Tag: cloroquina

  • Covid, cloroquina e experimentos em humanos

    Falar que o Brasileiro não tem um minuto de sossego e que isso só tem piorado durante a pandemia já é um clichê. Essa semana não poderia ser diferente – e, realmente, não foi.

    O código de Nuremberg.

    Durante esses meses que estamos convivendo com a pandemia da COVID-19, parte da comunidade científica e dos divulgadores de ciência vêm fazendo um esforço hercúleo para compartilhar informações corretas e atualizadas, além de combater a enxurrada de fake news e desinformação que estão sendo disseminadas por tudo quanto é lugar. 

    Poderíamos falar que a falta de conhecimento do modus operandi da ciência pela população explicaria, mas parece que o buraco é bem mais embaixo. Principalmente quando vemos pessoas com formação em ciências atuando de forma anti-científica, fraudulenta ou pseudo-científica. Mais assustador do que isso foram os experimentos da Prevent Senior que vieram à público. Experimentos com cloroquina em pacientes com COVID-19. É assustador! Uma instituição de saúde, conduzindo experimentos científicos de forma anti-ética, mais de 70 anos após o famoso Código de Nuremberg.

    Voltando no tempo…. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, 23 pessoas do regime nazista (20 das quais eram médicos) foram consideradas criminosas de guerra pelos experimentos realizados com seres humanos. Desse julgamento foi derivado um documento conhecido como “Código de Nuremberg”, divulgado em 1947, que representa um marco na condução ética de experimentos com seres humanos. As diretrizes listadas ali servem, até hoje, para o estabelecimento da legislação sobre o assunto – e no Brasil não é diferente.

    E quais diretrizes são essas?

    A participação do voluntário em um estudo deve consentida e ser precedida por um esclarecimento (feito pelo cientista responsável). Ao voluntario deve ser apresentado todo o processo experimental, além dos possíveis riscos e benefícios envolvidos.

    Não apenas isso. Ao voluntário devem, ainda, ser garantidos o direito à desistência da participação a qualquer momento e à proteção (tratamento adequado; evitar danos e sofrimentos desnecessários; minimizar possibilidade de invalidez e morte). Em caso de grandes chances de morte ou invalidez decorrente do estudo, este não deve ser conduzido – ou deve ser interrompido caso o risco seja detectado ao longo do estudo. Isso faz com que o estudo possa ser interrompido a qualquer momento (a proteção ao voluntário vem em primeiro lugar).

    Mas não acaba por aí. Estudos pré-clínicos (aqueles realizados em laboratório com células e animais*, por exemplo) passam a ser considerados essenciais para estabelecerem esses limites de riscos.

    Por fim, os estudos, para serem realizados em humanos, devem objetivar uma vantagem para a sociedade e serem conduzidos por uma equipe capacitada para isso.

    Hoje, no Brasil, temos uma centralização da análise ética dessas pesquisas que envolvem seres humanos. A base legal é estabelecida pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), um órgão vinculado ao Ministério da Saúde. Os pesquisadores devem cadastrar os projetos numa plataforma única (a Plataforma Brasil) para serem avaliados a nível local pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP).**

    Pois bem, o que a Prevent Senior fez?

    Jogou tudo isso no lixo e conduziu seus experimentos com cloroquina (afinal chamar de estudo é meio complicado né?) de uma forma no mínimo questionável. É isso que podemos ver nesse fio da Chloé Pinheiro no Twitter. Vale a pena clicar e ler o fio todinho:

    É assustador! É cruel! É anti-ético!

    E não acabou por aí…

    Não bastasse esse escândalo, fomos brindados com um pronunciamento alarmante de Marcelo Queiroga. A orientação do Ministro da Saúde era interromper a vacinação de jovens de 12 a 18 anos com a vacina da Pfizer contra a COVID-19. A manifestação do ministério veio, ainda, acompanhada de informações inverídicas e levantamento de incertezas acerca da segurança da vacina. Apesar de o movimento anti-vacinas no Brasil não ter a força que tem no exterior, jogar dúvida sobre uma vacina comprovadamente segura gera insegurança na população. E, num momento em que buscamos um percentual elevado de pessoas vacinadas na população, isso pode ter implicações importantes. 

    Hoje mais cedo, quando já estava com a ideia de escrever esse texto, vi esse tweet do Daniel Gontijo que acho que cai bem para fechar esse texto.

    Notas complementares:

    *No Brasil, a experimentação animal é regulamentada pela Lei Arouca (Lei 11.794/2008). A legislação brasileira é bem rigorosa e segue princípios semelhantes aos do código de Nuremberg. Apesar de a experimentação animal ainda ser necessária, há um esforço para que haja: 1) a redução do número de animais utilizados em pesquisas; 2) o refinamento das técnicas para que sejam garantidos o direito ao bem estar e à utilização de técnicas adequadas de manejo e experimentação; e 3) a substituição do uso de animais por métodos alternativos sempre que possível. O canal “Nunca vi 1 cientista”, fez um vídeo muito bom sobre o assunto.

    **Aproveito para indicar dois podcasts recém lançados. O primeiro é o “Pelo Avesso”, que nesta temporada está falando sobre Eugenia. E o segundo é o “Ciência Suja”, que fala do impacto de fraudes científicas para a sociedade. Os dois trazem de forma explícita questões éticas que perpassam a ciência e não podem ser esquecidas.

    Este texto foi escrito originalmente no blog Meio de Cultura

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os produziram-se textos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, os textos passaram por revisão revisado por pares da mesma área técnica-científica na Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Não existe tratamento precoce para a COVID-19 [capítulo de hoje: Hidroxicloroquina]

    Desde o início da pandemia, criou-se um grande alvoroço sobre a polêmica hidroxicloroquina. Concomitante à possibilidade dela funcionar no tratamento e prevenção da Covid-19, no chamado Kit-Covid. Assim, nesse texto, nós vamos esclarecer tudo o que você precisa saber sobre esse assunto. E para começar, já podemos lhe dizer: não, ela não funciona.

    Mas calma lá, “vamos por partes”, como diria o velho Jack (O Estripador)…

    Para que serve e como funciona a Hidroxicloroquina?

    A princípio, a hidroxicloroquina foi uma forma alternativa da cloroquina. Assim, desenvolveu-se esta forma para combater os variantes do patógeno da malária que tinham desenvolvido resistência a própria cloroquina. Isto acontece de maneira similar com as bactérias que desenvolvem resistência a antibióticos. Dessa forma, a hidroxicloroquina surgiu como um antimalárico. Contudo, alguns estudos demonstraram que ela também era capaz de atuar de forma benéfica no cenário de algumas doenças autoimunes. Tais como artrite reumatóide e lúpus eritematoso (1, 2).

    Funcionamento da Hidroxicloroquina

    Basicamente, o principal mecanismo da hidroxicloroquina no combate a malária é impedir que uma enzima muito específica do parasita destrua a hemoglobina das nossas hemácias. Além disso, a hidroxicloroquina se acumula em uma parte específica do parasita, chamada de lisossomo, aumentando o pH dessa região. Caso não tenha visto, temos um texto muito bom explicando o que é o pH.

    Mas tem mais, esse medicamento tem a mesma capacidade de se acumular nos lisossomos (e endossomos, uma outra parte das células) nas nossas células humanas. Assim, isto dificulta a realização de alguns processos relacionados à resposta imune (3). E é daí que vêm a sua capacidade de influenciar doenças autoimunes, levando a uma consequente melhora dessas. Por fim, ainda se viu que a hidroxicloroquina tinha a capacidade de diminuir a formação de coágulos no corpo, também chamada de antitrombótica.

    Entretanto, nem tudo é um mar de rosas. Ao mesmo tempo que esse remédio mostra vários benefícios em alguns cenários, ele também tem seus efeitos colaterais. Dentre eles, o principal e que mais chama atenção é o de causar arritmias nas pessoas. Isto é, um descompasso dos batimentos do coração, tornando-os mais lentos ou mais rápidos (4, 5). Além disso, essa informação, soma-se ao fato de que o SARS-CoV-2 pode infectar células do coração e causar danos a ele. Ou seja, como a própria arritmia e insuficiência cardíaca, que você pode entender melhor nesse texto aqui. Tais questões tornam mais delicada a tomada de decisão no uso ou não da hidroxicloroquina.

    De onde vem a ideia de se usar um remédio de malária contra um vírus?

    Mas foi justamente dessa capacidade de se armazenar nos nossos endossomos, aumentando o pH deles, que alguns cientistas começaram a questionar se isso poderia ajudar no combate ao SARS-CoV-2. Visto que os endossomos também são uma porta de entrada do vírus nas nossas células. 

    Com essa hipótese em mente, os pesquisadores decidiram investigar os impactos do tratamento da covid-19 com a hidroxicloroquina. Dessa forma, os primeiros estudos publicados, analisaram a ação do vírus in vitro. Isto é, em células numa placa de laboratório, portanto, um ambiente mega controlado. Assim, nestas pesquisas, a cloroquina e hidroxicloroquina conseguiram diminuir a infecção do SARS-CoV-2 em células de rim de macaco (6, 7). E aqui entra a nossa ressalva.

    Esse tipo de estudo é muito importante pois é o pontapé inicial para mostrar se um medicamento é capaz ou não de combater uma infecção. Entretanto, definitivamente NÃO é a partir dele que podemos dizer com toda certeza (como muitos políticos tem feito) que esse remédio funcionará de verdade, no mundo real, quando for dado a nós.

    Um dos motivos: testou-se em células de macaco, e não humanas. Essas “linhagens celulares” como chamamos, são muito efetivas nesse tipo de teste por serem extremamente resistentes a toxicidade. Todavia, aí entramos em outro ponto! A dose de hidroxicloroquina dada para essas células para impedir a infecção do SARS-CoV-2 foi muito superior àquela permitida para nós, humanos, consumirmos. Ou seja, em um cenário em que nós ingeríssemos a mesma dose, ela seria extremamente danosa e até mesmo LETAL para nós.

    Como então a hidroxicloroquina foi liberada para uso?

    No início da pandemia, publicou-se estes primeiros artigos. Alguns médicos começaram a utilizar a hidroxicloroquina em casos graves da Covid-19, em que não havia mais o que ser feito. Assim, a partir daí, começaram-se a publicar alguns artigos. Dessa forma, o argumento relacionava-se ao fato de que mesmo uma dose menor do medicamento era capaz de auxiliar na melhora dos pacientes. Isto incluía casos em que a administração do medicamento acontecia junto com a azitromicina, parte disso, gerou o conhecido kit covid. Esses estudos foram recebidos com animação por parte de alguns cientistas. Mas também com muitas dúvidas. Várias perguntas baseava-se em limitações dos estudos como um baixo número de pessoas analisadas e pequeno tempo de acompanhamento (8, 9).

    Pois com base nesses primeiros artigos, muitas figuras políticas (como o presidente Trump e Bolsonaro), começaram a divulgar os aparentes “benefícios” da hidroxicloroquina. Tais ações se encaminham na contra-mão de várias entidades como o Ministério da Saúde dos respectivos países. Além disso, órgãos regulamentadores e a própria OMS diziam ser muito cedo para falar esse tipo de coisa com 100% de certeza.

    Mas então, a hidroxicloroquina funciona ou não?

    Após essas publicações preliminares de pesquisa, um grupo cada vez maior de pesquisadores começou a se questionar. Será que a hidroxicloroquina era realmente eficaz no combate a Covid-19? A proposta neste momento vinculava-se a estudos randomizados com um número muito maior de pessoas.

    Pois então, agora, trago algumas das conclusões que esses estudos tiveram:

    A hidroxicloroquina é incapaz de impedir o desenvolvimento dos sintomas da Covid-19. Isto em pessoas que começaram a tomar o remédio após terem contato com alguém que estava com Covid-19 (10).

