Tag: coronavírus

  • A infecção por SARS-CoV-2 em células de gordura

    Texto escrito por Ana de Medeiros Arnt e Marcelo Mori

    A Covid-19 é uma doença que, em suas formas severas, ataca o sistema respiratório, causando Síndrome Respiratória Aguda Grave. Todavia, as células pulmonares não são as únicas que são infectadas pelo vírus SARS-CoV-2. Tampouco são as únicas que se relacionam à severidade da doença. Isto porque nosso corpo não possui sistemas funcionais isolados. Nós sabemos, por exemplo, que pessoas com obesidade possuem risco de agravamento do quadro de Covid-19. Mas qual o papel das células de gordura nisto?

    Estudar a complexidade da infecção de uma doença como a Covid-19 implica em compreender de que modo o vírus infecta diferentes células e tecidos do nosso corpo. Além disso, implica em estudar de que forma diferentes células de um mesmo tipo de tecido também se infectam de modo variado e podem contribuir para o agravamento da doença. 

    Aqui na Unicamp, um estudo foi desenvolvido para compreender essa complexidade em relação à células de gordura, presentes em tecidos adiposos. Ademais, como estas contribuem para a infecção e replicação de SARS-CoV-2. Vamos entender melhor o que a pesquisa encontrou?

    O que sabíamos sobre tecidos adiposos e Covid-19?

    Atualmente, nós sabemos que células de gordura expressam a molécula ACE2 e os tecidos adiposos (tecidos que possuem, majoritariamente, células de gordura) podem servir de reservatório do vírus SARS-CoV-2. Também conhecemos a relação entre a resposta inflamatória e a quantidade de gordura, o que pode contribuir para um agravo da Covid-19 em alguns casos.

    Desde muito cedo, quando iniciou-se a pandemia de Covid-19 no mundo, percebemos que pessoas com obesidade possuem um risco maior de desenvolver a doença em sua forma severa. No entanto, não é claro de que forma as células de gordura e os tecidos adiposos contribuem para o agravamento da doença. Isto porquê existem diferentes formas de os tecidos adiposos se distribuírem no corpo humano, dependendo da idade e sexo, por exemplo.

    E os que encontramos de dados sobre células de gordura e SARS-CoV-2?

    Analisando a presença do SARS-CoV-2 no tecido adiposo humano

    Não é novidade que o tecido adiposo é um dos locais, fora de tecidos pulmonares, onde o RNA viral pode ser detectado dentro das células. Sendo assim, a primeira análise que esta pesquisa fez foi com amostras de tecido adiposo subcutâneo da região torácica de pessoas que faleceram de Covid-19. No total foram 47 amostras e detectou-se RNA de SARS-CoV-2 em 23 amostras, o que representa 49%.

    Dentre os resultados, foi possível ver que houve variação (em relação à quantidade) de carga viral dentro do tecido adiposo entre as amostras de diferentes indivíduos. Isto indica uma variação na capacidade da gordura em armazenar o vírus SARS-CoV-2. Ainda sobre estes resultados, encontrou-se que a variação da carga viral nas células de gordura não apresentou relação estatística com o sexo, peso corporal, IMC ou idade da pessoa. Todavia, a falta de relação pode ser devido ao tamanho da amostra. Além disso, os resultados não excluem a possibilidade de que o aumento da massa gorda sirva como maior reservatório potencial para o SARS-CoV-2.

    As células de gordura visceral são mais suscetíveis à infecção pelo SARS-CoV-2 do que as células de gordura subcutânea

    A partir destes primeiros resultados, foi proposta uma segunda etapa, com experimentos in vitro. Isto é, com células retiradas de pacientes e cultivadas em laboratório. Foram usadas células de tecidos adiposos subcutâneos (abaixo da pele) e viscerais (próximo às visceras) de 3 pessoas diferentes. Assim, testou-se o quanto o vírus SARS-CoV-2 consegue entrar e replicar em células adiposas oriundas de diferentes partes do corpo. 

    O que foi encontrado? O vírus SARS-CoV-2 consegue entrar e replicar-se nos dois tipos de células analisadas. No entanto, esta pesquisa conseguiu mostrar que há diferença na replicação do vírus, dependendo da origem da célula. Ou seja, se ela veio de um tecido adiposo subcutâneo ou se veio de um tecido adiposo visceral.

    Os resultados encontrados foram de que ambos os tipos de célula se infectam e morrem com tempos semelhantes. Todavia, existe diferença entre a quantidade de RNA viral encontrado dentro das células e de partículas virais infectantes no meio externo a estas células. Como assim?

    Nas células adiposas viscerais encontrou-se 240 vezes mais RNA viral do que nas células adiposas subcutâneas. Isto é, estamos falando de RNA do SARS-CoV-2 dentro das células adiposas. Já no meio extracelular, encontramos 770 vezes mais partículas virais infectantes entre as células adiposas viscerais, comparado com as células adiposas subcutâneas.

    Ao que tudo indica, portanto, as células de gordura visceral, quando infectadas, são mais susceptíveis à replicação do vírus SARS-CoV-2, do que as células de gordura subcutânea. Assim, têm um potencial muito maior de infectar outras células, pois dessas células saem muito mais vírus que podem infectar novas células.

    As células de gordura visceral e as moléculas ACE2

    As células de gordura provenientes de diferentes tecidos – subcutâneo e visceral – apresentam em quantidades diferentes a proteína ACE2. Ao que tudo indica, é esta diferença que possibilita uma maior infecção das células de gordura visceral.

    Apenas retomando, para quem não se localizou ainda, o ACE2 é uma proteína receptora, que fica na membrana das nossas células. Esta proteína é produzida em muitas células do nosso corpo – como células epiteliais do nosso sistema respiratório, e células de gordura dos nossos tecidos adiposos. A questão é que a proteína Spike do vírus SARS-CoV-2 tem afinidade com este receptor que fica nas membranas, e ao se ligar no receptor, entra dentro da célula, infectando-a.

    Mas e aí? Entrou na célula, replicou e saiu. A infecção viral é sobre isso?

    Não! Existem outras modificações que acontecem dentro das células, que são muito importantes no processo de infecção e replicação. Os mecanismos metabólicos das nossas células, ou seja, suas sínteses e seus processos de funcionamento regulares, que mantêm as células vivas, são bastante alterados.

    Rotas de quebra de moléculas de gordura

    Um exemplo é que o vírus SARS-CoV-2, ao entrar nas células de gordura subcutânea, altera a síntese de algumas proteínas destas células. Em um dos casos analisados nesta pesquisa, a infecção pelo vírus desencadeia uma resposta celular de inibição da lipólise, que é o processo químico de quebra de moléculas de lipídio em dois tipos de moléculas menores: ácidos graxos e glicerol. A inibição dessa reação química (e manutenção das moléculas de lipídio dentro das células, portanto), interfere na replicação do SARS-CoV-2. Isto é, ao ser infectada, a célula de gordura – em especial a gordura subcutânea – responde inibindo uma via, desfavorecendo a replicação viral. Os autores concluem que essa inibição da lipólise pode ser uma forma de resposta antiviral que a célula adiposa apresenta.

    Rotas de sinalização de interferons e a infecção de SARS-CoV-2 em células de gordura visceral.

    Interferon é um tipo de proteínas produzidas pelas células do nosso corpo e que interferem diretamente na replicação de patógenos virais. No caso do SARS-CoV-2, nosso corpo responde à infecção de células de gordura visceral de forma diferente no caso da linhagem original – ou seja, o vírus que chegou ao Brasil em 2020  – e na linhagem que conhecemos como P.1, ou variante Gama.

    A linhagem Gama tem uma infecção atenuada, o que está associado a um aumento da resposta interferon. Isto é, aumenta a resposta celular a essas proteínas quando a célula adiposa é infectada com a variante Gama, enquanto os vírus SARS-CoV-2 da linhagem original levam a uma diminuição da resposta interferon. E o que isto quer dizer?

    Primeiramente, é interessante ressaltar que as variantes possuem pequenas variações no material genético, em relação ao vírus original. Estas variações produzem proteínas ligeiramente diferentes. E estas proteínas podem gerar efeitos diferentes dentro das células que são infectadas pelos vírus e suas variantes.

    Como assim?

    Quando vemos que uma variante infecta mais ou é mais transmissível, isto quer dizer que a interação entre esta nova variante e nossas células se modifica em algum grau. Estamos explicando neste post as interações entre o vírus (e as proteínas dos vírus) e algumas rotas metabólicas, ou a interação da Spike com o ACE2, correto?

    Pois é, as variantes não interagem somente com “mais” ou “menos” afinidade com a ACE2, elas podem induzir ou inibir outras reações químicas dentro das células. No caso do tecido adiposo visceral, a linhagem original reduz a resposta ao interferon, o que pode explicar porque a infecção neste tecido específico é agravada. Já a variante Gama, aumenta a resposta ao interferon, condizente com uma infecção atenuada em células adiposas.

    Finalizando

    Pesquisas como a que apresentamos hoje nos ajudam a inferir e propor novos estudos para compreender o quanto o agravamento da doença no nosso corpo pode ser gerado, em infecções por diferentes variantes, exatamente por diferenças nas interações moleculares dentro das células. Células diferentes, embora do mesmo tipo, podem responder de forma diferente ao vírus, ao passo que linhagens diferentes do vírus também podem resultar em respostas celulares distintas. 

    Os dados obtidos, neste sentido, apontam para os tecidos adiposos, especialmente o visceral, como um local em que o vírus replica-se favoravelmente e que, dependendo da variante analisada, as respostas de defesa são diferentes, podendo ter agravamentos diferentes nestes tecidos. Isto é, eles podem ser tecidos responsáveis por replicar e liberar partículas infectantes ou moléculas inflamatórias em maior quantidade, dependendo da variante viral analisada.

    Uma vez que um dos fatores de risco para agravamento da Covid-19 é a obesidade, compreender de que maneira as células dos tecidos adiposos interagem com o vírus é parte fundamental para desvendar os processos que contribuem para a doença desenvolver sintomas graves nos pacientes.

    Mesmo tendo vacinas e estas sendo nossa principal ferramenta para combate à doença, segue sendo fundamental compreender os mecanismos de interação do vírus e suas variantes em nosso corpo, tanto para a produção futura de antivirais, quanto para compreender tratamentos, agravamentos e possíveis efeitos a longo prazo da infecção do tecido adiposo.

    Para Saber Mais

    Saccon, TD, Mousovich-Neto, F, Ludwig, RG et al (2022) SARS-CoV-2 infects adipose tissue in a fat depot- and viral lineage-dependent manner, Nat Commun 13, 5722 (2022).

    Microbiologando. O que o receptor ACE2 pode nos dizer acerca da capacidade eficiente de transmissão do SARS-CoV-2 entre os seres humanos?

    Especial Covid-19

    Amorim, M, Arnt, AM, Mori, M, Farias, A e Proença-Modena, JL Anticorpos neutralizantes e a variante P.1 Gamma

    Borin, A (2021) Como o SARS-CoV-2 infecta nossas células?

    Codo, A, Arnt, A (2020) Qual a relação entre diabetes e Covid-19?

    Este texto foi escrito originalmente no blog do EMRC

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Bem como, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • 2 anos de Pandemia de Covid-19

    Imagem de Clorofreela

    Hoje completamos 2 anos de Pandemia de Covid-19. No início de 2020, ainda em janeiro, víamos as notícias percorrendo o mundo, acompanhávamos atentos aos acontecimentos recentes acerca de uma pneumonia cujo patógeno era considerado novo, para nós.

    No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde finalmente decreta que o Coronavírus, SARS-CoV-2, tinha se tornado uma pandemia. Isto é, um vírus que atinge todos os países do mundo (ou quase todos).

    Enquanto buscávamos informações seguras para realizar nosso trabalho, aqui no Blogs de Ciência da Unicamp, também víamos proliferar desinformações vindas dos locais em que mais deveríamos confiar e que ocupam postos destinados ao cuidado de nossa população. 

    Em 2 anos, enfrentamos mais de 450 milhões de casos notificados no mundo e 6 milhões de óbitos confirmados registrados. Destes, ainda que com uma subnotificação enorme, quase 11% ocorreu aqui em solo brasileiro (cuja população total é 2,6% da população mundial…). 

    Vidas que não sofrem sozinhas ao virem a termo. Foram pessoas, famílias inteiras, sofrendo com desde a infecção, até internações, cuidados paliativos e descaso ou falta de leitos hospitalares – o que aconteceu em grande parte do mundo. (Podemos analisar isto aqui, aqui, aqui, aqui e mais recentemente, aqui).

    Primeiro ano da Pandemia

    Aqui no Brasil, após um primeiro ano nitidamente marcado pela desinformação, o colapso veio junto com o início de uma lenta vacinação e muita apreensão. Nosso março de 2021 foi marcado com perdas e exaustão, que nublavam a esperança pela chegada da vacina. Uma vez que víamos despedidas de pessoas queridas que não conseguiram se afastar da infecção, semanas antes de sua tão esperada data de vacinação chegar. Este foi o maior colapso sanitário e hospitalar já vivenciado em nosso país.

