psiquicamente mais inteiros, isto é, menos cindidos pelas frustrações que estruturam a psique autoritária (Reich, 1933).

    Pintura de uma senhora, branca, sentada em um sofá, com uma criança. Ao seu redor há três pessoas negras, e dois bebês. As pessoas estão trabalhando (costurando e servindo). Os bebês estão no chão, brincando, sem roupa.
    Uma Senhora Brasileira em seu Lar. 1823, Jean-Baptiste Debret. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023.

    De todo modo, a história não levou a uma modificação significativa do padrão de exploração do trabalho nem da convivência social. Pelo contrário, as formas violentas de impor padrões, além da própria violência desses padrões em si mesmos viabilizaram a continuação de estruturas senhoriais e escravistas em meio à democracia formal no Brasil.[1] A estrutura da segregação social no Brasil, inclusive no que se refere a sua fundamentação racial, não foi modificada (Fernandes, 1975).

    Não apenas a expansão da riqueza preservou uma enorme concentração de renda, riqueza e poder, como estes continuaram a ser processos fortemente racializados. Embora as possibilidades de ascensão social tenham sido aproveitadas senão por alguns poucos indivíduos brancos e negros, a escala em que estes o fizeram foi enormemente inferior, evidenciando o racismo das estruturas de poder que controlam e estabilizam a hierarquia social no Brasil. Não por outra razão a informalidade no país possui uma cor, que é a cor negra de milhões estigmatizados pela cor de sua pele e por toda e qualquer expressão cultural de matriz africana, que é um dos gatilhos do que Florestan Fernandes denominava como medo-pânico. Desta maneira, não só as possibilidades racializadas de ascensão social evidenciam a natureza da segregação no Brasil, como a articulação destes processos segregacionistas, de raça e classe, aproximam o país de uma divisão que autoriza gestões sociais autoritárias.

    Determinantes econômicos nacionais e internacionais

    A partir de agora, exploro alguns determinantes econômicos mais recentes, nacionais e internacionais, que concorrem para fazer do negro o principal alvo da precarização do trabalho, do que enfoco as formas de trabalho em plataformas de aplicativo. De outro modo, o racismo foi preservado como fator estruturante das relações de classe no Brasil, o que contribuiu para a modernização de um nível tradicional de vida que não só é muito baixo como, ao longo do tempo, vem se mostrando profundamente rígido.

    Embora a industrialização tenha viabilizado alguma ascensão social para parte do proletariado, ela tendeu a beneficiar trabalhadores brancos. Em sua maioria, a população negra ficou de fora deste movimento ascensional que, não bastasse os seus problemas, foi interrompido pela ditadura militar. Segundo Furtado (1972)[2], a repressão social, cultural e política inviabilizou qualquer aumento da participação do proletariado na renda nacional durante o Milagre, que associou crescimento extraordinário do produto com arrocho salarial. Em outros termos, o regime militar limitou severamente o trabalho como instrumento de valorização e prestígio social para o proletariado, o que foi espacialmente danoso para o negro, cercado por obstáculos econômicos, sociais, culturais e psicológicos ainda piores que os que cercam a população em geral.

    Imagem em que no primeiro plano aparecem vários rostos de trabalhadores, ocupando o canto esquerdo, em uma diagonal. Os trabalhadores estão de máscara, capacetes e mochilas semelhantes às de entregadores de refeição por aplicativo. Atrás, em segundo plano, prédios.
    Arte: crisvector. Fonte: https://ctb.org.br/trabalho/precarizacao-do-trabalho-um-campo-fertil-para-a-extrema-direita/ Acessado em: 11/04/2023.

    A industrialização liderada pelo capital internacional e pela autocracia burguesa, portanto, pioraram uma situação que ainda viria a se degenerar com a Crise da Dívida e outros elementos que crescentemente obsoletizaram o parque industrial brasileiro e facilitaram a ladeira abaixo que seria a desindustrialização iniciada nos anos 1990 (Suzigan, 1992; Espósito, 2016).

    Já sob o neoliberalismo, precarizaram-se as condições socioeconômicas da classe trabalhadora brasileira, cada vez mais distante do trabalho formal. A perda de elos da cadeia produtiva e de graus de autonomia da política econômica, aprofundadas no Plano Real, aumentaram a participação do desemprego e do trabalho informal (Pochmann, 2001). Pior, conforme a população crescia num contexto de baixo crescimento, o estoque de desempregados e informais cresceu assustadoramente durante a Década Perdida e os anos posteriores de estagnação econômica. Esses processos fragilizaram os movimentos sindicais e gerou novas formas de estranhamento do trabalho no Brasil e no mundo (Zullo e Duarte, 2012).

    Nem mesmo as gestões dos governos do PT reverteram substantivamente esta tendência. Embora a formalidade tenha crescido, forçando uma redução da taxa de informalidade e do desemprego, os seus estoques não foram reduzidos a contento, o que evidencia a fragilidade deste processo. Não só os salários dos empregados formais que se abriram se concentraram na faixa de até 2 salários mínimos como ocorreu sob um contexto de aprofundamento da desindustrialização (Zullo, León, 2020). A economia não ofereceu meios para se sustentar uma melhora da estrutura de ocupações, particularmente danosa à população negra (Almeida, 2021).