    Neste trabalho, os cientistas analisaram cerca de 800 pessoas que tiveram contato com alguém da família que estava com Covid-19 (confirmado por RT-qPCR). Dessas pessoas, 400 delas foram tratadas por 5 dias com hidroxicloroquina, enquanto as outras 400 receberam o tratamento comum. Assim, ao final do estudo, o que se concluiu? Os pesquisadores viram que a porcentagem de pessoas que tratadas com hidroxicloroquina se aproximava muito parecido do havia recebido o tratamento padrão (11,8% vs 14,8%). 

    O tratamento com hidroxicloroquina não reduz a mortalidade de pacientes internados. (11).

    Nesse estudo, os pesquisadores acompanharam 4.500 pessoas que tiveram Covid-19 (confirmada com RT-qPCR) e acabaram sendo internados. Algumas pessoas precisaram de ventilação mecânica (os casos graves, de UTI). Outras precisaram somente de oxigênio e outros não precisando de nenhuma das opções. O que foi visto é que em nenhum dos cenários observados houve melhora dos pacientes com o uso de hidroxicloroquina por 6 dias. O tratamento com ela não diminuiu o número de mortes, o número de intubações e tempo no hospital comparado com o tratamento sem ela. 

    O tratamento combinado de hidroxicloroquina e azitromicina não melhora a recuperação de pacientes internados com casos leves e moderados (12).

    Nessa publicação, os cientistas avaliaram cerca de 600 pacientes que tinham casos confirmados leves ou moderados (com uso de oxigênio mas sem intubação) de Covid-19. Esses pacientes foram divididos em três grupos: 1º recebeu o tratamento comum; 2º recebeu o tratamento com hidroxicloroquina; 3º recebeu tratamento combinado de hidroxicloroquina e azitromicina. Ao final da pesquisa, os autores viram que não havia diferença na evolução da Covid-19 com o tratamento de hidroxicloroquina sozinha ou combinada com azitromicina. Como sempre, em estudos assim, quando comparada com o tratamento comum. Em outras palavras, o medicamento sozinho ou combinado não influenciou a melhora ou piora dos pacientes de alguma forma.

    Dito tudo isso…

    Quero terminar esse texto relembrando para todos: até o momento não há qualquer medicamento aprovado que seja eficaz no combate a Covid-19! Até agora a nossa melhor ferramenta contra a pandemia ainda são as vacinas. Mas somente elas não nos salvarão. Temos que continuar usando máscara (mesmo você que já foi vacinado). Ficar em casa o máximo possível, cobrar medidas de restrição em escala nacional e, principalmente, respeitá-las o máximo possível. 

    As vacinas são medidas de prevenção. Os medicamentos são medidas de tratamento. Para o controle da pandemia e recuperação da economia (como muitos desejam) é muito mais eficaz nós evitarmos a contaminação de pessoas. Não adianta confiarmos que poderemos ser tratados caso nos infectemos, sem qualquer indício de que teremos tratamento – pois não existe mesmo. Com a infecção há um gasto muito maior relacionado a outros medicamentos, intubação e hospitalizações. Enquanto com a prevenção da infecção com a vacina, o dinheiro gasto é muito menor.

    Fiquem em casa, se vacinem. E cobrem (cada vez mais) que o investimento na ciência, na produção de vacinas e na importação das IFAs aconteça.

    Para saber mais

    1. Petri M (2011) Use of hydroxychloroquine to prevent thrombosis in systemic lupus erythematosus and in antiphospholipid antibody-positive patients, Curr Rheumatol Rep ,13(01):77–80 

    2. Ruiz-Irastorza G, Ramos-Casals M, Brito-Zeron P, Khamashta MA (2010) Clinical efficacy and side effects of antimalarials in systemic lupus erythematosus: a systematic review, Ann Rheum Dis 69(01):20–28

    3. Informativo elaborado pelo grupo de trabalho “Ciências Farmacêuticas e a Covid-19. As bases científicas do uso da cloroquina e da hidroxicloquina sobre a covid-19.

    4. Bikdeli, B, Madhavan, MV, Gupta, A, Jimenez, D, Burton, JR, Der Nigoghossian, C, & Group, TC (2020) Pharmacological agents targeting thromboinflammation in COVID-19: review and implications for future research, Thrombosis and haemostasis, 120(7), 1004.

    5. Dhakal, BP, Sweitzer, NK, Indik, JH, Acharya, D, & William, P (2020) SARS-CoV-2 infection and cardiovascular disease: COVID-19 heart, Heart, Lung and Circulation.

    6. Wang, M, Cao, R, Zhang, L, Yang, X, Liu, J, Xu, M, & Xiao, G (2020) Remdesivir and chloroquine effectively inhibit the recently emerged novel coronavirus (2019-nCoV) in vitro, Cell research, 30(3), 269-271.

    7. Liu, J, Cao, R, Xu, M, Wang, X, Zhang, H, Hu, H, … & Wang, M (2020) Hydroxychloroquine, a less toxic derivative of chloroquine, is effective in inhibiting SARS-CoV-2 infection in vitro, Cell discovery, 6(1), 1-4.

    8. Mégarbane, B (2020) Chloroquine and hydroxychloroquine to treat COVID-19: between hope and caution, Clin Toxicol (Phila), 1-2.

    9. Gautret, P, Lagier, JC, Parola, P, Meddeb, L, Mailhe, M, Doudier, B, … & Raoult, D (2020) Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial, International journal of antimicrobial agents, 56(1), 105949.

    10. Boulware, DR, Pullen, MF, Bangdiwala, AS, Pastick, KA, Lofgren, SM, Okafor, EC, … & Hullsiek, KH (2020) A randomized trial of hydroxychloroquine as postexposure prophylaxis for Covid-19, New England Journal of Medicine, 383(6), 517-525.

    11. RECOVERY Collaborative Group (2020) Effect of hydroxychloroquine in hospitalized patients with Covid-19 New England Journal of Medicine, 383(21), 2030-2040.

    12. Cavalcanti, AB, Zampieri, FG, Rosa, RG, Azevedo, LC, Veiga, VC, Avezum, A, … & Berwanger, O (2020) Hydroxychloroquine with or without Azithromycin in Mild-to-Moderate Covid-19, New England Journal of Medicine, 383(21), 2041-2052.

    Outros artigos mostrando a ineficácia da hidroxicloroquina sozinha ou combinada com azitromicina:

    • Magagnoli, J, et al. “Outcomes of hydroxychloroquine usage in United States veterans hospitalized with Covid-19.” Med 1.1 (2020): 114-127.
    • Fiolet, T, Guihur, A, Rebeaud, ME, Mulot, M., Peiffer-Smadja, N, & Mahamat-Saleh, Y (2021). Effect of hydroxychloroquine with or without azithromycin on the mortality of coronavirus disease 2019 (COVID-19) patients: a systematic review and meta-analysis. Clinical Microbiology and Infection, 27(1), 19-27.
    • Mitjà, O, Corbacho-Monné, M, Ubals, M, Alemany, A, Suñer, C, Tebé, C, … & Clotet, B (2020). A cluster-randomized trial of hydroxychloroquine for prevention of Covid-19, New England Journal of Medicine.
    • Bakadia, BM, He, F, Souho, T, Lamboni, L, Ullah, MW, Boni, BO, … & Yang, G (2020). Prevention and treatment of COVID-19: Focus on interferons, chloroquine/hydroxychloroquine, azithromycin, and vaccine. Biomedicine & Pharmacotherapy, 111008.
    • Gautret, P, Lagier, JC, Parola, P, Meddeb, L, Mailhe, M, Doudier, B, … & Raoult, D (2020). Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial. International journal of antimicrobial agents, 56(1), 105949.
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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Por que não podemos nos precipitar com o reposicionamento de fármacos?

    Vamos supor que você está andando de bicicleta pela sua cidade, quando de repente seu pneu fura. Naquele momento você não consegue ir até um borracheiro, ou comprar um pneu novo. Então você pega o chiclete que você estava mascando, e tenta interromper a saída de ar naquele momento emergencial. Mesmo sabendo que depois você precisará dedicar mais tempo para arrumar o pneu, o chiclete conseguiu te ajudar durante um período. Essa analogia está relacionada com o que vimos de reposicionamento de fármacos durante a pandemia de COVID-19. 

    Sobre o reposicionamento de fármacos

    O reposicionamento é uma estratégia rápida, barata, e segura, desde que siga algumas etapas! Basicamente ele utiliza moléculas conhecidas para tratar algumas doenças e tenta utilizá-las em outras. O exemplo mais famoso de reposicionamento de fármacos é o viagra. Inicialmente, desenvolveu-se para tratar hipertensão e angina, uma dor no peito. Mas durante as etapas de estudo clínico acabou reposicionado e agora utiliza-se para tratar disfunção erétil. 

    Com o aparecimento da COVID-19, vimos tentativas de reposicionamento serem muito utilizadas e comentadas até mesmo por pessoas leigas. Esse método de pesquisa trouxe resultados para algumas respostas. No entanto, ele não pode ser levado como uma verdade absoluta. Afinal, nada na ciência é irrefutável.

    Reposicionar por quê?

    Reposicionar um remédio custa aproximadamente 300 milhões de dólares, enquanto que desenvolver um remédio “do zero” pode custar até bilhões de dólares! Além de economizar dinheiro, também é possível reduzir o tempo de pesquisa, já que “pulamos” algumas etapas, como por exemplo a criação e descrição da molécula. Apesar disso, algumas outras etapas não podem ser puladas, e é aí que o remédio pode dar resultados negativos. 

    Assim como outras pesquisas, o reposicionamento começa com a formulação de uma hipótese e reconhecimento de moléculas que possam apresentar algum tipo de efeito no que está sendo estudado, no caso a COVID-19. Depois de uma primeira rodada de testes, é necessário realizar uma etapa de estudos pré-clínicos, ou seja, dentro do laboratório. Normalmente esses testes realizam-se em culturas de célula para determinar qual a concentração efetiva do remédio, tentar entender como ele age, se ele de fato elimina o vírus, ou se ele interfere nas células, entre outros. Além dos testes in vitro, é nessa etapa que ocorrem os testes com modelos in vivo, ou seja, utilizando algum modelo animal. Seres vivos são organismos bem mais complexos do que uma cultura de um único tipo de célula, então testes que possivelmente foram positivos in vitro, podem não ser efetivos in vivo. 

    Entretanto…

    Aqui temos alguns exemplos de remédios que não passaram dessa segunda fase de testes de reposicionamento. A cloroquina funcionou em um tipo de cultura de células, mas quando testada em outros não funcionou. Já a ivermectina apresentou uma boa atividade. Todavia, a quantidade necessária era tão grande que inviabilizava tornar-se um remédio para a covid-19. 

    E você acha que acabou? NÃO! Os remédios podem funcionar muito bem nas etapas 1 e 2 de reposicionamento de fármacos, mas depois disso eles precisam dos testes nos ensaios clínicos. Nessa etapa, os remédios são dados para pacientes voluntários, que vão tomar de forma “cega” ou o remédio, ou um placebo. Depois disso, os resultados são coletados, analisados e o remédio pode ser aprovados ou não. O exemplo mais atual de um ensaio clínico foi o SOLIDARITY, organizado pela OMS que testou diversos remédios de reposicionamento. 

    Até agora, o único reposicionamento aprovado para uso é o do remdesivir, que já era estudado para Hepatite C e Ebola. Por isso, é muito importante que a população em geral tenha calma! Muitos testes são necessários para que um remédio, mesmo que seja de reposicionamento, seja considerado seguro para uso. 

    Isso significa que o reposicionamento é ruim? 

    Não! Como não conhecíamos todos os efeitos da COVID-19 e do coronavírus causador da doença, tivemos que realizar muita pesquisa de base antes de poder encontrar tratamentos efetivos. No início da pandemia não sabíamos quase nada sobre o novo coronavírus e diversos testes de reposicionamento ajudaram a entendermos mais sobre como o vírus se comporta dentro das células e do nosso organismo. 

    E porque não posso tomar remédio por minha conta e risco?

    Apesar de serem remédios que possuem aprovação de órgãos reguladores como a Agência Americana de Alimentos e Medicamentos (FDA) e a ANVISA, todo remédio possui uma faixa de segurança para uso e o uso indiscriminado de remédios pode causar tanto problemas de saúde para quem está tomando, como por exemplo hepatite medicamentosa, até problemas mais sérios que podem nos levar a pandemias futuras, como bactérias e parasitas super resistentes a remédios! 