    O Especial COVID-19, aliava-se ao Todos Pelas Vacinas e também ao Consulado Geral da França em São Paulo para informar sobre vacinas, Covid-19, efeitos sociais da pandemia, surgimento de variantes e muito mais temas necessários para entendermos e enfrentarmos esta doença que se agravava no cenário brasileiro.

    Assim, completamos 1 ano de pandemia no auge do colapso, após uma virada de ano literalmente sem ar, em Manaus, em um ato de descaso sem igual na história de nosso país.

    Segundo ano de Pandemia

    Iniciamos 2021 com 200 mil óbitos. Rapidamente chegamos a marcas mais tristes e devastadoras, que só desaceleraram em função da vacinação que ampliou sua cobertura ao longo do primeiro semestre, ainda que com velocidade menor do que a capacidade brasileira de negociação, compra e distribuição destas vacinas.

    Passamos por uma dolorosa CPI, que escancarou esquemas de corrupção e planejamentos que em nada relacionam-se com princípios de uma gestão pública para salvar vidas, frente a uma crise sanitária que vivenciávamos.

    Debatemos inúmeros medicamentos que não tinham efeito algum para Covid-19, enquanto notícias falsas sobre vacinas brotavam em mensagens instantâneas de aplicativos e causavam hesitação vacinal.

    Fechamos o ano de 2021 com mais de 600 mil mortes em nosso país, muitas delas evitáveis. Vimos, ainda neste final de 2021, o apagão de dados públicos do DATASUS. Sem explicações plausíveis, o que prejudicou muito o monitoramento da doença no Brasil.

    Todavia, a esperança da vacina infantil aprovada pela Anvisa trazia alento para nós, também.

    Junto com a vacina infantil, um novo levante de desinformações era visto, mais cruel e ardiloso: a frequente ameaça que, supostamente, as vacinas causavam miocardite e mal súbito em crianças é uma avalanche constante em nossos meios de comunicação de redes sociais.

    Sem qualquer fundamento ou dados concretos, causam hesitação vacinal em um grupo ainda vulnerável. Piorando, ainda, nosso cenário em que caem as últimas barreiras de cuidados básicos individuais. Por exemplo, as máscaras faciais. Além disso, acentua-se a situação em função de estados e municípios retirando a obrigatoriedade de uso em crianças em fase escolar, sem esquema vacinal completo.

    Seguimos atentos, junto a outros grupos de divulgadores científicos e cientistas, olhando atentamente números, pesquisas, casos pelo mundo, tentando compreender o momento em que estamos vivendo da pandemia. Além disso, com esperança de dias melhores e mais amenos (como acreditamos realmente estarmos alcançando), ainda cientes de que a pandemia não acabou. Não estamos em uma endemia e temos reiterado que tornar-se uma endemia não é algo bom, se negligenciarmos mortes por Covid-19.

    Longe de alarmismos, temos tentado observar a pandemia com um otimismo atento e alerta.

    E com radares ligados para novidades que possam ser importantes para seguirmos divulgando ciência, todos os dias.

    A todes que seguem juntes a nós, nessa toada, nosso muito obrigada.

    Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19.

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • SARS e Neo-Cov: sobre morcegos, pangolins e a família dos coronavírus

    Texto por Mellanie Fontes-Dutra, Lívia Okuda Santos e Ana de Medeiros Arnt

    Coronavírus: é uma família de vírus? De onde vêm? A quem infecta? Tem vírus novo? Os morcegos têm culpa no cartório? Pois bem, hoje vamos responder estas e mais algumas dúvidas no texto do Especial de hoje.

    O que é Coronavírus?

    O Coronavírus é uma família de diferentes vírus existentes na natureza. Alguns infectam humanos e outros não. Assim, nesta família viral, existem alguns vírus que causam resfriados e outros que podem causar síndromes respiratórias graves, como COVID-19. Mas temos um novo integrante, recém descoberto, nessa grande família e vamos falar mais dele neste texto!

    Olhando para nossa história, já tivemos pandemias ou risco de pandemias com os coronavírus: pelo SARS-CoV-1 (2002), MERS-CoV (2012) e SARS-CoV-2 (2019). Aliás, as pandemias, como sabemos agora, são eventos causados por patógenos (como vírus ou bactérias) que atingem o mundo inteiro, causando preocupação e danos à saúde da população de muitos países.

    Pode parecer novidade para muitas pessoas, mas existe monitoramento epidemiológico no mundo inteiro de possíveis patógenos pandêmicos, incluindo os diversos coronavírus que encontramos em espécies selvagens ou domésticas. Isto nos ajuda a saber se são ou estão se tornando perigosos para os humanos.

    Então, depois desse background, podemos falar sobre o nosso tema de hoje: Sars e os Neo-Cov. Sendo o primeiro o grupo do nosso conhecido e odiado COVID-19, e o segundo um tipo de coronavírus encontrado recentemente na África.

    Origem do SARS-COV-2: hipótese zoonótica.

    Análises filogenéticas recentes identificaram que os SARS-CoVs provavelmente divergiram de um coronavírus ancestral derivado de morcego entre 1948 e 1982. Filogenia é a área da biologia que estuda a “ancestralidade” dos vírus e seres vivos, a partir de análises genéticas e moleculares, traçando assim sua “história evolutiva”.

    Este estudo sugere que os vírus tipo os SARS-CoVs têm circulado em espécies selecionadas de morcegos há algum tempo. Existem trabalhos que mostraram uma grande semelhança de coronavírus que infectam morcegos com o SARS-CoV-2, apresentando até 96,1% semelhança no material genético, como no caso do estudo recente em Laos.

    Assim, é possível que a linhagem originária do SARS-CoV-2 tenha circulado despercebida em morcegos por décadas. 

    Em outro estudo constatou-se a ocorrência de uma frequente troca de coronavírus entre morcegos. Aliás, é sempre bom lembrar que eles são animais que podem viver aglomerados, podendo gerar uma grande diversidade genética e novas versões de vírus.

    Também é possível que um SARS-CoV tenha evoluído para SARS-CoV-2 em humanos após o chamado spillover de um animal (transbordamento, ou quando um vírus de uma espécie passa a infectar outra espécie diferente) seguido pela rápida transmissão desta cepa (tipo de vírus) adaptada a humanos. Portanto, é um desafio para a comunidade científica estimar a frequência do transbordamento zoonótico.

    Vamos entender melhor como uma pesquisa assim pode ser feita?

    Pesquisadores, em um estudo ainda em preprint, criaram um mapa detalhado de habitats de 23 espécies de morcegos conhecidas por abrigar coronavírus relacionados ao SARS. Nesta pesquisa, sobrepuseram dados sobre onde os humanos vivem para criar um mapa de potenciais pontos de infecção. Visto isso, cerca de 500 milhões de pessoas vivem em áreas onde podem ocorrer spillovers, incluindo o norte da Índia, Nepal, Mianmar e boa parte do Sudeste Asiático. Logo, esta informação pode nos dar pistas de locais em que essa vigilância precisa ser frequente e fortificada.

    Interessante, não? Uma pesquisa que vai não só analisar habitats de animais infectados, mas relacionar-se às populações humanas que podem ter contato frequente com estes animais. Este é um dos modos de realizarmos monitoramentos e termos dados mais precisos (e constantes) de riscos para nós.

    Quer dizer que o vírus não foi feito pelos laboratórios chineses comunistas?

    É isso mesmo, ao que tudo indica a origem do SARS-CoV-2 é natural, de morcegos ou outros animais. 

    Essa afirmação pode ser compreendida melhor com o artigo que relata um vírus muito relacionado ao SARS-CoV-2 já circulava desde 2010 em Camboja. Este artigo adiciona mais uma evidência da origem natural desse vírus. Além disso, mais recentemente, foi descoberto que no norte do Laos alguns vírus muito parecido com o SARS-CoV-2 circulam em morcegos, os quais apresentam particularidades que os relacionam muito proximamente ao vírus da COVID-19.

    E esse spillover não dá em nada?

    Segundo o preprint  já citado, e tendo cuidado com as limitações do dado obtido, cerca de 400.000 pessoas estão provavelmente infectadas com coronavírus relacionados à SARS todos os anos, em transbordamentos que nunca se transformam em surtos detectáveis. 

    “Mas por que, se temos todas essas infecções anualmente, não vemos muitos surtos?” 

    Porque a maioria das infecções ocultas têm vida curta e não levam à transmissão, em razão de os vírus não serem bem adaptados aos humanos. Em geral, alguns humanos podem se infectar diretamente do contato com animais, mas acabam não transmitindo a outros seres humanos, acabando ali mesmo com a infecção. O problema é se a frequência delas se tornar alta, o que pode propiciar a transmissão entre seres humanos.

    Ainda, existe outro risco! Muitas dessas infecções, exatamente por serem “novas”, podem gerar diagnósticos errados, exatamente por sintomas que se assemelham a outras doenças. No caso da COVID-19, por exemplo, os primeiros diagnósticos saíam como gripe ou pneumonia, até que se percebesse que existia um novo patógeno infectando ali! Isto também adiciona um viés ao dado. Soma-se a isso toda uma discussão sobre o acesso à saúde que pessoas de regiões rurais possuem, e isso é uma questão importante.

    Só morcego pode passar doença para humano?

    Na verdade não. Em geral, o monitoramento de vírus que podem fazer o spillover aponta que existem vários vírus – de Influenza por exemplo – que indicam outros animais, especialmente aves. A gente já ouviu falar da gripe aviária e gripe suína, que são vírus da família Influenza. Portanto, tanto espécies ditas como “domésticas”, quanto espécies que vivem em ambientes selvagens podem estar envolvidas em spillover

    Mas em se tratando de coronavírus, apesar de os morcegos serem fortíssimos candidatos a reservatórios desta família, não podemos afirmar com certeza se existem ou não outros animais possíveis. No caso do surto de SARS-CoV em 2002, as Civetas foram um provável candidato, por exemplo.

    E aquele bichinho da China, o pan… pe… pebolim?

    Ah, quer dizer o Pangolin? SIM! Existe a possibilidade de o pangolin ter entrado de bobo nessa história. Ou seja, ser um hospedeiro intermediário entre o possível reservatório do vírus (morcego) e nós. Mas ainda precisamos de mais análises para entender se sim, e como isso ocorreu. 

    Essa situação não seria algo improvável, já que algumas famílias de morcegos (como o Rhinolophidae) compartilham algumas dietas com os pangolins na natureza. E por fim, temos fatores ecológicos que propiciaram esses spillovers. Urbanização, deflorestamento, redução de habitats selvagens forçam uma proximidade dessas espécies conosco, favorecendo contatos e exposições.

    Entretanto, analisando os SARS-CoVs, nota-se uma semelhança de mais ou menos 85,5 -92,4% ao SARS-CoV-2 em seu material genético. Além disso, possuem semelhanças intrigantes com o vírus em regiões que são fundamentais para a interação com nossas células. Especificamente, existe uma região do vírus, conhecida como RBD (sigla para receptor-binding domain), que é exatamente onde o vírus se liga com o ACE2 de nossas células, para entrar nelas. Esta região de um SARS-CoV de pangolim tem 97,4% de semelhança com o do SARS-CoV-2, o que é muito intrigante e mostra que existe muito ainda para conhecermos e, também, que a identificação filogenética destes vírus não é tão simples, tendo em vista que pode haver troca de materiais virais em animais hospedeiros. Isto é, os diferentes tipos de coronavírus que infectam um animal, podem trocar materiais genômicos (que conhecemos como recombinações).

    Imagem retirada de: https://www.cell.com/trends/ecology-evolution/fulltext/S0169-5347(20)30348-7

    Mas o Mercado de Huanan tem alguma coisa a ver?

    Vamos falar disso agora! Vimos anteriormente que os morcegos eram o reservatório do ancestral do SARS-CoV-2, certo? Também sabemos que este mercado é conhecido por ter bancas que vendem animais vivos, como o cão-guaxinim, que já foi associado a emergência do SARS-CoV-1 e que é não só suscetível ao SARS-CoV-2, como capaz de transmiti-lo. 

    Aliás, por meio de análises espaciais, um artigo demonstrou que os primeiros casos relatados de COVID-19 em dezembro de 2019 foram distribuídos geograficamente próximos e centrados no mercado de Huanan, em Wuhan. Assim, os autores comentam que essa proximidade de casos ao mercado de Huanan foi, em Dezembro de 2019, maior que o esperado, dada a densidade populacional de Wuhan ou a distribuição espacial dos casos de COVID mais tarde na epidemia, sugerindo o epicentro no mercado.

    Todavia, o mais interessante é que, considerando o próprio mercado, os dados desse trabalho sugerem que um grande número de casos estava ligado ao setor oeste do mercado, onde a maioria das bancas que vendiam animais vivos se concentravam. Somando os dados, é plausível que várias espécies de mamíferos suscetíveis ao SARS-CoV-2 e que poderiam ser hospedeiros intermediários de seus “parentes ancestrais” foram vendidos vivos no mercado de Huanan em novembro de 2019 e podem ter contribuído para a transmissão.

    Pois é! Há indícios de que não foi “uma só infecção”!

    Deste modo, é provável que houvesse vários animais infectados no mercado de Huanan e pode ter havido pelo menos duas “entradas” do SARS-CoV-2 (linhagens A e B) em humanos, com a entrada da linhagem B e algumas semanas após, a linhagem A.