    Não obstante estes desafios, as relações de trabalho pioraram sensivelmente. Alguns dos processos mais assustadores foram (i) o aumento de contratos de curto prazo, inclusive de trabalhadores formais, e (ii) o aumento das formas flexíveis de contratação. Além disso, destaco aqui a reforma trabalhista de 2003, que agravou o futuro de toda a classe que vive do trabalho. Assim como em outras partes do mundo, também duramente golpeadas pela ofensiva neoliberal, desde os anos 1990 vem se obrigando a classe trabalhadora a tolerar a incerteza e a assumir e defender a gerência individual dos riscos de sua própria existência (Dardot, Laval, 2016). Isto é, o neoliberalismo tem aflorado posturas autoritárias de trabalhadores frustrados e amedrontados pela ameaça do desemprego e, de modo geral, pela aproximação de um futuro desbotado.

    Para além da EC 95/2016, que aprofundou a tendência estrutural de estagnação das condições socioeconômicas da classe trabalhadora, levando milhões ao desemprego e à informalidade, revertendo os já frágeis avanços dos governos do PT, essa situação se agravou com o alargamento da indústria 4.0. Sobretudo as plataformas digitais, atualmente as maiores empregadoras do país, aproveitaram da miséria da classe trabalhadora brasileira, tributária de um padrão de vida em que a herança da escravidão ainda é muito importante, e oferecem condições de trabalho e remuneração inadequadas a uma vida digna. Embora existam diferentes situações, um dos piores cenários conduziu à formação de uma enorme massa de entregadores de plataformas digitais sem direitos.

    Segundo relatório recente da CUT/OIT/IOS, 68% destes trabalhadores são homens negros, evidenciando muito bem quem são os principais impactados pela regressão das forças produtivas no país. As estratégias mais precárias de sobrevivência são “aproveitadas” precisamente pelos trabalhadores que balizaram um nível de vida extremamente baixo, o qual procurei associar à marginalidade social e ao trabalho informal. Ou seja, os negros continuam ocupar esta posição social mesmo depois de passados quase 135 da Abolição.

    Esta, portanto, não é uma questão de conjuntura nem é “meramente” identitária. Esta é uma questão estrutural do trabalho no Brasil. Elevar as condições de trabalho e remuneração do negro é elevar as condições de trabalho e remuneração de todos os trabalhadores no Brasil. Isto é, além de políticas econômicas que mirem o crescimento, é preciso não só regular o trabalho de modo a reduzir drasticamente a quantidade de contratos flexíveis e outros problemas, como também é urgente se reforçar ações afirmativas e estimular a conscientização sobre a questão racial como peça chave para se elevar o nível de vida da população como um todo. Ou seja, não se trata “apenas” de civilizar o mercado de trabalho, mas, sim, de democratizar o Brasil.

    Violência e autoritarismo no Brasil

    A terceira e derradeira parte desta sequência avança mais diretamente sobre a questão do fascismo no Brasil a partir de uma apresentação da formação histórica do país e sua estrutura autoritária e violenta, o que se confunde com a escravidão e a exploração do trabalho que nos é peculiar. Em suma, apresento um brevíssimo ensaio que articula a história do trabalho no Brasil à forma que o fascismo assume neste espaço e neste tempo. Para tanto, avanço sobre a forma, a morfologia e a estrutura da exploração do trabalho que funda a colônia, o que dialoga sobretudo com o primeiro artigo desta sequência. Em seguida, num salto histórico, discuto algumas razões macro-estruturais que nos ajudam a entender a ascensão do fascismo brasileiro e seus nexos com o mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo.

    Dentro desta perspectiva, é fundamental destacar que a colonização brasileira impôs a escravidão mercantil de africanos e indígenas como padrão de exploração do trabalho e como fundamento do controle militar do território e da restrição do prestígio e da valorização social aos colonos e seus herdeiros (Fernandes, 1976). De certo modo, a formação do Estado brasileiro obedece à análise de Engels, para quem a orientação étnica e racializadora determina quais serão os grupos no poder, assim como as suas adjacências e os grupos que serão, racializados, inferiorizados e explorados. Mais que isso, observa-se que, do ponto de vista individual e social, constituem-se hierarquizações absolutamente afastadas de formas democráticas de existência (Fernandes, 1965). No lugar de passos convergentes à homogeneidade e respeito pela diversidade, acentuaram-se o medo, a violência e a perseguição paranoica (o medo-pânico) de tudo que pode desestabilizar um castelo de cartas forjado e preservado por castas e estamentos que foram absorvidos pelo regime de classes (Fernandes, 1975). Isso evidencia a articulação entre elementos políticos e psicossociais, como denominava Florestan Fernandes.

    No Brasil moderno, essa estrutura de poder adaptada da colônia integrou o negro na sociedade de classes sem descongelar a descolonização, evidenciando seu vigor e capacidade coletiva para desenvolver a cultura de forma acumulativa e segura. Esta estrutura se desenvolveu sem se desligar socialmente do passado, que é renovado e reafirmado por novos agentes sociais que emergem na história como adaptações dos colonizadores. De tal modo, o poder político e econômico no regime de classes foi preservado como uma estrutura burguesa ainda ligada a princípios e técnicas de segregação estamental e de casta.

