Tag: covid-19

  • As não intermitências dos leitos de UTI

    Desde janeiro deste ano, estou participando de um clube de leitura com alguns amigos. Escolhido há meses, o livro da vez é As intermitências da morte”, de José Saramago.

    Nesse livro, num belo dia, a morte simplesmente resolve tirar um período sabático e ali, naquele país, ninguém mais morre. Maravilha né? Na verdade, nem tanto. Um caos é instalado naquele lugar, com direito a crise religiosa, crise funerária… E, claro, crise no sistema hospitalar…

    E era sobre isso que eu queria falar com vocês. Mas antes, leia abaixo um trecho que fala da crise que se instaura nos hospitais. Se você não conhece o livro, não se preocupe, não é spoiler e é um trecho pequeno e do início do livro – ah, e o texto é em português de Portugal!

    Também os directores e administradores dos hospitais, tanto do estado como privados, não tardaram muito a ir bater à porta do ministério da tutela, o da saúde, para expressar junto dos serviços competentes as suas inquietações e os seus anseios, os quais, por estranho que pareça, quase sempre relevavam mais de questões logísticas que propriamente sanitárias. Afirmavam eles que o corrente processo rotativo de enfermos entrados, enfermos curados e enfermos mortos havia sofrido, por assim dizer, um curto-circuito ou, se quisermos falar em termos menos técnicos, um engarrafamento como os dos automóveis, o qual tinha a sua causa na permanência indefinida de um número cada vez maior de internados que, pela gravidade das doenças ou dos acidentes de que haviam sido vítimas, já teriam, em situação normal, passado à outra vida. A situação é difícil, argumentavam, já começámos a pôr doentes nos corredores, isto é, mais do que era costume fazê-lo, e tudo indica que em menos de uma semana nos iremos encontrar a braços não só com a escassez das camas, mas também, estando repletos os corredores e as enfermarias, sem saber, por falta de espaço e dificuldade de manobra, onde colocar as que ainda estejam disponíveis. – As intermitências da morte. José Saramago, Companhia das Letras.

    Quando li esse trechinho não tive como não comparar com a situação que observamos em vários hospitais do país… Situação agravada pela COVID. Quando pensamos em leitos de enfermaria e UTI, pensamos em rotatividade: um fluxo contínuo de entrada e saída de pacientes. No caso dessa história contada por Saramago, as pessoas chegam doentes, às vezes em estado grave. Alguns provavelmente se curam e deixam os hospitais, mas outros com certeza chegam em estado muito grave, tão grave, que esses pacientes deveriam morrer – mas não morrem (afinal, a morte deu uma trégua). Assim, os leitos passam a ser ocupados por esses pacientes e acabam não são liberados… A consequência é que a ocupação, por esse motivo, atinge seu máximo em pouco tempo e pronto: está instaurado o caos descrito no trecho.

    Voltando a nossa realidade, o que observamos na Itália (em março) e estamos vendo agora em alguns estados do Brasil é que, além de um grande influxo de pacientes ao mesmo tempo (pacientes estes que não estavam sendo esperados, afinal pacientes com COVID não estavam no fluxo dos pacientes hospitalares até três meses atrás) nos hospitais, o período de internação, inclusive nas UTIs é bem maior. De acordo com a AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira) um paciente na UTI permanece internado, em média, por cerca de 6 dias, enquanto para um paciente com COVID a duração da internação na UTI é de aproximadamente 14-21 dias. Soma-se a isso os profissionais da saúde que acabam se contaminando e devem ser afastados e os leitos ocupados pelos pacientes do fluxo normal (afinal derrames, acidentes, câncer e outras emergências continuam acontecendo mesmo com a pandemia!).

    Em reportagem do dia 19/06/2020, a BBC Brasil apresentou a figura abaixo com as taxas de ocupação de leitos de UTI nos Estados Brasileiros, com dados das secretarias de saúde dos estados até o dia 17/06. Alguns estados (n=14) apresentaram sinais de queda devido às medidas de distanciamento social adotadas (AM, AP, CE, ES, MG, PA, PB, PE, PI, RJ, RN, SC, SP e TO), seis estados estão com as taxas de internação estabilizadas ou com sinais de estabilização (AC, AL, BA, GO, MA, RR) e 6 estados (MS, MG, PR, RS, RO, SE) + o Distrito Federal (DF) estão com taxas em ascensão ou com sinais de alta.

    Apenas como exemplo, de acordo com a reportagem, o principal hospital de Roraima (HGR) em uma semana teve um pulo de 71% para 110% da capacidade. Aqui, em Belo Horizonte (onde moro), estamos vendo um aumento relativamente rápido das ocupações de leitos após a abertura de quase todo o comércio; a Santa Casa BH, por exemplo, está se preparando para, nos próximos dias, dobrar de 50 para 100 os leitos de UTI. Isso nos leva a inferir que alguns locais ainda não entraram em colapso por estarem conseguindo abrir novos leitos em tempo de atender à população.

    Essas taxas de ocupação de leitos são um dos principais indicadores para os dirigentes tomarem as decisões sobre abrir ou não os comércios locais. Mas pela dinâmica da infecção, geralmente esses dados refletem as taxas de infecção com 2 semas de atraso. Assim, as decisões devem ser tomadas com cautela e previsão estimada da situação da contaminação em cada cidade individualmente. Comparar dados de cidades diferentes, em momentos diferentes da curva, e de países diferentes talvez não seja uma boa ideia. A Ana Arnt faz uma reflexão sobre isso nesse post: “Podemos comparar estas duas cidades? Exercícios complexos para uma pergunta simples” (parte 1) e (parte 2).

    DICA DE LIVRO!

    Para terminar, queria voltar na indicação do livro As intermitências da morte”, de José Saramago. Neste livro, Saramago, laureado com o prêmio Nobel de Literatura em 1998, parte de uma premissa simples para escrever um livro fantástico: e se as pessoas parassem de morrer?

    Uma pergunta que parece irrelevante, mas que quando analisada mais a fundo traz consigo grandes questões… Economia, saúde e até mesmo a religião são afetadas. O que parece ser um grande acontecimento feliz, a vida eterna se transforma, em pouco tempo, numa situação de difícil resolução.

    Apesar de estar esgotado na editora em sua versão física, o livro pode ser comprado em ebook. Clicando e comprando por este link você é direcionado para a Amazon e pode ajudar o blog: As intermitências da morte”, de José Saramago.

    REFERÊNCIAS:

    Reportagem da BBC Brasil: Coronavírus: 14 Estados têm queda de internações após isolamento social; DF e outros 6 Estados enfrentam alta.

    Comunicado da AMIB, disponibilizado no site da SOMITI: COMUNICADO DA AMIB SOBRE O AVANÇO DO COVID-19 E A NECESSIDADE DE LEITOS EM UTIS NO FUTURO

    Aproveite e nos siga no Twitter, no Instagram e no Facebook!

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Ciência para crianças! Distância da família

    O isolamento social é a forma mais eficiente para evitar a disseminação da pandemia de Covid-19. Com isso, muitas vezes precisamos ficar longe de familiares e amigos muito queridos, para o bem-estar e segurança de todos. 

    Neste quadrinho, Dragonino está enfrentando a saudade de sua mãe, que é médica e trabalha na linha de frente do combate à Covid-19, e de seus avós, que são velhinhos e podem ficar doentes facilmente. Hoje ele veio conversar um pouco com a gente sobre como está se sentindo e porque precisamos permanecer fortes!

    Dragonino sente muita falta do contato físico e da convivência com as pessoas, mas ele também está aprendendo que a internet e a tecnologia podem ajudar a manter o contato com quem amamos, o que pode aliviar um pouco a solidão e a saudade! E depois que tudo isso passar, ele não vê a hora de poder voltar a abraçar todo mundo!

    Quadrinho "Ciência para crianças!" com o tema distância da família.

    Fontes:

    https://coronavirus.saude.gov.br/

    https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019

    Equipe: 

    • Design: Giovanna S. Veiga
    • Pesquisas e roteiro: Edilaine C. Guimarães e Carla R. de Souza
    • Supervisão: Vinicius Saragiotto, Verônica Dos S. Sales, Bianca B. De M. Fonseca
    • Orientação e revisão: Carolina S. Mantovani e Lúcia E. Alvares.

    English version

    Translation: Allan Cavalcante and Giovanna S. Veiga

    Quadrinho "Ciência para crianças!" com o tema distância da família, traduzido para o inglês.

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Flexibilizar ou não o isolamento, eis a questão.

    Nas primeiras semanas de junho, após quase dois meses de isolamento social, muitas cidades optaram por implementar planos de flexibilização do isolamento social com reabertura gradual do comércio e demais serviços ditos não essenciais. Em meio a um cenário ainda crescente do número de casos da COVID-19 e sem qualquer certeza de termos atingido o “pico da curva”, uma pergunta torna-se inquietante: qual a lógica por trás dessas ações? As medidas certamente têm por objetivo a retomada gradual da “normalidade” com foco no fortalecimento econômico. Mas, de fato, quais as consequências possíveis de tais ações? Com base nos dados expostos pelo plano São Paulo1 tentamos aqui costurar interpretações para entender a lógica que levou estados e municípios a adotarem medidas de flexibilização do isolamento social.

    Muitos devem lembrar do tal achatamento da curva, amplamente comentado no início da pandemia. A tentativa de “achatar a curva” dos casos da COVID-19 consistia em promover ações de isolamento social de modo que, ao ficarmos em casa, pudéssemos retardar a taxa de contaminação. Tínhamos que ter em mente que, enquanto não houvesse (e ainda não há) uma vacina, todos, hora ou outra, seríamos contaminados pelo corona vírus. A ideia é que isso ocorresse gradualmente de modo que o número de doentes não ultrapassasse o número de leitos disponíveis no sistema de saúde. Ou seja, imaginemos que uma determinada cidade dispõe de 100 leitos de UTI. Se tivermos 101 pacientes, 1 deles ficará sem atendimento adequado e correrá um risco maior de vir a óbito.

    Em diversas cidades, tais ações têm logrado êxito, considerando os números oficiais. 

    Mas o que mudou para que fosse possível nos libertarmos das amarras do isolamento social? Todos já se contaminaram, certo? ERRADO! Chegamos ao pico da curva? ERRADO! Descobrimos o tratamento ou a vacina? ERRADO. Então o que fez o governo flexibilizar o isolamento? Vamos tentar compreender a razão olhando os dados disponibilizados pelo governo do estado de São Paulo, que se assemelham a de outros estados da federação.

    O que é o plano SP?

    O Plano propõe que os municípios ou regiões sejam classificados em termos de “fases”. Cada fase implica um maior ou menor grau de liberação de atividades sociais e econômicas como mostrado na figura abaixo1.

    Fonte: Plano São Paulo.

