A Unicamp vem realizando trabalhos dedicados à Covid-19 desde 20 de março, através da Força Tarefa. Iniciamos nossos trabalhos, principalmente no Instituto de Biologia, com uma rede de pesquisadores para propor uma agilidade em diagnósticos, que seriam necessários conforme a Covid-19 avançasse aqui na região. No entanto, a Força Tarefa não se restringiu a isso, também começou a realizar pesquisas científicas que se estruturaram de maneira rápida e eficaz em muito pouco tempo. Alguns destes resultados de pesquisas já estão saindo e já publicamos alguns destes estudos aqui no Blogs de Ciência da Unicamp. Nesta semana, mais um estudo de impacto foi publicado, ainda em preprint, e vem tendo uma ótima repercussão internacional.
O artigo, liderado pelos pesquisadores Alessandro Farias e Marcelo Mori, discute uma das formas de o vírus infectar o nosso organismo. Os resultados da pesquisa indicam que o SARS-CoV-2 pode infectar os linfócitos e se proliferar, podendo causar um quadro de imunodeficiência, mesmo que temporariamente.
Mas, se o SARs-Cov-2 ataca linfócitos… O que isto quer dizer na prática?
Primeiro, isto significa que ele derruba exatamente as células que deveriam nos proteger, o que agrava o quadro geral da infecção. O linfócito que o coronavírus ataca é o conhecido T CD4, que coordena a resposta imune adaptativa. É onde se produz e liberam as moléculas que também muito se tem comentando atualmente: as citocinas. O efeito, ao que tudo indica, é parecido com a ação do HIV, mas de forma aguda.
Ao infectar estes linfócitos T CD4, o coronavírus ou mata a célula, ou modifica sua funcionalidade. Com isto, haveria uma diminuição da atividade dos linfócitos T CD8 e, também, uma menor afinidade e eficácia dos linfócitos B – o que diminui nossa resposta imunológica contra o vírus. Não são todas as pessoas infectadas pelo coronavírus que apresentam este quadro. Na verdade, este tipo de infecção foi observada especialmente nos quadros graves de COVID-19. Estes resultados apontam para mais um passo para a compreensão da doença e seus mecanismos de infecção.
Este artigo tem bastante pano prá manga!
E é por isso que hoje resolvemos soltar esta nota rapidinha para vocês e apresentar um pouco do que temos pesquisado aqui na Unicamp! Logo mais soltaremos uma postagem que faça jus a este artigo, explicando mais detalhadamente toda a pesquisa.
Também, a partir deste estudo, vamos inaugurar nossas entrevistas com os pesquisadores da Força Tarefa, em nossas redes sociais! Aguarde as novidades! 🙂
O artigo que embasou esta postagem faz parte de um conjunto de postagens sobre as pesquisas científicas que a Unicamp vem fazendo desde o início da pandemia, no que chamamos “Força Tarefa”. O Especial Covid-19, do Blogs de Ciência da Unicamp, participa da Força Tarefa desde o início, com a divulgação científica sobre a doença. Mas também vai se dedicar à publicação destes conhecimentos produzidos especificamente pelos pesquisadores da Unicamp cada vez mais! Acompanhe as próximas postagens!
Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
O quê? Mortos, dias de anúncio da China, dias de anúncio da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Não sabe do que se trata ainda?
Do assunto que se tornou o grande tema a ser debatido neste ano. Coronavírus, também conhecido como SARs-CoV-2, o causador da COVID-19. Portanto, o protagonista de várias de nossas conversas atuais.
Hoje ultrapassamos a marca de 1 milhão de mortos no mundo, aos 200 dias de pandemia decretada pela OMS, 272 dias do anúncio oficial do governo Chinês (31 de Dezembro de 2019) sobre o vírus.
No Brasil, hoje foram mais 300 mortes registradas no site worldmeters, com 141.741 mortes acumuladas. Estamos em segundo lugar no mundo em mortes totais. Somos o terceiro país em quantidade de infectados, com 4.732.309 – oficialmente. Estamos em terceiro lugar em novos infectados confirmados HOJE, mais 14.194. Terceiro lugar, também, em “mortes novas” (ocorridas no dia de hoje, 27 de setembro). Temos 539.731 casos ativos confirmados, sendo 8.318 destes casos críticos.
Em casos relativos, por milhão de habitantes, estamos em sétimo lugar (ufa, não é mesmo?), com 666 mortes por milhão. Somos o sexto país do mundo que fez mais testes (17.900.000) o que parece bastante. No entanto, isto representa estarmos em 82ª posição no mundo em quantidade de testes por milhão de habitantes.
As mortes do Brasil representam 14% das mortes totais por coronavírus no mundo.
São números.
Como assim? Pois é, temos nos acostumado a eles, os assombros das primeiras semanas foram tornando-se nubladas e sem muito sentido ao longo destes 200 dias de pandemia. Não te parece?
O mundo apresenta o cenário perfeito para qualquer grande conto de ficção científica. Isto é, descrenças em cientistas, pânico moral pelo simples abraço, assujeitamento às condições de clausura ou às necessidades imperativas de pôr alimento à mesa. Vocês conseguem imaginar a narrativa?
Nós poderíamos descrever com detalhes como vislumbramos uma cena. Mas pareceria cruel tal descrição e, claro, talvez não pareça ficção.
[pausamos a escrita. respiramos fundo]
Recarregamos a página com o placar Covid-19 do site Worldmeters. Enquanto escrevíamos até este ponto, mais 261 pessoas morreram – só com a Covid-19.
Às vezes parece uma realidade paralela “Justo na nossa vez, na nossa vida”, podemos pensar… Mais mortes, mais vidas. No entanto, se estamos reclamando é por estarmos vivos. Mas não adianta esconder, o pensamento volta:
Justo na nossa vez, na nossa vida
A resiliência segue e parece pífio falar em necropolítica, em ACE2 ou Spike. Pífio pelo cansaço de uns, pela evidente resistência dos corpos que, no dia a dia, vivem desde o dia 1 de isolamento social, sem isolamento. Que trabalham, vivem, morrem cotidianamente.
Tampouco parece funcional bradarmos por verbas para a ciência, seguirmos batalhando para que não cedamos para grandes abates por políticas públicas. Contudo, sei lá, montar notas de repúdio e tuitaços falando de nossa auto-importância não ajudou.
Dessa forma, parece banal falar de esperança. Sentimos como se isso fosse minimizar as mortes até agora sentidas. Assim, destacamos, em um editorial de divulgação científica, que não há ciência suficiente para explicar a dor que estamos vivendo. Um milhão de mortes confirmadas de uma causa que, antes de 31 de Dezembro de 2019, não existia para o mundo.
Um milhão de mortes!
Todavia, mesmo não havendo ciência que explique toda a dor sentida pelas perdas desta doença (mortes reais e simbólicas) é através destes conhecimentos científicos produzidos nestes últimos 272 dias – que são também resultado de centenas de anos de busca pela compreensão dos fenômenos naturais, sociais e culturais – que temos conseguido permanecer firmes e avançar. E é nos passos destes conhecimentos, e por todas as pessoas que existem e por todas as que se despediram de nós este ano, que seguiremos batalhando para chegar a soluções mais justas e éticas, para a saúde de todos, com e pela ciência.
E enquanto produzíamos este texto, ao fim, recarregando o painel mundial, 1.002.402 mortes. Isto é, 925 óbitos por coronavírus, enquanto cerca de 800 palavras foram escritas, lidas, revisadas, reescritas.
Mas ‘Blogs’, são só números!
Todavia, se os números te parecem monótonos e sem sentido, recomendamos a visita no projeto INUMERÁVEIS. Um memorial dedicado a cada uma das pessoas mortas pela Covid-19. Ou seja, Não são números: são pessoas, famílias, amigos. Com nomes, sorrisos, força, trabalho, frugalidades, e é disso que se trata.
E é por isso, também, por estes nomes, pessoas, sorrisos, forças e frugalidades que viveram e se despediram que, hoje, gostaríamos de acabar o texto com esperança, no meio de todo este pesar. Esperança pelos saberes que temos e produziremos pela ciência. E esperança, por respeito a todos os que nos deixaram este ano, de que seguiremos lutando, por outros dias que nos aguardam. Por ímpetos e intenções de esperança, mas sem tirar os pés do chão, com o som e a voz de Milton Nascimento, quando ele diz:
E o que foi feito é preciso conhecer para melhor prosseguir Falo assim sem tristeza, falo por acreditar Que é cobrando o que fomos que nós iremos crescer Nós iremos crescer, outros outubros virão Outras manhãs, plenas de sol e de luz (O que foi feito deveras (de Vera) letra de Fernando Brant)
Este texto é original e foi produzido com exclusividade para o Especial Covid-19, em nome da equipe editorial
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e que são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Há algum tempo atrás, vimos em um texto aqui no blog como o SARS-CoV-2, causador da Covid-19, é capaz de entrar em nossas células e causar sua infecção. Contudo um número cada vez maior de artigos têm sido apresentados à comunidade científica mostrando que a infecção causada por tal vírus não se restringe somente ao trato respiratório e sim a muitos outros órgãos. O SARS-CoV-2 já foi encontrado no cérebro, no fígado, rim, intestino e dessa forma surgem perguntas: quais são os efeitos do vírus nesses órgãos? Vem com a gente para entender melhor isso!