    O fim da escravidão não foi seguido por nenhuma forma de reparação, deixando o negro livre para viver em uma sociedade absolutamente hostil a ele. Esse processo se constituiu como a adoção de uma determinada maneira de deixar negros morrerem sem que se abdicasse por completo de exercícios organizados de extermínio da população negra mesmo sob o regime de classes. Aqui, biopolítica e necropolítica se combinam e se complementam e, sempre que se entende ser necessário, a burguesia suspende direitos, o que se expressa no famigerado AI-5 e nas incursões frequentes da PM às favelas e espaços racializados e miseráveis. Não por acaso, os efeitos particularmente perversos destes processos acometem lideranças ideológicas e a população negra ou, de outro modo, os inimigos internos reais, potenciais e fantasmagoricamente preventivos do poder instituído no Brasil. Nesse sentido, Florestan Fernandes expõe a tendência da autocracia burguesa no Brasil conduzir à fascistização do Estado nacional e seus mecanismos de controle social, cultural, econômico e político (Fernandes, 1981), ao que acrescentaria a tendência em gérmen, porém sempre presente, deste processo ganhar contornos de massa.

    Em momentos de crise, como o que vivemos hoje, com aumento da concorrência no mercado de trabalho, estas tendências emergem com força ainda maior. Estes processos tendem a sublevar com mais força as tensões estruturais, como são o preconceito e discriminação raciais no Brasil, mas também outras que são denominadas de forma um tanto pejorativa como pautas identitárias e que tendem a ser desarticuladas de temas como trabalho e valor. Isto é, questões socioeconômicas tendem a acirrar conflitos da psique de ordem individual e coletiva, sobretudo quando uma determinada conjuntura, como a atual, já vinha sendo marcada pelo aprofundamento de tensões identitárias (Haider, 2017; Almeida, 2018) antes mesmo do acirramento da disputa no mercado de trabalho. As dificuldades próprias da garantia pela sobrevivência, sobretudo em um mundo que impôs a concorrência como eixo organizador da vida, fazem com que a atual conjuntura do Brasil, considerados os seus problemas estruturais, se assemelhem a uma tragédia anunciada.

    Foto com uma estrutura de metal, formando um palanque, com pessoas falando ao microfone e, abaixo, de costas, várias pessoas escutando. Todas elas vestidas com as cores da bandeira brasileira. Há placas escrito "s.o.s. forças armadas" e "intervenção militar já"
    Foto fonte: https://intersindicalcentral.com.br/

    Parece não haver outro horizonte que não o de uma catástrofe social, econômica, política e cultural – para não entrar nas questões ambientais que hoje se mostram mais do que urgentes. Esse conjunto de coisas favoreceu que a rápida deterioração do horizonte social de amplas e heterogêneas frações da classe trabalhadora insuflasse afetos avessos à coesão social dentro de uma conjuntura complexa. Isto é, o esgotamento do breve ciclo de expansão econômica no início do século XXI, contraditoriamente acompanhado pelo aprofundamento da desindustrialização, acirrou tensões sociais que silenciosamente ganhavam uma massa de trabalhadores precários e sem perspectiva. Não que pessoas conservadoras bem remuneradas e com emprego estável não venham a aderir ao fascismo no Brasil. Pelo contrário, aderem também em grande número. Mas a questão para aqui é que sem essa dimensão de precarização socioeconômica, dificilmente o fascismo teria ganhado proporções de massa no Brasil e em outros lugares do mundo.

    Ressentimentos relacionados a novas dinâmicas normativas dos “corpos, desejos, sexualidade e identificações” (Safatle, 2023), do que a luta antirracista é um capítulo especial no Brasil, se somam à regressão das forças produtivas e à reafirmação da autocracia burguesa. Juntos, produzem um movimento de massas que exige de forma violenta a retomada de uma ordem mítica, configurando o fascismo brasileiro no século XXI.

    Para Saber Mais

    AGAMBEN, Giorgio (2004) Estado de exceção, São Paulo: Boitempo.

    ALMEIDA, Pedro (2021) Capitalismo dependente e o negro na sociedade de classes Elementos para uma análise histórico-estrutural da raça, emprego e salário no Brasil (1980-2010). Campinas: IE-Unicamp (dissertação de mestrado).

    ALMEIDA, Sílvio (2018) O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento.

    CUT; IOS (2022) Condições de trabalho, direitos e diálogo social para trabalhadoras e trabalhadores do setor de entrega por aplicativo em Brasília e Recife, São Paulo: Central Única dos Trabalhadores.

    DARDOT, Pierre, LAVAL, Christian (2016) A nova razão do mundo, São Paulo: Boitempo.

    ENGELS, Friedrich (1884) As origens da família, da propriedade privada e do Estado, São Paulo: Centauro, 2004.

    ESPÓSITO, Maurício (2016) A importância do capital internacional nas transformações da estrutura produtiva brasileira. Da industrialização à desindustrialização, Campinas: IE-Unicamp (dissertação de mestrado).

    FANON, Frantz (1952) Pele negra, máscaras brancas, Salvador: EDUFBA, 2008.

    __________ (1961) Os condenados da terra, Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

    FERNANDES, Florestan (1946) Introdução, In: MARX, Karl Contribuição à crítica da economia política, São Paulo: FLAMA, pp 7-28.

    __________ (1972) O negro no mundo dos brancos, São Paulo: Global, 2007.

    __________ (1965) A integração do negro na sociedade de classes – vols I e II, São Paulo: Editora Globo, 2008a.

    __________ (1975) A revolução burguesa no Brasil Ensaio de interpretação sociológica, São Paulo: Editora Globo, 2005.

    __________ (1976) Circuito fechado Quatro ensaios sobre o poder institucional, São Paulo: Global, 2010.

    __________ (1968) Sociedade de classes e subdesenvolvimento, São Paulo: Global, 2008b.

    FOUCAULT, Michel (1976) Em defesa da sociedade Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp 75-98.

    FURTADO, Celso (1972) Análise do ‘modelo’ brasileiro, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

    HAIDER, Asad (2017) Armadilha da identidade: Raça e classe nos dias de hoje, São Paulo: Veneta, 2019.