    Para que uma região seja classificada em uma das fases, o governo propôs que cinco indicadores devem ser analisados: Taxa de ocupação dos leitos de UTI COVID, leitos de UTI para cada 100.000 habitantes, evolução no número de casos; evolução no número de internações e evolução no número de mortes. Desta forma, uma região que atinja a pontuação mínima para os indicadores pode adotar medidas de flexibilização do isolamento, conforme ilustra a figura abaixo1.

    Fonte: Plano São Paulo.

    Compreendido o sistema e os indicadores, a questão que nos fazemos é: o que mudou do início da quarentena até aqui?

    Dentre as ações propostas pelos governos, a construção de hospitais de campanha e a aquisição de respiradores foi, sem dúvida, a que demandou grandes esforços, culminando no aumento do número de leitos de UTI. Ou seja, não significa que o número de casos diários diminuiu ou que o número de casos tem estabilizado. Isso pode ser constatado pelos dados disponibilizados pelo próprio sistema de gerenciamento do governo2.

    A consequência do aumento do número de leitos é que com isso se consegue um menor índice de ocupação dos mesmos. Por exemplo, se temos 80 casos para 100 leitos a taxa de ocupação é de 80%. Se dobramos o número de leitos e mantermos o mesmo número de casos teremos 80 casos para 200 leitos, implicando uma taxa de ocupação de 40%. É exatamente aqui que reside o problema. Se o aumento semanal no número de casos durante o isolamento social já está sendo verificado, ao promover a reabertura obviamente este índice irá disparar, como aconteceu em todos os lugares que não implementaram o isolamento ou como tem ocorrido em regiões do BRASIL que já adotaram a flexibilização3,4.

    Então, qual a mensagem que o governo (neste caso o de São Paulo) está passando?

    Podemos dizer que, de certo modo, os gestores optaram nesse momento por contaminar mais rápido as pessoas mas tentando garantir que as mesmas tenham atendimento caso isso ocorra. Essa é a opção. Esse é o risco. Deixou-se um pouco de lado o achatamento da curva ou, como preferem alguns, foram acrescentados novos números ao estado.

    Vale ressaltar que, ocorrendo o óbvio (o aumento abrupto no número de casos), o governo pretende implementar um novo isolamento ou o retorno a fase 1. Apenas nos questionamos o quão viável seria, neste momento, aumentar a contaminação por meio da flexibilização do isolamento social? Conseguiremos retomar novamente o isolamento, caso o plano não de certo? O resultado parece poder ser visualizado desde já. Mas veremos, de fato, verificaremos as consequências nas próximas duas semanas. 

    Para saber mais

    1. Plano São Paulo. Disponível em https://www.saopaulo.sp.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/PlanoSP-apresentacao.pdf

    2. Boletim CIVID-19 São Paulo. Disponível em: https://www.seade.gov.br/coronavirus/

    3. Folha de Pernambuco: Pernambuco freia avanço da retomada gradual em 85 cidades. Disponível em: https://www.folhape.com.br/noticias/coronavirus/pernambuco-freia-avanco-da-retomada-gradual-em-85-cidades-veja-lista/143619/

    4. Portal G1: Prefeitura de Campinas publica decreto com prorrogação da quarentena. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2020/06/12/ultimas-noticias-de-coronavirus-na-regiao-de-campinas-em-12-de-junho.ghtml

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • A ciência pelos olhos da Dra. Marjorie Cornejo Pontelli e da doutoranda Pierina Lorencini Parise, duas jovens cientistas

    À esquerda, equipe de pesquisadores do Centro de Pesquisa em Virologia da FMRP-USP a frente das pesquisas sobre Sars-Cov-2 e COVID-19. Dra. Marjorie está no centro da foto. À direita, Pierina segurando uma plca de cultura de células. Arquivo pessoal. 2020.

    Dando prosseguimento ao nosso Ciclo Temático Epidemias, junto de minha colega Bruna Bertol, hoje apresentamos a segunda entrevista do ciclo, dessa vez realizada com a Dra. Marjorie Cornejo Pontelli e a doutoranda Pierina Lorencini Parise, duas jovens cientistas que estão atuando diretamente na pesquisa do novo coronavírus SARS-CoV-2. Se você tem curiosidade em saber como é trabalhar com o agente causador da pandemia que aflige o mundo e como é ser uma jovem mulher cientista, não perca essa leitura!   

    A Dra. Marjorie Cornejo Pontelli é uma jovem virologista brasileira, bióloga pela Universidade Federal de Santa Maria (2012), mestra em Ciências – Área Bioquímica (2014) e doutora em Ciências – Área Biologia Celular e Molecular (2019) pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo (FMRP-USP). 

    Dra. Marjorie no dia da sua defesa de doutorado em Ciências – Área Biologia Celular e Molecular (2019) pela FMRP-USP. Arquivo pessoal

    Atualmente, realiza pós-doutorado no grupo de pesquisa do Prof. Dr. Eurico de Arruda Neto no centro de Pesquisa em Virologia da FMRP-USP e seu trabalho tem se focado na compreensão da biologia do vírus SARS CoV-2, responsável pela COVID-19, bem como na busca por opções terapêuticas para a doença.

     A Dra. Marjorie participa de um estudo conduzido pelo Hemocentro de Ribeirão Preto e o Hospital das Clínicas da FMRP-USP que busca tratar pacientes graves da COVID-19 com o uso de plasma (porção líquida) do sangue de pessoas que já se recuperaram da doença. 

    Com essa abordagem, espera-se que haja uma recuperação mais rápida, menor tempo de internação e de UTI e/ou um menor risco de mortalidade. Inclusive, qualquer pessoa recuperada de COVID-19 (sem sintomas há pelo menos 14 dias) pode ser um doador de plasma no Hemocentro de Ribeirão Preto. Se quiser doar plasma, ligue para o 0800 979 6049 ou para o WhatsApp: 16 98215-1937 ou 16 98215-1277 ou envie e-mail para doador@hemocentro.fmrp.usp.br

    Além disso, a equipe composta pelo prof. Dr. Eurico e a Dra. Marjorie demonstrou que o novo coronavírus pode permanecer no corpo de pacientes recuperados por tempo indeterminado, o que pode fazer com que a transmissão viral continue, e pode explicar os casos relatados na Coreia do Sul e na China de indivíduos recuperados que voltaram a testar positivo para a doença. 

    Pierina expondo seu trabalho durante congresso. Arquivo pessoal

    A doutoranda Pierina Lorencini Parise é graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente, faz seu doutorado direto na área de microbiologia, com ênfase em virologia, no Laboratório de Vírus Emergentes (LEVE) sob orientação do Prof. Dr. José Luiz Proença Modena, na mesma universidade. A página do Instagram do grupo @leve_ibunicamp é um excelente fonte de informação sobre o estudo de vírus emergentes, com atualizações sobre seus mais recentes projetos e descobertas. 

    Embora o foco principal de seu projeto de doutorado seja uma outra família de vírus, o momento pediu uma mudança de seus esforços de pesquisa. Hoje Pierina integra a força tarefa – grupo multidisciplinar que envolve docentes da Unicamp, do LNBio e do CNPEM – para o estudo do SARS-CoV-2, ajudando no desenvolvimento de testes rápidos para a região de Campinas e no estudo de reposicionamento de fármacos para o tratamento da COVID-19.

    A seguir, reproduzimos na íntegra as respostas das duas cientistas:

    Cientista – era isso que você queria ser quando crescesse?

    Marjorie: Sim. A ciência sempre me despertou muito interesse, desde a infância. Meus programas preferidos eram Mundo de Beakman e Testemunha Ocular. Com certa frequência eu fazia experimentos em casa. 

    Pierina: Na verdade quando era criança meu sonho era ser astronauta, mas desisti quando descobri que não poderia levar minha cachorrinha nas missões comigo e imaginei que sentiria saudade dela e dos meus pais. Mas desde pequena sempre tive muita curiosidade por tudo que vinha da natureza. Meus avós são sitiantes e eu lembro de estar sempre brincando entre as árvores e fingindo que era cientista. 

    Um dos presentes mais marcantes que eu ganhei de um tio na infância foi um kit de brinquedo de química com alguns reagentes para fazer experiências e um mini microscópio que eu guardo até hoje. Além disso, meus pais sempre incentivaram muito minha curiosidade e gosto pela leitura, que são características essenciais para todo cientista. 

    Algum cientista ou descoberta científica a inspirou na escolha dessa carreira?

    Marjorie: Um assunto muito inspirador foi a Teoria da Evolução. Durante o ensino fundamental estudei em um colégio evangélico. Uma das matérias que tínhamos era o estudo da Religião Cristã. Em uma dessas aulas o tema foi a origem dos seres vivo e nosso professor falou sobre o criacionismo. 

    Eu que sempre gostei de programas de ciência e já havia visto sobre a evolução, perguntei sobre como isso se relacionava com a evolução. A resposta foi bem categórica: 1º isso era uma teoria e 2º se nós viemos dos macacos, por que eles não continuavam evoluindo? Quando cheguei em casa, abri a Barsa e li sobre teoria e evolução. Achei fantástico que havia várias áreas e evidências que se complementavam. Foi nesse momento que decidi seguir a carreira de cientista. 

    Pierina: Eu tive certeza de que queria ser cientista na primeira aula de genética que tive com a professora de biologia Carla, ainda no ensino fundamental. Eu lembro que estudar sobre as leis de Mendel foi uma das coisas mais incríveis que eu tinha aprendido na época. A partir disso, falei com meu primo Márcio, que também é pesquisador e biólogo formado pela Unicamp, e ele foi um dos meus maiores incentivadores na ciência e a pessoa que me guiou na escolha da carreira, e através dele tive meu primeiro contato com o mundo acadêmico.

    Sempre se interessou em estudar os vírus? Como sua trajetória acadêmica a levou à ênfase em virologia?

    Marjorie: Eu sempre me interessei por Microbiologia. No final do primeiro semestre do curso de Ciências Biológicas já havia buscado um laboratório de Microbiologia, mas foi no final do 3º semestre que entrei para o laboratório de Microbiologia Clínica onde fiz meu trabalho de conclusão de curso (TCC). 

    Quando decidi seguir a carreira acadêmica, fiz um curso de Bioquímica na USP de Ribeirão Preto e tive um relance do que seria trabalhar como pesquisadora. Ao final da graduação, passei no mestrado para trabalhar com uma archaebacteria extremofílica (organismo que vive em condições geoquímicas extremas). Aprendi muito sobre biologia molecular e bioquímica nesse período, bases fundamentais para estudar virologia. 

    E um dia, em um dos seminários do departamento, conheci a linha de pesquisa de virologia. Foi algo que me inspirou profundamente. Quando percebi, já estava fazendo a seleção de doutorado no departamento de Biologia Celular e Molecular, no laboratório de Virologia. 