Problemas Cardiovasculares
Tudo começou com pacientes que relataram palpitações no coração e sensação de aperto no tórax. Mais tarde estes pacientes foram diagnosticados com Covid-19, de acordo com a Comissão Nacional de Saúde da China (NHC), um órgão responsável em formular políticas de saúde na China. De acordo com eles, 11.8% das pessoas que morreram de Covid-19 tinham algum dano no coração, apesar de não ter doenças cardíacas prévias1. Consequentemente, cientistas e médicas começaram a observar melhor problemas cardiovasculares relacionados ao Covid-19 2,3, como:
dano no miocárdio (o músculo responsável pela contração do coração),
a inflamação deste mesmo músculo,
arritmia (um descompasso no ritmo de batidas do coração, em geral mais lento no caso da Covid-19),
insuficiência cardíaca,
choque cardiogênico (uma falha na irrigação de sangue no próprio coração, com consequente falha deste para continuar bombeando o sangue).
Assim, para todos esses problemas, imagina-se (e a cada dia novas pesquisas tem sido feitas para se comprovar ou não) que a origem de todos esses problemas sejam duas. A primeira delas seria a própria infecção das células cardíacas pelo SARS-CoV-2, vide que tais células expressam o receptor ACE2.
As tais Tempestades de Citocinas
A outra origem pode ser um fenômeno conhecido como Tempestade de Citocinas. As citocinas são moléculas que servem de comunicação para as células, principalmente para as células do sistema imune. Dessa forma, quando um macrófago ou um linfócito reconhece um agente invasor no corpo, essa célula libera essas moléculas e acaba levando a uma inflamação no lugar, chamando mais células imunes para combater esse patógeno. O grande problema de toda essa questão ocorre quando o corpo reconhece que o invasor é muito perigoso e não tem meios de derrotá-lo facilmente. Nesse caso, as células imunes lançam mão de sua estratégia final: a liberação de grandes quantidades de citocinas que se espalham por todo o corpo, o que acaba gerando dano em outros órgãos (mesmo aqueles que não estão infectados).
No caso da Covid-19 podemos entender facilmente porque então a tempestade de citocinas não é uma boa coisa: para ela acontecer a pessoa já precisa estar comprometida, muitas vezes com a forma grave da doença, seus pulmões não estão bem. Assim, por causa da tempestade de citocinas, outros órgãos como o rim, fígado e principalmente o coração também começam a sofrer dano, fazendo com que muitas vezes isso leve o paciente ao óbito.
Problemas Renais
Depois do coração, começou-se a olhar para outros órgãos, dentre eles o rim. Assim, muitos médicos notaram que a Covid-19 tinha um certo envolvimento com o rim em casos mais severos. Alguns pacientes chegavam ao hospital com uma alta quantidade de proteínas na urina (a chamada proteinúria), o que é um sinal de que provavelmente havia algum problema nos rins.
Além disso, pesquisadores e médicos viram que alguns pacientes – em geral aqueles que tinham a forma severa da doença – também desenvolveram lesão renal aguda (AKI), que é uma redução na capacidade de filtragem dos rins, que também acarreta em vários problemas 4. Uma pesquisa em específico, notou uma correlação entre doenças renais e um aumento no número de mortes de pacientes que precisavam de hospitalização 5. Enquanto isso, outras pesquisas já demonstraram que o SARS-CoV-2 possivelmente é mesmo capaz de infectar células renais 6,7 e isso pode ser uma das causas que levam ao dano, com um outro possível mecanismo sendo a Tempestade de Citocinas já citada acima 4.
Problemas Hepáticos
Todavia, como tudo tem sido complicado com o SARs-CoV-2, os problemas não pararam por aí. Assim, como o fígado também é um órgão que expressa o ACE2 na membrana de suas células, ele não também não ficaria de fora na Covid-19 8. O dano no fígado associado a Covid-19 é considerado como qualquer dano hepático que ocorra durante a progressão ou o tratamento da Covid-19 em pacientes sem precedentes de doenças no fígado. Dessa forma, o principal indicativo desse dano hepático é o aumento de algumas enzimas do fígado no sangue, fato que já foi notado em alguns pacientes com Covid-19 9. Os possíveis mecanismos que podem gerar esse dano são:
a tempestade de citocinas,
a infecção pelo próprio SARS-CoV-2 nas células do fígado, apesar disso ainda não ter sido demonstrado,
o baixo teor de oxigênio no sangue, e consequentemente no fígado e outros órgãos,
uso combinado de medicamentos que tem ação hepatotóxica, isso é, que em altas concentração acabam gerando dano ao fígado,
reativação de doenças hepáticas em pacientes que já as possuíam previamente, como em pacientes com hepatite B 10.
Contudo, esse dano hepático foi muito mais frequente em pacientes severos de Covid-19, do que naqueles que tinham sintomas leves.
Problemas Intestinais
Quanto ao intestino, já se sabe que ele é um órgão que mais expressa o ACE2, e portanto logo se pensou que se o SARS-CoV-2 pudesse infectar outros órgãos, este seria um deles. Assim, o fato de que pacientes com Covid-19 também relatavam dor abdominal e diarréia só fortaleceu essa ideia. Tempos depois, várias pesquisas foram publicadas confirmando isso11,12.
Ademais, também detectou-se o vírus nas fezes de vários pacientes, até mesmo após o vírus não ser mais detectado no trato respiratório, sugerindo que ele não só era capaz de infectar as células do intestino como também de liberar novas partículas virais, abrindo caminho para uma possível contaminação fecal-oral (aquela em que patógenos nas fezes acabam contaminando água ou alimentos, que são ingeridos posteriormente e infectam novas pessoas). Contudo, estudos in vitro já demonstraram que essas partículas virais são inativadas no trato gastrointestinal 12. Mesmo assim, mais pesquisas ainda são necessárias para se entender se in vivo esses vírus também são inativados ou se a contaminação fecal-oral é realmente possível.
Concluindo
Por fim, como podemos ver, uma vez que o SARS-CoV-2 infecte as células dos pulmões – principalmente em casos mais graves – ele é capaz de desencadeando a tempestade de citocinas e, além disso, se espalhar pelo corpo inteiro, infectando novos órgãos. Em suma, esse processo já está sendo chamado de sepse viral14, e cogita-se que ele seja o principal fator relacionado à severidade da Covid-19. Apesar disso, mais pesquisas são necessárias para se entender essa questão.
Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e que são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
PENSANDO SOBRE BELO HORIZONTE/MG: DADOS EPIDEMIOLÓGICOS, ESTABILIDADE NOS PARÂMETROS E UM POUQUINHO DE ESTRANHEZA…
Não sei se vocês sabem, mas moro em Belo Horizonte. Aqui, a prefeitura libera nos dias úteis um boletim epidemiológico. As emissões iniciaram no dia 20/04 e hoje (17/09) estamos no boletim de número 106.
Um pouquinho do contexto da covid-19 aqui em BH: No dia 28/02 houve o início dos sintomas do primeiro caso confirmado. Além disso, e 18/03 é indicado como o dia do início da transmissão comunitária e início da fase de controle. A cidade permaneceu fechada por cerca de 2 meses para, então, no dia 25/05, iniciar uma reabertura que ocorreu em duas etapas e foi interrompida em 29/06, quando a cidade retornou à fase de controle. No dia 06/08, a prefeitura, novamente, iniciou a reabertura da cidade que hoje está funcionando com apenas algumas restrições de horário e de estabelecimentos. A reabertura se deu pela redução e estabilidade dos seguintes parâmetros: número de transmissão (RT) e ocupação de leitos de enfermaria e de UTI reservados para pacientes com covid.
Nesses últimos dias comecei a me perguntar como andavam as notificações de SRAG (síndrome respiratória aguda grave) na cidade… A dúvida era: será que os casos de covid estão reduzindo e os de SRAG estão elevados? Mas, no próprio boletim, a prefeitura informa que os casos confirmados consistem na soma de casos com resultado de exame positivo para COVID-19 que evoluíram ou não para óbito; e inclui casos de síndrome gripal e síndrome respiratória aguda grave.
