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  • QUANDO O MÉDICO DESINFORMA: o caso das vacinas

    Existem médicos contra as vacinas desde o século XVIII

    Figura 1: Edward Jenner e dois colegas eliminando três oponentes antivacinação, as vítimas mortas da varíola estão espalhadas a seus pés. FONTE: Isaac Cruikshank, 1808 (Wellcome Collection). Creative Commons

    Há quem estranhe o silêncio dos conselhos de medicina ante a posicionamentos de alguns de seus membros contrários à imunização por vacinas contra a Covid-19 e favoráveis à utilização de medicamentos sem eficácia comprovada (até o momento). Embora hoje não haja dúvidas sobre a eficácia e segurança das vacinas, dados históricos mostram que, desde o século XVIII, sua utilização como tratamento profilático é combatida por alguns médicos.

    Século XVIII

    Nos Estados Unidos (EUA), entre 1721 e 1722, uma grande epidemia de Varíola atingiu a cidade de Boston, à época com 11 mil habitantes, registrando mais de 6 mil casos, levando 850 deles a óbito. O pesquisador Matthew Niederhuber, da Harvard Medical School, escreve que “o uso da inoculação durante essa epidemia e o acalorado debate que surgiu em torno da prática foi uma das primeiras aplicações importantes da inoculação na sociedade ocidental, abrindo caminho para que Edward Jenner (o descobridor da vacina contra a varíola em 1796) desenvolvesse a vacinação contra a varíola até o final do século” (1).

    INOCULAÇÃO
    É a exposição deliberada ao vírus da varíola usando material de uma crosta de varíola – por exemplo, esfregado em um pequeno corte na pele. Geralmente resulta em uma forma mais branda de doença, mas ainda apresenta risco de morte.

    No entanto, conseguir sua aprovação não foi uma tarefa simples, uma vez que a comunidade médica de Boston se posicionou contra essa autorização, tendo o Dr. William Douglass (1691-1752), um dos únicos médicos da cidade que realmente possuía um diploma de medicina, como liderança do movimento anti-inoculação. Seu principal argumento era o de que a inoculação não fora suficientemente testada e seria baseada em folclore.

    Contudo, no início de 1722, os líderes da campanha de inoculação, o médico Zabdiel Boylston e o reverendo Cotton Mather, apresentaram dados que atestaram a eficácia da inoculação: enquanto a taxa de mortalidade entre os não inoculados foi de 14,8%, entre os inoculados, foi de apenas 2%. (1)

    Século XIX

    Na Inglaterra, em meados do século XIX, os historiadores Dorothy Porter e Roy Porter (1988), escrevem que surgiu uma fonte de oposição científica à vacinação liderada por um grupo anticontagionista que defendia ser a remoção da “sujeira” o caminho para a prevenção de doenças e que negava teorias sobre a especificidade de doenças.

    O médico britânico Charles Creighton (1847-1927) expoente do grupo foi um exemplo de antivacinacionista que fundamentou sua rejeição ao método profilático em uma teoria anticontagionista de propagação de doenças. 

    • O médico afirmava que a vacina em si era uma causa de sífilis e dedicou um livro ao assunto, A História Natural da Varíola Bovina e da Sífilis Vacinal (2), no qual argumenta que a vacinação era um envenenamento do sangue com material contaminado, que não poderia fornecer proteção contra uma doença causada por eflúvios decorrentes de matéria orgânica em decomposição. 
    • No livro Jenner e Vacinação: um capítulo estranho da história médica (3) Creighton descreve Edward Jenner como pouco melhor do que um criminoso e ganancioso que enganou o Parlamento e os mundos científico e médico para que acreditassem em seu método mítico (4).

    Século XX

    Em 1998, o então médico britânico Andrew Wakefield, consultor honorário em gastroenterologia experimental no London’s Royal Free Hospital, publicou um artigo na conceituada revista The Lancet em que ilustrou um estudo de vinte pacientes e concluiu que a administração da vacina MMR causava autismo e algumas formas de colite (inflamação do intestino grosso). Segundo Tafuri (2011), quando o artigo foi revisado pelos pares, a conexão entre vacina e autismo não foi comprovada e a publicação foi desacreditada. No entanto, o estudo do britânico passou a ser utilizado por grupos antivacina como argumento para não vacinar os filhos. Em 2004, a revista reconheceu que não devia ter publicado o estudo de Wakefield e, em 2010, retirou-o de seus arquivos, sendo que, no mesmo ano, ele teve seu registro cassado pelo Conselho Geral de Medicina (GMC) do Reino Unido, acusado de agir de forma “desonesta”, “enganosa” e “irresponsável”.