    A linhagem A do vírus, a qual não havia sido encontrada no mercado de Huanan, tem uma associação geográfica imensa com esse mercado, sugerindo que “as linhagens A e B surgiram nesse mercado e começaram a se espalhar para a comunidade residencial de Wuhan”. Dessa forma, os autores dizem que

    “Amostras positivas para SARS-CoV-2 estavam fortemente associadas à venda de mamíferos vivos, particularmente no canto sudoeste do mercado de Huanan, onde amostras ambientais positivas provavelmente foram derivadas de animais infectados”

    Outro artigo concluiu que a circulação de um vírus ancestral em morcegos, que passou a ser capaz de ligar em ACE2, “pulou” para hospedeiros intermediários (animais suscetíveis) que foram comercializados vivos no mercado de Huanan, surgindo as linhagens A e B pouco tempo depois e a infecção em humanos.

    A importância de monitoramentos ambientais e pesquisa básica!

    Sim, voltaremos a este tema, pois além de informações interessantes e fundamentais para compreendermos melhor o mundo que vivemos, também usamos estas informações para entender a importância da pesquisa científica! Recentemente, o vírus Neo-CoV foi encontrado entre morcegos na África do Sul. Cientistas chineses alertaram para esse vírus, no entanto, falta ainda um entendimento maior sobre seu potencial infeccioso. 

    Neo-Cov: quem é e o que sabemos dele?

    Primeiro, um spoiler: não é uma nova variante do vírus da COVID-19, e não é algo novo no geral!

    O Neo-CoV é um outro tipo de coronavírus que foi relatado pela primeira vez em 2012 e em 2015 durante o surto de MERS-CoV que pode usar receptores ACE2 de morcegos, mas não os receptores ACE2 de humanos. E, até o presente momento, não se observou infecção em humanos em sua forma atual, espalhando-se exclusivamente entre os morcegos.

    De acordo com especialistas, as descobertas feitas pelos cientistas de Wuhan não representam um risco para a humanidade no momento atual. Apenas apontam para a necessidade de se acompanhar mais um tipo de coronavírus e sua evolução.

    O Neo-CoV ganhou a atenção da mídia pelo fato de os cientistas chineses disponibilizarem esses dados recentes (e importantes) em um preprint. Assim, este vírus é na verdade um vírus intimamente relacionado ao MERS-CoV que entra nas células através dos receptores DPP4 e pode usar o ACE2

    Finalizando

    Por fim, imagino que não seja possível negar a importância do monitoramento epidemiológico e do investimento nesta ciência, não é? É muito provável que, para praticamente qualquer patógeno zoonótico da vida selvagem, o transbordamento é mais frequente do que anteriormente reconhecido. E precisamos de mais investimento em ciência e vigilância genômica para monitorá-los de maneira pública para que possamos controlar epidemias e evitar que novas pandemias, como COVID-19, apareçam.

    Além disso, também é sempre bom lembrar que não é culpa dos animais estas infecções. Portanto, não deveríamos interferir ainda mais nos habitats deles e causar danos e diminuição das populações silvestres. Os monitoramentos devem ser no sentido de compreendermos quais são os vírus presentes nestes animais e, também, estabelecermos formas de preservação e diminuição de interações que sejam prejudiciais para nós, enquanto espécie, e para estas espécies silvestres.

    Parte das infecções ocorre (e pode ocorrer) especialmente pela invasão de habitats destes animais, aumentando o contato entre seres humanos e espécies de ambientes naturais.

    Para saber mais: 

    LAM, Tommy Tsan-Yuk; JIA, Na; ZHANG, Ya-Wei; et al (2020) Identifying SARS-CoV-2-related coronaviruses in Malayan pangolins Nature, v 583, n 7815, p 282–285, 2020. 

    ‌XIAO, Kangpeng; ZHAI, Junqiong; FENG, Yaoyu; et al (2020) Isolation of SARS-CoV-2-related coronavirus from Malayan pangolins Nature, v583, n7815, p 286–289. ‌

    ZHANG, Yong-Zhen ; HOLMES, Edward C (2020) A Genomic Perspective on the Origin and Emergence of SARS-CoV-2 Cell, v 181, n 2, p 223–227.

    BONI, Maciej F.; LEMEY, Philippe; JIANG, Xiaowei; et al (2020) Evolutionary origins of the SARS-CoV-2 sarbecovirus lineage responsible for the COVID-19 pandemic Nature Microbiology, v5, n11, p 1408–1417. 

    BANERJEE, Arinjay; DOXEY, Andrew C.; MOSSMAN, Karen; et al (2021) Unraveling the Zoonotic Origin and Transmission of SARS-CoV-2 Trends in Ecology & Evolution, v 36, n 3, p 180–184. 

    KUPFERSCHMIDT, ‌SARS-like viruses may jump from animals to people hundreds of thousands of times a year. Science.org. 

    SÁNCHEZ, Cecilia A; LI, Hongying; PHELPS, Kendra L; et al (2021) A strategy to assess spillover risk of bat SARS-related coronaviruses in Southeast Asia. ‌

    FORATO, Fidel (2021) NeoCoV: tipo diferente de coronavírus chama atenção, mas não chegou em humanos Canaltech.

    KUMAR, Ajeet (2021) NeoCov: What is WHO saying about newly discovered coronavirus found in bats? Republic World. 

    WOROBEY, Michael; LEVY, Joshua I; MALPICA, Lorena M; et al (2022) The Huanan market was the epicenter of SARS-CoV-2 emergence, Zenodo, 2022. 

    PEKAR, Jonathan E; MAGEE, Andrew; PARKER, Edyth; et al (2022) SARS-CoV-2 emergence very likely resulted from at least two zoonotic events Zenodo, 2022. 

    Observação 1:

    Este texto foi organizado com informações complementares às publicações de Mellanie Fontes-Dutra

    1. E se eventos zoonóticos como o que provavelmente gerou o SARS-CoV-2 estiverem acontecendo centenas de milhares de vezes por ano?
    2. Sobre o Neo-CoV
    3. Origem do SARS-CoV-2

    Observação 2

    Há trechos desta postagem que são traduções livres de artigos, com adequações de linguagem para melhor compreensão do tema.

    As Autoras

    Ana Arnt é licenciada em biologia, doutora em educação, professora do Instituto de Biologia da Unicamp, coordena os projetos Blogs de Ciência da Unicamp e o Especial COVID-19.

    Livia Okuda é estudante de Farmácia na Unicamp e divulgadora científica do Especial Covid-19 do Blogs Unicamp.

    Mellanie Fontes-Dutra é biomédica, doutora em neurociência e pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Divulgadora Científica na Rede Análise COVID-19. Autora convidada no Especial COVID-19 e parte do projeto Todos Pelas Vacinas.

    Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19.

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • A Covid-19 tornou-se uma endemia?

    Texto escrito por Ana Arnt e Lívia Okuda

    Cada dia temos visto de maneira mais frequente a palavra endemia sendo falada ao se referir à Covid-19, como se ela tivesse se tornado uma endemia. Mais do que isso, esta endemização da Covid têm sido um dos pontos que justificam quaisquer ações como aceitáveis e não problemáticas no espaço público.

    Mas será mesmo que tá tudo tranquilo? Antes disso, vamos entender um pouco sobre:

    O que seria uma endemia?

    Seria uma infecção em que a quantidade de pessoas que adoece e eventualmente morre nem aumentam, nem diminuem. Ou seja, o número de pessoas que pode se infectar, a partir de um indivíduo infectado, está equilibrado dentro de uma população em que qualquer pessoa pode se infectar. Veja que isto não quer dizer que a doença diminuiu sua gravidade, nem que a mortalidade não causa prejuízos a uma população.

    Apenas quer dizer – e somente isto – que há um equilíbrio.

    Spoiler: endemia não significa um cenário tranquilo.

    A ideia da endemia vem sendo cada vez mais utilizada para justificar retomadas do que ainda estava em modo de home office, ou com rodízios ou modalidades que previam trabalhos híbridos. A grande questão, nos parece, é sobre o quanto a ideia de endemia leva a uma compreensão não apenas errada do atual cenário, mas também a uma banalização de cuidados e condições de combatermos as doenças.

    Neste sentido, Isaac Schrarstzhaupt comentou sobre as doenças negligenciadas, comparando com Covid-19. A noção de doença negligenciada aqui, apontada pelo Isaac, é exatamente pelo acesso às vacinas e às condições de manter-se saudável não estar acontecendo com equidade. Ou seja, as pessoas que não têm acesso às informações, condições de cuidados, e vacinas são pessoas em situação de vulnerabilidade – seja por estarem em regiões menos favorecidas economicamente, seja por serem regiões distantes de grandes centros urbanos. E essa preocupação é realmente importante, especialmente por estarmos há tempos também batendo na tecla sobre as políticas públicas de saúde e sua relevância no combate à pandemia, ao se basear em dados técnicos e científicos! Todavia, e sobretudo, também tendo responsabilidade social ao se olhar estes números – pois são pessoas, vidas em vulnerabilidade…

    Ah, Mas estamos realmente exaustos!

    Temos percebido, em nossos canais (e discutido isso nos grupos que falam da pandemia), cada vez menos gente falando sobre Covid e, também, cada vez menos gente procurando conteúdos sobre isso. 

    Nós sabemos – até porque estamos vivendo a pandemia também – que estamos todos cansados de ouvir, falar, pensar, ler sobre a Covid. No entanto, também sabemos que ela não sumirá dos nossos dias só por nós estarmos cansados de distanciamentos e usos de máscaras.

    As notificações de óbitos ao redor do mundo passaram de 70 mil na última semana. É como se as pessoas que residem em Viçosa (MG), ou Pato Branco (PR), ou Vilhena (RO) desaparecessem em uma semana.

    Aqui no Brasil, foram quase 6 mil óbitos na última semana! É muita gente morrendo para levantarmos todos os dias de manhã e fingirmos que nada está acontecendo. E isto não quer dizer passar os dias sofrendo, chorando e seguirmos trancados em casa.

    Mas é fundamental compreendermos que não, não está tudo bem. E, também, que é fundamental termos ações públicas efetivas para conter esta transmissão.

    Políticas públicas e ações individuais

    Individualmente seguimos batendo em teclas antigas: use máscaras (preferencialmente máscaras filtrantes, como as PFF2, bem ajustadas no rosto, sem escape de ar), mantenha-se o menor tempo possível em espaços fechados e mal ventilados, dê preferência para circular em espaços abertos e ventilados, ao apresentar sintomas ISOLE-SE e comunique as pessoas que tu entraste em contato nos últimos 5 dias.

    No entanto, é importante que os espaços públicos e privados, especialmente vinculados aos espaços de trabalho, tenham condições de abarcar não apenas estas medidas, mas cobrem posturas condizentes com o momento atual. Isso inclui – como temos defendido aqui – vacinação em esquema completo. Isto mantém o ambiente de trabalho mais seguro para todos e não, não é descabido pedir isto às pessoas. Aliás, o PL 1674/2021 que cria o Passaporte Vacinal está sendo debatido hoje no plenário.

    Transmissão, Variantes e cenário atual

    Estamos vivendo um tempo de alta transmissão do SARS-CoV-2, especialmente após a entrada da variante Ômicron no país. Ao contrário do que muitas desinformações circulando nas redes, estamos em uma situação melhor do que poderíamos imaginar, exatamente por causa das vacinas!

    É por termos uma parcela da população vacinada com duas ou três doses, que a gravidade dos casos têm sido menor e, mais do que isto, temos tido menos óbitos do que o esperado sem as vacinas, levando-se em conta a quantidade de casos que têm sido registrados.

    As variantes, como já discutimos aqui no Blogs, são decorrentes de mutações naturais no vírus. E estas mutações – mudanças no código genético do vírus – consegue se fixar nas populações exatamente pela grande quantidade de transmissões que temos visto. As vacinas estão segurando o agravamento das infecções nas pessoas, mas é fundamental diminuirmos a quantidade de infecções e isto se faz com medidas de cuidados pessoais e políticas públicas que garantam que estes cuidados sejam implementados.

    Não é fazendo shows lotados em grandes centros urbanos que conseguiremos barrar as infecções.

    Tampouco é fingindo que a doença está acabando, ou normalizando espaços fechados sem ventilação como tranquilos pois vivemos uma endemia que daremos conta…

    Negligenciar a Covid, “endemizando” a doença por decreto só normaliza mortes, sem resolver o problema na sociedade

    Aris Katzourakis, epidemiologista que publicou uma coluna na Nature final de Janeiro, aponta que o otimismo preguiçoso, a falta de realismo ao analisarmos os dados de morte e adoecimentos, tanto quanto a falta de ferramentas efetivas, como vacinas, tratamentos, testes diagnósticos, cuidados básicos (máscara, espaços ventilados e distanciamento) são exatamente os pontos fundamentais para mudarmos nossa postura e conseguirmos “jogar à favor da humanidade”. Além desses pontos, claro que o pesquisador indicou a necessidade de investimentos para vacinas que consigam combater as variantes também.

    Basicamente, tudo isto seria dizer “escutem o que cientistas têm dito sobre combate à Covid, coloquem em prática em forma de políticas públicas em seus países e no mundo, invistam em ciência”.