O boletim #106 mostra que, nesta data, a cidade possui 38.629 casos confirmados de covid-19 e um total de mortes confirmadas por covid-19 de 1.144. Considerando que a população de BH é estimada em 2.501.576 habitantes, a relação entre o número de casos e a população nos indica que 1,54% dos moradores da cidade foram contaminados e tiveram essa contaminação confirmada (esse número é provavelmente maior, mas não tenho ideia do quão maior, uma vez que muitos contaminados podem ter quadros assintomáticos ou leves e não procuram assistência para realização de testes, por exemplo).
O gráfico abaixo nos mostra a evolução do número de casos confirmados por dia desde o início do primeiro caso em 28/02). Observe como ele aumenta até atingir um pico no dia 02/07 e então começa a redução. Os dados dos últimos dias podem estar defasados, mas para nossa linha de pensamento isso será irrelevante.
Eu queria, então, saber como foi a evolução do número de transmissão (RT) ao longo do tempo. Esse dado não tinha nos boletins, então, tive o trabalho manual de ir abrindo os boletins e plotei o gráfico abaixo com os dados de ocupação de leitos de UTI (amarelo) e de enfermaria (verde), além do RT (linha vermelha).
Vemos que a ocupação dos leitos de enfermaria diminuiu de 60% para 38% e os de UTI de 80% para 45%. O comportamento do valor de RT, porém é bem diferente… Observamos seu menor valor (0,85) no dia 10/08, seguido por um aumento que se manteve acima de 0,9, chegando hoje a 0,97.
Não tenho formação epidemiológica, mas essa situação toda que apresentei me pareceu muito estranha e tem me chamado muito a atenção. Por quê?
A taxa da população comprovadamente contaminada é muito baixa (~1,5%), ainda que possa ser bem maior.
Os casos (principalmente os mais graves) estão reduzindo, como vemos pelas taxas de ocupação de leitos e de novos casos confirmados.
O RT está aparentemente aumentando e deve chegar/passar o RT=1 nos próximos dias, o que configuraria uma aceleração da doença)
Não mostrei aqui, mas o boletim mostra que o número de testes (PCR e rápido) vêm diminuindo muito na cidade.
Olhando para isso, pare que a conta não fecha… Foi então que… Bom, continue a leitura para saber o que aconteceu!
A POSSÍVEL RELAÇÃO ENTRE O USO DE MÁSCARA, A REDUÇÃO DA GRAVIDADE DA COVID E O AUMENTO DA IMUNIDADE COLETIVA
Foi então que… nesta semana saiu um artigo no The New England Journal of Medicine que trouxe um pouco de luz e acho que ajudou a colocar aquelas peças no lugar… Não é um artigo experimental, mas um artigo de opinião no qual os autores (Ganghi e Rutherford), a partir de diversas observações fazem comentários e propõem hipóteses… vem comigo pra gente entender as ideias desses autores e tentar montar esse quebra-cabeça!
Há meses estamos falando e ouvindo falar sobre a importância do uso de máscara pela população. Elas têm um importante papel na redução da eliminação e dispersão de partículas virais a partir de pessoas infectadas e, também, reduz a carga viral inalada pelas pessoas suscetíveis à infecção. Isso seria ainda mais importante no caso de pessoas assintomáticas que transmitem o vírus sem nem mesmo saber que estão contaminadas. Podemos dizer que o uso das máscaras hoje é universal, ainda que estejamos vendo pela rua pessoas sem máscara ou usando-a de forma errada (no queixo; com o nariz de fora; pendurada na orelha).
Para muitas doenças infecciosas, a quantidade de microrganismos inoculados no indivíduo está relacionada à gravidade da manifestação de sintomas da doença. Para os vírus, entretanto, esse ainda é um ponto controverso. Assim, os autores hipotetizam que a máscara, ao bloquear parte das partículas virais de serem inaladas, poderia ajudar a reduzir a gravidade da covid – que já sabemos tem diversas manifestações (de paciente assintomáticos, a pacientes que desenvolvem quadros de pneumonia, síndrome respiratória e morte).
Ou seja: caso a hipótese de Gandhi e Rutherford esteja correta, as máscaras estariam contribuindo para o aumento de infecções assintomáticas pelo novo coronavírus (o SARS-Cov-2). Estimativas sugerem que os assintomáticos que no início da pandemia corresponderiam a 20% dos casos, hoje poderiam chegar a 80% nos locais em que o uso de máscaras é universal; além das consideráveis reduções nos números de covid grave e de mortes.
O grande ponto de tudo isso seria que os pacientes com covid, mesmo aqueles assintomáticos e com sintomas leves poderiam desenvolver uma resposta imune contra o vírus… Assim, estaríamos passando por um momento no qual estaríamos aumentando a imunidade da população contra o vírus e, se chegarmos a um percentual grande da população, atingiríamos a imunidade coletiva (de rebanho). Este seria um processo semelhante à variolação/variolização que foi utilizada por muitos anos até a introdução da vacinação e que consistia em coletar material de pacientes com varíola e inocular em indivíduos suscetíveis à doença. Estes, por sua vez, desenvolviam uma infecção leve e ficavam imunizados.
Observe que o uso de máscaras não induz imunidade nem produz anticorpo, mas ela cria condições que possibilitariam que o indivíduo entre em contato com uma quantidade reduzida de vírus e (aí, sim!) essa infecção induziria a resposta imunológica no hospedeiro.
RESUMINDO A PROPOSTA DO ARTIGO…
CONCLUSÃO
Apesar da redução de novos casos confirmados, a taxa de pessoas contaminadas em BH pode estar aumentando realmente (aumento do RT) mas grande parte dessas infecções pode ser assintomática ou leve – o que explicaria o número de leitos livres e a redução na realização de novos testes.
O sucesso das medidas de prevenção nos dá a impressão de que elas são inúteis mas, como vimos, elas continuam muito necessárias! Isso tudo mostra que o uso universal das máscaras é muito importante tanto para a saúde individual quanto a coletiva.
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Se você é fã de ficção científica provavelmente já viu cientistas usando roupas especiais para lidar com um micro-organismo perigoso. Entretanto, essa cena também virou algo comum nos noticiários, atualmente, para mostrar as pesquisas com o coronavírus causador da COVID-19. Como assim? Luvas, macacões, máscaras, viseiras e muitos materiais descartáveis. Mas, você já se perguntou como o cientista escolhe qual tipo de roupa usar?
No Brasil, quem regulamenta as práticas de segurança em laboratórios de microbiologia é a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança). Biossegurança é o conjunto de práticas que minimizam os riscos de acidente nos laboratórios. Dessa forma, existe redução das chances dos profissionais se contaminarem com os micro-organismos que estão trabalhando, ou contaminarem o meio-ambiente e outras pessoas.
Como se define níveis de biossegurança dos laboratórios?
Para definir o nível de Biossegurança necessário para que um laboratório possa funcionar, são analisados fatores como: O micro-organismo, sua origem, rota e taxa de transmissão, infectividade (que significa o quão fácil e rápido ele consegue causar uma infecção), a severidade da doença e o tipo de trabalho que está sendo realizado.
Assim como personagens de videogame, para realizar sua “missão” o cientista deve contar com a “armadura” e os equipamentos corretos para cada tipo de situação. Ao todo, são 4 níveis de risco biológico, que possuem uma classificação proporcional ao nível de segurança necessário para o trabalho. Ou seja, o nível 1 é o menos perigoso e o 4 o mais.
O coronavírus é um agente transmitido pelo ar, com alta taxa de transmissão entre pessoas e que pode causar a morte. Por isso, pesquisas com ele devem ser realizadas apenas em ambientes com nível de biossegurança 3. Já a dengue é um vírus que possui um risco menor, podendo ser pesquisada em ambientes de nível 2.
Manter um laboratório seguro custa muito dinheiro, e quanto mais alto o nível, maior o nível de investimento que precisa ser realizado. No Brasil, ainda não possuímos nenhum Laboratório de Nível de Biossegurança 4 e pouquíssimos de nível 3. Investir na ciência é investir também em infraestruturas para que pesquisas sejam realizadas com segurança!
Conhecendo os Níveis de Biossegurança
Nível de Biossegurança 1:
O laboratório que é menos perigoso! Os micro-organismos manipulados neste laboratório não representam altos riscos à saúde dos pesquisadores, nem ao meio-ambiente. Portanto, é mais barato de ser mantido do que os outros. Nele, são seguidas práticas convencionais de laboratório, para que não ocorra nenhum tipo de acidente. Neste tipo de laboratório podemos trabalhar com a bactéria E.coli, por exemplo.