    MBEMBE, Achile (2018) Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte, São Paulo: n-1 edições, 2018.

    POCHMANN, Marcio (2001) A década dos mitos, São Paulo: Contexto, 2001.

    PORTUGAL JÚNIOR, José Geraldo (2012) Padrões de heterogeneidade estrutural no Brasil, Campinas: IE-Unicamp (tese de doutorado), 2012.

    REICH, Wilhelm (1933) Análise do caráter, São Paulo: Martins Fontes, 2001.

    SAFATLE, Vladimir (2023) Violências e libido. Fascismo, crise política e contrarrevolução molecular, Revista Estilhaço, nº 1, 2023.

    SUZIGAN, Wilson (1992) A indústria brasileira após uma década de estagnação: questões para política industrial, Economia e Sociedade, Campinas, vol1, pp 89-109, agosto.

    TAVARES, Maria da Conceição e SERRA, José (1971) Más allá del estancamento: Una discusión sobre el estilo de desarrollo reciente, El Trimestre económico, México, vol 38, n 152, pp 905-950, outubro/dezembro.

    ZULLO, Gustavo e DUARTE, Pedro (2012) Crise do capital, desemprego estrutural e novas formas de estranhamento do trabalho, CEMARX, Campinas.

    ZULLO, Gustavo e LEÓN, Jaime (2020) As determinações da desindustrialização sobre o mercado de trabalho na fase terminal da Nova República, In: PERRUSO, Marco, SANTOS, Fábio, OLIVEIRA, Marinalva, O pânico como política: O Brasil no imaginário do lulismo em crise, Rio de Janeiro: Mauad X, 2020, pp 167-180.


    [1] Para uma inspiração mais geral desse processo, que não se restringe ao Brasil, ver Fanon (1952, 1961).

     [2] Esta é uma peça central do debate de Furtado (1972) com Maria da Conceição Tavares e José Serra (1971).

    Sobre o autor

    Gustavo Zullo é economista, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp.

    Como citar:  

    ZULLO, Gustavo. (2023). Raça, classe e fascismo no Brasil. Revista Blogs Unicamp, Vol. 9, n.2, 2023. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/11/29/raca-classe-e-fascismo-no-brasil/. Acesso em: dd/mm/aaaa.

    Sobre a imagem destacada:

    Imagem de Freepik. Arte por Juliana Luiza.

  • Os encantamentos da leitura: os dos modos de ler e ser na contemporaneidade​

    Os encantamentos da leitura: os dos modos de ler e ser na contemporaneidade

    As pessoas leem menos em um mundo digitalizado? Maryanne Wolf defende a ideia de que o debate não é sobre quantidade de leitura, mas sobre a fragmentação desta leitura

    Autora

    Ana de Medeiros Arnt

    Vocês gostam de ler?  A leitura de vocês acontece mais em aplicativos e artefatos digitais ou em livros e documentos impressos? Volta e meia a relação entre aprendizado, leitura e conhecimento adentra nosso trabalho de formação docente e as relações necessárias para se pensar a sala de aula e a produção de conhecimento.

    Para aquelas pessoas que são ávidas leitoras desde muito cedo, talvez pareça estranho um mundo em que a leitura não faça parte de um absoluto lazer (e tarefa) do cotidiano. Algo que participa da vida de muitas pessoas, desde tenra infância, é hábito quase automático e imperceptível, frente a toda a oferta de palavras que se apresentam em nossa vida.

    Há alguns anos escrevi uma resenha sobre o livro O cérebro no mundo digital, de Maryanne Wolf (2019), que eu nunca publiquei. Revisitando o livro, recentemente, para pensar relações de leitura e aprendizagem, no contexto educacional contemporâneo, achei que poderia ser interessante publicar este texto, neste formato de resenha.

    A leitura na trajetória de uma docente

    Sou professora e trabalho com formação docente em ciências biológicas há quase duas décadas. Ao iniciar meu trabalho profissional, a internet começava sua expansão ainda dentro da universidade. Em alguns raros casos, alguns estudantes já usavam internet em suas casas. Para se ter uma ideia, eu fui ter internet em casa – e usar para buscar artigos e estudos acadêmicos – no início do mestrado.

    Assim, durante a minha graduação e grande parte do mestrado, a leitura se fazia a partir de livros ou artigos e trechos de livros. A tarefa da leitura para estudar ou ter momentos de lazer, era sempre a partir de papéis, em bibliotecas.

    A leitura se fazia em espaços que acolhiam o silêncio ou, para aqueles que moram em grandes centros urbanos, nos trajetos em transportes coletivos.

    Ao longo destas últimas duas décadas, pode-se dizer que mudou radicalmente o modo de trabalhar dentro das universidades. Bem como, em alguns casos, dentro do espaço escolar básico também. Durante a pandemia, também tivemos um grande movimento de digitalização da vida – para estudos e para a rotina em geral. Dessa forma, atualmente não só os estudantes têm computadores pessoais, como quase todos trabalham e lêem através dos aparelhos de smartphones. Contudo, sempre importante se perguntar sobre qual internet estes têm acesso… Todavia, estas notificações dos diversos aplicativos chegam continuamente, muitas vezes rompendo com a atenção dedicada à leitura e fragmentando as informações de estudo.

    Nós, docentes, também modificamos nossa maneira de trabalhar. Buscamos materiais que, cada vez mais, estão acessíveis nas mídias digitais. Bem como nos entregando às facilidades de aplicativos de sala de aula, que comunicam com facilidade e rapidez qualquer material, artigos, avaliações que precisemos disponibilizar aos estudantes.