    Pierina: Eu sempre tive em mente que queria uma profissão que me permitisse ajudar muitas pessoas com meu trabalho. No segundo ano da faculdade de biologia, tive meu primeiro contato com a virologia nas aulas do meu atual orientador, o professor Dr. José Luiz Modena, onde vi a oportunidade de estudar um tema que afeta diretamente a vida das pessoas, além de ser um assunto que me permitiria trabalhar e aprender mais sobre outras áreas que me interessavam como Imunologia, Biologia Celular e Genética. 

    No final do semestre eu fui conversar com o professor sobre a possibilidade de fazer iniciação científica em seu laboratório, onde estou até hoje fazendo meu doutorado direto. Na época, o professor era recém contratado e teve que se ausentar por alguns meses para finalizar seu pós doutorado nos EUA. Como eu seria sua primeira aluna, a professora Dra. Silvia Gatti me recebeu nesses primeiros meses em seu laboratório, que posteriormente seria compartilhado com o professor José Luiz, onde tive oportunidade de começar a aprender mais sobre o tema com a professora e ter meu primeiro contato com as técnicas de virologia. 

    Durante minha iniciação científica me dediquei a estudar a relevância da replicação em endotélio para a neuropatogênese dos vírus Zika e Oropouche, um vírus que circula na região amazônica e causa uma doença chamada de Febre do Oropouche, que já atingiu mais de 500 mil pessoas em diversos surtos que ocorreram na região. Apesar da sua importância, esse vírus ainda é pouco estudado. Atualmente no meu doutorado busco entender o papel do IRF5 (um importante fator da resposta imune) na patogênese e neurovirulência do vírus Oropouche, estudando principalmente modelos de barreira hematoencefálica para entender como acontece a entrada desse vírus no cérebro. 

    Como são desenvolvidas as pesquisas em virologia? Há alguma dificuldade específica que você gostaria de ressaltar?

    Marjorie: No laboratório que desenvolvi meu doutorado, eram duas as principais linhas de pesquisa: vírus respiratórios e arbovírus (transmitidos por artrópodes, como insetos, por exemplo). Dentro desses temas as abordagens eram bem diversificadas que iam desde a biologia básica do vírus (processos de replicação, entrada, montagem) até a persistência em tecidos do hospedeiro. 

    No meu caso, me dirigi à pesquisa dos arbovírus. Em relação às dificuldades, vale ressaltar duas que me atingiram em cheio: a falta de insumos comerciais e a falta de interesse das agências de fomento em vírus que não são de interesse “imediato”.

    Pierina: Os vírus são parasitas intracelulares obrigatórios e para estudá-los é preciso que eles se repliquem em culturas celulares ou modelos animais. No nosso laboratório, cultivamos diferentes tipos de células de acordo com as análises que serão realizadas, como por exemplo células isoladas do cérebro ou intestino. Além disso, os modelos animais são essenciais para situações que não podem ser reproduzidas in vitro, como estudos sobre o papel da resposta imune frente a infecção viral. 

    Outra ferramenta essencial para nossos estudos é a biologia molecular, utilizada para quantificar a replicação dos vírus nos nossos ensaios ou amostras de pacientes. Para mim, a maior dificuldade que temos hoje é com relação aos reagentes: a maior parte deles tem que ser importada, demorando de 3 a 6 meses para chegar, o que muitas vezes atrasa nosso trabalho, além do alto valor pelas importações serem feitas em dólar. 

    Qual é o objetivo e quais as possíveis contribuições da sua atual pesquisa sobre o SARS-Cov-2 e a COVID-19?

    Marjorie: Nenhum trabalho dessa magnitude é desenvolvido sozinho. A nossa equipe tem desenvolvido pesquisas de ponta em diversas frentes: triagem de medicamentos, patogênese, interação vírus-hospedeiro, biologia do vírus, etc. 

    De imediato, nossa maior contribuição tem sido participar da Cooperativa Paulista de Combate à COVID-19 que está usando o plasma (a porção do sangue que contém anticorpos) de pessoas já curadas da COVID-19 para tratar pacientes em estado grave. Neste projeto, nossa participação é de triar os plasmas que possuem anticorpos que consigam reconhecer o vírus SARS-CoV-2. Em Ribeirão Preto, nosso laboratório em conjunto com o Hemocentro da USP já obteve êxito usando este tipo de tratamento. 

    Pierina: Atualmente, nosso laboratório parou todas as pesquisas que estavam sendo realizadas para focar no estudo do SARS-Cov-2 em parceria com outros professores que também tinham interesse em estudar o vírus. Em resumo, buscamos entender os mecanismos pelos quais o vírus leva algumas pessoas a apresentarem a doença de forma mais grave do que outras, como fatores associados com a microbiota, envelhecimento e diabetes. Além disso, estamos estudando reposicionamento de fármacos que podem ter efeito contra o SARS-Cov-2 em parceria com pesquisadores do CNPEM.  

    Nesse sentido, como é a sua rotina como jovem pesquisadora no laboratório em que atua? Você tem acesso aos materiais e à infraestrutura necessárias para execução do seu trabalho?

    Marjorie: Nossa equipe de virologistas tem se dividido para podermos dar atenção a todos os projetos com SARS-CoV-2 que estão acontecendo na FMRP-USP. Eu estou participando mais ativamente em três principais projetos: triagem dos plasmas convalescentes, papel dos neutrófilos (um tipo de célula humana da imunidade) na COVID-19 e células circulantes infectadas pelo SARS-CoV-2 em pacientes. 

    Posso dizer que tenho um grande privilégio de fazer parte de uma equipe multidisciplinar que recruta os pacientes e fornece os insumos. Além disso, o Centro de Pesquisa em Virologia da FMRP-USP conta com um laboratório BSL-2, onde podemos processar as amostras dos pacientes e um laboratório BSL-3 amplamente equipado, no qual fazemos os experimentos com vírus isolado e modelos animais. Dessa forma, conseguimos trabalhar de forma segura tanto para nós quanto para a população.

    Pierina: Com a pandemia nossa rotina ficou ainda mais intensa, trabalhamos em período integral quase todos os dias da semana, incluindo feriados e finais de semana. Para trabalhar com vírus como o SARS-Cov-2 é necessário uma estrutura de biossegurança de nível 3 que existe em poucos laboratórios do país e o LEVE é um deles. Essa estrutura demanda treinamento especial das pessoas que irão trabalhar no local e o uso de equipamentos de proteção individual específicos, como macacão impermeável, máscara N95, faceshield (protetor facial), luvas e bota. 

    Além disso, o laboratório conta com sistema de pressão negativa e filtros para impedir que o vírus seja liberado no ambiente externo. A manutenção desses filtros e a compra dos equipamentos de proteção individual (EPIs) são muito caras, e com a pandemia alguns dos produtos ficaram ainda mais difíceis de comprar pela falta no mercado.

    Você acha que estamos perto de encontrar um remédio (antiviral) eficiente? E vacina? Quais os desafios em se criar um antiviral ou uma vacina?

    Marjorie: Um tratamento para um estágio específico da doença pode ser possível. Existem muitos grupos no mundo focando os esforços em readaptar medicamentos aprovados para outras doenças para tratar a COVID-19. Agora, uma vacina segura e eficiente leva anos para ser desenvolvida. No meu entendimento, o maior desafio é a falta de conhecimento básico em relação a esse vírus, que impede tanto o avanço na produção de um antiviral específico quanto na de uma vacina eficaz

    Para desenvolver uma vacina ou um medicamento, é necessária uma base muito sólida de conhecimento chamado de “ciência básica”. Quanto melhor compreendido a interação patógeno-hospedeiro, mais rapidamente será desenvolvido alguma forma de intervenção. Sem entender como ele funciona no hospedeiro e de onde veio, as abordagens ficam bem restritas ao que há de conhecimento para vírus semelhantes. 

    Esse é outro ponto interessante para se considerar. O SARS-1 – “parente” mais próximo do Sars-Cov-2 – foi erradicado após 2003. Portanto, novas pesquisas após o ápice da epidemia foram deixadas de lado, e os grupos que tentaram continuar se depararam com a falta de interesse em financiar o estudo de um vírus que já havia sido eliminado.

    Pierina: Atualmente temos vários antivirais que apresentaram efeito na inibição da replicação do SARS-Cov-2 in vitro que já estão sendo utilizados em testes clínicos em todo o mundo, incluindo alguns dos medicamentos selecionados nos nossos estudos de reposicionamento de fármacos em parceria com o CNPEM. Se algum desses medicamentos se mostrar comprovadamente eficaz no controle da doença, em breve veremos os resultados. 

    Com relação a vacinas, já temos várias pesquisas em fases avançadas de teste em humanos, como é o caso da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford, que será testada em voluntários aqui no Brasil. Além disso, tratamentos com imunomoduladores, anti coagulantes e transferência de plasma de pacientes que se recuperaram da doença também estão sendo estudados como forma de impedir o desenvolvimento de casos graves.

    Eu acredito que o principal desafio agora é a corrida contra o tempo. O desenvolvimento de remédios e vacinas passa por diversas etapas para garantir sua segurança e eficácia, e pode demorar anos até que os estudos sejam concluídos e os produtos comercializados.

    Como você vê o cenário mundial de enfrentamento da pandemia nesse momento?

    Marjorie: Achei impressionante como a China, tendo uma população de mais de 2 bilhões de pessoas, conteve a epidemia com menos de 90.000 casos confirmados. É difícil para o ser humano, como um ser sociável, fazer o distanciamento social. Por isso, de certa forma entendo o porquê a adesão a essa medida é muito difícil. Sem sombra de dúvidas, governos que tomaram medidas mais enérgicas conseguiram retomar com mais rapidez a reabertura da circulação da população. E hoje no Brasil estamos sofrendo as consequências de escolhas ruins dos (e de) governantes.

    Pierina: Após alguns meses do início da pandemia, conseguimos ver um padrão de sucesso nos países que controlaram de forma eficaz a disseminação do vírus, e isso é devido a dois fatores principais: o isolamento social e a testagem em massa da população. Atualmente, grande parte desses países já iniciaram sua reabertura tomando os cuidados necessários para que não ocorra uma segunda onda de surtos. Infelizmente, no Brasil ainda é baixo o índice de adesão ao isolamento social e existe uma grave defasagem na testagem da população, o que pode fazer com que a gente ainda demore algum tempo para conseguir conter o avanço da doença.

    Corremos o risco de termos um outro vírus com o mesmo comportamento do coronavírus em breve?

    Marjorie: Acredito que agora teremos uma vigilância maior em diversos aspectos por parte de toda sociedade. Tanto da população, quanto do corpo científico. Mas, como virologista, sai que é possível a emergência de vírus pandêmicos a qualquer momento.

    Pierina: As mutações nos vírus acontecem de forma muita rápida e de tempos em tempos surgem novas cepas patogênicas que podem causar grandes estragos, como já visto diversas vezes na história. Porém, existem formas de minimizar os danos e controlar ocorrência de novos surtos. 