    Século XXI

    Mais recentemente, em 2003, o artigo “Timerosal em vacinas infantis, distúrbios do neurodesenvolvimento e doenças cardíacas nos Estados Unidos” (GEIER e GEIER, 2003) publicado por Mark Geier, doutor em genética, e David Geier, bacharel em biologia, alegam que o conservante timerosal, usado em certas vacinas, causa autismo. Segundo a premiada jornalista científica, Megan Scudellari (2010), Mark Geier testemunhou em apoio ao vínculo timerosal-autismo como testemunha especialista em testes de vacinas nos EUA, porém, numerosos estudos rigorosos descartaram esse vínculo. 

    Atualidade

    Como se percebe, não é de hoje que esse lugar de fala vem sendo disputado por atores que, em teoria, têm notório saber específico ou são detentores de conhecimento reconhecido e que usavam, cada um a seu modo, a mídia disponível em seu contexto para divulgar suas ideias, nem sempre apoiados no devido rigor científico. Por isso, não chega a ser surpresa o atual silêncio dos conselhos de medicina, visto que, em sua maioria, são compostos por profissionais que têm interesses políticos, conforme mostra recente reportagem do site The Intercept Brasil.

    Em outro aspecto, o jornalismo profissional – em nome da imparcialidade, da necessidade de ouvir “o outro lado” e, evidentemente, em busca de mais audiência (isto é, retorno financeiro) – tem dado destaque a vozes dissonantes que, muitas vezes, contradizem as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), da ciência e/ou da própria medicina. o que tem causado na sociedade uma sensação de que a eficácia e a segurança das vacinas ainda é um debate aberto, quando na verdade não é. O quadro se agrava num contexto em que as mídias sociais replicam essas vozes, elevando exponencialmente o seu alcance.

    Nesse sentido, vale atentar para a ponderação do biólogo Atila Iamarino, para quem “numa questão científica onde centenas de especialistas chegaram num consenso, dar o mesmo peso para o questionamento, não faz sentido” (5). Agora, mais do que nunca, o papel da Divulgação Científica se faz necessário para que se possa mitigar a maré de desinformação que contribuiu para que o Brasil atingisse a lamentável marca de mais de 200 mil mortes. 

    Referências

    (1) NIEDERHUBER, Matthew. The fight over inoculation during the 1721 Boston smallpox epidemic. Science in the News, 2014. Disponível em: http://sitn.hms.harvard.edu/flash/special-edition-on-infectious-disease/2014/the-fight-over-inoculation-during-the-1721-boston-smallpox-epidemic/ Acesso em 31 jan. 2021

    (2) CREIGHTON, Charles. The Natural History of Cowpox and Vaccinal Syphilis. London: Cassell, 1887.

    (3) CREIGHTON, Charles. Jenner and Vaccination: A strange chapter of medical history. London, 1889.

    (4) PORTER, Dorothy; PORTER, Roy. The politics of prevention: anti-vaccinationism and public health in nineteenth-century England. Medical history, v. 32, n. 3, p. 231-252, 1988. (p. 237) Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/medical-history/article/politics-of-prevention-antivaccinationism-and-public-health-in-nineteenthcentury-england/160A0FE00C0D60AC0AF87DCC3D444523 Acesso em 31 jan. 2021.

    (5) IAMARINO, Atila, Aquecimento Global. Canal Nerdologia. (05m 35s a 05m 46s) 01 jun. 2017. Disponível em: https://youtu.be/8sovsUzYZFM. Acesso em 31 jan. 2021.

    Para Saber Mais:

    CRUIKSHANK, Isaac. Edward Jenner e dois colegas eliminando três oponentes antivacinação, as vítimas mortas da varíola estão espalhadas a seus pés. British Museum, Catalogue of political and personal satires, vol. VIII, London, 1947, n°. 11093. Wellcome Collection. 20 Jun. 1808. Disponível em: https://wellcomecollection.org/works/x7kbxaef Acesso em 01 fev. 2021.

    GEIER, Mark R.; GEIER, David A. Thimerosal in childhood vaccines, neurodevelopment disorders, and heart disease in the United States. J Am Phys Surg, v. 8, n. 1, p. 6-11, 2003.

    SCUDELLARI, Megan. State of denial. Nature Medicine 16, 248. 2010. Disponível em https://doi.org/10.1038/nm0310-248a. Acesso em 31 jan. 2021.