A infraestrutura do laboratório conta com portas que separam a área de experimentos do resto do prédio, uma pia para lavagem e uma bancada, onde será realizado o trabalho.
Equipamentos de Proteção Individual: Jaleco, luva e óculos de proteção.
Fotos: Acervo pessoal; Laboratório do CNPEM
Nível de Biossegurança 2:
Os laboratórios de Biossegurança classe 2 servem para trabalhar com micro-organismos que possuem um risco de segurança moderado para os cientistas e para o meio ambiente. Geralmente, esses micro-organismos são nativos, ou estão presentes naquela região. Assim, pesquisadores brasileiros trabalham com organismos do Brasil, e pesquisadores da Ásia trabalham com micro-organismos da Ásia.
Além disso, os cientistas que pesquisam no Nível de Biossegurança 2 devem ser treinados para compreender os riscos daquele trabalho, usar EPIs como jalecos descartáveis, luvas, óculos ou viseiras de proteção. Todas as regras dos laboratórios NB-1 ainda valem aqui. Todavia, ainda existem algumas regras a mais: o laboratório deve possuir uma entrada controlada, portas que fecham sozinhas, prevenindo que alguém as esqueça abertas, e sempre ter um chuveiro com lavador de olhos próximo do laboratório. Todos os procedimentos que podem resultar em derramamentos ou partículas suspensas no ar devem ser feitos numa cabine de proteção, chamada de Fluxo Laminar. Por fim, é necessária uma autoclave, que é como uma panela de pressão gigante, para descontaminar tudo que precisar sair do NB2.
Fotos: Acervo pessoal; Laboratório do CNPEM
Nível de Biossegurança 3:
Mais biosseguro do que os laboratórios anteriores, temos poucos desses laboratórios no Brasil por conta do custo elevado de manutenção e construção. Aqui, podemos trabalhar com micro-organismos da região, ou de outros lugares do mundo, além disso eles apresentam um risco mais elevado para a saúde dos cientistas e para o meio ambiente, caso ocorra algum tipo de acidente que resulte na liberação dele em áreas não controladas. A construção desse laboratório conta com um rigoroso sistema de circulação e filtração do ar, e um sistema de portas que realmente isole a área de trabalho de áreas externas.
Por conta desses riscos, o laboratório deve ser restrito e o acesso controlado para que apenas pessoas treinadas possam entrar nele. Os cientistas também devem fazer um acompanhamento médico constante, de forma que saibam que não se contaminaram com nada.
Para a proteção dos cientistas, é necessário um acompanhamento da saúde deles, EPIs mais seguros, como uso de macacões, viseiras, luvas descartáveis, e em alguns casos até respiradores. Neste laboratório, o Fluxo Laminar é onde acontecem todos os procedimentos envolvendo materiais biológicos, obrigatoriamente.
Fotos: Acervo pessoal; Laboratório da UNICAMP
Nível de Biossegurança 4:
O NB-4 é aquele que tem pesquisas com vírus como o Ebola. Os micro-organismos são quase sempre exóticos e perigosos, facilmente transmitidos por vias aéreas. Ou seja, frequentemente fatais e não possuem nenhum tipo de vacina ou tratamento. O prédio tem que ter uma área isolada só para este laboratório. Além do sistema de ar de um NB-3, o NB-4 também deve contar com linhas de vácuo e de descontaminação para que não circule ar de dentro do laboratório para fora.
Os cientistas que trabalham no NB-4 devem trocar de roupa ao entrar, e tomar um banho na hora de sair do Laboratório. Dessa forma, os EPIs obrigatoriamente devem cobrir o corpo inteiro do pesquisador e possuir um respiradouro.
Esta postagem faz parte de um conjunto de textos sobre as pesquisas científicas que a Unicamp vem fazendo desde o início da pandemia, no que chamamos “Força Tarefa”. O Especial Covid-19, do Blogs de Ciência da Unicamp, participa da Força Tarefa desde o início, com a divulgação científica sobre a doença. Mas também vai se dedicar à publicação destes conhecimentos produzidos especificamente pelos pesquisadores da Unicamp cada vez mais! Acompanhe as próximas postagens!
Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Texto escrito por Fellipe Mello, Carla Maneira da Silva e Ana Arnt
Até esse ponto, nos textos anteriores, introduzimos uma variedade de conceitos importantes no desenvolvimento do conceito da CORONAYEAST. Vocês podem recapitular as ideias aqui e aqui.
Vamos revisar as modificações genéticas que a S. cerevisiae deve apresentar para detectar o vírus:
O receptor do vírus e regulador da Angiotensina II (ACE2),
O “detector” de angiotensina (AT1)
As proteínas que fazem a levedura biossensora mudar de cor (os genes repórter).
Tá, e como isso tudo vai funcionar de forma que a levedura irá acusar a presença do vírus?
Primeiro, você precisa saber que, pra funcionar, o biossensor atua na presença de Angiotensina II – que será adicionado ao CORONAYEAST da mesma forma que “tampões de corrida” são adicionadas ao teste rápido – ou seja, um conjunto de reagentes que permite que a reação ocorra e o sinal seja visível. Vamos pensar então nos dois cenários: a levedura na presença e ausência do vírus.
Na ausência do vírus, a levedura modificada está em um meio contendo uma concentração conhecida de Angiotensina II. Neste cenário, o ACE2 está disponível para converter a Angiotensina II em Angiotensina 1-7, diminuindo a concentração do primeiro. Desta forma, o AT1 não será ativado, uma vez que seu receptor – a Angiotensina II – não estará lá. Receptor não ativado: gene repórter não produzido e levedura não muda de cor.
Na presença do vírus, a alta afinidade que a proteína Spike do SARS-CoV-2 possui com a ACE2 faz com que sua atividade enzimática fique comprometida. Desta forma, quanto mais vírus, menos ACE2 disponível. Logo: Angiotensina II acumula no meio extracelular, uma vez que a ACE2 está “ocupada” com o SARS-CoV-2, ou, em termos biológicos: a função enzimática de conversão em Angiotensina 1-7 foi capturada pelo vírus. Isto quer dizer que: mais Angiotensina II no meio extracelular significa maior a ativação do receptor AT1.
É aqui que entra o resultado da nossa pesquisa! Na presença do vírus, portanto, o receptor AT1 ativado da levedura modificada geneticamente emitiria um sinal que faria o gene repórter ativar e produzir uma proteína que faria a levedura mudar de cor: fluorescente ou vermelha, a olho nu.
– Nossa! Que legal! Eu estou com suspeita de COVID-19, onde posso fazer este teste diagnóstico?
– Calma! O CORONAYEAST ainda está sendo desenvolvido pelo LGE!
Benefícios da pesquisa, caso os resultados sejam positivos
Uma vez que o CORONAYEAST estiver pronto e funcional, seus benefícios serão extensos. Vamos falar um pouco disso agora…
Primeiro, o preço. Imagine a diferença de custo entre produzir um diagnóstico dependente de insumos importados e infraestrutura especializada (como é o caso do qRT-PCR) e um teste em que um microorganismo faz tudo. A levedura cresce fácil – coloque um pouco de açúcar e pronto. Sem contar que o Brasil tem uma infraestrutura bastante robusta para isso. Isto é, já produzimos bastante desse fungo para usarmos na produção de etanol, por exemplo. E o diagnóstico só dependeria dela, a S. cerevisiae modificada (com um pouco de Angiotensina II). Estimamos custo de produção até 100 vezes menor que para o teste de PCR!
Outra vantagem importante é a especificidade. Como falamos, a detecção do SARS-CoV-2 é permeada por um GPCR e, por isso, é bastante específica. A única possibilidade de se alterar o sinal captado pelo AT1 é a ligação do vírus com ACE2. Aliás, usarmos a ACE2 também é outra garantia de especificidade, porque sabemos que esta é a única forma que o coronavírus da covid-19 reconhece uma célula hospedeira. Também não prevemos a alteração da funcionalidade desta enzima por qualquer outro composto presente na saliva. Esta é uma característica do CORONAYEAST que o coloca à frente dos atuais testes rápidos, porque sabemos o quanto estes têm altas taxas de resultados falsos.
Ademais, o diagnóstico para Covid-19 a partir do biossensor baseado em levedura detecta o vírus inteiro. Isso quer dizer que 1) não precisamos extrair material genético viral, como o teste de PCR; 2) não é baseado em anticorpos, como nos atuais testes rápidos imunológicos, permitindo identificar potenciais vetores da doença, ainda que assintomáticos; 3) poderia ser usado em superfícies para teste da presença do vírus, permitindo a correta desinfecção de ambientes. CORONAYEAST se apresenta como um conceito disruptivo e inovador que está sob atual desenvolvimento e poderá mudar a forma como fazemos diagnósticos virais!