    Muitos desses vírus que causam doenças em humanos circulam na natureza entre animais e, a partir do momento em que os humanos passam a invadir o seu habitat natural, aumenta a chance de serem acometidos por novas doenças e gerar surtos como visto com o SARS-Cov-2. 

    Dessa forma, fatores como o desmatamento e mudanças climáticas, que fazem com que esses animais selvagens ou seus vetores estejam em contato cada vez mais próximo com os humanos, são de extrema importância para pensarmos em formas de impedir a ocorrências de novos surtos. Além disso, a pandemia atual provou que o investimento em ciência é essencial para que estejamos preparados para controlar com eficiência o surgimento de novas situações como esta.

    Ao longo da sua carreira, você já enfrentou alguma dificuldade enquanto cientista por ser mulher?

    Marjorie: Sim. Existem muitos obstáculos e preconceitos que encaro diariamente sendo uma cientista mulher. Eu quando era criança e pensava em ser cientista, imaginava que ser uma mulher cientista seria igual a ser um homem cientista. Hoje percebo que parecem carreiras distintas. Preferencialmente os homens são ouvidos em diversas ocasiões. 

    Além disso, diversas qualificações de um bom pesquisador homem não são bem vistas em pesquisadoras mulheres. Por exemplo, quando assume a liderança de algum projeto e precisa delegar e cobrar, você acaba sendo tachada de “mandona”. Um homem nessa posição seria um bom líder. Se você for muito assertiva, será chamada de agressiva. 

    Você precisa ter muito mais tato para falar nessas situações. Inclusive por parte de outras mulheres, infelizmente. Uma forma que os homens podem nos ajudar é, ao invés de se sentirem ameaçados, encorajarem e exaltarem as mulheres inteligentes, competentes e fortes que os rodeiam.

    Pierina: Tenho sorte de fazer parte de um laboratório composto majoritariamente por mulheres e termos um orientador que nos incentiva na carreira científica sem fazer esse tipo de distinção. Mas fica claro na maior parte dos eventos científicos que, por mais que a plateia seja homogênea e conte com muitas mulheres, nos cargos mais altos, bancadas e palestras de convidados a grande maioria é composta por homens. E isso com certeza não é por falta de mulheres qualificadas que realizam pesquisas brilhantes.  

    Descreva, em poucas palavras, a ciência pelos olhos da Doutoranda Pierina Lorencini Parise.

    Marjorie: A ciência é extremamente apaixonante, é um processo diário de questionamentos e de busca por respostas. É muito gratificante você saber que um determinado processo biológico só é compreendido hoje em dia porque você estudou e o descreveu. 

    Ciência significa a liberdade de pensamento e o poder do conhecimento. Fazer ciência me permite nunca parar de sonhar e o poder de criar ferramentas. Felizmente, vivo em uma época em que é possível para mim como mulher seguir os meus sonhos e explorar minhas curiosidades. 

    Tenho muita gratidão pelas mulheres que vieram antes e quebraram as barreiras do conhecimento para tantas outras. E hoje ser uma mulher cientista buscando meu espaço é minha contribuição para o empoderamento feminino e para uma sociedade mais igualitária.

    Pierina: Para mim, a ciência é a ferramenta essencial para o desenvolvimento da sociedade, servindo para criar um mundo melhor e mais justo através do conhecimento.

    .

    Nós, a equipe do Ciência pelos Olhos Delas, agradecemos as duas cientistas que, mesmo diante de uma rotina bastante atribulada, dedicaram seu tempo a responder essa entrevista.  

    .

    Você pode interessar-se também pela nossa primeira Entrevista do Ciclo temático Epidemias com a farmacêutica e microbiologista Drª Tania Ueda-Nakamura que aborda a pandemia causada pela COVID-19 ou ler mais sobre a mulher que descobriu o primeiro coronavírus humano

    Confira ainda os “Colírio Científico” do Ciclo temático Epidemias sobre divulgadoras científicas brasileiras que estão produzindo conteúdo de qualidade durante a pandemia do novo coronavírus e sobre a antropóloga brasileira Debora Diniz, referência na discussão sobre igualdade de gênero e saúde pública no país durante epidemias.

    Esse texto teve a co-autoria da colaboradora Bruna Bertol.

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Somos Todos um: A pandemia e a questão Indígena

    Lá no início dessa pandemia, em março de 2020, na postagem ‘Como divulgar informações de prevenção do Covid-19 se a língua de seu país não é a sua?’ conversamos um pouco sobre o trabalho da Profa. Dra. Taciana de Carvalho Coutinho da UFAM (Universidade Federal do Amazonas) sobre os desafios de adaptar as informações de prevenção do Covid-19 para as comunidades indígenas próximas a UFAM em Benjamin Constant.

    Agora, em junho de 2020, conhecemos outra iniciativa, agora mais perto de casa, que também se propõe a contribuir com as comunidades indígenas na prevenção da Covid-19, a Organização Não-Governamental (ONG) Kamuri – Indígenismo, Ação Ambiental, Cultura e Educação

    Criada por indigenistas, em Campinas – SP, Kamuri realiza, desde 2006, diversas ações que promovem a divulgação da questão indígena e realiza trabalhos  em  comunidades indígenas, na formação de professores, inclusão digital das comunidades indígenas, registro das línguas e cultura indígena em mídias digitais,  e produção de material didático para a educação escolar indígena, além do apoio à produção de alimentos saudáveis e divulgação de técnicas de permacultura.

    No Estado de São Paulo a Kamuri desenvolve, desde 2013, um Programa de Revitalização das Línguas Indígenas no Estado – abrangendo as línguas Kaingang, Nhandewa/Tupi-Guarani, Krenak e Terena – em parceria com o Grupo de Pesquisa Indiomas (IEL/Unicamp) e com apoio da FUNAI, programa que já rendeu 7 publicações de materiais didáticos para as comunidades de São Paulo (beneficiando também comunidades do Norte do Paraná e de Minas Gerais).

    E durante essa quarentena tivemos a feliz oportunidade de conversar com a Prof. Dra. Juracilda Veiga – Co-Fundadora e atual Coordenadora da Kamuri sobre esse trabalhom sobre o trabalho que eles vem realizando, confira:

    Com quais comunidades indígenas vocês têm trabalhado?

    R:  A Kamuri é integrada por indigenistas, pesquisadores acadêmicos (especialmente da linguística, educação e antropologia), profissionais liberais e estudantes.

    Temos uma longa atuação em programas de educação escolar indígena (sobretudo no assessoramento direto a avaliações e planejamento de escolas indígenas e na formação de professores) e realizamos periodicamente os Encontros sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas – ELESI (um dos poucos – e um dos mais importantes – eventos de âmbito nacional, aberto, sobre educação indígena no Brasil).

    Desenvolvemos ações importantes de formação de professores e junto a escolas indígenas do Rio Grande do Sul (especialmente entre 2008 e 2014); participamos do projeto Web Indígena, conduzido pelo grupo InDIOMAS, e atuamos diretamente em educação junto aos professores de uma dúzia de escolas e áreas indígenas do Estado de São Paulo, especialmente com o programa de Revitalização Linguística, iniciado em 2013.

    Material de combate a disseminação do coronavírus realizado pela Kamuri

    No caso das comunidades do Alto Solimões, nossa atuação tem sido na forma de contribuição para combater a disseminação do Coronavírus nas comunidades indígenas, especialmente os Tikuna e Kokama. O Alto Solimões compreende 13 etnias (7 em território Brasileiro) e  concentra uma população indígena de cerca de 123 mil pessoas , (68 mil indígenas em território Brasileiro, desses 46 mil são Tikunas  ou 68 % do total da população indígena na região).

    As principais comunidades Tikuna são: Feijoal, com 577 famílias e cerca de 5000 mil pessoas.  Aldeia Belém do Solimões: 1.014 famílias,  5.800 pessoas.  Aldeia Umariaçu 1.  são 504 familias, 2.191 pessoas. Aldeia Umuriaçu 2.  São 1302 familias, e 5002 pessoas. Aldeia Filadelfia, 269 famílias. 1400 pessoas. E a campanha, à medida em que segue recebendo contribuições, buscará levar apoio a todas elas, além das famílias Kokama que já ajudamos, e famílias Tikuna da divisa, oficialmente moradores da Colômbia.

    Material de combate a disseminação do coronavírus realizado pela Kamuri

    Como tem sido o trabalho de divulgação científica sobre a prevenção da Covid-19 nessas comunidades assistidas por esse grupo de apoio voluntário?

    R: E diante dessa pandemia a Kamuri se propôs a colocar em prática uma Ação Solidária com as comunidades indígenas do Alto Rio Solimões (Tikuna e Kokama e outras etnias da tríplice fronteira Brasil, Colômbia e Peru).

    O pedido de socorro chegou ao IEL Unicamp  por Ozias Guedes Alberto, um mestrando indígena da etnia Tikuna, da Aldeia Feijoal (AM), que solicitava álcool em gel e mil máscaras para seu povo. Professores do IEL decidiram lançar uma Campanha para a arrecadação de recursos, solicitando apoio da Kamuri para organizar a arrecadação e a destinação final dos recursos, visto que estamos muito longe do local de realização das ações.

    Além de disponibilizar a conta da Kamuri para receber as contribuições em dinheiro, as coordenadoras da Kamuri articularam uma rede de apoio local, apoiando-se em grupos já organizados no Amazonas (em Manaus, Tabatinga e Benjamim Constant).

    As dificuldades de transportar álcool em gel de São Paulo para Tabatinga, fez optar por soluções locais mais ágeis e, nesse contexto, mais eficientes: montar nas cidades maiores próximas das aldeias, kits de higiene com água sanitária, sabão em pó, sabão em barra e sabonete.  E, também para contornar dificuldades logísticas e garantir rapidez no atendimento das urgências, em lugar de enviar máscaras de proteção prontas, decidiu-se por produzir localmente, gerando também, com isso, oportunidade de trabalho e renda para famílias locais.

    Informações atualizadas em 27/05/2020 sobre a situação da covid-19 nas comunidades indígenas, outras informações atualizadas podem ser conferidas aqui

    Local de Cobertura
    Casos Confirmados
    Casos que vieram a óbito

    Nos fale mais sobre o SOS TIKUNAS.

    R: A Campanha SOS TIKUNAS com o objetivo de apoiar as comunidades indígenas do Alto Rio Solimões contra a pandemia do o COVID 19 começou dia 7 de Maio de 2020 por iniciativa dos professores do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL-Unicamp).

    A propósito, imediatamente iniciada aqui, um docente do IEL atuando como Professor Visitante na Universidade de Pequim, divulgou a campanha também lá, entre docentes e estudantes, e enviaram um importante aporte em dinheiro para ajuda aos Tikuna.