    Enquanto estivermos brincando de mergulhar mãos em álcool gel e medição de temperatura no pulso, lotando espaços públicos com máscaras inadequadas e com elásticos frouxos, não apenas estamos ignorando o que cientistas têm dito sistematicamente, como temos jogado a favor do vírus, em um momento crucial de retomada. Claro, tudo isso sendo feito mais uma vez, já que não é recente estes comunicados – nem o quanto seguem sendo ignorados em campanhas de massa…

    Tornar a Covid-19 em endemia por cansaço e vontade de retomar a vida é tão certeiro quanto cuspir para cima e se espantar com onde cairá o projétil.

    Por fim, da mesma maneira que temos falado que a ciência não opera por milagres e têm seu tempo para desenvolver conhecimentos técnicos para compreender os fenômenos, as políticas públicas que negligenciam dados também não vai ter condições em acabar com uma mazela social gravíssima como um sopro de vento de esperança, em uma plantação de alecrins dourados.

    É preciso ações urgentes, análises precisas e, acima de tudo, responsabilidade frente ao atual cenário – para evitar cenários ainda piores.

    Para saber mais:

    Este texto foi inspirado em ideias debatidas por Mellanie Fontes-Dutra e Isaac Schrarstzaupt, elencados aqui:

    Qual é o preço de uma endemia no futuro?

    Estamos entrando/entraremos em uma endemia de COVID-19?

    A desigualdade na distribuição de vacinas

    Sabiam que a dengue, a malária e outras doenças se chamam “Doenças NEGLIGENCIADAS”

    Por que demorou tanto para ter uma vacina contra a malária? 

    Artigos em inglês

    KATZOURAKIS, Aris. COVID-19: endemic doesn’t mean harmless. Nature, v. 601, n. 7894, p. 485–485, 2022. 

    NDTV. COVID-19 Has Not Yet Become Endemic, WHO Warns. NDTV.com.

    Textos do Blogs:

    Variantes

    Diversidade viral e surgimento de novas variantes do SARS-CoV-2

    Sobre a vacinação e abertura prematura: um celeiro para novos casos e variantes

    Sobre aberturas, cautelas e políticas públicas

    Como o SARS-CoV-2 infecta nossas células?

    As autoras

    Ana Arnt é licenciada em biologia, doutora em educação, professora do Instituto de Biologia da Unicamp, coordena os projetos Blogs de Ciência da Unicamp e o Especial COVID-19.

    Livia Okuda é estudante de Farmácia na Unicamp e divulgadora científica do Especial Covid-19 do Blogs Unicamp.

    Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19.

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Vacina de Pólio e a segurança dos protocolos de vacinação atuais

    Texto escrito por Flávia Ferrari

    O primeiro texto sobre vacinas, da equipe do Todos Pelas Vacinas, falou sobre Reações Adversas, com a Mellanie Fontes-Dutra! Hoje nós vamos falar sobre uma vacina especial, que é o coração do Programa Nacional de Imunização e a grande vedete dos fãs de vacina: a vacina de pólio (poliomielite ou a gotinha!).

    O que é pólio?

    Temos relatos de poliomielite (popularmente conhecida como paralisia infantil) desde a antiguidade. Não é, portanto, uma doença recente em nossa história, como humanidade. Porém, o vírus só foi descoberto no começo do século XX. A trajetória foi, portanto, longa até entendermos o que causa esta doença!

    A principal forma de transmissão é por contato com as fezes. Isto é, fecal-oral. Mas também pode ser transmitida de forma oral-oral. A paralisia infantil é assintomática em 95% dos casos. Todavia, em 1% dos casos podem se desenvolver sintomas graves, menos de 0,05% morrem.

    Se olharmos estes números, de alguma forma (curiosa até) eles colocam em xeque as discussões que temos hoje sobre a COVID. Isto porque muitos afirmam sobre os supostos “baixo riscos” que crianças têm ao contraírem a doença a COVID-19. Entretanto, nós sabemos que devemos tentar preservar o máximo de vidas possível, especialmente quando se trata de doenças e mortes evitáveis! Aliás, isso ainda intensifica-se ao refletirmos nas sequelas para toda uma vida e no impacto disso para a saúde pública. 

    Jonas Salk e a poliomielite

    Mas o assunto hoje é a pólio e a vacina! Então, quero contar um pouco sobre a história da pesquisa de Jonas Salk. Salk trabalhava desde 1941 com o vírus Influenza (gripe) e em 1947 começou seus estudos sobre a poliomielite. Em 1949, outros pesquisadores desenvolveram um método in vitro de propagação do poliovírus. Salk usou a técnica para produzir grandes quantidades de vírus e iniciar testes de inativação do vírus. Salk acreditava que a vacina poderia ser feita de vírus morto, produzindo assim anticorpos através da presença no sangue. 

    Os primeiros testes de segurança foram feitos em cerca de 5000 indivíduos. Salk chegou até mesmo a inocular a vacina experimental nele mesmo, na esposa e nos seus três filhos. 

    Após esses testes de segurança em pequena escala, realizou-se o maior estudo clínico já feito, recrutando 1,8 milhões de crianças só nos Estados Unidos, para realizar os testes de fase 3. 

    No caso da COVID, por se tratar de um vírus com transmissão muito mais comum, precisamos de grupos menores para tanto. Os testes de fase 3 não passaram de dezenas de milhares. 

    A aplicação da vacina de pólio

    Voltando ao teste de Salk, já em 1955, a vacina começou a ser aplicada em massa. Com um controle muito menos rígido que os atuais houve uma grande falha em um laboratório que não utilizou o procedimento correto para inativar o vírus. Com isso, de 380 mil doses lançadas pelo laboratório, 164 crianças ficaram paralisadas (0,043%) e 10 morreram (0,003%), uma porcentagem muito baixa, em relação ao total de vacinas aplicadas. No entanto, mesmo com uma porcentagem baixa assim, este foi considerado o maior desastre biológico da história dos Estados Unidos da América. 

    Aliás, tão desastroso que culminou na mudança de todo o padrão de checagem de segurança das vacinas, até os dias atuais no mundo inteiro. A cepa utilizada era a mais virulenta também, algo inimaginável nos dias atuais.

    Cabe ressaltar que após esse incidente, nenhum evento desse tipo ocorreu mais.  Devido às novas técnicas de segurança e ao controle de qualidade para as vacinas, que inclusive ajudaram a melhorar os procedimentos atuais.

    Hoje no Brasil, usamos a CoronaVac como vacina contra COVID-19 tendo a tecnologia de vírus inativado que possui mais de um método de inativação. Isto é, o utilizado pela vacina Salk e também métodos de radiação de alta frequência. Além disso, usamos atualmente métodos de controle muito mais efetivos.

    Como assim? Quer dizer que usam o mesmo método catastrófico do Salk? Não. Quer dizer que aprimoramos a tecnologia de inativação do vírus, construímos conhecimento sobre nossos erros

    Hoje, o método de vacinas de vírus inativado é considerado muito seguro.

    Em 1961, com a continuidade da vacinação e revisão dos protocolos, os casos reduziram 90% só nos Estados Unidos. No Brasil, a vacina começou a ser utilizada a partir de 1960.  Porém não temos dados seguros da redução, pois não havia notificação compulsória até 1968. 

    Na década de 80 surgiram os Dias Nacionais de Vacinação (e o Zé Gotinha – A gente tem um vídeo fofo disso). Em 1991 houve o último caso de pólio nas Américas! Um marco histórico de vitória de uma política pública de saúde tão importante!

    Em 1994 fomos certificados como área livre de circulação de pólio selvagem. Segundo projeções, se a queda continuar no mundo todo (hoje apenas Nigéria, Afeganistão e Paquistão e outros casos relatados em outros países), em 2024 poderemos ter erradicado o vírus no mundo, 70 anos após o desenvolvimento da vacina.

    Segundo a Organização Mundial da Saúde, erradicar a poliomielite significaria uma economia mundial de cerca de 40 bilhões de dólares, pelo menos. Este número torna-se ainda mais significativo quando levamos em conta que são países de baixa renda os afetados por esta doença. Mas mais importante do que isto, a OMS aponta que:

    Quando a pólio for erradicada, o mundo poderá celebrar a entrega de um grande bem público global que beneficiará todas as pessoas da mesma forma, não importando onde elas vivam (…) o sucesso significará que nenhuma criança voltará a sofrer os terríveis efeitos da paralisia provocados pela poliomielite ao longo da vida

    E o que isto tem a ver com a vacinação de COVID-19, o Todos Pelas Vacinas e nossa campanha de vacinação infantil?

    É importante termos noção de que a ciência não funciona em saltos com soluções inéditas. Sabemos que vivemos atualmente um momento difícil, que parece se arrastar por nossas vidas e esperamos diariamente notícias de que a pandemia acabou. Mas compreender estes processos científicos também torna-se parte da possibilidade de confiar mais ainda nos processos científicos. Isto é, compreender que a ciência funciona a partir de análises anteriores, técnicas já desenvolvidas, aprimoradas, para problemas contemporâneos e novos. A vacina para Covid, como não poderia deixar de ser, utilizou-se de plataformas, técnicas e conhecimentos prévios para ser desenvolvida com segurança para nós e para as crianças.

    Assim, reforçamos alguns pontos: Vacinas salvam vidas, mas não extinguem o vírus em um passe de mágica. A pesquisa em vacinas pode ser rápida, ainda mais se houver interesse público, financiamento e uso de plataformas já desenvolvidas. As vacinas não foram desenvolvidas rapidamente como passe de mágica, nós utilizamos saberes prévios, como são as outras usadas atualmente. Por exemplo, a vacina de RNA que já vinha sido desenvolvida para outros vírus.

    Além disso, a aplicação de vacinas em massa ocorrem após testes em grupos para verificar a segurança. Erros que aconteceram no passado balizaram métodos que asseguram formas muito mais confiáveis de produção. Ou seja: Aprendemos e evoluímos muito em segurança e qualidade para que erros do passado não aconteçam mais

    Em suma, as vacinas…

    As vacinas usadas para a COVID-19, tanto em adultos, quanto as vacinas pediátricas são seguras, seguiram protocolos rígidos, aprimorados em dezenas de anos. Assim, não precisamos ter receio em relação à vacinação atual e teremos um mundo mais sadio e com menos adoecimentos, quanto mais pessoas estiverem vacinadas!

    Para Saber Mais:

    Neto Tavares Fernando. O início do fim da poliomielite: 60 anos do desenvolvimento da vacina. Rev Pan-Amaz Saude [Internet]. 2015.

    Organização Panamericana de Saúde. Poliomielite

    Paul JR. A history of poliomyelitis. New Haven: Yale University Press; 1971.

    Polio Global Erradication Iniciative

    Fiocruz. Salk versus Sabin: dois personagens e suas estratégias contra a pólio

    BBC News. ‘Incidente Cutter’: a tragédia nos EUA dos anos 1950 que resultou em vacinas mais seguras

    A autora

    Flávia Ferrari continua a série maravilhosamente bem iniciada pela Mellanie Fontes-Dutra, que falou sobre reações adversas das vacinas, contando um pouco de histórias de pesquisas em vacina, em especial de uma que todos tomaram: A pólio (ou a gotinha). Flávia é bióloga e atua como professora de ciências e autora de materiais didáticos, integra os grupos Observatório da COVID-19 Brasil e Todos Pelas Vacinas.

    Este texto compõe uma série para a campanha Vou Vacinar, do Todos Pelas Vacinas, Flávia é autora convidada do Especial COVID-19. 

    Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19.

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Passaporte Nacional de Imunização e Segurança Sanitária – Faz sentido isso? – Updated

    Texto escrito por Marina Fontolan e Ana de Medeiros Arnt

    Há alguns meses, fizemos um texto comentando o Projeto de Lei 1674/2021 que trata do Passaporte Nacional de Imunização e Segurança Sanitária (PSS). No entanto, com o avanço da vacinação no Brasil e no mundo, precisamos revisitar essa questão. Aqui, argumentamos ser indispensável a exigência do passaporte vacinal, não apenas nas fronteiras do país, mas mesmo internamente.

    Antes de argumentarmos sobre isso, vamos retomar alguns dos principais pontos que discutimos no texto passado:

    A vacinação não é compulsória;

     Sim! É verdade. A vacinação não é compulsória e defendemos isto! A vacinação, mesmo sendo obrigatória, não é compreendida como sendo uma ação que o Estado brasileiro pode efetuar de forma coercitiva. Existe diferença substancial entre estas duas noções. A vacinação, por ser obrigatória, pode se vincular a atos restritivos a serviços públicos quando não tomarmos. Por exemplo, pode-se restringir nosso acesso a concursos ou serviços públicos específicos, por meio de lei, impossibilidade de matrícula em escolas e universidades, entre outros serviços.

    Podemos seguir sem tomar as vacinas que decidimos não tomar. Todavia, aquelas que são consideradas obrigatórias, podem ter medidas de restrição para acesso de serviços fornecidos pelo nosso país. Essa lógica vale para qualquer outro tipo de decisão que tomamos. Por exemplo: não podemos dirigir sem nossa CNH, mas há pessoas que o fazem e que podem ser punidas por isso se forem pegas. Por exemplo: o voto é obrigatório. Se não votarmos e não justificamos, temos uma pendência com o governo, alguns serviços também ficam suspensos até que paguemos a multa. Não somos PRESOS por isso, mas temos uma restrição legal para acessar espaços e serviços.

