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  • MODERNizAndo a vacina contra a COVID-19

    No último dia 18 de maio fomos surpreendidos pela notícia de que a empresa Moderna tinha resultados promissores para uma vacina contra a COVID-19, o que acendeu uma pontinha de esperança no mundo para o enfrentamento da doença. Então vamos falar um pouco sobre essa vacina, os resultados até então encontrados e as expectativas para um futuro próximo (?).

    Vacinas de mRNA

    O título desse texto tem um trocadilho envolvendo o nome da empresa com a inovação e modernidade por trás da vacina testada. Além disso, no próprio nome da empresa está escrito a base da tecnologia que eles desenvolvem, o RNA (ModeRNA)

    Os RNAs são uma molécula parecida com o DNA. Nossas  células  guardam no DNA todas as informações necessárias para a vida e por isso essa molécula é bastante preservada e se localiza no núcleo das células. Para a célula conseguir utilizar as informações contidas no DNA, ela gera a partir dele um tipo de RNA, chamado de mensageiro (RNAm).  Quando há alguma necessidade da célula o RNAm é como uma cópia de alguns pedaços do DNA que carrega a informação necessária e célula passa a produzir uma proteína baseada nessa mensagem em um processo que se chama tradução. 

    As vacinas de RNAm são uma tecnologia nova baseada nessa capacidade do RNA de carregar uma mensagem, uma informação, que a célula ao recebê-la vai traduzir e utilizar. Todas as células do nosso corpo têm a capacidade de ler a informação que o RNA carrega e traduzir isso na forma de uma proteína, lembrando que essas informações são específicas e geram uma proteína específica. Mas como isso se torna importante no contexto de uma vacina? Há vários tipos de vacinas conhecidas e testadas, sendo que a principal finalidade delas é induzir uma imunidade protetora. Isso pode ser feito de diversas formas, como pela administração do vírus ou microrganismo atenuado ou de partes dele, por exemplo. Nesse último caso, as partes do vírus utilizadas na vacina são aquelas capazes de serem reconhecidas pelo sistema imunológico e gerar uma resposta protetora. As vacinas de RNAm, ao invés de utilizarem uma parte do vírus, elas têm o código, o RNAm,  para produzir uma proteína específica do vírus. Desse modo, são as nossas células que produzirão a proteína, que será então reconhecida pelo sistema imune. Assim, quando o vírus entrar no nosso corpo, o sistema imunológico reconhecerá a proteína que ele tem e agirá contra o vírus.

    mRNA-1273

    No caso do novo coronavírus (SARS-CoV-2), as principais tentativas de vacina têm sido desenvolvidas com base em uma proteína que está na superfície do vírus, que se chama SPIKE (S). É através dessa proteína  que o vírus se liga a receptores chamados de ACE2, que estão nas nossas células, e essa ligação (SPIKE+ ACE2) faz com que ele entre nas células. A vacina de mRNA da Moderna, denominada mRNA-1273, é um RNA mensageiro com a informação para as células produzirem a SPIKE. Mas como foi possível chegar nessa vacina? Em janeiro de 2020 os pesquisadores chineses compartilharam o sequenciamento do material genético do SARS-CoV-2, que permitiu à empresa, junto com os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH), selecionar a sequencia para a mRNA-1273. Logo em fevereiro o primeiro lote de vacinas foi analisado e enviado para início dos testes pré-clínicos em animais (camundongos) no NIH. Esse trabalho foi publicado e mostrou bons resultados nos animais, com diminuição do vírus e não evolução dos sintomas. A agência regulatória americana (FDA) aprovou em março o seguimento para testes clínicos de fase 1, que estão também sendo  conduzidos pelo Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA (NIAID, que é parte do NIH). Agora em maio, os primeiros resultados dessa fase foram divulgados. 

    A fase 1 de um teste clínico consiste em analisar principalmente os efeitos colaterais de uma vacina ou medicamento para saber se ela é segura em humanos e geralmente é feita em um pequeno número de pessoas. Para essa nova vacina (mRNA-1273), foram testadas 3 doses: 25, 100 e 250μg, em 15 indivíduos em cada grupo. Segundo o relatório apresentado, a mRNA-1273 é em geral segura e bem tolerada; apenas 1 participante no grupo da dose de 100μg apresentou vermelhidão de grau 3 no local da injeção. Três outros participantes no grupo da maior dose (250μg) apresentaram reações de grau 3 que não foram especificadas no relatório, mas que foram passageiras e não precisaram de nenhuma intervenção. Não houve reações graves em nenhum dos participantes nesse período analisado. 