    Junto desse trabalho, já realizado pela Kamuri, procuramos minimizar os efeitos da pandemia entre os indígenas daquela região, disponibilizando informações, materiais de divulgação cientifica em língua tikuna e português, apoio e tradução das comunidades interessadas.

    Também há ações de ajuda comunitária de promoção de kits de higiene, cestas básicas e a confecção de máscaras de pano para essas comunidade, que seguem junto com materiais de divulgação científica.

    A Kamuri também promove divulgação científica sobre a Covid-19 em libras, confira aqui

    Outros materiais de divulgação científica sobre a Covid-19 em Língua Tikuna podem ser encontrados aqui

    Quais os retornos que a Kamuri tem recebido sobre esse trabalho?

    R: Temos recebido mensagens carinhosas das comunidades que ajudamos, tanto Tikunas como Kokamas.

    Da China, além do apoio financeiro, vieram mensagens muito significativas de jovens estudantes da Universidade de Pequim, dirigidas aos próprios Tikuna.

    Mas o retorno mais importante são as fotografias e as informações que nos repassam, por mensagem, das aldeias, mostrando os equipamentos, kits e alimentos sendo entregues a cada família, contribuindo, seguramente, e muito, para diminuir os impactos da pandemia e conter sua propagação nas aldeias, em uma região onde os equipamentos de saúde são limitados e precários.

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Sobre máscaras, testes e COVID-19

    Máscaras e testes são necessários para evitar a transmissão assintomática do SARS-CoV-2 liberado em aerossóis e gotículas.

    Esse é o resumo do artigo publicado na respeitada revista Science, do dia 27 de maio de 2020. Trata-se de um artigo que coloca em perspectiva as medidas para a redução da transmissão do SARS-Cov-2 por meio de testagem e do uso máscaras pela população. Uma análise necessária… principalmente aqui no Brasil, onde os dirigentes estão tirando a população da quarentena em pleno momento ascendente da curva de casos! (veja nossa série “O que é essa curva que a gente tem que achatar? – parte 1 e parte 2).

    Ao respirarmos, falarmos, tossirmos ou espirrarmos acabamos liberando gotículas e aerossóis. Se estamos com alguma infecção respiratória viral, vírus vão estar contidos ali. Aerossóis são partículas muito, muito pequenas, são menores que cinco micrômetros (≤ 5 μm) enquanto as gotículas possuem mais de cinco-dez micrômetros (> 5-10 μm).  

    Um conjunto combinado de fatores (tamanho da partícula, velocidade que a partícula é liberada, gravidade, evaporação) vai determinar a distância percorrida e o tempo que a partícula permanecerá no ar. De forma simplificada, gotículas caem no solo mais rápido do que evaporam, permitindo assim uma maior taxa de contaminação de superfícies. Os aerossóis, por sua vez, permanecem mais tempo no ar e podem ser transportados por longas distância, permitindo uma maior taxa de contaminação por inalação. Além disso, a inalação de partículas menores pode estar relacionada à gravidade da doença (aerossóis muito pequenos, poderiam chegar diretamente às regiões mais profundas dos pulmões, onde o sistema de defesa atua mais vagarosamente, causando uma doença mais grave).

    Para efeito de comparação, uma gotícula grande de 100 μm (em rosa na escala da figura), atingiria o chão em 4,6 segundos e uma distância de quase 2,5 metros, enquanto uma partícula de aerossol de 1μm poderia permanecer no ar por cerca de 12 horas. Além disso, tosses e espirros intensos podem lançar as gotículas por mais de 6 metros (os aerossóis podem ir ainda mais longe). Estima-se que uma pessoa com COVID-19 falando alto por 1 minuto pode gerar de mais 1.000 partículas de aerossóis, o que poderia levar a liberação de mais de 100.000 partículas virais de SARS-COV-2!

    Há, ainda, diferenças na densidade de partículas virais no ar em ambientes abertos e fechados. Apesar de ainda termos poucos estudos sobre taxa de transmissão de SARS-CoV-2 ao ar livre, as concentrações ali são mais rapidamente diluídas, além de que o SARS-CoV-2 pode ser inativado por radiação UV da luz do sol, provavelmente seja sensível à altas temperaturas ambiente, bem como à presença de aerossóis atmosféricos que ocorrem em áreas muito. Porém, ao mesmo tempo, os vírus podem se prender a outras partículas presentes no ar, como poeira e poluição e, assim, aumentar sua dispersão (distância e tempo no ar). Observou-se, por exemplo, que pessoas que vivem em áreas muito poluídas apresentam maior COVID-19 com sintomatologia mais grave.

    As máscaras surgem como uma importante barreira uma vez que o seu uso reduz a probabilidade e a gravidade da COVID-19 e reduz significativamente as concentrações de SARS-CoV-2 liberadas no ar. As máscaras também podem proteger os indivíduos não infectados das partículas liberadas e contaminadas com SARS-CoV-2 presentes no ar. Na figura abaixo vemos as 4 situações diferentes na qual pessoas saudáveis podem entrar em contato com o vírus liberado por uma pessoa infectada assintomática:

    • Pessoa infectada assintomática e pessoa saudável, AMBAS SEM máscara – situação em que a pessoa saudável se encontra mais exposta ao vírus
    • Pessoa infectada assintomática sem máscara e pessoa saudável com máscara
    • Pessoa infectada assintomática com máscara e pessoa saudável sem máscara
    • Pessoa infectada assintomática e pessoa saudável, AMBAS COM máscara – situação em que a pessoa saudável se encontra menos exposta ao vírus

    Alguns estudos identificaram a eficiência de filtragem de aerossóis por máscaras caseiras feitas com materiais adequados e bem ajustadas ao rosto foi encontrada como semelhante a de máscaras médicas (mas ainda precisamos de mais estudos para essa confirmação). Acontece, porém, que a universalização da proteção que o uso correto das máscaras caseiras deveria trazer não acontece como deveria. É só olhar pela janela de casa e ver que nas ruas as pessoas estão andando com máscara frouxa, ou sem máscara, ou com a máscara no queixo ou pescoço, ou com o nariz exposto… Ou seja: a proteção não está funcionando!

    Outro ponto importante a ser levantado é que nas infecções respiratórias mais comuns, as transmissões dos vírus ocorrem por meio das partículas liberadas em tosses ou espirros de indivíduos sintomáticos. Porém, para a COVID-19 o que está sendo observado é um pouquinho diferente: a transmissão parece ocorrer principalmente pela liberação de aerossóis durante a fala ou a respiração de indivíduos contaminados, mas que não apresentam sintomas (indivíduos assintomáticos) – ainda que estes venham a desenvolver os sintomas depois.

    O que expusemos neste post é muito importante pois é o que deve guiar a maneira que devemos agir para reduzir a transmissão do vírus. O que deveria ser muito simples, uma vez que são dois os principais pontos que devem ser observados, tudo é muito difícil pois depende da cooperação da população e bom senso e boa gestão dos nossos governantes:

    Precisamos: [1] de medidas que reduzam a liberação de aerossóis (uso CORRETO de máscaras com boa taxa de filtração); e [2] realizar testes para saber quem são os indivíduos contaminados assintomáticos e, assim, teremos dados reais para que os governos possam elaborar políticas públicas/estratégias pensadas com cuidado para essas pessoas e que visem evitar a disseminação da COVID .

    Em Wuhan, cidade que foi o epicentro inicial da COVID-19, por exemplo, ao iniciar o processo de saída da quarentena foram detectados novos casos da doença. O medo de que uma nova onda da doença surgisse levou as autoridades locais a realizarem um grande movimento para testarem toda a população. Foram mais de 9,9 milhões de testes realizados, com a identificação de 300 casos de portadores assintomáticos do vírus. O curto dessa ação foi de aproximadamente 126 milhões de dólares.

    Pelo jeito algo parecido aqui no Brasil vai ser muito difícil…

    ATUALIZAÇÃO: A Organização Mundial da Saúde (OMS) liberou novas orientações para a fabricação de máscaras caseiras! Veja abaixo o infográfico produzido pela equipe do COVID-19 DivulgAÇÃO Científica.


    Para saber mais, consulte:

    Prather KA, Wang CC, Schooley RT. Reducing transmission of SARS-CoV-2. Science (2020). doi: 10.1126/science.abc6197.  

    Reuters. Testes em massa em Wuhan registram 300 portadores assintomáticos de coronavírus, mas nenhum novo caso. Publicado on-line em 02/06/2020.
    COVID-19 DC. Nova orientação para máscaras caseiras. Publicado on-line em 06/06/2020.

    Aproveite e nos siga no Twitter, no Instagram e no Facebook!

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Conheça Debora Diniz, antropóloga referência na discussão sobre igualdade de gênero e saúde pública no Brasil durante epidemias

    Debora Diniz. Arquivo pessoal. Todos os direitos reservados.

    Ao conversarmos sobre a possibilidade de fazer um ciclo temático no blog sobre as mulheres que atuaram e atuam em contextos de Epidemias, nós, da equipe do Ciência Pelos Olhos Delas, vimos como essencial visibilizar também as pesquisadoras que trabalham nas esferas do conhecimento ligadas às ciências sociais e humanas – algo que foi trazido à pauta com a entrevista que a Carolina Francelin fez com a pedagoga, professora e pesquisadora Telma Vinha.

    Por que Debora Diniz?

    Quase que de imediato, me veio em mente Debora Diniz, antropóloga, documentarista e professora licenciada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB. Tomei conhecimento do trabalho da professora Debora em 2015, quando participei como ouvinte do “Fórum Fale Sem Medo”, uma iniciativa do Instituto Avon que tem como objetivo discutir as violências sofridas por meninas e mulheres.

    Naquela edição do Fórum, Debora foi uma das participantes da mesa de debates sobre violência de gênero no contexto universitário. Confesso que fiquei admirada com sua eloquência, didática e clareza ao falar. Nos anos seguintes, a acompanhei esporadicamente por meio de notícias de grandes jornais.

    Nos últimos dois anos, venho seguindo mais de perto o trabalho de Debora, que passou a estar presente nas redes sociais – primeiro com uma conta no Twitter e, mais recentemente, com um perfil no Instagram

    Debora Diniz. Arquivo pessoal. Todos os direitos reservados.

    Antes de abordar como tem sido a atuação da pesquisadora durante a pandemia da COVID-19, vou falar um pouco mais sobre a trajetória de Debora e sobre suas importantes contribuições para o progresso da discussão acerca dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no Brasil.

    A trajetória acadêmica

    Debora Diniz Rodrigues nasceu em 1970 em Maceió, Alagoas. Graduou-se em Ciências Sociais em 1993 pela UnB, mesma instituição onde obteve seu mestrado em 1995 e seu doutorado em 1999, ambos em Antropologia. A tese de doutorado de Debora – orientada pela reconhecida antropóloga argentina Rita Segato – foi intitulada “Da Impossibilidade do Trágico: Conflitos Morais e Bioética”.