    Além disso, é importante destacar que em humanos, o uso de medicamentos como um “combo” ou “coquetel” ou “kit” precisam, também, de testes específicos para analisar as interações entre os medicamentos. E não faz sentido isto, sem um controle rígido laboratorial, pois não temos como medir os efeitos dos medicamentos nos organismos com precisão. Isto é, os medicamentos podem interagir entre si e provocar outros efeitos colaterais (ou benéficos), completamente desconhecidos. Para isto, não apenas o reposicionamento precisa de várias etapas de análise, a medicalização por kits ou coquetéis também são tratamentos que necessitam análises específicas!

    Por isso, esteja sempre atento à medicação que você irá tomar, e continue utilizando as únicas medidas que são efetivas até agora: o distanciamento social, a máscara e o apoio à vacinação! 

    Quer saber mais?

    Artigos sobre o tema em inglês:

    Reposicionamento durante a Pandemia de COVID-19

    Reposicionamento de fármacos: Avanços e Desafios

    Desafios de Reposicionamento durante a pandemia de COVID-19

    Textos do Especial Covid-19 sobre o tema:

    Não existe tratamento precoce para Covid-19 [capítulo de hoje: ivermectina]

    1 Ano sem encontrar o tratamento de COVID-19

    Deus, hidroxicloroquina e unicórnios: é impossível demonstrar um negativo?

    Uma pandemia impulsionando outra – Parte 1: O uso de antimicrobianos durante a pandemia da covid-19

    Uma pandemia impulsionando outra – Parte 2: Resistência bacteriana a antimicrobianos: por que se preocupar?

    Antibiótico contra vírus? O curioso caso da azitromicina contra a COVID-19

    Mais rápido, mais preciso e mais fármacos: Triagens de Alto Desempenho.

    Descobrindo e Redescobrindo medicamentos: Como podemos tratar a COVID-19?

    Porque acreditar num remédio para a COVID-19 pode não ser uma boa saída

    Hidroxi-cloroquina, já ouvi este nome!

    Se acharmos um tratamento, o que acontece?

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial Covid-19


    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

    Editorial

  • 1 Ano sem encontrar o tratamento de COVID-19

    Um ano atrás a OMS declarou que a COVID-19 passou ao status de pandemia. Desde então, cientistas ao redor do mundo estão em busca de um tratamento específico para essa doença, sem muito sucesso até o momento. 

    No começo, a principal estratégia de busca utilizada foi o reposicionamento de fármacos. Assim, essa alternativa utiliza remédios já aprovados para uso em certas doenças, e tenta tratar novas doenças com o mesmo remédio. Por serem remédios conhecidos, já existem diversos estudos de como agem no corpo, e quais doses são seguras de serem tomadas. Dessa forma, eles necessitam de menos investimento de tempo e dinheiro para as pesquisas com as novas doenças, como a COVID-19. Contudo, a “pressa” para encontrar uma resposta contra a pandemia provocou a disseminação de algumas informações equivocadas que acabaram sendo adotadas como verdade absoluta por parte da população. 

    Testes in vitro

    Boa parte dos experimentos iniciais realizados com esses remédios foram feitos em um sistema in vitro. Ou seja, isso significa que os cientistas cultivaram células em pequenas placas, e fizeram os testes. Em situações normais, depois que os testes in vitro são feitos, os remédios acabam em uma etapa de testes em animais. Esses testes se fazem necessários. Pois, diferente de um sistema in vivo, ou seja, em um animal, os experimentos em culturas de células são muito controlados e não representam toda a complexidade que um corpo possui. Assim, muitas coisas podem apresentar resultados promissores nos testes com células, mas falham quando testados para os animais.

    No contexto da Pandemia, esses remédios de testes de reposicionamento podem pular a etapa de segurança e acabam nos estudos clínicos com humanos. Afinal já conhecia-se a relação de segurança do remédio. Só não sabíamos se ele funcionava para COVID-19. Dois grandes estudos clínicos foram realizados, o SOLIDARITY, organizado pela OMS e o RECOVERY, organizado pela Universidade de Oxford. Entretanto, foram nesses estudos clínicos, realizados com milhares de pessoas, que os resultados mostraram que a maioria dos remédios falharam. 

    Um pouco de calma, antes de sair tomando remédio nunca fez mal a ninguém…

    Mas por que não podemos tomar esses remédios, ao passo que eles constam na bula como seguros, mesmo sem um efeito comprovado? Primeiro que ser seguro, não quer dizer “de qualquer jeito” e “tomando enquanto eu estiver com vontade ou a pandemia durar” (o que acabar primeiro).

    Segundo, que mesmo aqueles aprovados e vendidos em farmácias possuem uma dose e um tempo certo de administração. Por exemplo, você já reparou que todo remédio possui uma bula que relata efeitos adversos que podem ser simples, ou até mesmo muito graves? 

    Já existem relatos de pessoas que tiveram problemas de saúde decorrente do uso profilático de remédios sem prescrição médica, como por exemplo ivermectina e cloroquina. Em uma entrevista dada ao Jornal “O Globo”, o médico hepatologista Paulo Bittencourt informou que 27% das hepatites agudas graves ou fulminantes são de origem de medicamentos. 

    Além disso, outros problemas podem surgir, como por exemplo a falta desses remédios para quem realmente precisa tomar. Assim, cria-se uma falsa sensação de segurança, e as pessoas param de adotar medidas que realmente funcionam para o enfrentamento da pandemia, como uso de máscaras e distanciamento social. E também, investir em um remédio que não funciona significa que o dinheiro disponível para o combate a pandemia está sendo mal gasto

    Abaixo, preparamos uma lista com as principais tentativas de tratamento utilizadas durante esse primeiro ano de pandemia. 

    Hidroxicloroquina e Cloroquina

    A dupla de remédios mais comentada em 2020, e também uma das mais pesquisadas. São remédios desenvolvidos para o tratamento de malária e algumas doenças inflamatórias, como artrite reumatóide e lupus. Tudo começou com um estudo in vitro na China e um estudo clínico na França, que indicavam que o remédio reduzia a carga viral e também sintomas graves em pacientes com COVID-19. Esses estudos deram esperança para que outras pessoas pesquisassem mais.

    Todavia, o problema é que em outras células, o vírus realiza a infecção e a entrada por um sistema diferente daquele que foi observado na China. No corpo humano, o vírus pode usar ambas as formas de infecção e entrada nas células, e por isso esses remédios não funcionam!
    Atualmente, esses remédios são contra indicados pela Organização Mundial da Saúde.

    Ivermectina

    Esta segue polêmica! A ivermectina é remédio aprovado para uso no tratamento de parasitas em humanos, e dependendo da dose ela é dada até para pets. A história da ivermectina e a COVID-19 começou com um estudo realizado na Austrália em meados de abril de 2020, que demonstrou que a ivermectina tinha ação em culturas de células. Depois, esse estudo foi refutado por outros, já que as doses necessárias eram mais altas que a faixa de segurança do remédio para o tratamento no corpo humano. 

    Remdesivir

    Remédio criado para o tratamento de Ebola e de Hepatite C. Ele é um antiviral que age no processo de produção de novos vírus, se ligando a molécula de RNA que está sendo produzida nas células infectadas. Em outubro de 2020 a FDA (organização americana de administração de remédios e comidas) aprovou seu uso emergencial em adultos e crianças com mais de 12 anos que estão internadas com COVID-19. Os resultados de estudos clínicos mostram que ele pode reduzir o tempo de internação dessas pessoas. 

    Mas esse não é aquele que a Anvisa liberou ontem mesmo? Sim, No dia 12 de março de 2021 a ANVISA aprovou o uso de Remdesivir em pacientes hospitalizados acima de 12 anos com necessidade de oxigênio. Logo mais teremos atualização sobre este tópico.

    Lopinavir e Ritonavir

    Essa dupla de remédios foi aprovada como tratamento para HIV, e algumas pesquisas mostraram que eles também poderiam agir atrapalhando a multiplicação do coronavírus dentro de células. No entanto, os estudos clínicos foram desanimadores e a OMS suspendeu novos estudos com esses remédios em Julho de 2020. Todavia, ainda está sendo pesquisado se a combinação desses remédios com outros, algo como um coquetel, podem ajudar a reduzir a gravidade da doença. Mas, o NIH (Instituto Nacional de Saúde dos EUA) não recomenda o uso desses medicamentos. 

    Azitromicina

    Azitromicina é um antibiótico utilizado para tratar doenças causadas por bactérias. Por possuir uma ação anti inflamatória, ele passou a ser considerado como um candidato para estudos clínicos que observavam se como esse remédio poderia reduzir os sintomas dos pacientes. Contudo, em dezembro de 2020 comprovou-se que pacientes que usaram esse remédio não tiveram nenhuma melhora significativa em relação a pacientes que não tomaram esse remédio. Além disso, vale lembrar que o uso descontrolado de antibióticos pode ocasionar o surgimento de bactérias super resistentes a tratamentos, e ninguém quer sair de uma pandemia de vírus e entrar numa era de superbactérias, não é mesmo? 

    Dexametasona

    Umas das principais formas de minimizar o quadro de gravidade de um paciente é através da minimização dos sintomas. Assim, os corticosteróides estão sendo utilizados como remédios para reduzir a resposta do sistema imune ao vírus, que chamamos de “tempestade de citocinas”. As citocinas são pequenas moléculas do nosso próprio corpo, e que aumentam a resposta do sistema imune. Todavia, quando temos uma quantidade muito grande dessas moléculas, como uma tempestade, elas podem acionar uma resposta tão grande do nosso sistema imune que resultam na danificação de diversos órgãos, dentre eles o pulmão.

    A dexametasona é um desses remédios capazes de reduzir a inflamação e a resposta do sistema imune, além de ser um remédio barato. No entanto, sempre importante ressaltar que o NIH recomenda o uso de dexametasona em pacientes hospitalizados. Essa recomendação se dá a partir dos resultados obtidos no estudo RECOVERY, em que 6 mil pacientes hospitalizados foram divididos no grupo tratado com procedimentos “padrão” ou com dexametasona, e aqueles que receberam dexametasona tiveram uma melhora maior do que a do grupo “padrão”. 

    Interferon

    Os interferons são proteínas que nosso sistema imune produz naturalmente. Ao encontrar um vírus, o corpo produz Interferons do tipo beta. Além da produção natural, também existem tratamentos em que os médicos receitam a administração dessas proteínas aos pacientes. O tratamento com essas moléculas procura estimular uma resposta do sistema imune, ativando as células para que elas combatam a infecção, e dessa forma reduzam as chances de agravamento da doença.

    Colchicina

    Remédio utilizado no tratamento de gota, e testado por pesquisadores da USP de Ribeirão Preto e por pesquisadores da Inglaterra. Ela demonstrou resultados promissores em reduzir a quantidade de pessoas que precisam ir para hospitais, mas ainda não se sabe como ela ajuda no tempo, no controle da gravidade da doença e na redução de sintomas. 

    Os pesquisadores da USP acreditam que ela ajuda principalmente a reduzir a inflamação do pulmão, e que isso está relacionado com a redução no tempo de sintomas de pacientes com as formas moderada e grave da doença. Na Inglaterra, um novo estudo clínico será feito com pacientes no início da infecção por COVID-19. 

    Terapia com soro e plasma convalescente

    O sangue de pacientes que já tiveram COVID-19 está repleto de anticorpos que o sistema imune dessa pessoa produziu como resposta à doença. O soro é a parte do sangue em que ficam esses anticorpos, e é possível coletar essa parte e dar para pacientes que ainda estão em tratamento. Isso acontece também quando alguém precisa tomar um soro para a picada de uma cobra, por exemplo. 

    Um estudo, publicado em Janeiro de 2021, mostra que pacientes que receberam o soro em até 3 dias depois de começar a sentir os sintomas tiveram uma chance 48% menor de desenvolver um quadro severo de COVID, quando comparado com pacientes que não receberam soro. 