    Todavia, há uma percepção de que, ao longo deste tempo de facilidade de acessos às informações, temos nos sentido perdidos frente à quantidade de informação recebida todos os dias. Também não é incomum a sensação de que estamos sempre atrasados nos prazos e sobrecarregados de mais e mais coisas a serem feitas. E isso inclui, no caso da docência e da pesquisa: quantidade de coisas a serem lidas, escritas, comunicadas, corrigidas, debatidas…

    Hoje em dia as pessoas leem cada vez menos!

    Ainda como docente, uma das questões que repetidamente se faz presente é a de que as pessoas estão lendo menos. Além disso, de que há prejuízo do aprendizado, da compreensão do mundo, das possibilidades de aprofundamento frente aos estudos.

    Ao contrário do que se afirma, eu costumo pensar que as pessoas estão lendo cada vez mais. Passamos os dias imersos em smartphones e aplicativos que nos impelem a ler notificações continuamente. Ao aceitarmos olhar uma notificação, somos capturados por mais e mais palavras. Isto seja nas redes sociais, aplicativos de mensagens instantâneas, e-mails, aplicativos de educação à distância. Considerando que, mesmo em disciplinas presenciais, utilizamos continuamente para inserir materiais extras), etc. Passamos o dia inteiro lendo e escrevendo.

    Entretanto, esta leitura e escrita sempre assemelha-se mais a um conjunto de ideias isoladas e distantes entre si, do que algo que fazemos com uma atenção dedicada. Desta forma, conversamos com um grupo de amigos por mensagens, depois respondemos um e-mail para estudantes que estão com dúvidas em avaliações, entramos na rede social e vemos um link de notícias – que clicamos e lemos apressadamente, pulando algumas partes – comentamos algum texto ou foto de conhecidos, voltamos ao artigo que está em outra janela do smartphone ou computador. Tudo isso sem pararmos para observarmos com atenção qualquer uma destas janelas que se abrem e fecham. Mas estamos lendo, estamos lendo muito e constantemente.

    Marianne Wolf fala sobre isso e muito mais no livro dela…

    O cérebro no mundo digital: uma demanda de leitura

    Uma das questões que Wolf aborda neste livro, embora não pareça ser novidade, é sobre o quanto nossa leitura nos dias de hoje é fragmentada, não linear. Sendo que uma possível consequência torna-se a leitura pouco aprofundada. Dessa maneira, a autora relaciona isso à ideia de tédio contemporâneo causado pela imersão em notificações e leituras que se interrompem por inúmeras notificações de aplicativos diversos. Wolf aponta para as diferenças da leitura em materiais impressos – em especial livros – e leitura nas telas, como parte de sua pesquisa, que busca compreender como aprendemos a ler a partir destes materiais.

    As memorizações geográficas em um livro físico, até as intermináveis linhas rolando uma tela, nos possibilitam aprender sobre as palavras e seus sentidos de formas diferentes. Ao ler um material impresso, as páginas têm informações limitadas, podemos localizar “geograficamente” as informações. Por exemplo, se trechos específicos estão em páginas ímpares ou pares, na parte superior, central ou inferior de uma página. Wolf aponta que este “rastreio” de leitura e informação pelo espaço físico das páginas nos dão informações diferentes do que a leitura em uma tela.

    A leitura da tela, ao “passarmos para cima” o texto, novas linhas vão emergindo, enquanto aquelas já lidas desaparecem. Assim, as mesmas linhas podem ocupar diferentes espaços nesta tela, dependendo deste rolar de linha. Ademais, também podemos modificar o tamanho das linhas e letras que aparecem para nós e a ideia de “paginação” nem sempre faz sentido em uma leitura digital.

    Para quem aprendeu a ler em materiais impressos, ressalto o hábito dos estudos a partir de anotações, grifos, etiquetas que vamos inserindo nas páginas impressas. Na leitura digital, muito embora existam modos de realizar algumas destas intervenções próprias no texto, eu, particularmente, ainda não consegui fazer isso com a mesma eficácia.

    De qualquer modo, posso afirmar que fui capturada pelo modo como Wolf nos leva a pensar, enquanto nos escreve. O livro O Cérebro no Mundo Digital apresenta um formato extremamente acessível para compreendermos como aprendemos a ler e a importância da leitura na contemporaneidade. A autora apresenta suas pesquisas e perguntas a partir de sua trajetória como leitora e estudiosa da literatura, até deparar-se com a pergunta: como as pessoas aprendem a ler?

    Esta pergunta a faz pensar a literatura a partir de outras perspectivas. Ou seja, fazendo-a embarcar em pesquisas que lhe eram completamente diferentes do que fazia até então, dentro do campo da literatura. Dessa forma, para apresentar seu estudo, Maryanne Wolf traça as relações do aprendizado com a leitura e o cérebro leitor através da escrita de cartas. De um modo direto e nos convidando a um diálogo, o livro tem uma escrita leve. A leitura nos envolve, pela simplicidade da escrita, sem perder a profundidade das questões debatidas. A cada carta, um tema central vai sendo discutido, em conversas com a literatura e a ciência.