    Desde então, Debora tem se debruçado sobre a Bioética¹ (“a ética da vida”) sob uma perspectiva de atenção à saúde de mulheres e meninas, num esforço interdisciplinar entre as Ciências da Saúde e as Ciências Humanas.

    A Anis – Instituto de Bioética

    Em 1999, o mesmo ano em que defendeu seu doutorado, Debora fundou a Anis – Instituto de Bioética, “a primeira organização não-governamental, sem fins lucrativos, voltada para a pesquisa, assessoramento e capacitação em bioética na América Latina.”² 

    Nas duas últimas décadas, a Anis – cuja sede é em Brasília – tem atuado em todas as esferas do poder político brasileiro visando assegurar o avanço, como já mencionado, dos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas brasileiras.

    Aqui é importante conceituar direitos sexuais e reprodutivos como essenciais para a garantia dos direitos humanos. Em artigo publicado em 2014³, Adriana Lemos, doutora em Saúde Coletiva pela UERJ, explica que o deslocamento do uso da terminologia “saúde da mulher” para “direitos reprodutivos” visa englobar o exercício pleno da capacidade de reproduzir-se e da liberdade de como e quando reproduzir-se, e o acréscimo do conceito de “direitos sexuais” como uma forma de desestigmatizar sexualidades diversas.

    Nesse sentido, a Anis foi instrumental para garantir que mulheres grávidas de fetos anencéfalos tivessem o direito de interromper a gestação em procedimentos legais e seguros, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012. 

    Debora, como fundadora e diretora da Anis, encabeçou a realização de duas Pesquisas Nacionais sobre o Aborto (PNA), a primeira publicada em 2010 e a segunda em 2016.

    As pesquisas serviram de base para diversas outras produções acadêmicas em várias áreas e continuam a ser utilizadas como referências na discussão acerca da criação de políticas de saúde pública visando preservar a vida das mulheres.

    “Zika – do Sertão Nordestino à Ameaça Global”

    Em meio à luta de Debora e da equipe da Anis pelo avanço dos direitos reprodutivos das mulheres no país, o Brasil tornou-se epicentro da epidemia do Zika vírus em 2015. Transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, o vírus Zika pode causar complicações como a microcefalia, uma malformação congênita que afeta o desenvolvimento do cérebro.

    Contudo, no começo de 2015 a correlação entre o vírus Zika e a microcefalia em recém-nascidos ainda não estava estabelecida; naquele ano, começaram a surgir, às centenas, casos de bebês nascidos com microcefalia, sobretudo nos estados da Paraíba e de Pernambuco. Debora, então, foi a campo.

    De sua etnografia – que é o trabalho de pesquisa e coleta de dados utilizado na antropologia e que tem como pressuposto o contato direto entre o pesquisador e o objeto da pesquisa – nasceu o livro “Zika – do Sertão Nordestino à Ameaça Global”, publicado em agosto de 2016.

    Caoa do livro "Zika: Do Sertão Nordestino à Ameaça Global"

    Capa do livro “Zika: Do Sertão Nordestino à Ameaça Global”. Editora Civilização Brasileira. Todos os direitos reservados.

    Resenhas da obra destacam o caráter jornalístico da pesquisa. A antropóloga documenta que houve uma “disputa” pela identificação do vírus entre médicos pesquisadores – o que, para Debora, evidenciou as tensões geopolíticas entre os chamados médicos de “jaleco branco” do Sul e do Sudeste, e aqueles profissionais nomeados de “beira de leito”, que estavam em contato direto com pacientes que primeiro manifestaram a doença no Nordeste e no Norte do país.

    Nesse contexto, Debora destaca a atuação da Dra. Adriana Melo, de Campina Grande. Proporcionando um atendimento humanizado às gestantes atingidas pelo Zika, Adriana “olhou para o líquido amniótico de duas grávidas e constatou que a microcefalia era causada por uma transmissão vertical.”⁴ 

    Muito além de acompanhar os profissionais de medicina, Debora voltou especial atenção para a história das gestantes atingidas pelo vírus Zika. Há uma divisão entre a “primeira geração” de gestantes – antes da correlação Zika/microcefalia ser comprovada – e a “segunda geração”.

    Ela percebeu que algumas das mulheres da segunda geração, cientes do drama vivido pela primeira geração de gestantes, chegavam até a não fazer exames e ultrassons, com receio do possível diagnóstico.⁵

    Débora produziu e dirigiu o documentário “Zika”, que tem cerca de 30 minutos de duração e retrata algumas das mulheres abordadas pelo livro. Esse esforço documental é riquíssimo e emocionante, e mostra a realidade vivenciada por mulheres atingidas pelo vírus Zika – que, em sua maioria, são nordestinas, trabalhadoras do campo e possuem baixa renda.

    É a partir desse recorte de perfil das gestantes que Debora posteriormente avalia que o Zika não se configurou como epidemia global justamente porque suas vítimas eram mulheres “invisíveis” na sociedade.

    Tal vírus não atingiu, em números significativos, mulheres das classes média e alta e não viajou além das fronteiras de países considerados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento – tanto que a OMS retirou o Zika como ameaça global poucos meses depois de sua inclusão em 2016.

    O exílio forçado

    Com a publicação do livro em 2016 – que ganhou o 1º lugar na categoria Ciências da Saúde no prêmio Jabuti em 2017 – Debora continuou seu trabalho na Anis, sempre discutindo em entrevistas o impacto do Zika na vida das mulheres nordestinas. 

    Então, no final de 2017, teve início a discussão de uma ação no STF sobre a descriminalização do aborto. Como reportou o jornal digital Nexo, a Anis foi consultora de uma proposta, protocolada pelo partido PSOL, que pedia a descriminalização do aborto voluntário até a 12ª semana de gestação.

    Até agosto de 2018, Debora acompanhou a proposta protocolada ao Superior Tribunal Federal e falou numa audiência pública do STF em 03/08/2018 em prol da descriminalização do aborto.

    Pelo seu ativismo, ela passou a receber ameaças contra sua integridade física, a de seus alunos e colegas da UnB, o que a levou a prestar queixa numa Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) e entrar no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, do governo federal.

    Debora Diniz em audiência pública no STF em 03/08/2018.

    Debora Diniz em audiência pública no STF em 03/08/2018. Carlos Moura/STF. Todos os direitos reservados.

    Com o aumento e o agravamento das ameaças, Debora teve que deixar o Brasil pouco depois de sua fala no STF. Desde então, ela tem recorrido às redes sociais como forma de exercer seu ativismo político, respaldado por mais de duas décadas de etnografias e de pesquisas teóricas. Atualmente, ela é pesquisadora visitante no Centro de Estudos Latino-americanos e Caribenhos da Universidade Brown, nos Estados Unidos.

    A pandemia da COVID-19

    Desde que a pandemia do novo coronavírus chegou ao Brasil, Debora tem dado diversas entrevistas e participado de uma série de transmissões ao vivo e de debates. Exilada nos Estados Unidos, ela vê sua presença digital como um canal para se posicionar e para chamar a atenção para os impactos da pandemia em diversas camadas da população.

    No início da pandemia, havia uma narrativa de que a COVID-19 era uma doença “democrática”, estando todos os indivíduos suscetíveis à contaminação. Contudo, ao longo das semanas, foi identificado que as taxas de mortalidade pela COVID-19 são mais altas nos bairros periféricos e centrais com menor renda per capita de São Paulo se comparado aos bairros considerados de classe alta.

    A antropóloga, em suas falas, ressalta que aqueles que já se encontravam em situação de vulnerabilidade antes da pandemia hoje estão ainda mais vulneráveis – pessoas sem acesso a uma nutrição adequada e aos aparelhos de saúde pública são mais propensas a desenvolver e a tratar inadequadamente as comorbidades associadas à COVID-19.

    Assim, Debora salienta que o impacto da COVID-19 deve ser analisado considerando fatores como raça, classe social e idade. Além disso, outro ponto crucial na análise de Débora durante a pandemia é o trabalho de cuidado, majoritariamente exercido por mulheres. Com a imobilidade social imposta pela quarentena, crianças, idosos e pessoas com deficiência também ficam restritos à esfera doméstica e requerem atenção.

    Dessa forma, às mulheres cabe exercer essa função do cuidado – sobretudo às mulheres de classe baixa, negras e indígenas. A pandemia escancarou como esse trabalho é essencial para a manutenção da vida – conceito que, no campo das Ciências Sociais, é chamado de “trabalho reprodutivo”.⁶

    Em entrevistas ao UOL, à Folha de São Paulo e à rádio CBN, Debora apontou que está enxergando uma maior circulação de valores feministas nas discussões em âmbito digital e na mídia. Conceitos como trabalhos essenciais e cuidado são intrinsecamente ligados à vida das mulheres e estão em pauta no cenário atual. É sempre válido lembrar que, de acordo com a OMS, 70% dos profissionais que atuam na linha de frente da pandemia são mulheres.

    Nesse contexto, a pesquisadora faz uma provocação: para ela, a quarentena ressalta que a normalidade na qual vivíamos antes da pandemia era, na verdade, anormal, tendo em vista a naturalização gritante das desigualdades sociais.

    Portanto, Debora acredita que há um potencial criativo a ser desenvolvido para a construção de um novo normal, que levará em consideração as pessoas mais vulneráveis na elaboração de políticas públicas e de novas formas de viver.

    A atuação nas redes sociais

    Nas últimas semanas, Debora tem feito paralelos entre a epidemia do Zika e a pandemia da COVID-19. Ela destaca que o Brasil continua tendo casos de bebês com Zika em 2020 – até agora, foram 227 notificações e não há mais destaque na mídia para isso; indo além, a pesquisadora chama a atenção para a situação de extrema vulnerabilidade das nordestinas atingidas pelo Zika agora com a pandemia da COVID-19.

    Passando das mulheres invisíveis no sertão nordestino para as vítimas anônimas da COVID-19, Debora começou um projeto em parceria com o artista gráfico Ramon Navarro: o perfil de Instagram Reliquia.rum (palavra que lembra a grafia de “Relicário” em latim). 

    Relicários são pequenas lembranças do que se foi, e, assim, Debora e Ramon buscam homenagear e tornar visíveis algumas das mulheres vítimas da COVID-19 no Brasil para que elas deixem de ser apenas números numa estatística. Até o momento da publicação deste texto, o perfil contava com 89 relicários.

    https://www.instagram.com/p/B-GACxAB0EY/
    Primeiro post do Reliquia.rum. Arte por Ramon Navarro. Todos os direitos reservados.