    Dessa forma, o FDA autorizou de forma emergencial o uso de soro de pacientes para tratamento de COVID-19 em Agosto de 2020. Aqui no Brasil, o Instituto Butantan já pediu a autorização da ANVISA para começar a disponibilizar soro e plasma para o tratamento da COVID-19 no país.

    Por fim, e o desenvolvimento de novos remédios?

    E porque não começar a falar sobre o desenvolvimento de novos remédios, que sejam específicos para a COVID-19? Graças à ciência de base, que estudou os mecanismos de infecção e a biologia do vírus, agora podemos desenvolver remédios que funcionem efetivamente contra a COVID-19. Em suma, nos resta esperar os resultados de várias pesquisas que ainda estão sendo desenvolvidas! 

    Para saber mais:

    Notícias sobre tratamentos e reposicionamento: 

    Estudo sugere que pessoas em “tratamento precoce” tiveram taxas mais altas de infecção por covid-19 em Manaus

    SARS-CoV-2 Seroprevalence and Associated Factors in Manaus, Brazil: Baseline Results from the DETECTCoV-19 Cohort Study – Abstract

    46 entidades médicas brasileiras emitem manifesto e reforçam uso de máscara

    OMS: Hidroxicloroquina não funciona contra Covid-19 e pode causar efeito adverso

    Médicos alertam sobre uso de ivermectina contra Covid-19, após suspeita de paciente com hepatite aguda

    Harvard Health: Treatments for COVID-19

    Coronavirus cure: What progress are we making on treatments?

    Coronavirus Drug and Treatment Tracker

    Ensaio Clínico Mundial da OMS

    Repurposed antiviral drugs for COVID-19 –interim WHO SOLIDARITY trial results

    Hidroxicloroquina e Cloroquina

    Chloroquine or Hydroxychloroquine | COVID-19 Treatment Guidelines

    4 July 2020 News release WHO discontinues hydroxychloroquine and lopinavir/ritonavir treatment arms for COVID-19

    Notícia: Jamil Chade – OMS: cloroquina não funciona e orçamento investido deve ser redirecionado

    Chloroquine does not inhibit infection of human lung cells with SARS-CoV-2

    Antiviral Therapy | COVID-19 Treatment Guidelines

    Ivermectina 

    The FDA-approved drug ivermectin inhibits the replication of SARS-CoV-2 in vitro

    Remdesivir

    Mechanism of SARS-CoV-2 polymerase stalling by remdesivir

    Remdesivir for the Treatment of Covid-19 — Final Report | NEJM

    Anvisa aprova uso de remdesivir contra covid-19 e diz que remédio reduz tempo de hospitalização

    Lopinavir e Ritonavir

    Lopinavir/Ritonavir and Other HIV Protease Inhibitors | COVID-19 Treatment Guidelines

    Azitromicina

    Azithromycin in Hospitalised Patients with COVID-19 (RECOVERY): a randomised, controlled, open-label, platform trial

    RECOVERY trial finds no benefit from azithromycin in patients hospitalised with COVID-19 — RECOVERY Trial

    Dexametasona

    Potential health and economic impacts of dexamethasone treatment for patients with COVID-19

    Colchicina

    Estudo avalia eficácia da colchicina contra a covid-19 e hidroxicloroquina não faz parte da análise

    Second UK trial to study gout drug colchicine as COVID-19 treatment

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Deus, hidroxicloroquina e unicórnios: é impossível demonstrar um negativo?

    Texto escrito por Fábio Machado

    Quem está habituado à discussão teológica está familiarizado com a afirmação de que seria “impossível demonstrar uma negativa”. Ela é rotineiramente usada por crentes e apologetas para argumentar que, “segundo a lógica”, é impossível dizer que Deus não existe, mesmo na total ausência de evidências da sua existência. Logo se você crê em Deus por fé apenas (sem evidencia), você não estaria sendo irracional ou ilógico. Esse argumentos sempre me soou estranho, mas eu honestamente não havia pensado nele por anos até que me deparei com alguns debates recentes na internet envolvendo a hidroxicloroquina e sua eficácia. A discussão segue mais ou menos assim:

    Crítico da hidroxicloroquina – Foi demonstrada a ineficácia da hidroxicloroquina

    Defensor da hidroxicloroquina – Não foi demonstrada sua ineficácia, porque é impossível demonstrar uma negativa.

    O que para mim o curioso nessa história toda é que a frase de efeito, ou truísmo, usado para corroborar esse raciocínio, de que  “é impossível demonstrar uma negativa” é obviamente falso. É completamente lógico derivar um argumento formal no qual a conclusão é a inexistência de algo. Por exemplo, digamos que estejamos argumentando sobre a existência de unicórnios. Eu poderia montar o seguinte argumento

    • P1 – Se unicórnios existem, deveria haver alguma evidência deles no registro fóssil.
    • P2 – Não existe evidência de unicórnios no registro fóssil.
    • Conclusão- Unicórnios não existem.

    Esse é um argumento logicamente válido no qual a conclusão (uma negativa) é a consequência lógica das premissas. Proposições negativas são tão demonstráveis quanto proposições positivas.

    “Mas, calma lá”, você pode pensar “o registro fóssil é notoriamente incompleto. Espécies podem simplesmente não estar representadas sem que isso signifique que elas nunca existiram”.

    Esse argumento remete ao problema da indução, que diz basicamente que nenhuma generalização baseada em observações limitadas pode ser bem sucedida. O exemplo clássico é a ideia de que, não importa quantos cisnes brancos você encontre na natureza, você nunca vai poder dizer que todos os cisnes são brancos, visto que você ainda pode encontrar um cisne negro que refute essa generalização. É importante ressaltar que, enquanto isso não invalida a ideia que proposições negativas são demonstráveis, isso parece levantar um problema sério para premissas que sustentem supostas inexistências.

    Porém, nem todas proposições são iguais. Imagine que, ao invés de você estar buscando cisnes negros, você que saber se um gene X está associado com a cor das penas em cisnes negros. Uma prática em genética para entender o funcionamento de um dado gene é exatamente deletar esse gene de um embrião, ou “nocautear” o gene. Se o gene era associado com a cor das penas, você espera que o embrião com o gene nocauteado desenvolva penas brancas (ou não-negras). Se o embrião continua desenvolvendo penas negras, você pode afirmar que o gene X não tem efeito sob a coloração negra das penas. Em forma de argumento formal:

    • P1- Se o gene X determina a cor negra da pena, sua remoção produziria penas sem essa coloração
    • P2- A remoção do gene não afeta a cor da pena
    • Conclusão- O gene X não afeta a cor da pena.

    Nesse caso não há ambiguidade alguma: uma vez que o mecanismo é proposto e testado, a ausência de um efeito implica que sua hipótese foi refutada: o mecanismo, como designado, não existe. A diferença é que, quanto mais específica é sua premissa inicial, mais certeza você pode conferir à sua conclusão.

    O caso de medicamentos tem mais a ver com o encontrar um mecanismo genético do que buscar unicórnios no registro fóssil: a ação de um remédio depende de que um mecanismo proposto seja verdadeiro, ou potencialmente verdadeiro. O que nos trás à hidroxicloroquina.

    Presidente Jair Bolsonaro no jardim do Palácio da Alvorada alimentando as emas e mostrando a caixa do remédio cloroquina para as emas, a mesma caixa que mostrou para os apoiadores no ultimo domingo 19/07. Sérgio Lima/Poder360. 23.07.2020

    Querida de três em cada três líderes com tendências autoritárias no continente americano (Trump, Bolsonaro e Maduro), a hidroxicloroquina foi alardeada com um possível tratamento ao COVID19 com base em um estudo feito em células in vitro (em placas de petri; aqui e aqui). Esse estudo demonstrou que a hidroxicloroquina em conjunto com azitromicina era capaz de prevenir a entrada do vírus em células vivas. Em investigações sobre a eficácia de medicamentos, a existência de algum tipo de efeito in vitro é considerado premissa básica para que mais estudos sejam realizados, para observar se um remédio pode ter efeito em seres vivos e, em última analise, humanos. De qualquer maneira, esse estudo deu o pontapé inicial à investigação sobre a eficiência da hidroxicloroquina contra o COVID19, resultando em diversos trabalhos que buscaram encontrar um efeito da droga em seres humanos infectados.

    Nada disso seria particularmente problemático se políticos não tivessem tomado para si o papel de decidir, com base em evidências problemáticas, quais são os tratamentos que devem ser seguidos. O que temos agora é a pior situação possível: enquanto a ciência demonstra a total ineficácia da hidroxicloroquina no tratamento de COVID19 (ver aqui e aqui, por exemplo), políticos e entusiastas destes mesmos governantes se veem na posição de ter que defender pseudociência por motivos meramente ideológicos. E é nesse momento que vemos as pessoas se agarrarem cada vez mais desesperadamente à argumentos falaciosos para defender sua posição. No caso da hidroxicloroquina, como coloquei anteriormente, surge essa ideia de que seu efeito positivo não pode ser negado, pois seria impossível demonstrar uma negativa. Como já argumentei, essa afirmação é falsa (é incrivelmente simples demonstrar um negativo). Mas seria esse o caso da hidroxicloroquina?

    Pra entender isso, precisamos entender um pouco como supostamente a hidroxicloroquina deveria funcionar. Para entrar nas células animais, o coronavírus pode se valer de dois mecanismos. O primeiro é se ligando a receptores de superfície das células do hospedeiro para introduzir o seu material genético diretamente no interior da célula. No segundo mecanismo, o vírus é absorvido por invaginações da membrana celular (endossomos) e invadem o citoplasma celular a partir daí. Esse segundo mecanismos, o realizado por endossomos, necessita de uma proteína funcional chamada catepsina L, que necessita de um meio ácido para funcionar. Nesse contexto, a hidroxicloroquina atua diminuindo a acidez do meio intracelular, impedindo a ação da catepsina L, impedindo a entrada do coronavírus na célula. Para voltar para nossas preposições, podemos descrever a atuação da hidroxicloroquina da seguinte forma:

    • P1- Para a hidroxicloroquina funcionar no combate a COVID19 ela necessita prevenir a entrada do coronavírus nas celulas pulmonares humanas.
    • P2- Hidroxicloroquina diminui a acidez intracelular, afetando o funcionamento da catepsina L.
    • P3- Catepsina L é usada pelo coronavírus para entrar na célula.

    Segundo essa lógica – e essa era a lógica que poderíamos aceitar no começo do ano – a hidroxicloroquina (potencialmente) funcionaria no combate a COVID19. Mas o diabo mora nos detalhes. As células usadas inicialmente para demostrar que a hidroxicloroquina funciona in vitro eram culturas de células de rins de macacos. Essas células normalmente apresentam resultados bons o suficiente para a maior parte dos fármacos, porém no caso do coronavírus a coisa parece ser mais complicada. Enquanto é verdade que em células de rim a Catepsina L é essencial para a ação de entrada do vírus, células pulmonares humanas não apresentam essa enzima em grandes quantidades.

    Ao invés, o mecanismo de entrada do coronavírus na célula é mediada por uma enzima chamada TMPRSS2. O problema é que, diferente da Catepsina L, o funcionamento da TMPRSS2 não é afetado pela alteração da acidez do meio celular. De fato, um estudo recente em células pulmonares humanas demonstrou que a hidroxicloriquina é incapaz de impedir a invasão das células pelo coronavirus. Assim, podemos atualizar a descrição da atuação da hidroxicloroquina da seguinte forma:

    • P1- Para a hidroxicloroquina funcionar no combate a COVID19 ela necessita prevenir a entrada do coronavírus nas celulas pulmonares humanas.
    • P2- Hidroxicloroquina diminui a acidez intracelular, afetando o funcionamento da catepsina L.
    • P3- Catepsina L é usada pelo coronavírus para entrar em células de rim.
    • P4- TMPRSS2, que é usada pelo coronavirus para entrar em células pulmonares, não é afetada pela hidroxicloroquina.