    TAFURI, Silvio. et al. From the struggle for freedom to the denial of evidence: history of the anti-vaccination movements in Europe. Annali di igiene: medicina preventiva e di comunita, v. 23, n. 2, p. 93-99, 2011. Disponível em https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21770225/ Acesso em 31 jan. 2021.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Carta aberta ao Conselho Federal de Medicina

    No início do texto do Código de Ética Médica. Resolução CFM n 1.931/09 aparece o símbolo do Código, Janus, e a justificativa “orientação de unir em só traço o passado, o presente e o futuro”. Cabe lembrar que a construção desse “traço” passa, inevitavelmente, pela ciência, o que já é enfatizado no Capítulo I: “usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente”. Nesse sentido, nos espanta a manifestação do atual presidente do Conselho Federal de Medicina publicada no jornal Folha de São Paulo, no dia 24 de Janeiro de 2021 destacada abaixo: 

    “Lamentavelmente, no Brasil, há uma politização criminosa em relação à pandemia entre apoiadores e críticos do presidente da República. Assuntos irrelevantes relacionados à Covid-19 dominam o noticiário, com discussões estéreis entre pessoas sem formação acadêmico-científica na área de saúde, dando opiniões como especialistas, porém com cunho político e ideológico.

    Além disso, profissionais não médicos, que se autodenominam cientistas, com imenso acesso à mídia, falam sobre tudo, inclusive temas médicos sobre os quais não têm competência para opinar —e sempre evocando a ciência, como se fossem os únicos detentores do saber, disseminando informações falsas que desinformam e desestabilizam a já insegura sociedade brasileira.” (Ribeiro, 2021, Folha de São Paulo)

    Existem inúmeras questões problemáticas no texto de Mauro Luiz de Britto Ribeiro na Folha de São Paulo. Dentre elas a própria negação do papel de um conselho profissional – que inclui disciplinamento, fiscalização e normatização da profissão.

    Entretanto, seria fundamental ressaltar os parágrafos em que Ribeiro aponta para as áreas que tem falado sobre discussões mencionadas como estéreis por pessoas sem formação acadêmico-científicas na área da saúde e de pessoas que se autodenominam cientistas.

    Ao contrário do que possa ser pensado, a “saúde” é um campo amplo que não se restringe aos profissionais das áreas biomédicas. O texto de Mauro Ribeiro deixa explícito seu desconforto por existirem diferentes profissionais debatendo acerca da Covid-19 e seus efeitos na população e nos indivíduos. Ressaltamos, todavia, que o conceito de saúde, em si, é um campo de disputas por significados que, na pandemia, tornou-se evidente alguns dos motivos – que destacaremos neste texto.Vamos apontar algumas destas disputas e, também, seus efeitos.

    “Saúde”, segundo a Organização Mundial de Saúde, significa “bem estar físico e mental”. Ao tratar da saúde como algo que deve ser debatido entre paciente e médico – em um espaço limitado de consultório e/ou hospitalar – limitamos todas as condições do que é bem estar físico e mental e como estes processos se dão para os indivíduos.

    Mais do que ausência de doenças, a saúde é, no nível individual, um processo de compreensão de si mesmo, do funcionamento e percepção do seu corpo. Para tanto, poderíamos citar como profissionais envolvidos só neste quesito (sem nos alongarmos muito, fazendo um rápido levantamento): educadores, educadores físicos, professores de ciências e biologia, nutricionistas, enfermeiras, psicólogos, dentistas e médicos.

    Se também incluirmos como saúde o conceito de saúde pública – advindo desde a formação dos Estados Nacionais e consolidação da estatística como ferramenta de governo, em meados dos séculos XVIII até os dias atuais, teremos como profissionais atuando, além dos citados anteriormente: estatísticos, matemáticos, biólogos, biomédicos, epidemiólogos, assistentes sociais, antropólogos, sociólogos, demógrafos, geógrafos e físicos.

    Citamos, apenas, profissões que necessitam de formação acadêmica técnica e científica, facilmente relacionadas ao levantamento de dados populacionais que nos permitem aferir, compreender e gerenciar a saúde no país, para aplicar medidas de contenção de doenças e promoção à saúde populacional. Ressaltamos, neste sentido, que ainda há um verdadeiro conjunto de profissões, nomeados como técnicos e/ou auxiliares que atuam cotidianamente (e muitas vezes de forma invisível e pouco consideradas como importantes), que atuam sistematicamente no combate às doenças de modo direto com a população. 