    Debora também encabeça outra conta no Instagram chamada Women in Times of Pandemic. Uma parceria de Debora com a argentina Giselle Carino e a venezuelana Valentina Fraiz, o Women in Times conta histórias de mulheres latino-americanas e caribenhas afetadas pela pandemia, e cada post é publicado em português, espanhol e inglês.

    https://www.instagram.com/p/B_1_a_GhLiP/
    Post do Women in Times publicado em 6 de maio de 2020 retratando a história real de uma família do Rio de Janeiro afetada pela epidemia do Zika e pela pandemia do novo coronavírus. Todos os direitos reservados.

    O merecido reconhecimento e a importância do trabalho de Debora

    Debora Diniz foi reconhecida como uma das pensadoras globais (“global thinkers”) de 2016 pela revista Foreign Policy e recebeu no começo de 2020 o prêmio internacional Dan David na categoria “Igualdade de Gênero” pela sua destacada atuação em prol dos direitos de mulheres e meninas.

    Com seu trabalho, Debora nos lembra que as Ciências Sociais também são um campo de pesquisa essencial durante epidemias e pandemias, já que investigam e analisam os impactos desses contextos de emergência global nas mais diversas camadas das populações – o que é indispensável para a posterior formulação de políticas públicas visando a melhoria das condições de vida das pessoas.

    Ao ir a campo no sertão nordestino em meio à eclosão de casos de microcefalia em recém-nascidos, Debora registrou as vidas reais que foram afetadas pela epidemia do vírus Zika. O livro e o documentário, resultados desse trabalho de campo, são materiais fundamentais para profissionais de múltiplas áreas que realizam pesquisas com o objetivo de mitigar os efeitos de epidemias e pandemias. 

    Indo além, as iniciativas atuais de Debora – agora no campo digital – em meio à pandemia da COVID-19 nos lembram que pessoas de diferentes raças, gêneros, idades e camadas sociais são impactadas de forma desigual pelo novo coronavírus, o que requer estratégias e medidas de proteção que levem em conta essas particularidades. 

    Reforçando, ajudar a tornar visíveis quem por tanto tempo esteve à margem é uma das “tarefas” das pesquisas em Ciências Sociais, sobretudo em momentos como esse que estamos todos vivendo.

    Leia os textos que já publicamos sobre a atuação de mulheres cientistas durante epidemias:

    Celebrando a Dra. June Almeida – a mulher que descobriu o primeiro coronavírus humano

    A ciência pelos olhos da Profª Drª Tania Ueda-Nakamura

    Conheça algumas divulgadoras científicas brasileiras que estão produzindo conteúdo de qualidade durante a pandemia do novo coronavírus

    A Anis – Instituto de Bioética possui um canal no YouTube chamado Vozes da Igualdade. Vale muito a pena conferir o conteúdo do canal, em especial a série Quinquilharia, onde Debora aborda as principais inquietações e dúvidas dos alunos de graduação (e de pós-graduação) sobre como fazer pesquisa.

    Notas

    ¹ Para saber mais sobre bioética, veja a página 2 da cartilha “Bioética”, de autoria de Cilene Rennó Junqueira, publicada pela UNASUS – Universidade Aberta do SUS da UNIFESP.

    ² Citação obtida na seção “Quem Somos” do site institucional da Anis – Instituto de Bioética.

    ³ LEMOS, Adriana. Direitos sexuais e reprodutivos: percepção dos profissionais da atenção primária em saúde. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sdeb/v38n101/0103-1104-sdeb-38-101-0244.pdf 

    ⁴ DA SILVA, Lucivânia Gosaves. Resenha do livro “Zika: do sertão Nordestino à Ameaça Global”. Revista Textos Graduados, p. 131. Julho de 2019. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/tg/article/view/26191/23011

    ⁵ DINIZ, Debora. Vírus Zika e mulheres. Caderno Saúde Pública, p. 3. Rio de Janeiro. Maio de 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csp/v32n5/1678-4464-csp-32-05-e00046316.pdf 

    ⁶ Para saber mais sobre trabalho reprodutivo, veja a aula “Divisão Sexual do Trabalho”, parte do curso online “Feminismo e democracia”, ministrado pela cientista política Flávia Biroli no canal de YouTube da Editora Boitempo: https://youtu.be/EWM3X-BMbQg 

    Referências 

    http://lattes.cnpq.br/3865117791041119

    http://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/zika-virus

    https://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/microcefalia

    http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT757558-1666-1,00.html

    https://www.scielo.br/pdf/icse/v22n66/1807-5762-icse-22-66-0967.pdf

    https://www.scielo.br/pdf/sess/n24/1984-6487-sess-24-00246.pdf

    https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2020/04/debora-diniz-stf-deve-responder-o-que-significa-o-zika-virus-pra-vida-das-mulheres.html

    https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/15/politica/1544829470_991854.html

    https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/07/25/Quem-é-a-pesquisadora-ameaçada-por-sua-atuação-no-debate-sobre-aborto

    https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/mundo-pos-pandemia-tera-valores-feministas-no-vocabulario-comum-diz-antropologa-debora-diniz.shtml

    https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/o-mundo-pos-covid-19-2—comportamento-por-debora-diniz

    https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/298913/pandemia-escancara-desigualdades-e-privilegios-de-.htm

    https://www.uol.com.br/universa/reportagens-especiais/ultimo-adeus/

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Coronacrise: emissão de moeda e inflação

    Por: Ulisses Rubio e Victor Young

    Os jovens que hoje cursam o ensino superior nasceram, em sua maioria, num período em que a ideia de inflação – ou seja, o aumento generalizado de preços – aparece como se tivesse uma só origem e uma só solução. A chamada vertente ortodoxa da economia, que está por trás dessa concepção, sempre considera que a inflação é causada por gastos demasiados do governo e que este deve, portanto, contê-la, realizando cortes nas suas despesas[1]. A “Coronacrise” tem colocado alguns limites a este “samba de uma nota só”[2]. Diante das medidas de gasto adotadas pelo governo, ouvimos interrogações sobre de onde virá o dinheiro (quem vai pagar?). Diante da resposta de que isto possa ser financiado simplesmente pela emissão de moeda, vem em seguida a pergunta que expõe bem o alcance da ortodoxia:

    – Mas isto não vai gerar inflação?

    Respondemos:

    – Não. De acordo com o pensamento dos economistas ortodoxos, não.

    Vejamos. Conforme a ortodoxia econômica, um aumento na oferta de moeda à sociedade por meio de impressão de dinheiro que seja maior do que quantidade total de bens e serviços produzidos em um ano – que é o PIB (Produto Interno Bruto)[3] – produzirá inflação. O raciocínio pode ser explicado de maneira bastante simplificada da forma como segue. Suponhamos que toda a economia produzisse e consumisse apenas dez sacos de batata por ano. Dado o montante de dinheiro existente na mão das pessoas, o preço de cada saco poderia ser, por exemplo, dois reais. Suponhamos ainda que, no ano seguinte, a produção não tenha aumentado e o governo, por alguma razão, viesse a emitir mais dinheiro e o disponibilizasse na mão do povo. Como as pessoas não teriam mais nada para comprar (porque a produção não aumentou), cada pessoa buscaria comprar mais sacos de batata. O aumento na procura pelos mesmos dez sacos de batata faria com que o preço do saco se elevasse a mais de dois reais. Conclusão: a emissão de moeda pelo governo teria, portanto, gerado inflação.

    Os alunos mais inquietos poderão perguntar:

    – E por que não aumentou a produção de sacos de batata?

    Neste caso, o raciocínio ortodoxo pressupõe que todos os fatores de produção estão sendo utilizados, isto é, todas as fábricas estão com suas máquinas e equipamentos em plena operação, todas as terras para plantio e criação estão produzindo na sua capacidade máxima, e todos os trabalhadores estão empregados (os que não estão, é porque decidiram que o salário não compensa). Ora, neste caso, não há como aumentar a produção. Para aumentar a produção, a sociedade precisaria diminuir seu consumo e direcionar parte dos recursos que produzem bens de consumo e serviços para a produção de bens de capital[4]. Isso permitiria aumentar a capacidade produtiva, isto é, a sociedade precisaria diminuir o consumo para aumentar o investimento.

    Convenhamos. Na situação atual, o estudante já não precisa ser inquieto para constatar que os setores produtivos não estão operando com sua capacidade máxima[5]. Temos uma situação em que a indústria e o setor de serviços querem aumentar sua produção ao mesmo tempo em que muitos trabalhadores desejam escapar de uma situação de desemprego forçada que se traduz numa taxa de desocupação para lá de alarmante.

    E qual a implicação disto para o assunto aqui tratado?

    Ao verificarmos os dados de nossa produção recente, o PIB brasileiro já está abaixo de sua capacidade há um bom tempo. No ano de 2014, este praticamente não cresceu. Se utilizarmos o exemplo das batatas, considerando que produzíamos 10 sacos de batata naquele ano, em 2015, com a recessão e a queda da demanda promovida pelas medidas de redução de gastos dadas pelo governo, diminuímos nossa produção para 9,5 sacos de batata. Em 2016, no pior momento econômico dos últimos anos, produzimos 9 sacos de batatas. A lenta e dificultosa recuperação dada por um Estado ainda bastante rigoroso na contenção das despesas fez com que a produção chegasse em 2019 a apenas 9,2 sacos de batata[6]. Para o ano de 2020, em função das restrições ocasionadas pela crise sanitária do corona vírus, a projeção é a de que venhamos a produzir 8,7 sacos de batatas em uma economia que pode ultrapassar, com folga, aqueles 10 sacos de 2014 [7]. Não há, dessa maneira, por que temer a inflação numa situação tão extrema em que o potencial produtivo não realizado se encontra em níveis tão elevados. A solução mais adequada para um problema tão adverso é o Estado emitir, transferir e manter um sólido fluxo de dinheiro para a mão das pessoas para que o máximo de potencial produtivo possível se realize.

    Se é para seguir apenas um pensamento econômico, como vem fazendo grande parte da mídia nos últimos anos, devemos considerar que, existindo considerável capacidade ociosa na economia, um aumento da procura por bens e serviços ocasionado pela transferência de dinheiro para a população e pequenas empresas por parte do Estado será acompanhado por um aumento da produção e, portanto, não pressionará a economia para um aumento de preços expressivo, como prevê a própria ortodoxia econômica.

    [1] O economista norte-americano, Milton Friedman (1902-2006), é geralmente a referência mais utilizada pela corrente do pensamento econômico ortodoxo no período contemporâneo. Esta vertente econômica se contrapõe, na maioria das vezes, às ideias econômicas heterodoxas que, em grande medida, se referência no economista inglês, John Maynard Keynes (1883-1946).

    [2] O termo foi utilizado pelo economista, André Lara Resende. Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/04/24/andre-lara-resende-quem-vai-pagar-essa-conta.ghtml. Acessado em 03 de maio de 2020.

    [3] O PIB é a soma de todos os bens e serviços finais produzidos pela economia de um dado território em um determinado período.

    [4] Bens de Capital são bens que servem para a produção de outros bens, como, por exemplo, máquinas, equipamentos e infraestrutura produtiva.