    Por fim, em vários momentos O cérebro no mundo digital parecer uma leitura angustiante por nos levar aos temores de como temos vivenciado a leitura contemporaneamente. Assim, Maryanne Wolf também nos traz caminhos possíveis e possibilidades de aprendizado com as novas tecnologias. Novas questões que emergem, em termos de pesquisa e de organização deste que é um dos hábitos mais fascinantes que desenvolvemos em nossa cultura. Além disso, ela possibilita, para todos nós, com a difícil tarefa de abordar neurociência para não especialistas, lembrar o motivo do encantamento pela leitura. Incluindo as razões pelas quais deveríamos batalhar por um mundo que se aprofunde entremeado pelos conhecimentos proporcionado pelas palavras.

    “Leio para encontrar uma razão nova para amar este mundo e também para deixar este mundo para trás – para entrar num espaço onde eu possa vislumbrar o que está além de minha imaginação, além de meu conhecimento e de minha experiência da vida” (Wolf, 2019, p.120).

    Para Saber Mais

    Wolf, Maryanne (2019) O cérebro no mundo digital : os desafios da leitura na nossa era, São Paulo: Contexto.

    Sobre a autora

    Ana de Medeiros Arnt é bióloga, Livre Docente em Ensino e Divulgação Científica, professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia do Instituto de Biologia da Unicamp. Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência! 😉 

    Como citar:

    Arnt, Ana. (2023). Os encantamentos da leitura: os dos modos de ler e ser na contemporaneidade. Revista Blogs Unicamp, V.9, N.2. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/11/29/os-encantamentos-da-leitura-os-dos-modos-de-ler-e-ser-na-contemporaneidade/
    Acesso em dd/mm/aaaa.

    Sobre a imagem destacada:

    Fotografia Freepik. Arte por Juliana Luiza.

  • Entre regulação, polêmica e inovação: o mercado de carbono no Brasil

    Entre regulação, polêmica e inovação: o mercado de carbono no Brasil

    Autora

    Amanda Magalhães

    Outubro tem sido um mês movimentado para o mercado de carbono. No dia 2, as manchetes foram dominadas por um escândalo de fraude envolvendo a venda de créditos de carbono de terras públicas na Amazônia. Apenas dois dias depois, o Senado aprovou a proposta substitutiva da PL 412, que desenha as diretrizes para a regulamentação desse mercado no país.

    No artigo de hoje, vamos explorar os principais pontos dessa proposta de regulação do mercado de carbono brasileiro, alguns de seus desafios e, claro, como a tecnologia pode ajudar a endereçá-los.

    Começando pelo começo: o que é o mercado de carbono?

    De forma bem resumida, o mercado de carbono é um sistema que permite que empresas, organizações e indivíduos compensem as suas emissões de gases de efeito estufa (GEE) a partir da compra de créditos gerados por projetos de redução de emissões e/ou de captura de carbono.

    Nesse sentido, é importante saber que há dois tipos de mercado de carbono: o voluntário e o regulado.

    No mercado voluntário, não há uma obrigação legal de redução das emissões. Porém, muitas organizações possuem suas próprias metas de descarbonização para atender às demandas do mercado por operações mais sustentáveis. Assim, podem recorrer por livre e espontânea vontade (e pressão 😅) à compra de créditos de carbono para compensar suas emissões, negociando o preço deste crédito com a contraparte.

    Já no mercado regulado, a conversa é diferente. Aqui, entidades governamentais definem as regras,  delimitando metas ou limites de emissões para os setores e suas organizações. Aquelas que conseguem emitir menos que o teto estabelecido podem vender seus créditos de carbono às que excederem o limite, a um preço definido pelo regulador. Ao longo do tempo, os tetos ficam cada vez mais baixos, o que encarece o fechamento da conta e cria incentivos para a descarbonização.

    Imagem extraída de Infográfico do BNDES

    E por falar em mercado regulado….

    A proposta aprovada na Comissão de Meio Ambiente do Senado e que, na ausência de contestações, seguirá para a Câmara dos Deputados propõe a instituição do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), um mecanismo de cap and trade semelhante ao existente na União Europeia.

    Você pode estar se perguntando: o que é esse tal de cap and trade? 🧐

    Simplificando, esse termo chique significa que os entes regulados recebem, de forma gratuita ou onerosa, permissões para emitir uma certa quantidade de poluentes (cap). Cada uma dessas autorizações de emissão, chamadas de Cotas Brasileiras de Emissões (CBE), equivale a uma tonelada de CO2.

    Para fechar a conta, se a organização regulada emitir mais que as CBEs que possui precisará comprar créditos de carbono que sigam as metodologias credenciadas. A organização que emitir menos do que tinha direito – ou seja, tiver um saldo positivo de CBEs – pode vender o excedente para outra que esteja no negativo (trade). 

    Com isso em mente, já dá para começar uma conversa bacana sobre a proposta em tramitação no governo, mas aqui vão alguns outros pontos importantes para saber:

    • Abrangência: as regras do SBCE se aplicarão a empresas e instalações que emitirem acima de 10 mil toneladas de gás carbônico equivalente (tCO2e) por ano. Elas devem monitorar e entregar um relatório de suas emissões. As que passarem de 25 mil toneladas anuais estarão sujeitas a limites.
    • Governança: A governança será composta pelo Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima, pelo órgão gestor do SBCE e pelo Grupo Técnico Permanente. A proposta também define que os ativos do SBCE e os créditos de carbono são ativos mobiliários e que sua negociação deverá ser regulamentada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
    • Comunidades tradicionais: o texto da proposta assegura aos povos indígenas e comunidades tradicionais o direito à comercialização de créditos de carbono gerados nos territórios que tradicionalmente ocupam, caso cumpridas salvaguardas socioambientais e algumas condições adicionais.
    • E o Agro? 🐮 O setor agropecuário ficou de fora da proposta de regulação, o que gerou controvérsias, já que as atividades do setor respondem por parte significativa das emissões do país. Segundo dados do Observatório do Clima, em 2021, quase 75% das emissões de gases de efeito estufa do Brasil foram relacionadas ao uso do solo: 49% provenientes do desmatamento e 25% da agropecuária.