    E disso segue que

    • C- Hidroxicloroquina não funciona no combate a COVID19 através do mecanismo proposto.

    O que mostra que é plenamente lógico afirmar que a hidroxicloroquina não funciona.

    Óbvio que isso não vai satisfazer os defensores da droga, pois inúmeros outros mecanismos podem ser propostos, inclusive mecanismos sem o menor respaldo científico, como foi o caso da “pílula do câncer”, uma droga sem efeito também defendida pelo presidente da república.

    Eu acredito que a luta pela hidroxicloroquina vai durar muito mais tempo depois que sua discussão acadêmica estiver de fato encerrada. Estamos entrando em um caminho onde teorias conspiratórias, pseudociência e pseudofilosofia estarão intrinsecamente ligados com a política nacional. Vai ser um caminho tortuoso. Boa sorte a todos nós.

    *Para os nerds: sim, eu estou mais que ciente das problemáticas sobre o grau de confiabilidade em resultados experimentais e estatísticos. Você pode transformar todos esses argumentos em probabilísticos e chegar a conclusão que a hidroxicloroquina muito provavelmente não funciona (o que é basicamente a mesma, visto que a única “certeza” que podemos ter em termos científicos são aquelas referentes à altas probabilidades).

    Para saber mais

    Boulware DR, Pullen MF, Bangdiwala AS, et al. A Randomized Trial of Hydroxychloroquine as Postexposure Prophylaxis for Covid-19. N Engl J Med. 2020;383(6):517-525. doi:10.1056/NEJMoa2016638

    Cavalcanti, AB; Zampieri, FG; Rosa, RG et al (2020) Hydroxychloroquine with or without Azithromycin in Mild-to-Moderate Covid-19. The New England Journal of Medicine

    Liu, J., Cao, R., Xu, M. et al. Hydroxychloroquine, a less toxic derivative of chloroquine, is effective in inhibiting SARS-CoV-2 infection in vitro. Cell Discov 6, 16 (2020). https://doi.org/10.1038/s41421-020-0156-0

    Wang, M., Cao, R., Zhang, L. et al. Remdesivir and chloroquine effectively inhibit the recently emerged novel coronavirus (2019-nCoV) in vitro. Cell Res 30, 269–271 (2020). https://doi.org/10.1038/s41422-020-0282-0

    O autor

    Fabio Machado é Biologo Evolutivo, pesquisador e professor. Amante dos animais, defensor da natureza, amigo do vento.

    Este texto foi escrito originalmente no Blog Haeckeliano.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Sobre Vacinas, método científico e transparência na ciência (parte 2)

    [Diálogos semi-imaginados, não aleatórios]
    https://giphy.com/gifs/du2gFIxNEM8n6e3Hrr
    Já pode lamber corrimão?

    A ciência na vida mundana

    A ciência virou notícia cotidiana – já não consta apenas em partes específicas dos noticiários e jornais, em programas televisivos que se passam nos primeiros horários da manhã durante o final de semana. Desde meados de março, quando o SARS-CoV-2 desembarcou de vez no Brasil, temos visto curvas epidemiológicas, debates sobre eficácia de medicamentos, aprendido sobre proteína Spike, sobre diagnóstico por PCR e sorológico. Temos lido sobre pulmão com aspecto de vidro fosco, compreendido sobre a relação de algumas comorbidades e a infecção pelo novo coronavírus, lido mais e mais sobre transmissão comunitária, imunidade cruzada, diferentes tipos de anticorpos, dentre outros temas.

    Também há todo um montante de informações que nos confunde, muitas vezes. Medicamentos como Cloroquina e Ivermectina – que já eram usados para outras doenças ou enfermidades, tornaram-se “drogas candidatas” e embora tenham sido descartadas, seguem sendo pauta no Brasil e no Mundo. 

    Semana passada a Ozonioterapia foi anunciada como tratamento em uma transmissão ao vivo, por um prefeito no Sul do país e pronto… Uma corrida por informações, memes, artigos publicados, declarações das sociedades relacionadas a isso.

    A Vacina Russa, esta semana também têm causado furor em redes sociais. E muitos se perguntam se tomariam mesmo sem ela ter apresentado os resultados das fases 1 e 2, afinal “é melhor que nada, né?”

    Um pouco é melhor que nada?

    É aí que reside um grande perigo… Percebam que não temos nenhum interesse em acordar todas as manhãs e ver que não há cura, tratamento ou vacina eficaz anunciada. Não é pessimismo olhar para como as etapas da vacina precisam de tempo para serem analisadas. Sagan, em 1996, comentou que vivemos em um mundo em que precisamos da ciência e seus produtos em cada detalhe da sociedade. No entanto, não sabemos como a ciência funciona – e isso é uma receita para o desastre, afirmou um dos maiores nomes da divulgação científica de todos os tempos.

    Pois bem, aqui temos uma série de questões fundamentais que precisamos entender (e talvez isso demore mais tempo do que a vacina, mas cá estamos aprendendo junto com vocês…). A ciência precisa de tempo. Ela é feita a partir de uma série de etapas, que expliquei na postagem que é a parte 1 deste texto. De maneira muito sucinta, o método científico é feito a partir das etapas desta imagem:

    Cada uma destas etapas é feita de maneira colaborativa, com diálogo, debates em grupos de pesquisa, aprovações em comitês de ética nacionais e/ou internacionais (que precisam ser avaliados quanto ao risco aos seres vivos envolvidos). Enquanto estas etapas acontecem, elas também vão gerando outras perguntas e hipóteses (não são etapas estanques e lineares), realizamos análises enquanto estamos realizando experimentos, apresentamos dados parciais em eventos e publicações, etc.

    Porque estou batendo nesta tecla com vocês?

    Ora! Para dizer que na ciência o método científico INTEIRO é permeado de diálogos, debates, conversas. Compartilhar resultados em periódicos ou congressos é uma parte de tudo isso – uma parte importante, pois não é apenas uma exposição, mas é uma avaliação pública do nosso trabalho. Todavia, é também parte de uma prática de expor conhecimento para que outros grupos de pesquisa, outros cientistas, consigam acessar isto e fazer novas perguntas, hipóteses, propor novos experimentos – aumentando ainda mais nosso conhecimento sobre um fenômeno.

    Isto leva tempo, demanda esforço, recursos financeiros, formação de cientistas ao longo de muito tempo, equipes inteiras que se debrucem sobre os problemas que aparecem no mundo. Não que cientistas sejam pessoas extraordinárias e mais inteligentes (o suprassumo de nossa espécie diriam algumas pessoas). Não é nada disso… É apenas demarcar que é uma atividade de médio e longo prazo – UM PROJETO DE UM PAÍS, para além de partidos e governantes.

    Dizer que terapias sem comprovação científica é melhor que nada não é dar esperança às pessoas: é tapar o sol com a peneira e dizer que qualquer coisa vale para a vida do outro. E isso inclui possíveis prejuízos (como a piora do quadro de saúde, o abandono das terapias paliativas, o falecimento sem assistência adequada, o contágio de familiares…)!

    Sobre terapias alternativas e seus resultados não publicados 

    (ou publicados para outras doenças que não aquela que estamos falando)

    Veja que nem é afirmar que não existem estudos vinculados a estas terapias e indicações de tratamentos que vou falar a partir de agora. Mas é sobre como resultados específicos não foram obtidos para esta doença.

    • “A ozonioterapia é usada há 100 anos já!”
    • “A ozonioterapia têm tido ótimos resultados em tratamentos cutâneos e outras enfermidades”
    • “A cloroquina é usada há décadas para Lupus e malária! Como assim é tóxica?”
    • “Os resultados in vitro deram positivo, qual o problema então se eu tomar?”
    • “A ivermectina não têm comprovação, nem contraindicação, deixa as pessoas tomarem ué!”
    • “Se a vacina russa sair, eu vou tomar, mesmo sem comprovação!”

    Estas são algumas das frases que vemos espalhadas nas redes sociais e expressam a opinião das pessoas. 

    Agora vamos lá…

    Para afirmar que a ozonioterapia é eficiente como tratamento, não basta o ozônio ser um bom composto químico que reage com o vírus fora do nosso corpo. Também não basta a ozonioterapia ser eficiente há 50-100 anos contra doenças diversas. Além disso, uma terapia eficiente contra uma doença não a torna automaticamente eficiente contra qualquer outra.

    Tratamentos para doenças muitas vezes necessitam de reagentes específicos (isto é: que quimicamente tenham ação contra o agente patógeno – vírus, bactérias, vermes, fungos…).

    Em suma, para ozônio ou qualquer componente experimental, componentes químicos reagem de modo diferente dentro e fora do nosso corpo. Além disso, os componentes reagem de maneiras diferentes dependendo de como entram em nosso corpo (com introdução anal, intramuscular, intravenosa, pelo trato digestivo).

    Ah, sim: o mesmo vale para a cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e outras drogas candidatas (que já foram descartadas…). Ou seja: drogas candidatas e terapias em fase de pesquisa estão ainda cumprindo a sequência do método científico – não podem nem ser chamadas de tratamento. Assim, estes medicamentos em fase de pesquisa não poderiam ser administradas para as pessoas como tratamento sem que as pessoas fossem informadas sobre isso e consentissem formalmente!

    E a vacina russa?

    Sem transparência, não há segurança! Sem transparência no processo todo, não sabemos se houve ética no desenvolvimento desta vacina! E é por debatermos cada etapa da ciência que temos avançado não apenas em resultados mais precisos contra doenças, mas temos buscado meios de fazer isto de modos cada vez mais seguros, levando-se em conta questões étnicas, de gênero, de faixa etária, de classe social. Ou seja, levando-se em conta a diversidade humana em todos os seus aspectos – e isso é uma luta antiga e importantíssima dentro do meio científico. Que foi (e têm sido – pois ainda temos muito o que conquistar na igualdade e equidade das populações) pauta do que é ciência, como a fazemos e aplicamos o método científico e, mais importante do que isso, para quem fazemos isso – a sociedade.

    Compreendem a diferença? Não é ser negativo. Não é nos negarmos a querer que todos vocês – e nós – tenhamos novamente uma vida de idas ao supermercado sem neuras, abraços sem restrições e uma vida sem medo.

    É exatamente o oposto disso. E não é, também, deixar de olhar para tudo o que ainda temos a fazer e conhecer para que a transparência e a ética sejam alcançadas em cada etapa de nosso trabalho. É exatamente para isto que estamos aqui e trabalhamos com divulgação científica! Por uma maior transparência, diálogo, inclusão no (e pelo) conhecimento para debate socialmente éticos.

    Em suma, para fechar:

    Com ou sem coronavírus, lamber corrimão não parece ser uma boa ideia, ok? ERA MEME GENTE. Mas o diálogo é real.

    Para saber mais

    Divulgadores Científicos Brasileiros

    Dutra, Mellanie (2020) Rússia: a vacina que ninguém viu ou sabe o que faz Rede Análise Covid

    Galhardo, JA A hierarquia das evidências científicas: por que não devemos acreditar em qualquer coisa? Rede Análise Covid

    Iamarino, Atila (2020a) Vacina Russa

    Iamarino, Atila (2020b) Vacinas contra a COVID-19

    Instituto Butantã (2020) Ensaios Clínicos

    Artigos e Livros

    Caceres, RÁ (1996) El método científico en las ciencias de la salud: las bases de la investigación biomédica, Madrid: Ediciones Díaz de Santos.

    Callaway, E (2020a) Russia’s fast-track coronavirus vaccine draws outrage over safety Nature

    Callaway, E (2020b) Coronavirus vaccines leap through safety trials — but which will work is anybody’s guess Nature.

    Galetto, M e Romano, A (2012) Experimentar: aplicación del método científico a la construcción del conocimento. Madrid: Narcea, SA de Ediciones. 

    Moghaddam, A; Olszewska, W; Wang, B; et al (2006) A potential molecular mechanism for hypersensitivity caused by formalin-inactivated vaccines; Nat Med 12, 905–907 

    Mullard, A (2008) Vaccine failure explained; Nature.