E sabe o que é mais interessante de tudo isto? É tecnologia brasileira, pesquisa nacional, feita por cientistas do nosso país. Barateando o custo para diagnóstico e o tempo de resposta do resultado.
Este texto foi elaborado a partir de uma pesquisa financiada pela FAPESP, cujo processo é n.2018/03403-2
Força Tarefa da Unicamp
O artigo que embasou esta postagem faz parte de um conjunto de postagens sobre as pesquisas científicas que a Unicamp vem fazendo desde o início da pandemia, no que chamamos “Força Tarefa”. O Especial Covid-19, do Blogs de Ciência da Unicamp, participa da Força Tarefa desde o início, com a divulgação científica sobre a doença. Mas também vai se dedicar à publicação destes conhecimentos produzidos especificamente pelos pesquisadores da Unicamp cada vez mais! Acompanhe as próximas postagens!
Ana Arnt é Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência!
Carla Maneira da Silva Mestranda em Genética de Micro-organismos pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Realiza suas atividades de pesquisa no Laboratório de Genética e Bio-Energia (LGE). Possui experiência na área de genética e engenharia metabólica. Mais especificamente na produção de compostos de interesse econômico a partir de micro-organismos. Assim como na produção de biossensores baseados em levedura.
Fellipe Mello é Engenheiro químico (2014) e doutor em ciências (2019) pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é post doc em engenharia genética no Laboratório de Genômica e bioEnergia no Instituto de Biologia da Unicamp. Tem experiência na área de engenharia química, com ênfase em termofluidodinâmica, no reaproveitamento de biomassas e purificação de proteínas; e na área de genética, com ênfase em engenharia metabólica e estudo de QTLs.
Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Texto escrito por Fellipe Mello, Carla Maneira da Silva e Ana Arnt
No primeiro texto, falamos um pouco do desenvolvimento do teste diagnóstico para Covid-19 baseado em uma levedura modificada geneticamente. Mas agora, neste segundo texto, vamos explicar um pouco mais sobre o que são estas modificações e de que modo ela acontece na levedura. Isto é, vamos entrar um pouco mais a fundo no mundo da Engenharia Genética para entender melhor como a ciência trabalha e é produzida!
Levedura modificada geneticamente – o que estamos modificando nela?
Organismos geneticamente modificados (OGM) são mais comuns do que imaginamos. O ser humano tem utilizado vastamente o melhoramento genético em benefício da nossa sociedade. Por exemplo, a seleção de características de interesse em animais e plantas – que é traço de nossa organização social desde os primórdios. Além disso, temos a produção de químicos específicos por microrganismos,
O CORONAYEAST não é diferente: é um biossensor viral baseado em uma levedura que precisa ter seu genoma editado para servir a esse propósito. Para tal, precisamos inserir no microorganismo alguns genes heterólogos. Calma, o nome é difícil, mas a explicação é simples… Isto é, o que quisemos dizer é que são genes que a espécie Saccharomyces cerevisiae não possui naturalmente.
Como já falamos sobre o funcionamento do CORONAYEAST, podemos dividir essas modificações genéticas em três grupos principais: 1) proteína ACE2 de humano, responsável tanto pela percepção do SARS-CoV-2 quanto pelo controle do hormônio angiotensina II (já vamos explicar!); 2) receptor AT1 de humano, receptor de membrana da classe das proteínas do tipo G que consegue detectar angiotensina II e enviar um sinal pra célula; 3) os genes repórter, que produzem proteínas que conferem a mudança de cor e fluorescência na levedura e que são ativados pelo receptor AT1.
Agora é que vem a parte complicada e cheia de termos. Mas respira fundo aí que a gente vai explicar com calma um por um!
ACE2, AT1 e SARS-CoV-2: quê?
A ACE2 – Enzima Conversora de Angiotensina 2 é encontrada naturalmente em humanos. Assim, ela tem o papel de regular os níveis de Angiotensina II no nosso organismo, convertendo-a em Angiotensina 1-7.
A Angiotensina II é um hormônio peptídeo que atua na vasoconstrição e, junto com a ACE2, faz parte do sistema renina-angiotensina (RAS), que é um intricado e complexo sistema de regulação da nossa pressão arterial. Além disso, também estão presentes os receptores de membrana, como o AT1. O AT1, como dissemos, consegue perceber a concentração de angiontesina II no meio e enviar um sinal para a célula reagir em conformidade. Ou seja, a resposta celular varia de acordo com a quantidade do hormônio detectado. Ademais, esse receptor de membrana faz parte da classe dos GPCR. Ou seja: o AT1 reage apenas à presença de angiotensina II e consegue detectar baixas concentrações deste hormônio.
Todavia, o entendimento de todo esse sistema é importante não apenas para entender o CORONAYEAST. Foi essencial também para elucidar os efeitos da COVID-19 em pacientes. O SARS-CoV-2 tem apenas uma forma de infectar nossas células: através da ligação com a ACE2 . Portanto, ao detectar uma possível célula hospedeira, o SARS-CoV-2 se liga a essa enzima e faz com ela não consiga desempenhar seu papel normalmente. Resumindo: quando o vírus nos infecta, o ACE2 fica comprometido e, por isso, apresentamos maiores níveis de angiotensina II.
Mas e o gene repórter? Pois é, Faltou explicar este último dos 3 elementos que precisamos modificar na levedura: o ACE2, o AT1 e o Gene Repórter…
Gene Repórter: o que é e por que ele é necessário?
Para fechar o sistema biossensor, precisamos de um, ou mais, gene repórter. Entretanto, para ficar claro o porquê e como vamos usar esse artefato, precisamos de uns conceitos básicos de genética. Mas calma, não é nada muito complicado. O que precisamos saber é que os genes são estruturas formadas de subunidades que regulam sua expressão. Ou seja: pra um gene ativar e produzir uma proteína ele precisa estar sob uma condição específica. Por fim, quem regula essa condição e diz se o gene deve ativar é o promotor. Isto é: não basta um ser vivo “ter um gene” para determinada função. Assim, este gene precisa de um agente externo (o promotor) para ser ativado (e produzir uma proteína que funcione!).
Mas, e o Gene Repórter? É um gene que é inserido junto com os genes de interesse da nossa pesquisa. Dessa forma, no nosso caso da Levedura Saccharomyces cerevisiae, o gene que produz o ACE2 e o gene que produz o AT1. Isto é, quando produzimos um Organismo Geneticamente Modificado, podemos também inserir um gene repórter junto com os genes que queremos que funcionem naquele organismo. Por quê? O gene repórter tem uma atividade facilmente rastreável – produz proteínas luminescentes ou que promovem mudança de cor, por exemplo. Em suma, com isto conseguimos saber que os genes que inserimos estão “funcionando”.
Assim, no caso desta levedura, o gene repórter produz proteínas que conferem a mudança de cor e fluorescência. Quer dizer, isso quando ativadas pela sinalização dentro da célula gerada pelo receptor AT1!
Para finalizar: o que tudo isto têm a ver com o teste CORONAYEAST?
Por fim, depois de explicar todos os genes, receptores, hormônios e enzimas que estão envolvidos na técnica, vamos voltar ao RAS? Lembra que o AT1 percebe a presença de angiotensina II e envia um sinal para a célula?
Pois bem, esse sinal diz pra um promotor específico, o FIG1, que ele deve ativar um gene. No caso do nosso biossensor, a gente vai colocar um gene repórter regulado pelo FIG1. Na verdade, vamos colocar dois (e por isso falamos que o CORONAYEAST pode ser usado no laboratório ou em casa). Quais? Um gene que produz uma proteína fluorescente e um gene que produz um pigmento visível à olho nu.
Mas, como isso tudo funciona na presença e ausência do vírus? Agora que explicamos tudo isso, no próximo texto vamos falar com mais detalhes sobre a interação da levedura com o vírus mais apropriadamente!
Este texto foi elaborado a partir de uma pesquisa financiada pela FAPESP, cujo processo é n.2018/03403-2
Força Tarefa da Unicamp
A pesquisa que embasou esta postagem é fruto da “Força Tarefa da Unicamp”. Assim, faz parte de um conjunto pesquisas científicas que a Unicamp vem fazendo desde o início da pandemia. O Especial Covid-19, do Blogs de Ciência da Unicamp, participa da Força Tarefa desde o início, com a divulgação científica sobre a doença. Mas também vai se dedicar à publicação destes conhecimentos produzidos especificamente pelos pesquisadores da Unicamp cada vez mais! Acompanhe as próximas postagens!