    [5] Conforme dados do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em abril de 2020, a indústria de transformação operou com 57,5% da capacidade instalada, sem considerar o setor de serviços e de produção rural. Disponível em: https://portal.fgv.br/artigos/impactos-pandemia-covid-19-sobre-nivel-utilizacao-capacidade-instalada-industria. Acessado em 30 de maio de 2020. Conforme dados do IBGE, a taxa de desocupação dos trabalhadores é de 12,6%. Taxa de desocupação é a porcentagem de pessoas na força de trabalho que estão desempregadas. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/busca.html?searchword=desemprego&searchphrase=all. Acessado em 30 de maio de 2020.

    [6] Estamos considerando aqui o crescimento do PIB conforme dados do IBGE. Disponível em: ibge.gov. br. Acessado em 3 de maio de 2020.

    [7] LAMUCCI, Sérgio. FMI projeta retração de 5,3% para economia brasileira em 2020. Valor, São Paulo, 14 de abril de 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/04/14/fmi-projeta-retracao-de-53percent-para-economia-brasileira-em-2020.ghtml. Acessado em: 03 de maio de 2020.

    logo_
    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
  • Estudo de pesquisadores do Instituto de Economia da Unicamp compara experiências econômicas internacionais no combate à crise atual

    Por: Alex Palludeto, Newton Silva, Renan Araujo, Roberto Borghi e Vítor Alves

    Em estudo intitulado Política econômica em tempos de pandemia: experiências internacionais selecionadas, pesquisadores do Centro de Estudos de Relações Econômicas Internacionais (CERI), do Instituto de Economia da Unicamp, abordam as medidas econômicas já tomadas por alguns países no intuito de mitigar os efeitos econômicos negativos provocados pela pandemia da covid-19.
    Os autores buscam ponderar a importância das medidas diante da mais grave crise sanitária do século XXI, e de uma crise econômica que indica não ter precedentes na história mundial recente. O enfrentamento destas crises, como se observa, requer, fundamentalmente a ação imediata dos Estados Nacionais, dada sua capacidade de promover e orientar políticas com a amplitude necessária para garantir a prevenção e combate a Covid-19 assim como a preservação do tecido social e produtivo.
    No que se refere em particular à atual crise econômica, argumenta-se que esta pode ser dividida em dois períodos: um primeiro momento, com duração estimada entre 3 e 6 meses, correspondendo à fase mais aguda de transmissão do novo coronavírus, o que requer a tomada de medidas de distanciamento social e, consequentemente, a paralisação de uma série de atividades econômicas; e um segundo momento, de 6 meses a 2 anos, no qual, uma vez tendo-se conseguido conter a disseminação do vírus, o distanciamento social poderá ser gradativamente suspenso, e as atividades econômicas poderão ser gradualmente retomadas.
    O estudo também aponta que em cada um desses prazos temporais um tipo específico de atuação econômica dos Estados faz-se necessário: no primeiro deles, os governos precisam adotar medidas emergenciais, visando, entre outras coisas, a garantir o poder aquisitivo das pessoas, a impedir a falência das empresas e a promover a estabilidade dos sistemas financeiros; já no segundo, os países precisarão contar com medidas para a recuperação econômica, a fim de que seus níveis de produção (PIB) e emprego retornem aos patamares desejáveis.
    Atualmente, embora os países do mundo estejam em fases distintas da pandemia, ainda se encontram predominantemente no primeiro desses momentos. Assim sendo, são as políticas já adotadas nesse contexto que o estudo aborda, apresentando os casos de nove diferentes países: China, Estados Unidos, Espanha, França, Reino Unido, Itália, Alemanha, Argentina e Brasil.
    Como conclusão possível, os autores indicam ser falsa a dicotomia “salvar a saúde ou salvar a economia”, a qual é bastante difundida no debate corrente. Ao contrário disso, ponderam que tanto a saúde como a economia podem e devem ser salvas e que os enfrentamentos à crise de saúde pública e à crise econômica não são objetivos excludentes, mas complementares. O distanciamento social adotado no início do processo de contágio e de maneira rigorosa, aliado a medidas econômicas de suporte a trabalhadores e empresas, pode assegurar que um menor número de pessoas venha a se infectar e morrer, ao passo que permite que as atividades econômicas sejam retomadas mais rapidamente.
    Por fim, os autores enfatizam a necessidade de reflexões sobre as políticas futuras, já que a ação dos Estados Nacionais continuará sendo necessária no processo posterior de retomada econômica e de fortalecimento dos sistemas de proteção social. Nesse sentido, condenam a defesa que alguns economistas têm feito da adoção futura de medidas de austeridade fiscal, entendendo que estas poderão ter o poder de agravar e aprofundar a crise econômica.
    O estudo completo encontra-se disponível para download no link: http://www.eco.unicamp.br/covid19/politica-economica-em-tempos-de-pandemia-experiencias-internacionais.

    Autores do Estudo:

    Alex Palludeto – Professor Doutor do Instituto de Economia da Unicamp

    Roberto Borghi – Professor Doutor do Instituto de Economia da Unicamp

    Newton Silva – Pesquisador do CERI e doutorando do Instituto de Economia da Unicamp

    Renan Araujo – Pesquisador do CERI e doutorando do Instituto de Economia da Unicamp

    Vítor Alves – Pesquisador do CERI e doutorando do Instituto de Economia da Unicamp

    logo_
    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
  • Como a desinformação tem atrapalhado nossa resposta à Covid-19

    A notícia de que o Brasil atingiu, nesta semana, o segundo lugar de país com maior número de contaminados de covid-19, tornando-se o novo epicentro da doença, mostra que estamos falhando miseravelmente no controle da pandemia. Uma avalanche de notícias e informações falsas tem nos distraído e dividido bem no momento crucial em que deveríamos focar todas as nossas energias no combate ao vírus. 

    Especialistas têm chamado essa onda de circulação de notícias e informações falsas nas redes sociais de infodemia. Seria uma espécie de pandemia de desinformação global que prejudica nossas formas de enfrentamento à pandemia. A Coronavirus Fact-Checking Alliance, comunidade de verificadores de fatos de 88 organizações em 74 países, desmascarou 4.823 boatos e notícias falsas (em 43 idiomas!) sobre a covid-19 em três meses de trabalho. Um grupo de cientistas do Instituto de Física e do Instituto de Geociências da Unicamp coletou mais de 50 mil mensagens de fake news circulando no Whatsapp. A OMS já alertou para a gravidade da situação e tem proposto parcerias com os gigantes Google, Facebook e Twitter para enfrentar essa onda.

    Todos nós estamos vulneráveis a cair no conto da desinformação e das fake news, independente de classe social ou nível de instrução. Nosso cérebro tenta se agarrar a certezas que nos tragam o controle da situação, diante do contexto incerto da pandemia da covid-19. A falta de dados sólidos, já que os cientistas recém estão descobrindo como age o novo coronavírus, e o pânico de contrair a doença são ingredientes eficientes para espalhar desinformação, segundo avalia Cristina Targuila, diretora da Rede Internacional de Verificadores de Fatos (IFCN). Muitas vezes, a informação falsa chega pelas mãos da tia avó que não faria mal a uma mosca, no grupo de Whatsapp da família, com intenção de proteger seus parentes contra o coronavírus.

    A comunidade internacional de verificadores de fatos tem observado diversas ondas de fake news e desinformação. Tem de tudo: de teorias conspiracionistas da origem forjada do vírus em laboratórios chineses, uso de informações para espalhar pensamentos religiosos, anti-vacina e supremacistas, até informações sobre curas e falsas medidas preventivas para enfrentar a pandemia

    Tudo fica mais confuso quando vemos autoridades e profissionais de saúde repercutindo esses discursos de cura. Uma das principais fontes de desinformação sobre covid-19 no Youtube são canais de médicos ou pessoas que se apresentam como médicos, segundo essa pesquisa aqui. Em 30% dos vídeos com mais de 100 mil visualizações, o conteúdo vem relacionado à venda de produtos, cursos e publicações para aumentar a imunidade das pessoas. Ou seja, médicos e nutricionistas transformaram a pandemia em oportunidade de negócio.

        Além de trazer riscos à saúde individual, a desinformação afeta o modo como estamos lidando com a pandemia. Muitas informações falsas têm sido usadas com fins políticos para enfraquecer as ações de isolamento e distanciamento social, única forma conhecida de conter o avanço do vírus. Em alguns casos, os mensageiros deste conteúdo são autoridades políticas e governos. O presidente Jair Bolsonaro segue batendo na tecla da cloroquina como medicamento que cura a covid-19, mesmo com a comprovação de diversos estudos científicos de que a droga não traz benefícios e pode agravar os casos da doença. O deputado federal e ex-ministro da Cidadania, Osmar Terra, foi o congressista que mais publicou fake news sobre a covid-19 no Twitter, segundo o site Aos Fatos.

    Em quem confiar, então?

    Ao mesmo tempo em que agentes ativos tem disseminado desinformação, muita gente tem trabalhado incessantemente para minimizar as consequências da infodemia. Universidades e instituições de pesquisa criaram sites com informações confiáveis sobre a covid-19 (veja alguns exemplos aqui, aqui e aqui ). Na plataforma Covid Verificado, o usuário pode mandar suas próprias dúvidas sobre o coronavírus. Tem site especializado na checagem de fatos, como Aos Fatos e A Lupa. A Agência Aos Fatos chegou a criar uma robô checadora de dúvidas sobre a Covid-19. Aqui, no Blogs, também separamos uma lista com fontes confiáveis para ajudar o leitor a navegar nesse mar de informações. Entre elas está, claro, o site da Organização Mundial da Saúde (OMS)

    Devemos adotar uma postura de desconfiança em relação às informações compartilhadas em grupos de Whatsapp e outros aplicativos de mensagem. Afinal, a nossa confiança em informações verdadeiras – comprovadas cientificamente – pode salvar vidas.

    Referências

    FÁVERO, Bruno e CUBAS, Marina. “Cotado para saúde, Osmar Terra é o congressista que mais publicou desinformação sobre Covid-19 no Twitter”, Aos Fatos, 15 de abril de 2020, Disponível em: https://www.aosfatos.org/noticias/cotado-para-saude-osmar-terra-e-congressista-que-mais-difundiu-desinformacao-sobre-coronavirus-no-twitter/. Acesso em 22/05/2020.

    Knight Center Courses. Entrevista com Cristina Tardaguila. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IM7haZyQ9JM. Acesso em 22/05/2020.

    MACHADO, Caio et. al. Ciência contaminada: Analisando o contágio de desinformação sobre coronavírus via YouTube. Relatório 1 de estudo do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT), Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD)  e Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa), maio 2020, Disponível em: https://laut.org.br/ciencia-contaminada.pdf?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=cincia_contaminada. Acesso em 22/05/2020.

    logo_
    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
plugins premium WordPress