    Não deveria ter discriminação de espaços por ações individuais e opções relacionadas ao nosso corpo;

    Este é um ponto interessante e repleto de vieses. Não existe discriminação no sentido de preconceitos contra a pessoa que não quer se vacinar. Mas existe, no pressuposto da lei, a intenção de que pessoas vacinadas ou imunizadas estão seguras e, portanto, podem circular sem prejudicar outras ao seu redor.

    Nestes casos, a idealização da lei poderia ser entendida pelo bem coletivo, mais do que pela criminalização do que se faz com o corpo individual e as decisões acerca disso… O que nos leva para o próximo item. 

    O estado não deveria controlar nossos corpos;

    A princípio não. Mas esta fala é perniciosa em tantos sentidos, não é mesmo? A liberdade sobre os nossos próprios corpos é um debate absolutamente profundo e necessário. Que não se restringe à vacinação. Ela diz respeito a termos o direito de assumirmos quem nós somos – diz respeito à nossa identidade como cidadão de uma sociedade, de uma nação. Assim, o direito ao nosso próprio corpo é parte da minha condição humana e de minha vivência neste país.

    Eventualmente esta liberdade é cerceada quando eu coloco em risco a vida e a segurança dos outros. De qualquer modo, a noção de risco à sociedade é mais vago e difícil de delimitar do que pode parecer.

    Existem várias pessoas que vêm lutando pelo direito de ser quem são, juridicamente, em nosso país há décadas. Direito de ir e vir, casar com quem quiserem, beijar, transar, ter filhos com quem quiserem, quando (e se) quiserem.

    O Estado, ao tornar a vacina obrigatória, não controla o teu corpo – ele te dá a opção de usar diversos serviços públicos ou te restringir acesso a eles.

    Ninguém tem qualquer direito de agir coercitivamente em relação ao teu corpo, vacinando-te. Tens razão, o estado não deveria controlar nossos corpos. Mas não é em processos de vacinação que isto acontece, mesmo quando isto é obrigatório.

    A segurança sanitária coletiva está acima da individual;

    Sim! A segurança sanitária diz respeito à coletividade. A vacina, individualmente, não faz sentido. Se você está vacinado sozinho, não existe qualquer vantagem em relação ao controle da doença e sua circulação. A vacina é um projeto público de controle de doenças em nossa sociedade. E é por isso que, idealmente, ela é obrigatória. Pois visa à saúde da humanidade, acima de indivíduos isolados.

    É fundamental um indivíduo se vacinar, junto com os milhões que vivem próximo a ele. A vacinação, mais do que nos proteger isoladamente, faz com que os vírus não circulem. Neste sentido, quem não pode vacinar por alguma questão de saúde particular, também está protegida! E a vacinação de algumas doenças – talvez a COVID-19 se encaixe aí (ainda precisamos de alguns dados sobre isso) – precisam ser periódicas. Como a gripe, por exemplo.

    • Existe controle de doenças altamente infecciosas com documentos “teste de detecção negativo” com teste de validade

    Por que um passaporte vacinal faz sentido então?

    Há vários pontos que temos que considerar sobre o assunto. O primeiro deles é que a vacinação está avançando muito em muitos países do mundo, ainda que de forma muito desigual. O acesso à vacinação, pelo menos dentro do Brasil, está muito mais facilitado na atualidade e não tomar vacina – na maioria dos casos – está mais ligada à falta de vontade da população de tomá-las do que à falta de acesso. 

    Também é importante notar que o pouco acesso às vacinas fez com que uma nova variante surgisse, a Ômicron. Assim, se quisermos realmente voltar às nossas atividades normais, precisamos exigir a vacinação para que possamos nos proteger contra a Covid e controlar melhor o surgimento de novas variantes.

    Por fim, temos que lembrar sempre que o Brasil continua não fazendo testagem em massa da população. Seguimos ocupando um lugar irrisório no hanking mundial em relação à testagem por milhão de habitantes. Ainda que os números de internações estejam diminuindo no país, não temos como saber com exatidão como a pandemia está no país e, por isso, não temos como ter certeza quando poderemos ter um abrandamento de medidas restritivas. Exigir o passaporte vacinal, assim, vai ajudar o país no controle da pandemia já que sabemos que as vacinas dificultam que o vírus se espalhe com a mesma facilidade de antes. No entanto, é importante notar que o passaporte vacinal não deve substituir testagem em massa, essa sim a forma mais correta de levantar dados para estudar abrandamento das medidas restritivas.

    Lembrem-se: já existe passaporte para outras doenças, quando viajamos para o exterior!

    Outro ponto importante desta questão está relacionado à entrada em outros países. Não é de hoje que alguns países exigem que as pessoas estejam vacinadas para determinadas enfermidades. Um exemplo disso é o México, um país que exige que as pessoas que entrem em seu território estejam vacinadas contra febre-amarela. No entanto, é importante notar que, mesmo estando vacinados, há países que continuam não aceitando a entrada de pessoas de determinadas nacionalidades ou que tenham certos países de origem. Este é o caso dos brasileiros já totalmente vacinados contra a Covid-19. Afinal, os países temem a circulação de variantes e a morosa vacinação no Brasil está sendo fator decisivo nisso. Assim, mesmo que o governo brasileiro crie seu próprio ‘passaporte vacinal’, ele pode não ser aceito em outros países.

    Por outro lado, o passaporte entre países com as doenças sob controle – ou no caso de inexistência da doença há muitos anos (mas ainda existência de hospedeiros intermediários, como no caso da febre amarela) o passaporte adquire outro sentido: a da tentativa de manter a doença erradicada naquela localidade. Um passaporte contra a febre amarela entre fronteiras de países (como Brasil e México) faz mais sentido do que um passaporte interno entre localidades de uma cidade, no caso da COVID-19. Estamos habitando os mesmos espaços e circulamos em espaços conjuntos, antes de adentrar um território cujo acesso seja restrito. Enquanto não controlarmos a circulação do vírus com medidas não farmacológicas, além da vacina em conjunto, e mantivermos a transmissão alta na população, este passaporte tem pouca efetividade na prática.

    Finalizando

    Considerando o avanço da vacinação no país e no mundo, consideramos que o uso do passaporte vacinal é essencial. É ele que garante que a pessoa realmente tomou a vacina e, por isso, não transmite o coronavírus com a mesma facilidade que uma pessoa não vacinada. Além disso, é esse documento que vai proteger nossa população na circulação de novas variantes, como o caso da Ômicron. Por fim, é esse documento que vai proteger a população contra o negacionismo científico e contra os antivax.

    Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19, em 21/06/2021 e atualizado nesta versão em Dezembro de 2021.

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • O Spoiler como discurso

     Texto por Erica Mariosa Carneiro

    Sobre as estratégias de marketing na Divulgação Científica – Spoiler e seu uso político

    “Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?” (FOUCAULT, 1996 p.08)

    Durante o trabalho de divulgação científica sobre a COVID-19 que realizamos no Blogs de Ciência da Unicamp, por diversos momentos, me peguei refletindo sobre essas mesmas duas perguntas que Foucault faz no início de A Ordem do Discurso

    É claro que lá em 1970, época em que essa pergunta foi refletida por Foucault, a internet ainda era um projeto de conhecimento de pouquíssimos cientistas e a ideia de um mundo conectado a discursos eternizados em redes sociais não fazia parte desta discussão. Contudo, ao ler Foucault não pude deixar de relacionar esses dizeres a este momento em que lidamos com discursos ditos de forma estratégica, travestidas de acidentais e com o objetivo claro de confundir e invisibilizar toda uma população.

    Spoiler como Discurso

    “Foucault (2012) afirma que o discurso não é uma cópia exata da realidade, mas uma representação culturalmente construída, visto que o poder circula pela sociedade. A partir da desconstrução histórica de sistemas ou regimes formadores de opinião, pode-se analisar o significado e alcance de um discurso, verificando o porquê certas categorias, linhas de pensamento e argumentos tomam um caráter mais verdadeiro do que outros. Frente a este cenário, o próprio discurso acaba posicionando o sujeito, definindo seu papel diante da prática discursiva.” (DE MELLO e VALENTIM, 2021 p. 35)

    Muito antes da internet, o ato de revelar pequenas partes de uma história para atrair a atenção do público já era um recurso muito usado pelo marketing. Essas estratégias têm como objetivo aguçar a curiosidade de seu público, provocando ações que garantam o sucesso da obra (quando digo “obra” leia-se qualquer produção ou produto ou pessoa ou ideia que pretende-se divulgar), como o aumento de compras de ingresso para o lançamento de um filme, por exemplo.

    As estratégias de escape (como aprendi na minha graduação) ou como é mais conhecida hoje em dia a “estratégia de spoilerconsiste em vazar uma informação importante e reveladora de forma proposital mas com aparência de acidente à veículos de comunicação, seu objetivo principal é conseguir mais espaço na mídia do que o inicialmente contratado e, por consequência, mais visibilidade. 

    Através de uma pequena frase que “escapa” em uma entrevista, uma imagem ou frase que dá margem a especulação, o envio de um produto antes do lançamento ou até uma informação falsa já é possível conseguir a atenção da imprensa, dos veículos de comunicação especializados e de sua base de fãs.

    O exemplo Marvel

    É claro que a Marvel não foi a primeira empresa a apostar na estratégia de Spoiler como forma de divulgar seus produtos, e quando digo produtos não resumo isto aos seus filmes, mas toda a franquia Marvel, como quadrinhos, camisetas, parque de diversões, personagens e até ideias.

    É possível identificar este planejamento desde a sua fase 1 ao adotar cenas pós-créditos (isso mesmo, no plural) que antecipam informações e provoca no espectador o desejo de continuar acompanhando a história independente do custo ou tempo que isso gere. Mas não só o aumento de cenas pós créditos, a Marvel mantém toda uma maquinaria de incentivo massivo de teorias.

    Teorias, na cultura pop, se trata de produções de materiais por fãs que antecipam, apresentam fatos e discutem possíveis futuros para suas franquias favoritas. Essas produções giram em torno de textos, vídeos e comentários, mas também podem ser vistos em memes, artes, Fanfics e até filmes completos.

    E como isso funciona na prática?

    Com o incentivo financeiro que as redes sociais proporcionam aos seus usuários em troca de visibilidade (curtidas, compartilhamentos, etc) a estratégia de escape ou spoiler ganha uma nova camada, os comentários.

    Segundo (FOUCAULT, 1996 p.25) 

    “o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro. Deve, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual não escapa nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito.”

    Assim, além do aumento de tempo na cobertura da obra, a Marvel viu no comentário um upgrade na estratégia original: a de prever a satisfação do público. Basta entregar o spoiler a um grupo de influenciadores, e monitorar os comentários do público para prever se é necessário alterações no conteúdo da obra ou na estratégia escolhida para divulgação de suas produções.

    Ou seja, a estratégia de spoiler contribui não só para o retorno em visibilidade para as produções da Marvel ela também possibilita a economia em dinheiro ao oportunizar correções estratégicas a partir da reação da sua base de fãs.

    “O comentário conjura o acaso do discurso fazendo – lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado. A multiplicidade aberta, o acaso são transferidos, pelo princípio do comentário, daquilo que arriscaria de ser dito, para o número, a forma, a máscara, a circunstância da repetição. O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 1996 p.25 e 26) 

    Sendo assim, todas as escolhas da Marvel tem como objetivo a geração de comentários e a geração de conteúdos novos, as teorias. Desde, a escolha do elenco, do cenário, do comportamento do atores nas entrevistas e nas redes sociais, até a negociação com outras empresas detentora de direitos autorais, são apresentadas a imprensa, influenciadores e fãs como escape, descuido, verdade que não deveria ter sido revelada ainda.

    Assim a imprensa, influenciadores e sua base de fãs foram se acostumando a buscarem nas produções da Marvel qualquer vislumbre de uma nova informação e a partir disso gerar novos conteúdos. E apesar desses profissionais estarem cientes das estratégias utilizadas pela Marvel, ainda sim, continuam gerando conteúdo a partir do ideal de “aproveitamento” da visibilidade da Marvel para o crescimento de suas próprias plataformas digitais. (Falo mais sobre isso no O Influencer como Corpo Dócil). 

    Já para a Marvel a estratégia de spoiler serve não só para movimentar milhões de conteúdos novos e, por consequência, milhões de dólares para a empresa em vendas de seus produtos, só para se ter uma ideia em valores, em 2019 esta empresa já valia US$ 18 bilhões de dólares. Mas também para manter sua base de fãs em constante crescimento, atuante, pagante e fidelizado. Se considerarmos apenas as produções cinematográficas o uso dessa estratégia é um sucesso a 13 anos. Para saber mais sobre a história do Universo Marvel).

    Você se lembra quando – oh. Você pode não ter estado lá naquele dia.

    Oh eu não posso falar sobre isso.
    Seguindo em frente, em frente! Meu sentido de aranha estava indo, O que —- é você!