    Peeples, L (2020) News Feature: Avoiding pitfalls in the pursuit of a COVID-19 vaccine; PNAS April 14, 2020 117 (15) 8218-8221; first published March 30, 2020

    WHO (2020) More than 150 countries engaged in COVID-19 vaccine global access facility

    WHO (2020b) DRAFT landscape of COVID-19 candidate vaccines – August 10th 

    Wechsler, J (2020) COVID Vaccine Clinical Trials Require Fast Decisions, But No Shortcuts Applied Clinical Trials

    Outros textos do blogs

    Sobre Vacinas, método científico e transparência na ciência (parte 1)

    Ozônio na COVID dos outros é refresco

    COVID-19 e impactos na pesquisa

    De água sanitária à radiação: você já ouviu falar em sanitização?

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Blog Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Uma pandemia impulsionando outra – Parte 2: Resistência bacteriana a antimicrobianos: por que se preocupar?

    Esse texto é continuação do post: Uma pandemia impulsionando outra – Parte 1: O uso de antimicrobianos durante a pandemia da covid-19

    A resistência a antimicrobianos (RAM) é conhecida como um problema que não tem fronteiras e é um problema global. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a OMS, uma pandemia é caracterizada por sua disseminação e não necessariamente pela gravidade da doença. Indiscutivelmente, a RAM também pode ser considerada uma pandemia que embora seja mais insidiosa e com menos efeitos imediatos na vida cotidiana, possui impactos negativos potencialmente mais amplos. Vamos entender por que isso acontece nesse post. Vem com a gente!

    Como falamos anteriormente, o uso de antimicrobianos está aumentado pelo uso dessas drogas no tratamento e na “prevenção “ da covid-19 tanto no ambiente hospitalar quanto na comunidade. Curiosamente, a resistência das bactérias aos antimicrobianos, que é sempre uma preocupação no meio hospitalar, parece não estar recebendo a devida atenção nesse momento. É por isso que muitos cientistas da área estão tentando chamar a atenção para a importância de um potencial agravamento da pandemia global de RAM.

    As UTIs, locais onde concentram os pacientes mais graves da covid-19, são epicentros comuns para o desenvolvimento da RAM. O uso exacerbado de antimicrobianos pode, portanto ter grandes consequências em hospitais que já apresentam elevada prevalência de bactérias resistentes a múltiplas drogas, levando a um aumento de mortalidade devido ao reduzido arsenal de antibióticos para tratar as infecções ou coinfecções adquiridas. Portanto, há comprometimento também de pacientes pós-cirúrgicos, transplantados ou quimioterápicos, por exemplo. Como terminamos falando no post anterior, não estamos falando que não se deve usar antimicrobianos nem que as coinfecções devam ser subestimadas. Mas os profissionais de saúde devem considerá-las num plano integrado para limitar o fardo da morbimortalidade durante a pandemia da covid-19 e, ao mesmo tempo, evitar um possível agravamento da RAM.

    Uma medida muito disseminada de proteção contra o novo coronavírus (SARS-CoV-2) é a higienização das mãos… medida excelente, funcional e simples! Porém, muitas vezes realizada com o uso de sanitizantes ou sabões antibacterianos, que contém agentes químicos que, apesar de não adicionar muita coisa em termos de proteção, podem dar gatilho para a resistência antimicrobiana. E isso acontece porque um dos mecanismos de resistência das bactérias são bombas de efluxo que literalmente jogam os antimicrobianos para fora da célula. Muitas vezes, as bombas que conferem resistência a esses sanitizantes são as mesmas daquelas necessárias para conferir a RAM.

    Esses agentes biocidas caem na rede de esgoto e chegam ao ambiente, onde acabam elevando as concentrações dessas drogas. Claro que no caminho essas drogas são diluídas, mas temos que considerar a concentração final desses agentes… Se muito elevadas, muitas bactérias vão morrer, isso pode impactar negativamente os ecossistemas e, ao mesmo tempo, evitar o desenvolvimento da RAM. Porém concentrações baixas (sub-inibitórias) podem aumentar a pressão seletiva e promover oportunidades para o surgimento e a seleção da RAM. De forma muito simplificada, concentrações sub-inibitórias dessas drogas ativam vias de respostas ao estresse que, por sua vez, aumentam a ocorrência de mutação nas bactérias. Isso está relacionado a uma maior taxa de variabilidade entre entre as células bacterianas e, portanto,  a maiores possibilidades do surgimento e seleção de indivíduos resistentes daquela população. O fenômeno da seleção sub-inibitória é muito bem estudado para antibióticos, mas pouco para biocidas. Não podemos, portanto, desconsiderar os efeitos ambientais, uma vez que níveis aumentados de antimicrobianos são liberados no ambiente aumentando os níveis de resistência em animais (selvagens e de corte), na agricultura e nos ambientes naturais.

    [atualização 27/07]: É importante ressaltar que resíduos dos antimicrobianos que tomamos são eliminados pelas fezes e pela urina, caindo na rede de esgoto e, consequentemente, no ambiente. É tudo um ciclo, uma grande bola de neve! É algo que, realmente, deve nos preocupar!

    Falamos brevemente da ocorrência da RAM em hospitais e no meio ambiente. Mas por que devemos nos preocupar tanto!?

    Nos últimos anos a RAM já é citada com a maior ameaça global à saúde pública e à economia global, mas agora está não só eclipsada pela covid-19, como também corre risco de ser agravada por essa nova pandemia. Ou seja: muitos especialistas agora temem que o esforço global para manter a RAM sob controle possa enfrentar um revés durante a pandemia

    Vamos falar com números:

    A RAM já mata cerca de 700.000 pessoas por ano. Numa estimativa grosseira, e considerando-se que a covid-19 mantenha as taxas de mortalidade pelo restante do ano, estima-se que a RAM resultará em 130.000 morte a mais neste ano. As mortes por COVID podem superar as mortes por RAM neste ano de 2020 e o uso de antimicrobianos em pacientes com COVID também pode até reduzir o aumento na mortalidade por COVID em curto prazo mas, por outro lado, a consequência é um provável aumento na mortalidade por RAM a longo prazo. Estima-se que até 2050, a mortalidade associada a RAM será aumentada para 10 milhões de mortes por ano!  Tudo indica que que a covid-19 será controlada em um tempo consideravelmente menor.

    A movimentação dos pesquisadores é para que os princípios da administração de antibióticos não sejam relaxados mesmo nesses tempos de pandemia. A necessidade do tratamento com antibiótico deve ser avaliada rapidamente e interrompida se não for necessária. Observe que não estamos advogando em favor do uso profilático (preventivo) desses medicamentos! Além disso, quem deveria informar o antibiótico de escolha é o laboratório de microbiologia e baseado no micro-organismo e no padrão de resistência observado.

    Falamos anteriormente que a OMS já se manifestou contra o uso de antibióticos durante o tratamento inicial de covid-19. Essa cautela deve-se principalmente em relação a dois pontos: 1) o uso inapropriado e exacerbado de antimicrobianos pode contribuir para a emergência da RAM, daí a necessidade de se reduzir o uso inapropriado e exacerbado de antimicrobianos (sim, a repetição aqui foi intencional!) e; 2) o uso de antimicrobianos no tratamento da covid-19 pode levar à população a assumir que todos os antibióticos são elegíveis para o tratamento de infecções virais.

    A ocorrência de infecções por patógenos resistentes pode ser significantemente mitigada pela administração de antimicrobianos baseada em evidência em todos os setores (agricultura e medicina veterinária e humana). Embora tenhamos tempo, a RAM não será contida sem o desenvolvimento de novas vacinas, medicamentos e testes rápidos (assim como na COVID!).

    Curiosamente, as estratégias de utilizadas para reduzir a transmissão da covid-19 (distanciamento social, lock-down, fechamento de fronteiras, lavar as mãos com água e sabão) podem, também, reduzir o espalhamento da RAM! Detalhe que a redução das viagens (fechamento de fronteiras) diminui a movimentação de genes de RAM entre países!  Seria muito interessante ver estudos que comparem dados de prevalência de infecções causadas por bactérias RAM antes e depois da pandemia de covid-19, bem como dos perfis de resistência que estão surgindo…

    Essa tabela aqui (modificada de Nieuwlaat et al., 2020) ajuda a comparar as duas pandemias:

    Finalizando:

    • A resistência a antimicrobianos é uma pandemia que já preocupa cientistas e profissionais da saúde há um tempo, tem impactos relevantes e estima-se que nos próximos anos será ainda mais preocupante.
    • Ainda não sabemos o real impacto da pandemia da covid na pandemia da RAM, mas estamos preocupados e alerta para seu provável agravamento e suas possíveis consequências.
    • É importante uma estratégia multifacetada contra os organismos RAM que envolva: a) estudos prospectivos sobre coinfecções na covid-19 para orientar o tratamento com antimicrobianos; b) monitoramento e relato transparente dos padrões de RAM nas UTIS para guiar o uso adequado de antimicrobianos; c) esforço global coordenado para estabelecer uma estrutura de governança, vigilância e relatos de RAM, tanto agora como depois da pandemia da covid-19.
    • É comum pessoas acreditarem que antibióticos podem ser utilizados para infecções virais (gripe). Usar termos como antivirais pode ajudar a entender que existem diferentes tipos de medicamentos para diferentes tipos de infecção.

    Referências:

    • Antimicrobial resistance in the age of COVID-19. Nat Microbiol. 2020;5(6):779. doi:10.1038/s41564-020-0739-4
    • Bengoechea JA, Bamford CG. SARS-CoV-2, bacterial co-infections, and AMR: the deadly trio in COVID-19?. EMBO Mol Med. 2020;12(7):e12560. doi:10.15252/emmm.202012560
    • Hsu J. How covid-19 is accelerating the threat of antimicrobial resistance. BMJ. 2020;369:m1983. Published 2020 May 18. doi:10.1136/bmj.m1983
    • Murray AK. The Novel Coronavirus COVID-19 Outbreak: Global Implications for Antimicrobial Resistance. Front Microbiol. 2020;11:1020. Published 2020 May 13. doi:10.3389/fmicb.2020.01020
    • Nieuwlaat R, Mbuagbaw L, Mertz D, et al. COVID-19 and Antimicrobial Resistance: Parallel and Interacting Health Emergencies [published online ahead of print, 2020 Jun 16]. Clin Infect Dis. 2020;ciaa773. doi:10.1093/cid/ciaa773
    • Rawson TM, Ming D, Ahmad R, Moore LSP, Holmes AH. Antimicrobial use, drug-resistant infections and COVID-19 [published online ahead of print, 2020 Jun 2]. Nat Rev Microbiol. 2020;1-2. doi:10.1038/s41579-020-0395-y
    • Rawson TM, Moore LSP, Castro-Sanchez E, et al. COVID-19 and the potential long-term impact on antimicrobial resistance. J Antimicrob Chemother. 2020;75(7):1681-1684. doi:10.1093/jac/dkaa194
    • Rossato L, Negrão FJ, Simionatto S. Could the COVID-19 pandemic aggravate antimicrobial resistance? [published online ahead of print, 2020 Jun 27]. Am J Infect Control. 2020;S0196-6553(20)30573-3. doi:10.1016/j.ajic.2020.06.192
    • Yam ELY. COVID-19 will further exacerbate global antimicrobial resistance [published online ahead of print, 2020 Jun 13]. J Travel Med. 2020;taaa098. doi:10.1093/jtm/taaa098

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    Este post foi publicado originalmente no blog Meio de Cultura

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Uma pandemia impulsionando outra – Parte 1: O uso de antimicrobianos durante a pandemia da covid-19

    Em cerca de 8 meses a covid-19 surgiu, espalhou por todo o mundo e se tornou uma pandemia de efeitos devastadores… O que talvez você não saiba é que, paralelamente à covid-19, uma outra pandemia vem ganhando cada vez mais importância trazendo muita preocupação dos cientistas da área. A relação entre as duas é importante, sendo um caso de uma pandemia impulsionando outra. E quando falamos de pandemia impulsionada não estamos falando da covid-19, mas sim da pandemia que já estava em andamento, a das bactérias multidroga resistentes (também chamadas de superbactérias).