Ana Arnt é Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência!
Carla Maneira da Silva Mestranda em Genética de Micro-organismos pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Realiza suas atividades de pesquisa no Laboratório de Genética e Bio-Energia (LGE). Possui experiência na área de genética e engenharia metabólica. Mais especificamente na produção de compostos de interesse econômico a partir de micro-organismos. Assim como na produção de biossensores baseados em levedura.
Fellipe Mello é Engenheiro químico (2014) e doutor em ciências (2019) pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é post doc em engenharia genética no Laboratório de Genômica e bioEnergia no Instituto de Biologia da Unicamp. Tem experiência na área de engenharia química, com ênfase em termofluidodinâmica, no reaproveitamento de biomassas e purificação de proteínas; e na área de genética, com ênfase em engenharia metabólica e estudo de QTLs.
Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Em textos prévios, nós vimos vários conceitos relacionados à imunidade inata, adaptativa, humoral e celular. Nesse último, entendemos como as principais células trabalham para combater diferentes tipos de ameaças, desde vírus e bactérias, até fungos e vermes. Mas então surge a grande dúvida: e no caso do SARS-CoV-2, como combatemos ele?
Para responder essa pergunta, vamos olhar para várias pesquisas que estão sendo feitas ao redor do mundo. Pesquisas que estão tentando entender melhor a imunidade celular. Além disso, buscam compreender sua relação com o vírus causador da Covid-19, dando foco um pouco maior para os linfócitos T. Antes, vamos retomar a estrutura do SARS-CoV-2. Primeiramente, destacamos a Spike, que é a proteína responsável pela entrada dele nas células. Há, também, as proteínas do Nucleocapsídeo, que forma a capa que protege o material genético. O Envelope, que é a membrana de gordura que envolve o nucleocapsídeo. Por fim, as proteínas não estruturais, relacionadas principalmente à replicação viral). Caso tenha mais dúvidas, não deixe de conferir dois textos muito bons que já explicaram sobre elas aqui no blog1, 2.
Uma descoberta surpreendente
A cada dia um número maior de artigos vêm sendo publicados e mostrando aquilo que muitos pesquisadores já imaginavam que poderia acontecer. Isto é, desde pessoas que tiveram a forma assintomática e leve da Covid-19 até as que tiveram a forma severa, desenvolvem linfócitos T de memória. Estes linfócitos são capazes de responder ao vírus de forma eficiente, caso sejam expostos ao vírus novamente. Apesar de vários estudos mostrarem que células de memória reagem contra partes diferentes do SARS-CoV-2 3-8, desde a Spike, até a proteína do envelope, nucleocapsídeo e NSPs.
Sobre a Imunidade ou Reatividade Cruzada, de novo
Contudo, o que mais tem chamado a atenção dos pesquisadores é o fenômeno chamado de Imunidade ou Reatividade Cruzada de linfócitos T de memória de outros coronavírus contra proteínas do SARS-CoV-2. Já explicado em outro texto aqui no Blogs . Um artigo publicado na Nature 3, mostrou que uma parte das pessoas infectadas com o vírus da SARS de 2002-2003 (SARS-CoV-1), isto é, há 17 anos atrás, ainda tinham células que conseguiam responder e se multiplicar ao reconhecerem a proteína N (de Nucleocapsídeo) do SARS-CoV-2.
Esse mesmo artigo também viu que indivíduos que não haviam contraído a SARS e Covid-19, tinham linfócitos T de memória. Estes linfócitos T respondiam principalmente à duas NSPs do SARS-CoV-2, e a proteína N. Além disso, os linfócitos reconheciam um pedaço da proteína N que era muito parecido com pedaços da mesma proteína de outros coronavírus de humanos. No entanto, com os fragmentos das NSPs isso não acontecia, levantando a hipótese que essas células poderiam responder a fragmentos de proteínas de coronavírus animais.
Um segundo artigo4, mostrou que uma parte dos pacientes saudáveis que não tinham sido expostos a Covid-19 também possuíam linfócitos T de memória funcionais. Estes respondiam há um fragmento da proteína S, assim como pacientes que haviam se infectado com o SARS-CoV-2. Além disso, esse fragmento da Spike (que as células respondiam) é bastante parecido com a Spike de outros coronavírus de humanos (os HCoVs).
A partir de experimentos utilizando tanto a proteína Spike dos HCoVs, quanto os HCoVs inteiros, os pesquisadores viram que essas células de memória reagentes, presente em pacientes que nunca tinham se infectado com SARS ou Covid-19, respondiam muito bem e eram capazes de se multiplicar tanto na presença da proteína quanto do vírus completo.
O que tudo isso significa?
A essa altura do campeonato, vocês devem estar se perguntando o que toda essa quantidade absurda de siglas e dados tem a ver com vocês. O ponto todo desses estudos é indicar que existe uma certa quantidade de imunidade em pessoas não expostas ao causador da Covid-19. Além disso, as pesquisas buscam mostrar a imunidade celular que geramos contra o SARS-CoV-2. É claro que grandes dúvidas ainda ficam no ar, como por exemplo: da onde vêm essas células? Qual o grau de proteção que elas garantem? O que poderia ter levado a formação delas?
Como já comentado anteriormente, muitos pesquisadores especulam que essas células possam surgir a partir de eventos prévios de infecção pelos Coronavírus Endêmicos de Humanos (HCoVs)9. Estes coronavírus são causadores dos ciclos de resfriado comum nas estações secas e que circulam amplamente entre a população humana, assim como o vírus influenza. Dessa forma, acredita-se que as pessoas que já tivessem entrado em contato com esses vírus teriam uma maior chance de ter células de memória. As células de memória poderiam responder a alguma proteína ou fragmento de proteína que fosse compartilhado entre os HCoVs e o SARS-CoV-2.
Mas qual a implicação disso?
A principal hipótese levantada é que a presença de linfócitos de memória em parte da população seja o porquê algumas pessoas desenvolvem a forma leve da doença. Ou, até mesmo, permanecem de forma assintomática – estes seriam os casos em que há a presença dessas células de memória. Enquanto isso, a Covid-19 poderia estar relacionada à presença de comorbidade (como já foi muito discutido) somada a falta dessas células de memória. Isso, claro, em sua forma mais severa. Aqui é necessário lembrar que as pessoas que teriam os linfócitos de memória poderiam gerar a forma leve ou assintomática. Isto em decorrência delas conseguirem montar uma resposta mais rápida e forte contra o SARS-CoV-2, dessa forma limitando a severidade da doença.
Um outro impacto que a existência de uma imunidade celular cruzada entre SARS-CoV-2 e HCoVs poderia ter é relacionada ao desenvolvimento de vacinas. A pré-existência de linfócitos T de memória, principalmente nas primeiras fases de testes, poderia gerar um fator de confusão durante a análise dos resultados. Assim, não seria possível saber se essas células que respondem à vacina seriam novos linfócitos gerados a partir dessa imunização, ou linfócitos de memória que foram reativados após a vacinação. Assim, esta informação, obviamente, não é banal dentro do que precisamos compreender sobre o coronavírus…
Por fim…
Apesar disso tudo, muitos estudos (principalmente com grupos maiores e mais diversos de humanos) ainda precisam ser realizados. Tais estudos necessitam verificar a pré-imunidade ao SARS-CoV-2 – decorrente dos HCoVs. Além disso, analisar o potencial de infecção e severidade da doença nesses casos, através da medição dessa pré-imunidade antes e após os testes. Como vocês podem ver, ainda há muito o que descobrir sobre esta doença e nosso sistema imune!
Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e que são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Quem está habituado à discussão teológica está familiarizado com a afirmação de que seria “impossível demonstrar uma negativa”. Ela é rotineiramente usada por crentes e apologetas para argumentar que, “segundo a lógica”, é impossível dizer que Deus não existe, mesmo na total ausência de evidências da sua existência. Logo se você crê em Deus por fé apenas (sem evidencia), você não estaria sendo irracional ou ilógico. Esse argumentos sempre me soou estranho, mas eu honestamente não havia pensado nele por anos até que me deparei com alguns debates recentes na internet envolvendo a hidroxicloroquina e sua eficácia. A discussão segue mais ou menos assim:
Crítico da hidroxicloroquina – Foi demonstrada a ineficácia da hidroxicloroquina
Defensor da hidroxicloroquina – Não foi demonstrada sua ineficácia, porque é impossível demonstrar uma negativa.
O que para mim o curioso nessa história toda é que a frase de efeito, ou truísmo, usado para corroborar esse raciocínio, de que “é impossível demonstrar uma negativa” é obviamente falso. É completamente lógico derivar um argumento formal no qual a conclusão é a inexistência de algo. Por exemplo, digamos que estejamos argumentando sobre a existência de unicórnios. Eu poderia montar o seguinte argumento
P1 – Se unicórnios existem, deveria haver alguma evidência deles no registro fóssil.