    A tecnologia como grande aliada

    Ainda sobre a polêmica do Agro, um dos argumentos da bancada ruralista para a exclusão do setor da proposta é que mensurar as emissões do agronegócio é extremamente complicado. Sem entrar no mérito da argumentação (o assunto daria pontos e contrapontos para mais um artigo inteiro), aqui temos um bom gancho para pensar como a tecnologia está sendo empregada para endereçar desafios como este.

    Olhando especificamente para as mudanças no uso do solo, não faltam exemplos de inovação com impacto positivo para o clima. A começar pelas tecnologias de sistemas agroflorestais, que introduzem técnicas de produção mais sustentáveis, com a valorização do policultivo e da floresta. Em levantamento de 2020, a Aliança pela Restauração da Amazônia identificou na região mais de 1.600 iniciativas de restauração por meio de sistemas agroflorestais.

    Outros exemplos que vale destacar são as soluções de monitoramento territorial, que analisam dados capturados por drones e satélites para detecção de áreas desmatadas, pastagens degradadas e zonas específicas de emissão de GEE. Um case interessante é o da startup Bioflore, que utiliza inteligência artificial e dados obtidos por sensoriamento remoto para monitorar o estoque de carbono e a diversidade de espécies em diferentes ecossistemas do Brasil.

    Fonte: Journal of the Society for Ecological Restoration

    Sobre o controle de emissões da pecuária, existem dispositivos não invasivos que mensuram a produção de metano e outros gases diretamente do hálito do animal. Além do desenvolvimento de suplementos e aditivos alimentares introduzidos na dieta do gado para reduzir suas emissões de metano.

    A startup australiana Rumin8, por exemplo, produziu em laboratório um suplemento que contém bromofórmio, o ingrediente ativo das algas marinhas que inibe a produção de metano. Segundo o site da companhia, os testes do produto demonstram um potencial de redução de até 85% do gás metano emitido pelo gado. Nada mal, né? 🤔

    Expandindo o olhar para outros setores da economia, poderíamos escrever um livro com cases fascinantes do uso de tecnologia para mensurar, reduzir e monitorar as emissões de carbono.

    De plataformas sofisticadas de MRV (monitoramento, relato e verificação) ao uso de blockchain nas transações de créditos de carbono, a inovação tecnológica está desempenhando um papel crucial para encarar os desafios não só do mercado de carbono, mas dos esforços climáticos como um todo.

    Até a próxima!

    Dica Extra:

    No dia 10/10, a Climate Ventures lançou a versão beta da Plataforma Onda Verde, ferramenta que consolida a maior base de soluções verdes da América Latina. Lá, você conseguirá se conectar gratuitamente com diversas startups, cooperativas e demais iniciativas construindo uma economia de baixo carbono.

    Para saber mais

    A ONDA VERDE (sd) Conexões inteligentes para impulsionar negócios verdes Plataforma Onda Verde

    BNDES (2022) Infográfico BNDES: Como funcionam os mercados de carbono? Blog do Desenvolvimento, Agência de Notícias BNDES

    CLIMATE VENTURE Case – Bioflore: novos caminhos para a restauração e conservação florestal Climate Venture

    MAGALHÃES, A (2023) Do satélite às manchetes de jornal: como os dados de desmatamento chegam até você Blogs de Ciência da Unicamp: Natureza Crítica

    SENADO FEDERAL (2022) Projeto de Lei n°412, de 2022Atividade Legislativa, Senado Federal

    TEIXEIRA JUNIOR, S (2023) O agro está fora do mercado de carbono. O que isso significa? UOL, re|set

    Wri Brasil Sistemas Agroflorestais (SAFs): o que são e como aliam restauração e produção de alimentos Wri Brasil Notícias

     

    Sobre a autora

    Como citar:  

    Magalhães, Amanda. (2023). Entre regulação, polêmica e inovação: o mercado de carbono no Brasil. Revista Blogs Unicamp, V.9, N.2. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/11/29/entre-regulacao-polemica-e-inovacao-o-mercado-de-carbono-no-brasil/ 
    Acesso em dd/mm/aaaa.

    Sobre a imagem destacada:

    Imagem de Freepik, arte por Juliana Luiza.

  • Depois de 70 anos no mercado, Mattel inicia reciclagem de brinquedos

    Depois de 70 anos no mercado, Mattel inicia reciclagem de brinquedos

    Autora

    Juliana Di Beo

    Barbie em cena protagonizada por Margot Robbie – Divulgação

    Com maestria a diretora de cinema Greta Gerwig realizou um feito sem precedentes: fez o filme Barbie (2023) se tornar o primeiro blockbuster feminino, e o live-action de maior bilheteria do ano. Além da repercussão no mercado cinematográfico, o filme pode ter contribuído para a Mattel faturar cerca de US$ 125 milhões em brinquedos. 

    A partir do filme é natural lembrar da Barbie de nossa infância, há 20 ou 30 anos. Diferente de muitas pessoas, nem sempre elas seguem guardadas como recordação. Boa parte delas, infelizmente, pode ter tido um fim trágico: se tornado mais um plástico em um aterro sanitário, que vai levar mais de 500 anos para se decompor. 