    Fonte da imagens

    Qualquer semelhança não é mera coincidência – Spoilers que testam enunciados e sua função política

    “O enunciado é, pois, concebido por Foucault como função enunciativa que define textos como acontecimentos discursivos produzidos por um sujeito, em um lugar institucional, determinado por regras sócio-históricas que definem e possibilitam a emergência dos discursos na sociedade”. (SOUSA e CUTRIM, 2016 p. 49)

    Foi em 19 abril de 2016 durante a votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff que notei, pela primeira vez, a estratégia do spoiler sendo usada como função política. 

    “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”. 

    A fala do então deputado Jair Bolsonaro e hoje presidente do Brasil exaltava o coronel Brilhante Ustra, o primeiro militar reconhecido pela Justiça brasileira como torturador durante o regime militar (1970 e 1974). Sob o comando de Ustra ao menos 50 pessoas foram assassinadas ou desapareceram e outras 500 foram torturadas, segundo a Comissão Nacional da Verdade.

    Ao pronunciar o nome de um conhecido torturador ao vivo e em rede nacional era possível vislumbrar a estratégia de escape sendo aplicada, ao monitorar a reação pública sobre sua fala em um momento tão perturbador para o país, percebeu-se até que ponto a população brasileira (através das redes sociais) e a imprensa era sensível às questões comuns à extrema direita que apoiou massivamente o regime militar e posteriormente a candidatura de Jair Bolsonaro a presidente em 2018. Consequentemente, essa estratégia tornou-se um poderoso instrumento durante seu mandato como presidente da república.

    Conforme a pandemia da Covid-19 avançava a estratégia de escape tornou-se tão comum que o próprio presidente a anuncia:

    “Olha a matéria para a imprensa amanhã, vou dar matéria para vocês aqui. Acabei de conversar com um tal de Queiroga, não sei se vocês sabem quem é. Nosso ministro da Saúde. Ele vai ultimar um parecer visando a desobrigar o uso de máscara por parte daqueles que estejam vacinados ou que já foram contaminados para tirar este símbolo que, obviamente, tem a sua utilidade para quem está infectado”.

    Fala foi proferida pelo presidente durante um evento oficial do governo federal em 10/06/2021

    Falo mais sobre isso no Comunicação comandada e a exaustão de quem debate 

    Através de falas que vão contra a prevenção da contaminação da Covid-19, o presidente testa seu discurso junto aos seus apoiadores, monitorando seu prestígio e aceitação, ao mesmo tempo que provoca a reação exacerbada da imprensa e influenciadores contrários ao seu governo.

    A cada  “Está superdimensionado o poder destruidor desse vírus”, “Para 90% da população, isso vai ser uma gripezinha ou nada”, “Se você virar um jacaré, é problema seu.” que o presidente vaza na mídia, uma avalanche de postagens, reportagens, entradas ao vivo, tweets são feitos na intenção de desfazer os desentendimentos (leia-se infectados e mortes) que estas falas causam.

    Imagem – Publicação do jornal Estado de Minas que destaca a reação do presidente diante do número de vítimas do novo coronavírus no Brasil esteve entre os assuntos mais comentados do Twitter no Brasil – 29/04/2020

    “O presidente da república nos deu uma aula sobre como a comunicação, ao longo de toda a sua gestão, vem sendo absolutamente eficiente e tem pautado uma corrida desesperada de cientistas, jornalistas e divulgadores da ciência em redes sociais e veículos de comunicação.” (ARNT e CARNEIRO, 2021 p.01)

    Assim como prevê a estratégia de spoiler as falas do presidente não são levianas, mas pensadas estrategicamente para serem ditas em momentos e para veículos de comunicação que possam reverberara-las de forma exaustiva e para além dos “furos de reportagem” as falas contam com o funcionamento das redes sociais que premiam a visibilidade de influenciadores.

    Através de infinitos comentários, a internet garante que o discurso chegue a mais e mais pessoas, e por consequência, garanta que a obra esteja sempre em evidência. Resta saber até quando os influenciadores e a imprensa continuará dando palco para esse tipo de estratégia.

    Referências

    ARNT , Ana de Medeiros; CARNEIRO, Erica Mariosa Moreira. Comunicação comandada e a exaustão de quem debate. 1. ed. Campinas-SP, 11 jun. 2021. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/covid-19/comunicacao-comandada/. Acesso em: 4 set. 2021.

    FOUCAULT, Michel. Ordem do discurso (A). Edições Loyola, 1996.

    DE MELLO, Mariana Rodrigues Gomes; VALENTIM, Marta Lígia Pomim. Análise do discurso. Logeion: Filosofia da Informação, v. 7, n. 2, p. 35, 2021.

    SOUSA, Claudemir; CUTRIM, Ilza Galvão. Práticas discursivas e função enunciativa na constituição do sujeito quilombola. MOARA–Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras ISSN: 0104-0944, v. 2, n. 40, p. 49, 2016.

  • Por dentro da variante Ômicron

    O mundo todo aguarda ansioso enquanto pesquisadores trabalham arduamente em seus laboratórios. Tudo isso na tentativa de descobrir mais informações sobre a nova variante do SARS-CoV-2 que vem criando dúvidas e pânico nas populações: a variante Ômicron. Por causa disso, nós, do Blogs Unicamp, decidimos fazer um apanhado geral do que se sabe até o momento sobre essa variante. Nosso objetivo hoje é mostrar que, apesar de toda a preocupação, talvez não seja o fim do mundo. Muito menos a volta à estaca zero que muitos alegam. Ou seja, estamos aqui defendendo o “menos alarmismo, mais compreensão do problema”

    Onde surgiu essa variante?

    As coisas aqui podem parecer um pouco confusas. Mas é importante deixar uma coisa bem clara! Vamos lá: o lugar onde uma variante é detectada pela PRIMEIRA vez, não necessariamente é o lugar onde essa variante surgiu. Por exemplo, em uma situação imaginária:

    “Vamos pegar a variante Gama, que apareceu em Manaus. Ela poderia ter sido detectada pela primeira vez em outro país, digamos, em Portugal, a partir de uma pessoa que viajou de Manaus para lá. Apesar dela ter sido detectada em Portugal, ela não teria SURGIDO lá. Ela somente foi vista primeiro em Portugal. Pois um viajante de Manaus teria demonstrado sintomas de COVID-19, testado positivo no teste de diagnóstico por RT-qPCR. Posteriormente, teria o genoma do vírus que estava no seu corpo sequenciado. Em suma, a variante teria sido DETECTADA em Portugal, mas a primeira pessoa com ela (o chamado primeiro paciente ou paciente zero) seria do Brasil.”

    Perceba que para uma variante ser detectada são necessárias duas etapas. Aliás, etapas que temos defendido desde o início da pandemia, aqui no Blogs: Testagem Diagnóstica e Sequenciamento Genômico. Estes dois passos são fundamentais para sabermos não apenas a quantidade de casos, mas as mutações do vírus e, também, possíveis variantes importantes.

    Agora vamos separar esses momentos para a variante Omicron:

    • 11 de novembro de 2021. O genoma do primeiro caso da variante Omicron é sequenciado, a partir de um paciente em Botsuana, um país do sul da África. 
      • Nos dias que se seguem, são sequenciados outros genomas. São eles: um caso em Hong Kong, a partir de um paciente que tinha vindo da África do Sul.
      • Ao mesmo tempo, alguns casos começam a aparecer na África do Sul, na região de Gauteng. Esta é a região com maior fluxo de viajantes nacionais e internacionais do país (correspondente a São Paulo, aqui no Brasil).
      • Até esse momento, pouca ou nenhuma atenção era dada a essa variante do SARS-CoV-2.
    • 24 de novembro de 2021. Pesquisadores da África do Sul notam que essa variante tinha um nível de mutação altíssimo na proteína Spike e no resto do vírus todo. Assim, neste momento, começam a se mobilizar para entender melhor ela.
    • 26 de novembro de 2021. Após ter sido notificada pelos pesquisadores da África do Sul, a OMS anuncia uma nova variante, chamada Ômicron, como uma VOC (ou Variante de Preocupação).
    • 29 de novembro de 2021. variante Ômicron já é detectada em vários países da Europa, além de Israel e Canadá.

    Por que todo o alarde quanto à essa nova variante?

    Muito do espanto, medo e perguntas sobre a variante Ômicron gira ao redor do grande número de mutações que ela possui. Para fins de comparação, podemos entender essas mutações como pequenas diferenças que essa variante possui quando comparada com o vírus original, lá do começo da pandemia, no surto de Wuhan na China. 

    Essas diferenças podem ser tanto benéficas quanto maléficas para o vírus. Isto é, podem apresentar uma vantagem (como uma maior transmissibilidade, letalidade ou capacidade de fugir do nosso sistema imune – a chamada Evasão Imune), ou uma desvantagem (nas mesmas características que mencionamos anteriormente). Ao todo, a variante Ômicron possui um pouco mais de 50 mutações. Ou seja, esse vírus possui 50 diferenças do SARS-CoV-2 original. De todas essas mutações, 32 delas são na proteína Spike e acredite, caro leitor(a), quando dizemos que isso é muito. Para uma nova comparação, a variante Delta (que atualmente é a variante dominante no mundo) possui 16 mutações na sua Spike

    A princípio, imaginou-se que pelo grande número de mutações, os testes de diagnóstico por RT-qPCR não conseguiriam detectar essa variante. Mas já sabemos que isso não é mais um problema: pesquisadores já viram que os testes de RT-qPCR conseguem detectar essa nova variante normalmente.

    Dessas 32 mutações na sua proteína Spike, algumas são bem raras. Enquanto outras já são conhecidas por estarem presentes também em outras variantes, como a Alfa, Beta, Gama e Delta. A preocupação aqui é porque algumas dessas mutações já conhecidas estão relacionadas a uma maior transmissibilidade e um possível escape imunológico. Entretanto, aqui deixamos bem claro: ainda NÃO HÁ INFORMAÇÕES e dados confiáveis mostrando que a variante Ômicron seja realmente mais transmissível. Tampouco que escape da proteção gerada pelas vacinas. 

    Enquanto cientistas correm nos laboratórios para tentar responder essas perguntas, outros pesquisadores olham para análises computacionais e suspeitam que caso haja um escape imunológico por parte dessa variante, ele seja similar ao que vimos para a variante Beta e Delta (uma redução na proteção, mas não completamente!). Dessa forma, as vacinas ainda continuariam protegendo as pessoas. Ao mesmo tempo, outros pesquisadores desconfiam que, pelo alto número de mutações, talvez essa variante não consiga se transmitir tão bem quanto outras (a chamada baixa estabilidade).

    Como se tudo isso não bastasse…

    Recentemente também descobriram que há uma segunda forma (uma variante) da própria variante Ômicron (assim como também aconteceu com a variante de Manaus) que, entre outras coisas, não possui alguns genes que são utilizados pelos testes de RT-qPCR para identificar o vírus e as variantes. Mas o que isso significa?

    Bem, a princípio isso quer dizer que os testes de RT-qPCR continuam detectando o vírus SARS-CoV-2 em uma pessoa, então não precisa entrar em pânico. Se, por um acaso, você ou algum(a) conhecido(a) venha pegar essa variante, ele ou ela ainda poderá ser diagnosticado(a). O problema é que, com as outras variantes, esse mesmo teste era capaz de dar uma ideia preliminar de qual “tipo” esse vírus poderia ser. Em outras palavras, o teste diria se a pessoa está com o vírus ou não, e qual variante ele seria. Agora para a variante Ômicron, o que se viu até o momento foi que os testes de RT-qPCR conseguem sim identificar se a pessoa tem esse vírus ou não no corpo, mas não conseguem dizer se ele é da variante Ômicron.

    Novamente, para ficar bem claro: até o momento não há quaisquer informações concretas que mostrem uma maior transmissibilidade, infecciosidade e escape imunológico das variantes Ômicron.

    Ok, já sabemos onde essa variante surgiu e porquê todos estão espantados como ela. E com isso, aparece outra dúvida: como ela surgiu?

    Essa é uma das principais perguntas que os cientistas têm feito. Atualmente, a comunidade científica tem proposto três ideias para responder essa questão. Algumas dessas hipóteses foram pensadas a partir de análises feitas para se ver a “árvore genealógica” desse vírus. Essa árvore genealógica mostrou que, aparentemente, a variante Ômicron não “nasceu” a partir de outras variantes, mas sim que ela teria sua origem lá atrás, no começo da pandemia. Mas para entender isso melhor, vamos olhar as ideias que os cientistas têm proposto para responder a pergunta de como ela teria surgido:

    A Variante apareceu “naturalmente.

    A variante teria nascido “naturalmente” dentro de uma população com baixa vigilância epidemiológica, em outras palavras, uma população que estava fazendo poucos testes de diagnóstico e poucos sequenciamentos de genomas virais. Dessa forma, a Ômicron teria ficado meses “escondida” nessa população, que muito provavelmente seria de um lugar afastado de grandes centros, o que poderia explicar o grande acúmulo de mutações e ser oriunda de um vírus mais “antigo”. Entretanto, muitos pesquisadores argumentam que seria impossível uma variante desse nível ter ficado escondida por tanto tempo, visto que atualmente tem se sequenciado muitos genomas de SARS-CoV-2.