P2 – Não existe evidência de unicórnios no registro fóssil.
Conclusão- Unicórnios não existem.
Esse é um argumento logicamente válido no qual a conclusão (uma negativa) é a consequência lógica das premissas. Proposições negativas são tão demonstráveis quanto proposições positivas.
“Mas, calma lá”, você pode pensar “o registro fóssil é notoriamente incompleto. Espécies podem simplesmente não estar representadas sem que isso signifique que elas nunca existiram”.
Esse argumento remete ao problema da indução, que diz basicamente que nenhuma generalização baseada em observações limitadas pode ser bem sucedida. O exemplo clássico é a ideia de que, não importa quantos cisnes brancos você encontre na natureza, você nunca vai poder dizer que todos os cisnes são brancos, visto que você ainda pode encontrar um cisne negro que refute essa generalização. É importante ressaltar que, enquanto isso não invalida a ideia que proposições negativas são demonstráveis, isso parece levantar um problema sério para premissas que sustentem supostas inexistências.
Porém, nem todas proposições são iguais. Imagine que, ao invés de você estar buscando cisnes negros, você que saber se um gene X está associado com a cor das penas em cisnes negros. Uma prática em genética para entender o funcionamento de um dado gene é exatamente deletar esse gene de um embrião, ou “nocautear” o gene. Se o gene era associado com a cor das penas, você espera que o embrião com o gene nocauteado desenvolva penas brancas (ou não-negras). Se o embrião continua desenvolvendo penas negras, você pode afirmar que o gene X não tem efeito sob a coloração negra das penas. Em forma de argumento formal:
P1- Se o gene X determina a cor negra da pena, sua remoção produziria penas sem essa coloração
P2- A remoção do gene não afeta a cor da pena
Conclusão- O gene X não afeta a cor da pena.
Nesse caso não há ambiguidade alguma: uma vez que o mecanismo é proposto e testado, a ausência de um efeito implica que sua hipótese foi refutada: o mecanismo, como designado, não existe. A diferença é que, quanto mais específica é sua premissa inicial, mais certeza você pode conferir à sua conclusão.
O caso de medicamentos tem mais a ver com o encontrar um mecanismo genético do que buscar unicórnios no registro fóssil: a ação de um remédio depende de que um mecanismo proposto seja verdadeiro, ou potencialmente verdadeiro. O que nos trás à hidroxicloroquina.
Presidente Jair Bolsonaro no jardim do Palácio da Alvorada alimentando as emas e mostrando a caixa do remédio cloroquina para as emas, a mesma caixa que mostrou para os apoiadores no ultimo domingo 19/07. Sérgio Lima/Poder360. 23.07.2020
Querida de três em cada três líderes com tendências autoritárias no continente americano (Trump, Bolsonaro e Maduro), a hidroxicloroquina foi alardeada com um possível tratamento ao COVID19 com base em um estudo feito em células in vitro (em placas de petri; aqui e aqui). Esse estudo demonstrou que a hidroxicloroquina em conjunto com azitromicina era capaz de prevenir a entrada do vírus em células vivas. Em investigações sobre a eficácia de medicamentos, a existência de algum tipo de efeito in vitro é considerado premissa básica para que mais estudos sejam realizados, para observar se um remédio pode ter efeito em seres vivos e, em última analise, humanos. De qualquer maneira, esse estudo deu o pontapé inicial à investigação sobre a eficiência da hidroxicloroquina contra o COVID19, resultando em diversos trabalhos que buscaram encontrar um efeito da droga em seres humanos infectados.
Nada disso seria particularmente problemático se políticos não tivessem tomado para si o papel de decidir, com base em evidências problemáticas, quais são os tratamentos que devem ser seguidos. O que temos agora é a pior situação possível: enquanto a ciência demonstra a total ineficácia da hidroxicloroquina no tratamento de COVID19 (ver aqui e aqui, por exemplo), políticos e entusiastas destes mesmos governantes se veem na posição de ter que defender pseudociência por motivos meramente ideológicos. E é nesse momento que vemos as pessoas se agarrarem cada vez mais desesperadamente à argumentos falaciosos para defender sua posição. No caso da hidroxicloroquina, como coloquei anteriormente, surge essa ideia de que seu efeito positivo não pode ser negado, pois seria impossível demonstrar uma negativa. Como já argumentei, essa afirmação é falsa (é incrivelmente simples demonstrar um negativo). Mas seria esse o caso da hidroxicloroquina?
Pra entender isso, precisamos entender um pouco como supostamente a hidroxicloroquina deveria funcionar. Para entrar nas células animais, o coronavírus pode se valer de dois mecanismos. O primeiro é se ligando a receptores de superfície das células do hospedeiro para introduzir o seu material genético diretamente no interior da célula. No segundo mecanismo, o vírus é absorvido por invaginações da membrana celular (endossomos) e invadem o citoplasma celular a partir daí. Esse segundo mecanismos, o realizado por endossomos, necessita de uma proteína funcional chamada catepsina L, que necessita de um meio ácido para funcionar. Nesse contexto, a hidroxicloroquina atua diminuindo a acidez do meio intracelular, impedindo a ação da catepsina L, impedindo a entrada do coronavírus na célula. Para voltar para nossas preposições, podemos descrever a atuação da hidroxicloroquina da seguinte forma:
P1- Para a hidroxicloroquina funcionar no combate a COVID19 ela necessita prevenir a entrada do coronavírus nas celulas pulmonares humanas.
P2- Hidroxicloroquina diminui a acidez intracelular, afetando o funcionamento da catepsina L.
P3- Catepsina L é usada pelo coronavírus para entrar na célula.
Segundo essa lógica – e essa era a lógica que poderíamos aceitar no começo do ano – a hidroxicloroquina (potencialmente) funcionaria no combate a COVID19. Mas o diabo mora nos detalhes. As células usadas inicialmente para demostrar que a hidroxicloroquina funciona in vitro eram culturas de células de rins de macacos. Essas células normalmente apresentam resultados bons o suficiente para a maior parte dos fármacos, porém no caso do coronavírus a coisa parece ser mais complicada. Enquanto é verdade que em células de rim a Catepsina L é essencial para a ação de entrada do vírus, células pulmonares humanas não apresentam essa enzima em grandes quantidades.
Ao invés, o mecanismo de entrada do coronavírus na célula é mediada por uma enzima chamada TMPRSS2. O problema é que, diferente da Catepsina L, o funcionamento da TMPRSS2 não é afetado pela alteração da acidez do meio celular. De fato, um estudo recente em células pulmonares humanas demonstrou que a hidroxicloriquina é incapaz de impedir a invasão das células pelo coronavirus. Assim, podemos atualizar a descrição da atuação da hidroxicloroquina da seguinte forma:
P1- Para a hidroxicloroquina funcionar no combate a COVID19 ela necessita prevenir a entrada do coronavírus nas celulas pulmonares humanas.
P2- Hidroxicloroquina diminui a acidez intracelular, afetando o funcionamento da catepsina L.
P3- Catepsina L é usada pelo coronavírus para entrar em células de rim.
P4- TMPRSS2, que é usada pelo coronavirus para entrar em células pulmonares, não é afetada pela hidroxicloroquina.
E disso segue que
C- Hidroxicloroquina não funciona no combate a COVID19 através do mecanismo proposto.
O que mostra que é plenamente lógico afirmar que a hidroxicloroquina não funciona.
Óbvio que isso não vai satisfazer os defensores da droga, pois inúmeros outros mecanismos podem ser propostos, inclusive mecanismos sem o menor respaldo científico, como foi o caso da “pílula do câncer”, uma droga sem efeito também defendida pelo presidente da república.
Eu acredito que a luta pela hidroxicloroquina vai durar muito mais tempo depois que sua discussão acadêmica estiver de fato encerrada. Estamos entrando em um caminho onde teorias conspiratórias, pseudociência e pseudofilosofia estarão intrinsecamente ligados com a política nacional. Vai ser um caminho tortuoso. Boa sorte a todos nós.
*Para os nerds: sim, eu estou mais que ciente das problemáticas sobre o grau de confiabilidade em resultados experimentais e estatísticos. Você pode transformar todos esses argumentos em probabilísticos e chegar a conclusão que a hidroxicloroquina muito provavelmente não funciona (o que é basicamente a mesma, visto que a única “certeza” que podemos ter em termos científicos são aquelas referentes à altas probabilidades).