    Ainda não temos uma terapia licenciada ou uma vacina para o tratamento da covid-19 e cujo alvo seja o SARS-CoV-2 (o novo coronavírus). Essa situação tem levado diversos médicos a considerarem e testarem drogas baseadas na modulação da resposta imunológica (reduzindo a inflamação) observada em testes in vitro (como falamos no post anterior “Antibiótico contra vírus?”). Muitas vezes, esse hype prematuro em torno de possíveis terapias para a covid-19 é associado a relatos da mídia e de líderes políticos que amplificam o possível uso dessas drogas — apesar da falta de evidências clínicas de sua eficácia. Isso pode contribuir, ainda, para a escassez dessas drogas para quem efetivamente precisa; como, por exemplo, aconteceu com a cloroquina aqui no Brasil.

    Sabemos que infecções respiratórias causadas por vírus podem fazer com que pacientes tenham mais chances de serem acometidos por coinfecções causadas por fungos e/ou bactérias. Da mesma forma, infecções prévias podem atuar agravando o quadro da infecção respiratória. Apesar de ainda estarmos aprendendo sobre a progressão da covid-19, acredita-se que esses cenários que envolvem coinfecção piorem o quadro da doença. Por exemplo, sabe-se que a infecção pelo vírus SARS-CoV-2 pode aumentar a colonização e a adesão bacterianas ao tecido, e que as infecções combinadas podem resultar no aumento da destruição tecidual que, por sua vez, pode facilitar a disseminação sistêmica dos patógenos, aumentando o risco de infecções da corrente sanguínea e sepse.

    É relevante considerarmos essas questões, pois, além dos riscos relacionados aos vários efeitos colaterais, ao reduzirem a resposta imunológica, essas intervenções podem acabar aumentando o risco de infecções bacterianas secundárias e potencialmente fatais. Por isso, é sempre importante ressaltar a necessidade de se realizar análises cuidadosas acerca das dosagens e da forma de administração das drogas, além da importância de os pacientes estarem sendo acompanhados de perto pele uma equipe médica.

    E aonde queremos chegar com isso tudo?

    Apesar dos poucos dados disponíveis sobre o assunto, o que está sendo observado é que há um aumento considerável na prescrição de antimicrobianos, ainda que não seja observado um aumento proporcional no número de coinfecções durante as internações por covid-19. Só para você ter uma ideia, as estimativas sugerem que cerca 60-70% dos pacientes são tratados com antimicrobianos, ainda que de 1% a 10% tenham apresentado coinfecção fúngica ou bacteriana.  Esses pacientes podem, portanto, estar recebendo desnecessariamente antibióticos com eficácia questionável ou ainda não comprovada. Sem contar que, inclusive, em alguns lugares, as terapias com antimicrobianos fazem parte do protocolo de tratamento clínico inicial ou até “preventivo”

    Orienta-se que a administração de antimicrobianos seja feita, sempre que possível, com um antibiótico de espectro curto e direcionado ao patógeno primário, ou seja, aquele a que se quer combater. No caso da covid-19, os principais sintomas observados são tosse e febre – que já estão associados a um maior uso de antibióticos nos hospitais e na comunidade. E, além disso, quando os médicos não possuem todas as informações necessárias para entender realmente o que está acontecendo ao paciente, eles tendem a utilizar mais antibióticos —situação que parece ter se agravado ainda mais com os atendimentos remotos, que ocorrem a distância, via chamada pelo celular ou computador (telessaúde).

    Claro que temos que lembrar que os hospitais estão lotados e que pacientes em estado crítico são, geralmente, intubados e ficam hospitalizados por semanas em UTIs. Essa situação cumpre praticamente todos os requisitos necessários para a ocorrência de infecções relacionadas à assistência à saúde (IRAS – esse é o nome chique do que chamávamos simplesmente de infecção hospitalar). E, ainda por cima, dados hospitalares mostram um aumento lento e constante da resistência a múltiplas drogas pelas bactérias Gram-negativas, que podem ser potencialmente mortais quando associadas  à covid-19. Mais preocupantemente, existem evidências clínicas que sugerem que o uso empírico e inadequado de antibióticos de amplo espectro pode estar associado a maior mortalidade, pelo menos em casos de sepse.

    Além de tudo isso que falamos, preocupa o fato de que é frequentemente observado o uso de antibiótico de amplo espectro (que são desenvolvidos para matar uma grade variedade de bactérias) nesses tratamentos. Isso é preocupante uma vez que o uso excessivo e inapropriado dessas drogas (uma vez que as terapias não são focadas para a eliminação de um único patógeno primário) podem acabar agravando os quadros de resistência a antimicrobianos.

    Para terminar, é importante ressaltarmos que a Organização Mundial da Saúde, a OMS, desencoraja o uso de antibióticos para casos leves de covid-19, ainda que recomende o uso em casos graves com risco aumentado de infecções bacterianas secundárias e morte.

    Vamos falar sobre resistência e porque pensar sobre ela é tão importante. Veja na continuação desse post!

    Clique para ler: Uma pandemia impulsionando outra – Parte 2: Resistência bacteriana a antimicrobianos: por que se preocupar?

    Resumindo o que falamos até agora:

    • Antimicrobianos estão sendo comumente prescritos para prevenção ou tratamento da COVID-19, mesmo sem a ocorrência de coinfecção bacteriana presumida ou confirmada diretamente relacionada ao covid-19, ou que coocorrem no momento da infecção, ou que seja associada aos cuidados de saúde (internação prolongada em UTI)
    • Evidências atuais sugerem que a coinfecção não-viral (bacteriana ou fúngica) em pacientes com covid-19 é baixa (1 a 10%). Contudo, as taxas de prescrição e uso de antimicrobianos de amplo espectro são altas (60 a 70%).
    • A utilização de antibióticos, principalmente de amplo espectro, pode contribuir para o agravamento da pandemia já em curso das superbactérias, que são resistentes a vários antibióticos e, portanto, difíceis de serem mortas.

    Referências:

    • Antimicrobial resistance in the age of COVID-19. Nat Microbiol. 2020;5(6):779. doi:10.1038/s41564-020-0739-4
    • Bengoechea JA, Bamford CG. SARS-CoV-2, bacterial co-infections, and AMR: the deadly trio in COVID-19?. EMBO Mol Med. 2020;12(7):e12560. doi:10.15252/emmm.202012560
    • Hsu J. How covid-19 is accelerating the threat of antimicrobial resistance. BMJ. 2020;369:m1983. Published 2020 May 18. doi:10.1136/bmj.m1983
    • Murray AK. The Novel Coronavirus COVID-19 Outbreak: Global Implications for Antimicrobial Resistance. Front Microbiol. 2020;11:1020. Published 2020 May 13. doi:10.3389/fmicb.2020.01020
    • Nieuwlaat R, Mbuagbaw L, Mertz D, et al. COVID-19 and Antimicrobial Resistance: Parallel and Interacting Health Emergencies [published online ahead of print, 2020 Jun 16]. Clin Infect Dis. 2020;ciaa773. doi:10.1093/cid/ciaa773
    • Rawson TM, Ming D, Ahmad R, Moore LSP, Holmes AH. Antimicrobial use, drug-resistant infections and COVID-19 [published online ahead of print, 2020 Jun 2]. Nat Rev Microbiol. 2020;1-2. doi:10.1038/s41579-020-0395-y
    • Rawson TM, Moore LSP, Castro-Sanchez E, et al. COVID-19 and the potential long-term impact on antimicrobial resistance. J Antimicrob Chemother. 2020;75(7):1681-1684. doi:10.1093/jac/dkaa194
    • Rossato L, Negrão FJ, Simionatto S. Could the COVID-19 pandemic aggravate antimicrobial resistance? [published online ahead of print, 2020 Jun 27]. Am J Infect Control. 2020;S0196-6553(20)30573-3. doi:10.1016/j.ajic.2020.06.192
    • Yam ELY. COVID-19 will further exacerbate global antimicrobial resistance [published online ahead of print, 2020 Jun 13]. J Travel Med. 2020;taaa098. doi:10.1093/jtm/taaa098

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  • Antibiótico contra vírus? O curioso caso da azitromicina contra a COVID-19

    Diversas combinações de medicamentos estão compondo o chamado “Kit COVID-19”. Presença quase constante neles, um antimicrobiano utilizado para infeções bacterianas chama atenção: a azitromicina… o que ela está fazendo ali? Existe alguma base científica para essa indicação? Quais seriam possíveis consequências dessa medicação?

    A azitromicina é um antimicrobiano bacteriostático, da classe dos macrolídeos, que atua impedindo a síntese de proteínas nas bactérias. Possui amplo uso na prática clínica, sendo escolhida para o tratamento de infecções do trato respiratório, da pele e de tecidos moles causadas por diversas bactérias Gram-positivas e espécies bacterianas atípicas.

    A gravidade e a mortalidade de infecções virais do sistema respiratório (e aqui a gente também está falando da COVID-19) são associadas a uma resposta inflamatória excessiva caracterizada por uma produção excessiva de citocinas (você pode ter ouvido por aí sobre a tal “tempestade de citocinas).[1]

    E onde esses dois pontos (azitromicina e COVID-19) se encontram?

    De onde surgiu a ideia de usar um antibacteriano no tratamento de uma infecção viral causada pelo SARS-CoV-2?

    Primeiro de tudo, já tínhamos evidências in vitro[2] (que fique bem claro!) de que a azitromicina pode prevenir a replicação de vírus como o influenzavírus humano H1N1 e o zikavírus. Agora, novos estudos também in vitro demonstraram que a azitromicina aumenta o pH das células hospedeiras, o que pode dificultar os processos de entrada, replicação e dispersão do SARS-CoV-2. Além disso, esse antimicrobiano poderia reduzir os níveis da enzima furina das células hospedeiras, o que poderia dificultar o processo de entrada do vírus na célula.

    Ok… mas e em relação à imunologia… será que temos alguma hipótese para sustentar o uso da azitromicina?

    Os macrolídeos (a azitromicinaé dessa classe, falei ali em cima, lembra?) têm demonstrado efeitos imunomodulatórios e anti-inflamatórios, ao atenuarem a produção de citocinas anti-inflamatórias e promoverem a produção de anticorpos (imunoglobulinas). E isso poderia ajudar na redução das complicações decorrentes do estado pró-inflamatório induzido pela infecção pelo SARS-Cov-2.

    Muitas evidências… in vitro… mas elas são o bastante para que a azitromicina seja liberada para ser fornecida como profilaxia ou como tratamento para indivíduos contaminados? Se você tem acompanhado a evolução do uso da cloroquina/hidroxicloroquina deve saber que não é bem assim… É muito importante avaliarmos a eficácia do medicamento in vivo e de forma controlada no contexto da pandemia

    E, nesse contexto, é de grande relevância consideramos, também, os efeitos colaterais do seu uso: distúrbios gastrintestinais, aumento do intervalo QT (observado em eletrocardiograma, indicando alterações cardíacas), problemas para pacientes com problemas hepáticos e renais.

    Ainda carecemos de estudos in vivo para avaliarmos adequadamente a droga. Os estudos que estão disponíveis ainda têm muitos problemas (grupos pequenos, seleção enviesada de pacientes e tratamentos, dentre outros…).

    A ciência é feita a partir do acúmulo de evidências e estudos são validados pelos pesquisadores pela acurácia dos métodos utilizados no estudo. A validação pelos pares acontece pois metodologias adequadas (e aqui incluímos: uso de placebo, testes duplo cego, estudos multicêntricos, quantidade de amostras/pacientes, análise de resultados, dentre outros vários pontos) geram resultados confiáveis!