    Spillover

    A segunda ideia de surgimento seria a partir do chamado Spillover (pode ver esse texto aqui para entender melhor esse processo). Isto é, um vírus SARS-CoV-2 ter passado de um humano para um animal, nesse animal o vírus teria acumulado mutações e então, depois de um tempo, teria voltado para o ser humano como a variante Ômicron. 

    Um dos motivos que levam os cientistas a considerar essa hipótese é a presença de algumas mutações na proteína Spike da Ômicron que já foram vistas em outras variantes. Sabe-se que essas mutações que aumentam o número e tipos de hospedeiros do vírus, tornam a variante capaz de infectar outras espécies de animais, como por exemplo roedores.

    Infecções Crônicas

    A hipótese mais aceita até o momento é que a variante teria aparecido a partir de infecções muito longas (as chamadas infecções crônicas) de COVID-19, provavelmente em um paciente imunocomprometido, isso é, um paciente em que o sistema imune está debilitado, por exemplo, pacientes com AIDS ou sob tratamento de câncer. A ideia por trás dessa hipótese é o vírus ter ficado se replicando várias vezes nessa pessoa, por muito tempo, acumulando mutações, sem que o sistema imune dela conseguisse combatê-lo eficientemente.

    Entretanto, a boa notícia por trás disso seria que todo esse acúmulo de mutações para conseguir sobreviver em uma pessoa por tanto tempo, também viria com um custo para o vírus: uma menor capacidade de se transmitir de pessoa para pessoa. Mas, ainda não temos informações claras sobre essa possibilidade.

    É pensando nessa possibilidade para o surgimento de variantes, que mais uma vez vemos porque a vacinação é tão importante no combate à pandemia. Além de reduzir o risco de infecção grave e severa, já foi visto que pessoas vacinadas conseguem combater o vírus mais rápido, impedindo que ela fique se multiplicando no corpo por um maior período de tempo, o que diminui as possibilidades dele acumular mutações como as que foram visto nas variantes Alfa, Beta, Gama, Delta e Ômicron. 

    Finalmente, qual é a situação atual do mundo e do Brasil com essa variante?

    Atualmente, detectaram a variante Ômicron em mais de 50 países ao redor de todo o mundo. Entretanto, até onde se sabe, as pessoas infectadas na maioria desses países eram viajantes que tinham vindo de outro lugar. Até o momento são poucos os países que tiveram a chamada Transmissão Comunitária, isso é, uma pessoa que tem um caso de COVID-19 causado pela variante Ômicron, mas que não se sabe quem pode ter passado o vírus para essa pessoa (em outras palavras, não é possível fazer o rastreio do vírus). 

    No Brasil, até o momento em que escrevo esse texto (às 13:20 do dia 7 de Dezembro de 2021), confirmaram-se 6 casos. Um número baixo, mas que foram suficientes para cancelarem muitas feitas do Réveillon por todo o território nacional (algo que já falávamos que não deveria acontecer com grandes multidões e aglomerações). Entretanto, alguns cientistas estão propondo que há mais casos do que parecem no Brasil, simplesmente por termos uma alta taxa de subnotificações e um baixo número de testes de diagnóstico e sequenciamento (a vigilância epidemiológica que comentei no início). 

    Por fim, termino esse texto lembrando que a vacinação de toda a população de um país pode sim ajudar a combater a pandemia de COVID-19. Mas somente isso não vai resolver o problema. Enquanto 80% de todas as doses de vacinas estiverem concentradas em 20 países do mundo, sendo que muitos desses países estagnaram em 60% ou 70% da cobertura vacinal de sua população (o que não é suficiente para resolver o problema), ainda veremos muitas variantes surgindo através do globo, principalmente em países com coberturas vacinais baixas (como muitos da África). 

    PARA SABER MAIS:

    Mellanie Fontes-Dutra Vamos falar da B.1.1.529

    Mellanie Fontes-Dutra O que sabemos da #Ômicron até o momento?

    Andrews, L (2021) New Botswana variant with 32 ‘horrific’ mutations is the most evolved Covid strain EVER and could be ‘worse than Delta’ — as expert says it may have emerged in an HIV patient MailOnline 

    Agencia Brasil (2021) Descoberta nova variante do coronavírus com grande número de mutações 

    Corum, J; Zimmer, C (2021) Tracking Omicron and Other Coronavirus Variants, New York Times.

    Cardim, ME (2021) Terceiro caso da variante ômicron é identificado no Brasil, Correio Braziliense

    Kupferschmidt, K (2021) Where did ‘weird’ Omicron come from? Science

    Couzin-Frankel, J (2021) A cancer survivor had the longest documented COVID-19 infection. Here’s what scientists learned, Science.

    Chotiner, I (2021) How South African Researchers Identified the Omicron Variant of COVID, The New Yorker.

    Petersen, E, Ntoumi, F, Hui, DS, Abubakar, A, Kramer, LD, Obiero, C, … & Zumla, A (2021) Emergence of new SARS-CoV-2 Variant of Concern Omicron (B. 1.1. 529)-highlights Africa’s research capabilities, but exposes major knowledge gaps, inequities of vaccine distribution, inadequacies in global COVID-19 response and control efforts, International Journal of Infectious Diseases.

    Karim, SSA, & Karim, QA (2021) Omicron SARS-CoV-2 variant: a new chapter in the COVID-19 pandemic, The Lancet

    Viggiano, G (2021) Por que há desigualdade de vacinas no mundo e o que isso tem a ver com a Ômicron, CNN

    G1 (2021) OMS diz que variante ômicron representa risco alto para o mundo, G1

    Costa, AG (2021) Ômicron: o que dizem autoridades de países onde a nova variante já chegou, CNN

    Ansede, M (2021) Ômicron: assim é o coronavírus ‘Frankenstein’ que assusta o planeta, El País Brasil.

    The Guardian (2021) Scientists find ‘stealth’ version of Omicron that may be harder to track, The Guardian

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial COVID-19
    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Como o vírus SARS-CoV-2 chega no cérebro?

    Texto escrito por Gabriela Vieira

    Depois de quase dois anos do início da pandemia causada pelo novo coronavírus, muitas dúvidas ainda restam sobre como este vírus age nas células do corpo humano. A comunidade científica tem avançado nas pesquisas sobre esta nova doença com uma rapidez nunca vista antes. Atualmente, diversas vacinas estão disponíveis, a sociedade está sendo imunizada e começamos a ver uma diminuição significativa de óbitos – embora ainda existam casos de infecção aumentando no mundo.

    Embora o SARS-CoV-2 seja um vírus que ataca predominantemente o sistema respiratório, hoje em dia nós já sabemos, por exemplo, que o vírus afeta outros órgãos e sistemas também. Já foi relatada a infecção de outros sistemas, como o sistema gastrointestinal e fortes evidências apontam que o vírus também infecta o sistema nervoso central (SNC). Porém, ainda há muito o que descobrir sobre a COVID-19 como, por exemplo, os danos que o vírus causa em outros órgãos e quais são as consequências e sequelas a longo prazo.

    Como nossa compreensão da doença muda conforme as evidências se fazem rotina

    No início na pandemia, os esforços dos médicos e cientistas estavam voltados para os sintomas respiratórios dos pacientes. Atualmente, muitas evidências mostram que pacientes com COVID-19 também apresentam efeitos neurológicos preocupantes como acidente vascular cerebral, hemorragia cerebral, perda de memória, dores de cabeça, perda de olfato e paladar, confusão mental e convulsão.

    Apesar de alguns estudos indicarem que o vírus pode infectar células do sistema nervoso, ainda não sabemos precisamente como o vírus chega nestas células. Já falamos aqui sobre como um vírus que ataca principalmente o sistema respiratório pode causar danos no cérebro. Atualmente, os pesquisadores avançaram um pouco neste entendimento e vamos explicar o que eles descobriram.

    Vamos entender melhor…

    Alguns estudos sugerem que o vírus pode entrar pelo nervo olfatório, o que já era uma das suspeitas iniciais quando descobriram que o vírus infecta o SNC. Isto porque um dos sintomas da COVID-19 é a perda de olfato e paladar (também conhecidas em seus termos técnicos como anosmia e ageusia, respectivamente). No entanto, estas evidências ainda seguem bem controversas. A possibilidade de o vírus SARS-CoV-2 atravessar a barreira hematoencefálica tem ganhado força com alguns trabalhos que mostraram algumas evidências de que isso ocorre. Estas pesquisas vem utilizando, principalmente, modelos in vitro (linhagens celulares) e in vivo (camundongos e hamsters) de infecção com o SARS-CoV-2. 

    Mas o que é a barreira hematoencefálica?

    A barreira hematoencefálica é uma estrutura que serve como um filtro muito eficiente do SNC. Ou seja, ela impede ou dificulta a passagem de substâncias nocivas do sangue para o tecido nervoso. Por outro lado, permite a entrada de substâncias importantes como nutrientes, hormônios e gases. Esta membrana seletivamente permeável, restringe a entrada de substâncias tóxicas e patógenos, incluindo bactérias e vírus. Entretanto, muitas vezes medicamentos que teriam de agir no sistema nervoso também são impedidos de atravessar a barreira hematoencefálica. 

    Esta estrutura reveste os vasos sanguíneos do sistema nervoso central e é formada por 3 tipos de células: células endoteliais, pericitos e astrócitos. As células endoteliais revestem os capilares cerebrais e ficam muito próximas umas das outras, formando as “junções compactas” que atuam na seletividade das substâncias. Os astrócitos, que são células da glia em formato de estrela e os pericitos, que são células de origem mesenquimal que envolvem o endotélio dos capilares cerebrais, se comunicam com as células endoteliais e auxiliam na seletividade da barreira, atuando na regulação do tônus vascular e do fluxo sanguíneo capilar.

    Difícil, né? Vários nomes…

    O que importa é compreender que esta estrutura funciona como uma barreira que seleciona o que entra e o que sai de nosso cérebro! Veja a figura abaixo:

    A imagem mostra uma representaçaõ do cérebro, com destaque ressaltando um pedaço entre os vasos sanguíneos (com partículas do próprio sangue, oxigênio e outros gases, bactérias, anticorpos e outros compostos químicos) e a barreira hematoencefálica, que funciona como "Filtro Supereficiente: a barreira hematoencefálica é uma estrutura especial que reveste os vasos asnguíneos no sistema nervoso central. Formada por três tipos de células (células endoteliais, pericitos e astrócitos), ela permite que apenas alguns compostos cheguem ao cérebro. Trocas de informações entre os astrócitos da barreira e os neurônios a tornam mais restritiva ou mais permeável"
    Imagem retirada da Revista FAPESP: https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2017/06/054-055_barreira_256.jpg

    O que acontece se a barreira hematoencefálica for danificada?

    Várias doenças e infecções com bactérias e vírus são capazes de causar danos na barreira hematoencefálica. Estes danos podem aumentar a permeabilidade desta membrana. Isto é, provoca uma maior entrada de patógenos, toxinas e outras substâncias indesejadas. Esta maior permeabilidade induz uma resposta inflamatória cerebral, que pode resultar em danos neurológicos e agravamento de doenças do sistema nervoso central.

    E como o SARS-CoV-2 atravessa essa barreira?

    Neste artigo publicado em maio deste ano, os cientistas investigaram se o SARS-CoV-2 é capaz de atravessar a barreira hematoencefálica de modelos animais para infecção com SARS-CoV-2 e como este processo ocorre. Para isso, utilizaram camundongos e hamsters infectados com o vírus SARS-CoV-2, além de um modelo in vitro que mimetizou a barreira hematoencefálica com células provenientes dos animais.

    Os cientistas mostraram que o SARS-CoV-2 foi capaz de invadir o cérebro dos animais, infectando e se replicando nas células endoteliais da barreira hematoencefálica. Dessa forma, esta infecção das células endoteliais fez com que aumentasse a permeabilidade vascular cerebral. Ou seja, o “filtro” entre os vasos sanguíneos e o cérebro se tornou menos seletivo e deixou passar mais substâncias para o sistema nervoso central. Todavia, como exatamente o vírus SARS-CoV-2 consegue fazer esta invasão ainda é controverso entre os cientistas.

    O estudo mostrado aqui, evidenciou que a invasão pode ocorrer devido ao aumento de uma proteína chamada MMP9. Esta proteína é responsável pela degradação da matriz extracelular (o espaço entre as células). No caso da MMP9, ocorreu a degradação de colágeno, um dos principais componentes da matriz extracelular. E isto permite que o vírus cruzasse a barreira hematoencefálica.

    A infecção do SNC levou a vários danos cerebrais nos animais, causando morte celular (apoptose) de algumas células e outros danos em células vasculares do SNC. Além disso, os pesquisadores mostraram que a invasão do vírus no SNC dos animais também desencadeou uma resposta inflamatória cerebral, ativando células específicas do sistema nervoso responsáveis pela sua resposta imunológica.

    Com isso, os autores deste artigo concluíram que o SARS-CoV-2 pode atravessar a barreira hematoencefálica infectando células que fazem parte desta estrutura, o que pode levar a danos neuronais e a indução da resposta inflamatória.