    A empresa estima que milhares de barbies foram vendidas após a estreia do filme, que somam mais de um bilhão de bonecas desde seu lançamento em 1959. E foram necessários 60 anos para que a Mattel, uma das três maiores empresas de brinquedos do mundo, iniciasse um programa de reciclagem e sustentabilidade desse enorme volume de plástico que produz. 

    A empresa, que há pelo menos 78 anos contribui com a indústria perversa do plástico e também com o desmatamento de florestas tropicais na Indonésia para produzir as caixas de exposição das bonecas, inaugurou sua primeira ação sustentável no começo de 2021, com o lançamento da Mattel Playback. Nesse programa, os consumidores enviam produtos da Barbie, Fisher-Price, Matchbox ou MEGA toys para a empresa, que reutiliza esse plástico para confeccionar novos brinquedos. Esse programa é restrito a quatro países – Estados Unidos, Canadá, Alemanha e Reino Unido – ou seja, apenas 2,66% de seu mercado formado por 150 países. Apesar de estar longe do ideal, é uma iniciativa que poderia ser ampliada.

    Do oceano para a caixa de brinquedo

    Fotografia cedida pela revista Whalebone

    A ação foi o início de outras que – esperamos – se multipliquem daqui pra frente. Ainda em 2021, a empresa lançou a coleção “Barbie Loves the Ocean”, contendo três barbies feitas com plástico reciclado retirados do oceano. A iniciativa contou com a parceria da empresa recicladora de plásticos Envision Plastics e o lixo plástico coletado vem da península mexicana de Baja, região que realiza ações para mitigar a poluição plástica. 

    Em julho de 2022,  a empresa estabeleceu uma parceria com o Instituto Jane Goodall – a primatologista estadunidense reconhecida pelo seu trabalho com gorilas – com o lançamento de uma linha de bonecas relacionadas a profissões sustentáveis, que conta com uma boneca inspirada na cientista e uma equipe de carreira ecológica (que inclui diretora de sustentabilidade, engenheira de energia renovável, cientista de conservação e ativista ambiental). Todas as bonecas foram produzidas com plástico reciclado coletado do oceano, e receberam o selo de Carbono Neutro certificado pelo Climate Impact Partners

    Fotografia divulgada pela Mattel

    Essas coleções certificadas foram anunciadas com o propósito de atingir, até 2030, a produção com 100% de materiais reutilizáveis, recicláveis ou de origem biológica. A empresa pretende também reduzir 25% do plástico de suas embalagens. 

    A vida com menos plástico está longe de ser alcançada. Um estudo publicado na revista Plos One em março de 2023, estimou que há cerca de mais de 170 trilhões de partículas de plástico no oceano, o que somaria 2,3 milhões de toneladas de plástico. Apesar, daquela Barbie de nossa infância representar uma porcentagem ínfima de resíduo comparada a essa quantidade gigantesca, ela é parte do problema, que só cresce. Por isso, torcemos para que todos façamos um mea culpa sobre o consumismo do plástico, para que as milhões de Barbies encontrem um fim mais nobre e longe dos oceanos.

    Aqui vão algumas dicas sobre o que fazer com seus brinquedos:  

    1. Doe brinquedos!
    2. Colabore com o trabalho dos catadores de material reciclável. Separe o lixo reciclável, verifique se os brinquedos e outros produtos que você utiliza são realmente recicláveis através da checagem de selo de reciclagem no rótulo dos produtos; 
    3. Para descartar os brinquedos a principal recomendação é juntá-los numa caixa e destiná-los para organizações que reciclam. Dentre as empresas que recebem brinquedos estão: Cresci e PerdiFicou PequenoHasbro & TerraCycle
    4. Se tiver dúvidas não hesite em perguntar para nós, buscar por informações confiáveis ou contatar as empresas que produziram os produtos. 

    Para saber mais

    BLUM, B (2023) ‘Barbie’ se aproveita da ironia para vender um feminismo plastificado. Folha de S. Paulo.

    ETX Daily (2023) #TECH: Não há como escapar da pegada de carbono da Barbie New Straits Time.

    ERIKSEN M, COWGER W, ERDLE LM, COFFIN S, VILLARRUBIA-GÓMEZ P, MOORE CJ, et al (2023) A growing plastic smog, now estimated to be over 170 trillion plastic particles afloat in the world’s oceans—Urgent solutions required PLoS ONE 18(3).

    KALADEMIR, D (2023) A maioria dos materiais é reciclável, então por que os brinquedos de crianças não podem ser sustentáveis? Yale Environment Review.

    DOCKTERMAN, E, LANG, C (2023) How Barbie Took Over the World, Time

    Outros Links

    CRESCI E PERDI Cresci e Perdi Unidades

    FICOU PEQUENO Desapegos para bebês e crianças com precinho de brechó infantil

    TERRACYCLE Programa de Reciclagem de Brinquedos Hasbro

     

     

    Sobre a autora

    Juliana Di Beo é bióloga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Integra a Rede Ressoa Oceano, na qual atua com divulgação científica para fortalecer a cultura oceânica

    Como citar:  

    Di Beo, Juliana. (2023). Depois de 70 anos no mercado, Mattel inicia reciclagem de brinquedos. Revista Blogs Unicamp, V9, N2 Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/11/29/depois-de-70-anos-no-mercado-mattel-inicia-reciclagem-de-brinquedos/ Acesso em dd/mm/aaaa.

    Sobre a imagem destacada:

    Imagem de Freepik, arte por Juliana Luiza

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