    Para que todos os profissionais – formados tecnicamente – atuem com base em conhecimento acadêmico e técnico, existe um conjunto de outros profissionais – juristas, físicos, cientistas da computação, químicos, farmacêuticos, engenheiros, assim como muitas outras profissões.

    Para gerar conhecimento científico sobre saúde e doenças, não basta, entretanto, apenas a formação em nível de graduação. Existe uma exigência de continuidade na formação em áreas especializadas – que incluem pesquisas de mestrado e doutorado, em grupos de pesquisa em cada área de todas profissões citadas anteriormente.

    Tudo isso para que o médico consiga atender um paciente e realizar um diagnóstico? Sim. A relação médico-paciente, ou sistema de saúde-pacientes estão amparados e são antecedidos, no mundo inteiro, por normativas legais e preceitos científicos postulados por órgãos que sistematizam essas produções.

    Destacamos entre estes órgãos, o Ministério da Saúde e, em primeira instância no caso vivenciado neste momento, a Organização Mundial de Saúde e o Conselho Federal de Medicina. Este último dispõe sobre a relação importante entre ciência e a tomada de decisão do profissional  em seu próprio Código de Ética:

    “XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas”. 

    Na construção dos conhecimentos cientificamente reconhecidos, os cientistas são essenciais e também vem atuando, há muito tempo, junto à sociedade  no que costumamos chamar de Divulgação Científica. Junto com Jornalistas Científicos, os divulgadores científicos têm buscado apurar o que vem sendo publicado dentro dos periódicos acadêmicos e técnicos, para produzir materiais passíveis de serem compreendidos pela população não especialista.

    Diariamente, e mais rotineiramente desde o início da pandemia, vemos um esforço em produzir um material de qualidade, criterioso e cientificamente embasado acerca da compreensão de como a doença se desenvolve, como a ciência produz conhecimento sobre o vírus e as patologias associadas, assim como  de que modo isso impacta em nossa saúde.

    Falar sobre como determinantes sociais – que incluem acesso à informação – são essenciais para a promoção à saúde da população, assim como discutir o quanto tratamentos não funcionais não podem ser geridos por uma suposta “autonomia médica” sem respaldo científico não é um debate estéril, nem frugal. Especialmente quando se entende o desafio da comunicação sobre saúde em uma sociedade em que o ensino fundamental e médio sofre um esvaziamento de debates científicos aprofundados, essenciais para a promoção da cidadania, promovendo a autonomia das pessoas frente aos temas relacionados à própria saúde. 

    A requisição por um posicionamento do Conselho Federal de Medicina não é feito de modo descabido, tendo em vista que a medicina – como todas as profissões mencionadas neste documento – deveria ter respaldo em sua área de atuação que possui base em uma formação técnico-científica.

    Aqueles “autodenominados cientistas” passam longos períodos debruçados sobre problemas inseridos em nossa sociedade e presentes em suas pesquisas em uma atividade diária que dentro de laboratórios de pesquisa, e/ou trabalhando em campo, realizando pesquisas teóricas e com coletas de dados extensas. Todo esse processo não é individual, mas  passa por conhecer pontos de vista diversos, discutir com os pares, para compreender o processo de adoecimento em sua multiplicidade e, quando necessário, reformular teorias durante a pesquisa.

    Não podemos esperar que profissionais da medicina, da enfermagem e do atendimento direto aos pacientes acompanhem a literatura científica tão frutífera e numerosa nos últimos meses. Também não podemos esperar que estes profissionais tenham tempo para fazer discernimentos sobre os melhores desenhos experimentais, significância de dados estatísticos e cálculos de como a doença se espalha pela sociedade brasileira. Este trabalho é feito por cientistas. Não é justo exigir isto de quem nos trata num momento tão delicado como é esta pandemia. O papel de comunicar à sociedade médica sobre as melhores práticas é do CFM. Assim como é do CFM o papel de se defender a boa prática médica e garantir a defesa da saúde da sociedade.

    Exigir que as categorias profissionais respeitem e escutem a ciência e os cientistas ampliando visões sobre um determinado assunto, é sim assumir o caráter político dessas instituições – uma vez que elas existem para regulamentar a ética e a conduta destes profissionais. Isto é ter uma posição política – a de defesa da vida, da saúde e da população.

    Tal como deveria ser.

    Assinam este texto as equipes técnicas, científicas e administrativas dos grupo:

    Blogs de Ciência da Unicamp

    Observatório Covid-19

    Rede Análise Covid-19

    Vidya Academics

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