Para saber mais
Boulware DR, Pullen MF, Bangdiwala AS, et al. A Randomized Trial of Hydroxychloroquine as Postexposure Prophylaxis for Covid-19. N Engl J Med. 2020;383(6):517-525. doi:10.1056/NEJMoa2016638
Liu, J., Cao, R., Xu, M. et al. Hydroxychloroquine, a less toxic derivative of chloroquine, is effective in inhibiting SARS-CoV-2 infection in vitro. Cell Discov 6, 16 (2020). https://doi.org/10.1038/s41421-020-0156-0
Wang, M., Cao, R., Zhang, L. et al. Remdesivir and chloroquine effectively inhibit the recently emerged novel coronavirus (2019-nCoV) in vitro. Cell Res 30, 269–271 (2020). https://doi.org/10.1038/s41422-020-0282-0
O autor
Fabio Machado é Biologo Evolutivo, pesquisador e professor. Amante dos animais, defensor da natureza, amigo do vento.
Este texto foi escrito originalmente no Blog Haeckeliano.
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Em textos anteriores, nós já vimos como minúsculos sinalizadores – os anticorpos – do nosso sistema imune trabalham para auxiliar nosso corpo a combater os patógenos que tentam nos fazer mal, na chamada Resposta Imune Humoral. Agora, vamos entender melhor como um exército de soldados pessoais combatem diariamente toda uma magnitude de inimigos que tentam invadir nosso organismo, na Resposta Imune Celular.
O que é Imunidade Celular
A resposta imune celular, ou imunidade celular, é aquela que reside (como o nome diz) nas nossas células do sistema imunológico. Ela pode ser passada de uma pessoa imunizada para um indivíduo que não teve contato com o patógeno através da transferência dessas células a partir da pessoa que já foi infectada. Este fenômeno nós chamamos de Transferência Adotiva, pois a pessoa que recebe as células as “adota”.
Mas de que células estamos falando?
Bem, aqui é uma pergunta complicada, pois o sistema imune é formado por uma infinidade de células com diversas, diferentes e muitas vezes redundantes funções, contudo aqui vamos abordar somente algumas delas. Primeiro precisamos lembrar de algo que já falamos sobre Anticorpos: a divisão e as principais características da imunidade inata e adaptativa. Começando pela Imunidade Inata, vamos citar as principais células responsáveis no combate dos três tipos de ameaças mais comuns: patógenos unicelulares (que vivem fora de nossas células), patógenos unicelulares (que vivem dentro de nossas células) e os vermes (representando a classe de patógenos multicelulares).
Macrófagos
Essas são as principais células responsáveis pelo combate aos patógenos extracelulares como bactérias, protozoários e fungos. Além disso, essas células tem um papel muito grande na limpeza dos tecidos durante e após uma infecção, eliminando restos de células mortas e auxiliando no processo de cicatrização. Dentre muitas habilidades, a principal arma dos macrófagos no combate a patógenos é a Fagocitose: o simples fenômeno de envolver uma partícula externa e/ou patógeno, trazê-la para dentro da célula (simbolizado no ato de comer) e digerir essa partícula ou patógeno. O interessante desse mecanismo é que alguns pesquisadores da evolução do sistema imune consideram ele o primeiro mecanismo imune a surgir 1. Isto porque mesmo os animais mais ancestrais (as esponjas) já possuem células com essa função de “comer”. Todavia, nesses animais tais células têm a função ligada à alimentação e não à defesa como em nós, mamíferos.
Células Natural Killers
Podemos dizer que essas células são a Polícia ou os Agentes Especiais do sistema imune inato. São as responsáveis por matar células modificadas. Isto é, aquelas células que sofreram alguma modificação dentro de si, seja pela infecção por um vírus ou outro patógeno intracelular, a transformação em uma célula cancerígena ou mesmo o envelhecimento celular. Essas células também estão envolvidas na rejeição de transplantes, por reconhecerem as células do doador como não pertencentes a nós.
Diferentemente dos Macrófagos, essas células atuam não engolindo outras células. Mas liberando substâncias antivirais (os famosos Interferons) e citotóxicas. Com essas últimas sendo substâncias capazes de fazer com que as células cometam suicídio, (processo chamado Morte Celular Programada, ou Apoptose). Vocês podem pensar então “Ahh mas Maurílio, como elas sabem que as células estão saudáveis e são nossas?”. Eu respondo vocês: as Natural Killers matam somente a células que não apresentam uma molécula chamada MHC ou Complexo Principal de Histocompatibilidade. Um termo que é, sim, muito complicado até para nós que somos da área! Mas que quer dizer algo muito simples: essa molécula é o nosso crachá.
Cada um de nós, humanos, temos um MHC diferente. Temos uma probabilidade próxima de zero de encontrarmos uma pessoa com um MHC igual ao nosso. Para se ter ideia, o grupo de genes responsáveis por essa molécula é aquele tem o maior número de variantes dentro da espécie humana. Assim, cada ser humano tem um MHC diferente, e todas as nossas células expressam ele. Como as Natural Killers fazem um “cara-crachá”, verificando se cada célula tem o nosso MHC, quando encontram alguma célula expressando um MHC diferente ou não expressam MHC qualquer, elas sabem que devem matar essa célula, ou por ela estar modificada (como no caso de câncer) ou por ela ser externa a nós.
Eosinófilos
Essas são as principais células responsáveis no combate a helmintos, ou comumente conhecidos: os vermes. Por esse tipo de patógeno ser muito grande, nossas células não conseguem “comer” ele, como os macrófagos fazem com bactérias e protozoários. Por causa disso, os eosinófilos carregam enzimas que liberam para destruir a parede das células do patógeno, ajudando no combate destes parasitas, mas também machucando os tecidos do hospedeiro – nós, no caso! Além disso, essas células são uma das principais responsáveis pelas alergias.
Agora, falando sobre a resposta imune celular adaptativa, nós nos focaremos nos Linfócitos T, visto que os linfócitos B já foram comentados anteriormente em outro texto. Aqui é preciso lembrar que diferentes das células da imunidade inata que reconhecem somente alguns padrões moleculares que são comuns em vários patógenos, os linfócitos conseguem reconhecer muito mais especificamente os patógenos, ao ponto de que muitas vezes eles acabam “confundindo” fragmentos de proteínas nossas com o de algum patógeno, e é assim que começa uma doença autoimune. Mas isso é assunto para um outro texto.
Além disso, é importante lembrar aqui também que são os linfócitos os responsáveis por gerar a memória imunológica, aquele fenômeno já comentado anteriormente em que após um primeiro contato com um patógeno, o sistema imune consegue responder de forma mais rápida, forte e eficiente contra esse mesmo patógeno em um segundo contato. Agora, falando dos linfócitos T, eles são divididos em duas classes de acordo com a sua função:
Linfócito T Auxiliar
Também conhecido como T Helper. Essa célula é responsável por liberar citocinas – proteínas que regulam a resposta celular – que vão dar todo o auxílio necessário para a resposta imune que já esteja atuando, seja ela antiviral, antibacteriana ou antiparasitária, por exemplo. Isso é feito de vários modos. Pode ser aumentando a eficiência de macrófagos em fagocitar e digerir e aumentando a produção de enzimas pelos eosinófilos. Também atuam ajudando os linfócitos B a se ativarem mais eficientemente e produzirem anticorpos mais específicos. Bem como aumentando a expressão de citocinas antivirais e substâncias citotóxicas pelas Natural Killers.
Linfócito T Citotóxico
Chamadas comumente de CTL. Assim como as Natural Killers, essas células são responsáveis por matar células modificadas (infectadas por vírus e cancerígenas). No final do processo, elas vão atuar da mesma forma que as Natural Killers. Para tanto, se utilizando de substâncias citotóxicas que levam as células afetadas a cometerem suicídio (apoptose), ao invés de fagocitarem como os macrófagos fazem. Contudo, a diferença é que essas células conseguem reconhecer especificamente quais células estão infectadas com qual patógeno, dessa forma, sua eliminação é muito mais eficiente.
Visto tudo isso…
Falou, falou… e a Covid-19?
Vocês viram que ficou longo né? Estamos recém começando! Fica ligado aí, porque no próximo texto vamos abordar um pouco das pesquisas referente ao estudo da Imunidade Celular contra o Covid-19. Intrigantemente, essa é uma área em que poucas pesquisas estão sendo feitas no atual momento. Apesar de alguns grupos (inclusive daqui da UNICAMP) estarem trabalhando fervorosamente para descobrir como os linfócitos T funcionam no combate o SARS-CoV-2.
Referências
Buchmann, K (2014) Evolution of innate immunity: clues from invertebrates via fish to mammals; Frontiers in immunology, 5, 459.
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.