    Concluindo…

    Ainda não temos tratamentos comprovadamente eficazes para a COVID-19, e há uma busca mundial para o reposicionamento de fármacos já utilizados. Azitromicina está sendo utilizada em todo mundo de forma off-label[3], mas ainda não temos evidências que suportem o uso desse antimicrobiano num contexto de COVID-19 sem coinfecção bacteriana associada. Para a azitromicina, o caminho a ser seguido é, ou pelo menos deveria ser, o mesmo do que aconteceu com a cloroquina: antes de confiar em relatos milagrosos e anedóticos, é necessária a realização de estudos clínicos controlados antes de sair declarando que a droga é mais uma maravilha do mundo. As evidências são limitadas e enviesadas e estudos sistemáticos e controlados poderão mostrar se a droga tem efeito quando utilizada sozinha, se tem efeito sinérgico quando associado a outro medicamento, ou se não tem efeito. Além dos efeitos colaterais que também podem ser aumentado quando em associação com outras drogas.

    Todos queremos um medicamento eficaz contra o SARS-Cov-2, mas que seja identificado pela medicina baseada em evidências!

    No próximo post vamos falar um pouquinho sobre resistência bacteriana no contexto da COVID-19. Vamos falar um pouquinho dos mecanismos e dos riscos envolvidos no uso indiscriminado de antibióticos.

    NOTAS:

    [1]Citocinas e tempestade de citocinas. Citocinas são moléculas reguladoras produzidas por diversas células do sistema imune. Elas atuam modulando nossa resposta imunológica, podendo ser citocinas inflamatórias (p.ex.: TNF, IL-1, IL-2, IL-6, IL-7) ou antiinflamatórias (p.ex.: IL-4, IL-10, IL-13, TGFβ). Na tempestade de citocinas, há uma liberação excessiva das citocinas pró-inflamatórias que resultam no recrutamento de muitas células inflamatórias. O resultado disso são danos ao tecido local. Para mais, consulte o Blog Microbiologando da UFRGS.

    [2] Experimentos in vitro e in vivo: Os experimentos in vitro são aqueles realizados nas primeiras etapas de um estudo. Eles são realizados sem a participação de seres vivos. Geralmente são utilizadas células cultivadas em laboratório ou mesmo órgãos de animais abatidos (p.ex.: córneas de bovinos obtidas de abatedouros). Em etapas mais avançadas, quando se tem evidências da segurança da substância, os experimentos são realizados com seres vivos. Num primeiro momento geralmente utiliza-se invertebrados, peixes ou roedores, para, num momento posterior, utiliza-se humanos. Os ensaios in vitro e in vivo com animais não-humanos são chamados de estudos pré-clinicos. Os ensaios com seres humanos são os ensaios clínicos. Antes de serem iniciados, os ensaios com animais vertebrados devem ser aprovados pela CEUA (Comissão de Ética no Uso de Animais) e os ensaios clínicos  devem ser aprovados pelo CEP (Comitê de Ética em Pesquisa).

    [3] Uso off-label de medicamentos: Todos os medicamentos registrados no Brasil recebem aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para uma ou mais indicações que passam a constar na sua bula. Acontece, porém, que essas podem não ser as únicas indicações possíveis, ou seja: o medicamento pode continuar sendo estudado para outros usos. Quando sua eficácia é comprovada para essas novas indicações, a Anvisa as inclui na bula. A opção de um médico em tratar seus pacientes com um medicamento em uma situação não prescrita na bula (seja por analogia de mecanismo de ação, base fisiopatológica das doenças) é chamada de “uso off-label”. O uso off label de um medicamento é feito por conta e risco do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico, mas em grande parte das vezes trata-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado. Para mais informações, consulte o site da Anvisa.

    Para esse post foram consultadas as seguintes referências:

    • Choudhary, R; Sharma, AK. “Potential use of hydroxychloroquine, ivermectin and azithromycin drugs in fighting COVID-19: trends, scope and relevance.” New microbes and new infections, vol. 35 100684. 22 Apr. 2020, doi:10.1016/j.nmni.2020.100684
    • Gbinigie, K; Frie, K. “Should azithromycin be used to treat COVID-19? A rapid review.” BJGP open vol. 4,2 bjgpopen20X101094. 23 Jun. 2020, doi:10.3399/bjgpopen20X101094
    • Pani, A et al. “Macrolides and viral infections: focus on azithromycin in COVID-19 pathology.” International journal of antimicrobial agents, 106053. 10 Jun. 2020, doi:10.1016/j.ijantimicag.2020.106053

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    Esse post foi originalmente escrito pelo blog Meio de Cultura

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Descobrindo e Redescobrindo medicamentos: Como podemos tratar a COVID-19?

    Como resposta à pandemia do coronavírus, diversos grupos de pesquisa têm procurado uma vacina ou um tratamento contra a COVID-19. Com isso, sempre aparecem novas notícias no jornal sobre medicamentos que são “a aposta” para curar essa doença. Você já se perguntou qual caminho um medicamento deve percorrer para sair do laboratório e ir até a prateleira da farmácia? Vamos explicar aqui como funciona o descobrimento (e o redescobrimento) de medicamentos para doenças ocasionadas por vírus!

    Mais rápido e mais barato, o que é o reposicionamento de fármacos?

    Criar um medicamento do zero demanda muito tempo  e é caro. O tempo médio para um princípio ativo ser sintetizado em laboratório, virar medicamento e ir parar nas prateleiras da farmácia é de 12 anos e custa milhões de dólares! 

    Em tempos de pandemia, não possuímos tanto tempo assim para achar uma solução, e uma alternativa é o que chamamos de reposicionamento de fármacos.

    O reposicionamento é uma forma de pesquisa que investiga se um medicamento que já é bem conhecido possui alguma atividade contra uma doença que ainda não tem tratamento.  Essa estratégia tem sido utilizada principalmente para identificar tratamentos para doenças que não possuem tanto investimento, como malária, leishmaniose, e doenças virais transmitidas por mosquitos. 

    O reposicionamento começa com uma pesquisa in vitro, normalmente em uma cultura de células, com objetivo de  verificar se o medicamento conseguiu atuar naquela infecção. Caso o resultado seja positivo, mais alguns testes são necessários para entender como esse medicamento atua na doença, determinar a dose e a periodicidade que ele deve ser administrado aos futuros pacientes. Após a validação dos testes, o remédio será seguro para realizar os testes clínicos. Esses testes possuem um número controlado de pacientes, e depois que os testes são finalizados, é possível dizer se o reposicionamento deu certo ou não. Reposicionar fármacos é tomar um atalho para encontrar uma resposta para uma doença.

    No caso do tratamento da COVID-19 temos muitos candidatos para reposicionamento.  O remdesivir, medicamento desenvolvido para o tratamento de casos de Ebola, o lopinavir e o ritonavir, utilizados em coquetéis anti-HIV, e claro, a cloroquina e a hidroxicloroquina,  utilizadas no tratamento de malária e lúpus. Possivelmente nas próximas semanas outros candidatos possam surgir e ganhar destaque na mídia.

    Todo medicamento de reposicionamento é seguro e é efetivo? Não!

    Mesmo sendo uma alternativa mais rápida do que o descobrimento de um novo medicamento, o reposicionamento precisa ser validado em diferentes experimentos e grupos de pessoas, e os efeitos a longo prazo também devem ser estudados! 

    Depois que foi divulgado um estudo experimental que utilizava cloroquina, houve um aumento substancial na venda deste composto, ocasionando problemas como a falta do medicamento para pacientes que fazem uso regular, diversos casos de intoxicação por má administração e até mortes! 

    Quer saber mais sobre a cloroquina? Se liga nestes links que selecionamos para vocês 🙂

    Desmistificando a Cloroquina:
    Nigéria registra intoxicações por cloroquina


    Estudo associa hidroxicloroquina a maior risco de morte por Covid-19

    Homem morre após automedicação com cloroquina nos EUA

    Maior estudo sobre cloroquina e hidroxicloroquina demonstra que aumentam risco de arritmias e morte

    Mesmo com as notícias de possíveis tratamentos, é preciso ter calma.  Ainda estamos na etapa de testes clínicos e apenas um grupo de pessoas realizou esse tratamento. Em um primeiro estudo com poucas pessoas, a própria cloroquina demonstrou ser um candidato ao tratamento, mas agora um estudo com mais de 96 mil pacientes indica que ela é ineficiente. Assim como qualquer medicamento, os tratamentos contra COVID-19 devem ser realizados apenas por meio de orientação médica e seguindo sempre as orientações dos órgãos regulamentadores e científicos.

    Ficou curioso para entender como funciona o descobrimento de um  novo medicamento? Aqui embaixo a gente te explica:

    O processo começa com o estudo do agente causador da doença e de etapas que são importantes para a evolução do quadro clínico. Algumas etapas importantes em doenças causadas por vírus são o momento de infecção, de replicação do vírus dentro da célula e de liberação das novas partículas. Com esse entendimento, é possível definir quais moléculas (naturais ou sintetizadas) serão capazes de realizar uma interferência e impedir, ou amenizar, a doença. O mecanismo de ação dos compostos pode ocorrer protegendo o corpo daquilo que está fazendo mal, atuando diretamente na morte do patógeno, ou em alguma outra etapa importante da infecção. Após esses estudos, é realizada a síntese em laboratório e a caracterização dos compostos de modo a verificar qual a composição exata deles. 

    Depois de sintetizados, esses princípios ativos são testados em ensaios in vitro. Um ensaio in vitro é como uma horta: As células cultivadas são como as plantas; a terra e os nutrientes são o que chamamos de meio de cultura, e todo esse cultivo ocorre geralmente em placas de vidro ou plástico. Os ensaios in vitro são muito importantes pois conseguimos controlar diversos fatores que não conseguiríamos em outros ensaios, definir uma quantidade exata de células, fazer observações ao microscópio e o mais importante, reduzir a quantidade de experimentos em animais. 

    No ensaio in vitro são realizados testes para verificar se o princípio sintetizado tem efeito ou não. Em uma doença ocasionada por vírus, verificamos se aquele composto foi capaz de proteger a célula, ou se aquele composto conseguiu diminuir a quantidade do vírus naquele experimento. Além disso, também verificamos se aquele composto está sendo tóxico para a cultura de células afinal, não adianta reduzir a quantidade do vírus, mas ao mesmo tempo matar as células.

    Depois de finalizados os experimentos in vitro, devemos partir para os modelos in vivo,ou seja, em modelos animais, pois a dinâmica do composto em um sistema vivo é diferente de um sistema fechado de cultura de células. Num corpo possuímos diversos tipos de células, que podem interagir de formas diferentes com esse possível princípio ativo. São nos testes in vivo que também verificamos as doses de segurança dos medicamentos, evitando uma possível overdose e também onde se reconhecem em parte os efeitos colaterais relacionados a substância administrada..

    Estabelecidos todos os parâmetros de segurança, passamos finalmente para os testes clínicos. Os testes clínicos são realizados depois da aprovação de um conselho de ética, e sempre com a autorização do paciente ou de um responsável. São testes realizados com escolha aleatória de pessoas, e sempre contando com um grupo controle, que não receberá o tratamento. Nesses testes é que realizamos a validação final dos medicamentos, e, aí sim ele pode ser considerado efetivo no tratamento de uma doença.

    Ainda não temos nenhum medicamento, novo ou de reposicionamento, que seja a cura para a COVID-19. A previsão é de que os resultados dos testes clínicos já iniciados sejam divulgados nos próximos meses, incluindo a iniciativa coordenada pela Organização Mundial da Saúde chamada “Solidariedade”. Por hora, os únicos métodos realmente efetivos de combate a pandemia são o distanciamento social e medidas básicas de higiene!

    Quer saber mais sobre o tema? Aqui embaixo temos algumas sugestões para você continuar a aprender:
    Novos Remédios para velhas doenças
    Como surge um novo medicamento?
    OMS lança estudo global para testar 4 medicamentos contra Covid-19

    Referências em inglês:

    MCCAUSLAND, Phil. CDC warns against using form of chloroquine that killed man, sickened his wife. 2020. Acesso em: 03 mai. 2020.

    WOUTERS OJ, McKee M, LUYTEN, J. Estimated Research and Development Investment Needed to Bring a New Medicine to Market, 2009-2018JAMA. 2020;323(9):844–853. doi:10.1001/jama.2020.1166


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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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