    Figura do artigo demonstrando um possível mecanismo pelo qual o vírus SARS-CoV-2 atravessa a barreira hematoencefálica. Durante a infecção, o SARS-CoV-2 pode infectar as células endoteliais e cruzar a barreira hematoencefálica por meio da degradação de colágeno causado pela proteína MMP9. Os neurônios ficam então, relativamente vulneráveis à infecção por SARS-CoV-2, levando á danos neuronais e uma resposta inflamatória cerebral, aumentando o dano na barreira hematoencefálica e a lesão neuronal.

    E agora? Quais são os próximos passos?

    O entendimento de como o vírus SARS-CoV-2 infecta o SNC pode ajudar os pesquisadores a entenderem as manifestações neurológicas não respiratórias da COVID-19. No entanto, muitas incógnitas ainda permeiam o entendimento sobre o trajeto que o vírus faz no sistema nervoso central. Por exemplo: como ele atua nestas células, com que frequência isso ocorre e, principalmente, quais as consequências disso. Assim, estes estudos também são muito importantes na busca do tratamento desses pacientes a curto e longo prazo. Visto que muitas das consequências a longo prazo parecem ter relação não só com o sistema respiratório, mas também com o sistema nervoso central.

    A COVID-19 está conosco há 2 anos. Mas ainda há muito o que compreender sobre a doença, o vírus e o que acontece em nosso corpo nas infecções! E é pela ciência – e no investimento na ciência – que conseguiremos isso! Apoie a ciência brasileira, para fazermos parte deste combate à pandemia!

    Para saber mais

    Butowt, R, Meunier, N, Bryche, B & von Bartheld, CS (2021) The olfactory nerve is not a likely route to brain infection in COVID-19: a critical review of data from humans and animal models, Acta Neuropathol 141, 809–822.

    Meinhardt, J et al (2021) Olfactory transmucosal SARS-CoV-2 invasion as a port of central nervous system entry in individuals with COVID-19, Nat Neurosci 24, 168–175. 

    Goyal, P, Choi, JJ, Pinheiro, LC, Schenck, EJ, Chen, R, Jabri, A, Satlin, MJ, Campion, TR, Jr, Nahid, M, Ringel, JB, et al (2020) Clinical Characteristics of Covid-19 in New York City N Engl J Med 382, 2372–2374 (2020).

    Buzhdygan, TP et al (2020) The SARS-CoV-2 spike protein alters barrier function in 2D static and 3D microfluidic in-vitro models of the human blood-brain barrier, Neurobiol Dis 146, 105131.

    Pellegrini, L et al (2020) SARS-CoV-2 infects the brain choroid plexus and disrupts the blood-CSF barrier in human brain organoids Cell Stem Cell 27, 951–961 e955.

    Reynolds, JL & Mahajan, SD (2021) SARS-COV2 alters blood brain barrier integrity contributing to neuro-inflammation. J NeuroImmune Pharmacol 16, 4–6.

    Rhea, E M et al (2021) The S1 protein of SARS-CoV-2 crosses the blood-brain barrier in mice, Nat Neurosci, 24, 368–378.

    Song, E et al (2021) Neuroinvasion of SARS-CoV-2 in human and mouse brain, J Exp Med 218, 3.

    Zhang, L. et al (2021) SARS-CoV-2 crosses the blood-brain barrier accompanied with basement membrane disruption without tight junctions alteration, Signal Transduct Target Ther 6(1):337.

    A Autora

    Gabriela Maciel Vieira possui graduação em Biologia (2013), mestrado (2014-2016) e doutorado (2016-2021) em Ciências (com ênfase em Genética) pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, com período sanduíche na Kansas University Medical Center, EUA (2019). Atuou na pesquisa em oncologia, biologia celular e molecular e atualmente é pós-doutoranda do Laboratório de Neuroproteômica (Unicamp) estudando as bases moleculares do SARS-CoV-2 no sistema nervoso central.

    Este texto foi escrito originalmente para o blog EMRC

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Como doenças de transmissão aérea como a COVID se espalham?

    Você sabe o que são aerossóis, fômites, gotículas e o que isto tem a ver com a COVID-19?

    Homem branco ruivo de óculos e barba, virado de perfil na área esquerda da imagem. Ele está espirrando e as gotículas do espirro aparecem em contraste com o fundo preto da imagem
    Uma pessoa espirrando com gotículas produzidas em evidência. Fonte: Public Health Image Library – Center for Disease Control and Prevention

     A pandemia ainda não acabou. Estamos cada vez mais perto do fim, visto que agora temos vacinas que estão sendo aplicadas na população. Mas isto não significa que possamos baixar nossa guarda! Dessa forma, continuar os cuidados de prevenção é fundamental para conter a doença. Como aprendemos melhor o comportamento do vírus e os mecanismos de transmissão, estamos preparados para combatê-la de forma eficiente! Veja o que sabemos sobre o espalhamento do coronavírus e o que podemos fazer para diminuir as chances de contágio!

    O Sars-CoV-2, vírus responsável pela Covid é transmitido por via aérea e em geral existem três tipos de fontes de contaminação: fômites, gotículas e aerossóis

    Fômites

    São superfícies contaminadas que podem levar a doença ao nosso corpo através de contato com olhos, boca e nariz. No caso do coronavírus, são fontes secundárias de contaminação, sendo menos relevantes. Uma forma eficaz de combater vírus nos fômites é usar sabão e água pois inativa o vírus ao dissolver sua camada protéica.

    Gotículas

    São pequenas porções de líquido, geralmente esféricas e com tamanhos maiores que 20 µm. Podem carregar os vírus a curtas distâncias, visto que a gravidade as leva ao chão rapidamente. Assim, a forma mais eficaz de evitar gotículas é o distanciamento social superior a 2 metros.

    Aerossóis

    São porções de sólidos ou líquidos suspensos no ar, em geral têm tamanho inferior a 10 µm. Permanecem longos tempos em suspensão no ar, pois seu pequeno tamanho permite espalhamento por difusão. Consequentemente, pode levar o vírus de uma pessoa infectada por longas distâncias. Podemos diminuir os riscos ao aumentar a ventilação dos ambientes, pois isto faz com que os aerossóis se dispersem mais rapidamente.

    Mas não é tão simples assim…

    Estas são classificações da comunidade médica, porém para a Física, aerossóis englobam as gotículas, pois estas também estão em suspensão no ar. A formação de aerossóis acontece quando fornecemos energia para um corpo, o quebrando em pequenos pedaços e os arremessando no ar. Assim, no caso de aerossóis respiratórios, quando respiramos, falamos ou espirramos.

    Aerossóis respiratórios são polidispersos, isto é, têm uma grande variedade de tamanhos em suas partículas. Normalmente a variação é entre 1 µm e alguns décimos de milímetros.

    Assim suas partículas não apresentam comportamento único.

    Veja esta simulação de um espirro usando dinâmica de fluídos computacional:
    Simulação computacional de um espirro e como ele se espalha em distância, com o tempo. Fonte:  Busco, Giacomo, et al. "Sneezing and asymptomatic virus transmission." Physics of Fluids 32.7 (2020): 073309.
    Simulação computacional de um espirro. Fonte:  Busco, Giacomo, et al. “Sneezing and asymptomatic virus transmission.” Physics of Fluids 32.7 (2020): 073309.

    Estes comportamentos são ditados pelo tamanho da partícula. Partículas com tamanho superior a 100 µm sofrem baixa interação com outras partículas no ar. Assim, a principal influência é a gravidade e o movimento é próximo ao de um lançamento oblíquo. Isto é, aquele que vemos na escola quando descrevemos a trajetória de uma bala de canhão. Em média, caem no chão em segundos e não se afastam mais de 2 metros da fonte.

    Gráfico mostrando a trajetória de diferentes lançamentos oblíquos para diferentes ângulos iniciais.
    Gráfico mostrando a trajetória de diferentes lançamentos oblíquos para diferentes ângulos iniciais.

    Para partículas com tamanho próximo a 10 µm, a gravidade ainda é um efeito importante, mas estas também colidem com moléculas no ar de forma considerável aumentando seu tempo de voo. Assim, estas partículas ficam suspensas cerca de 10 minutos e podem percorrer distâncias maiores.

    Já as partículas pequenas, menores que 1 µm, têm uma influência muito maior da colisão com as moléculas no ar de forma a realizar um movimento praticamente aleatório. Dessa forma, elas podem viajar devido a este movimento de difusão por longas distâncias, sendo altamente influenciados pelo fluxo de ar no ambiente. Com isto podem ficar longuíssimos períodos em suspensão, até mesmo por cerca de 12 horas!

    Tamanho (µm)Tempo de voo
    > 100~1 segundo
    10~10 minutos
    < 1até 12 horas
    Fonte: How COVID-19 Spreads – METPHAST Program
    Assim percebemos que o maior risco é estar próximo a uma pessoa infectada durante o espirro.
        Partículas em um aerossol respiratório logo após um espirro. A pessoa B recebe diretamente um jato do aerossol tendo grande possibilidade de contágio. A pessoa C não recebe o aerossol. Fonte: COMMENTARY: Ebola virus transmission via contact and aerosol — a new paradigm. Rachael M Jones, PhD, and Lisa M Brosseau, ScD
        Partículas em um aerossol respiratório logo após um espirro. A pessoa B recebe diretamente um jato do aerossol tendo grande possibilidade de contágio. A pessoa C não recebe o aerossol. Fonte: COMMENTARY: Ebola virus transmission via contact and aerosol — a new paradigm. Rachael M Jones, PhD, and Lisa M Brosseau, ScD 

    E os aerossóis?

    Após um tempo, o aerossol começa a se dispersar. Partículas maiores caem e menores se afastam da fonte. A pessoa B ainda tem chances de contágio, mas a pessoa C está relativamente segura. Fonte: COMMENTARY: Ebola virus transmission via contact and aerosol — a new paradigm. Rachael M Jones, PhD, and Lisa M Brosseau, ScD
    Após um tempo, o aerossol começa a se dispersar. Partículas maiores caem e menores se afastam da fonte. A pessoa B ainda tem chances de contágio, mas a pessoa C está relativamente segura. Fonte: COMMENTARY: Ebola virus transmission via contact and aerosol — a new paradigm. Rachael M Jones, PhD, and Lisa M Brosseau, ScD 

    Aerossóis, distância e ambientes fechados…

    Em um terceiro período, a maioria das partículas já está no chão, porém as menores continuam em suspensão e agora contaminam distâncias maiores. Tanto a pessoa B, quanto a C tem perigo de contágio, Por isto, em ambientes fechados, mesmo com distanciamento, o uso de respiradores PFF2 são essenciais. Ventilação dos ambientes ajuda a mitigar este efeito sendo uma boa prática sanitária. Fonte: COMMENTARY: Ebola virus transmission via contact and aerosol — a new paradigm. Rachael M Jones, PhD, and Lisa M Brosseau, ScD
    Em um terceiro período, a maioria das partículas já está no chão, porém as menores continuam em suspensão e agora contaminam distâncias maiores. Tanto a pessoa B, quanto a C tem perigo de contágio, Por isto, em ambientes fechados, mesmo com distanciamento, o uso de respiradores PFF2 são essenciais. Ventilação dos ambientes ajuda a mitigar este efeito sendo uma boa prática sanitária. Fonte: COMMENTARY: Ebola virus transmission via contact and aerosol — a new paradigm. Rachael M Jones, PhD, and Lisa M Brosseau, ScD 

    Outro aspecto importante em relação ao tamanho das partículas é que estas ditam em que parte do sistema respiratório estas gotículas chegaram, podendo ter influência na gravidade da infecção.

    Porcentagem das partículas depositadas por região. As três áreas destacadas são: região da cabeça, região traqueobrônquica e região alveolar. Fonte: COMMENTARY: Ebola virus transmission via contact and aerosol — a new paradigm. Rachael M Jones, PhD, and Lisa M Brosseau, ScD
    Porcentagem das partículas depositadas por região. As três áreas destacadas são: região da cabeça, região traqueobrônquica e região alveolar. Fonte: COMMENTARY: Ebola virus transmission via contact and aerosol — a new paradigm. Rachael M Jones, PhD, and Lisa M Brosseau, ScD 

    Outro detalhe importante, apesar de as fômites serem fonte de contágio secundárias, devemos ter cuidado ao manusear material contaminado. Por quê?

    Para não gerar novos aerossóis!!!

    Por exemplo, um artigo (Aerodynamic analysis of SARS-CoV-2 in two Wuhan hospitals) identificou que em hospitais, além das áreas de internação e banheiro dos pacientes, um lugar com maior concentração do vírus no ar eram as salas para troca de roupas dos profissionais de saúde, que pode ter sido gerados devido ao manuseamento dos equipamentos de proteção que acumularam vírus durante o expediente dos médicos e enfermeiros.

    Vamos continuar mantendo esses cuidados básicos para garantir a segurança de todos e controlar a pandemia, somente assim poderemos começar o retorno de atividades presenciais sem novos picos da pandemia, que podem levar até mesmo a novas variantes do vírus que sejam mais resistentes às vacinas atuais.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os produziram-se textos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, os textos passaram por revisão revisado por pares da mesma área técnica-científica na Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

plugins premium WordPress