    Além da segurança, o relatório também reporta os dados de imunogenicidade, que são os relativos ao desenvolvimento da resposta imunológica. Segundo eles, todos os participantes se converteram após 15 dias da primeira injeção, ou seja, todos apresentaram níveis quantificáveis de anticorpos no sangue. Porém, ter anticorpos no sangue não significa que esses anticorpos são eficazes em neutralizar o vírus quando houver um próximo contato com ele no futuro. Essas informações sobre o tipo e qualidade dos anticorpos gerados são mais complexas e requerem testes funcionais. De um modo geral, parte dos anticorpos que nosso organismo gera têm capacidade de se ligar ao vírus (anticorpos de ligação), mas isso não significa que eles impedem o vírus de se ligar e infectar nossas células. Uma quantidade muito menor desses anticorpos é que realmente tem a capacidade de se ligar e neutralizar o vírus, impedindo a infecção, que são os anticorpos neutralizantes. E é esse o tipo de imunidade que se quer gerar com uma vacina. E segundo o relatório da Moderna, ainda não se tem essa informação para todos os indivíduos testados. Em relação aos anticorpos de ligação, para a dose de 25μg, após duas injeções (intervalo de 30 dias entre elas), todos participantes apresentaram níveis de anticorpos de ligação semelhantes aos níveis em pessoas que se recuperaram da COVID-19. Para a dose de 100μg, amostras de 10 indivíduos tiveram níveis de anticorpos de ligação significativamente maiores do que aqueles das pessoas recuperadas da doença. Em relação aos níveis de anticorpos neutralizantes, até o momento, há informações de apenas 4 indivíduos de cada grupo das doses de 25 e 100μg. E desses 8 participantes, todos apresentaram níveis de anticorpos neutralizantes iguais ou maiores do que os encontrados no soro de pessoas recuperadas da doença. Segundo os dados, em um modelo animal, níveis semelhantes a esses foram suficientes para proteger camundongos induzidos para a doença.

    O que esperar?

    A Moderna e o NIAID já têm autorização para a realização da Fase 2 de testes com um número maior de participantes (600) e esperam começar testes de Fase 3 já em julho, em pessoas de grupos de alto risco de contaminação, como os profissionais de saúde na linha de frente de combate nos hospitais.

    Vale ressaltar que os resultados referentes a Fase 1 da vacina mRNA-1273 foram apenas divulgados em um relatório e ainda não foram publicados em uma revista científica com revisão por pares, como se é esperado. Talvez quando os resultados de todos os participantes estiverem disponíveis, os dados sejam enviados para esse tipo de publicação.

    E como já foi dito inicialmente, as vacinas de mRNA são algo novo e promissor mas é bom notar que ainda não existem vacinas desse tipo no mundo que já tenham sido licenciadas e estejam em uso. Portanto, ainda é difícil dizer se elas terão sucesso em fases mais avançadas dos testes e na população em geral.

    Mas, com o avanço das tecnologias e aumento nos esforços direcionados para o desenvolvimento de uma vacina contra o novo coronavírus no mundo todo, esperamos que os resultados positivos cresçam cada vez mais e possamos ter uma ferramenta a mais no combate à COVID-19 o quanto antes.

    As perguntas ainda sem respostas

    Como essa doença é nova e ainda estamos descobrindo como o vírus age em nosso corpo, muitas questões ainda estão sem respostas. Aponto algumas aqui que talvez nos ajudem a questionar as informações que recebemos e o modo como lidamos com elas. 

    Em quanto tempo teremos uma vacina eficiente contra a COVID-19? Serão seguidos todos os critérios éticos durante o processo? Os anticorpos neutralizantes (imunidade) vão durar por quanto tempo? Se uma vacina for eficiente em todos os quesitos, a produção e distribuição/comercialização a nível mundial será feita de modo justo e com equidade? 

    Para saber mais

    Ewen Callaway. Coronavirus Vaccine Trials Have Delivered Their First Results – But Their Promise Is Still Unclear. Nature. 2020 May 19.  doi: 10.1038/d41586-020-01092-3.

    Feldman RA et al. mRNA vaccines against H10N8 and H7N9 influenza viruses of pandemic potential are immunogenic and well tolerated in healthy adults in phase 1 randomized clinical trials. Vaccine. 2019. doi: 10.1016/j.vaccine.2019.04.074.

    Moderna. 2020. Moderna Announces Positive Interim Phase 1 Data for its mRNA Vaccine (mRNA-1273) Against Novel Coronavirus

    Organização Mundial da Saúde (OMS), 2016, Guidelines on clinical evaluation of vaccines: regulatory expectations. WHO.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
  • Eugenia, Seleção Natural e um “tanto faz” de vidas e mortes por Covid-19

    No dia 24 de Maio, vários de nós vimos mais uma transmissão ao vivo do biólogo e divulgador científico Átila Iamarino. Dessa vez com o convidado Leandro Karnal, historiador brasileiro.

    Ao final da transmissão, Átila encaminha a discussão com Leandro Karnal, falando sobre como pessoas apresentam o desprezo que têm com outras pessoas e como minimizam a morte do outro. Átila inicia falando de AIDS e segue com a questão da idade, diabetes, gordos. “São só os gordos, quem mandou comer demais?”, sobre o que já leu na internet. Karnal responde apontando a eugenia do mundo como uma grande distopia – a busca por um ideal padrão tal qual no Admirável Mundo Novo do Huxley.
    Antes de mais nada, eu vou dizer que este livro deveria ser leitura obrigatória em cursos de formação de biologia, traçando debates éticos sobre ciência e seres humanos.

    Mas voltando à questão, Karnal fala que defende a vida até de políticos.

    “Toda a relativização de vida, fulano é marginal deve morrer, fulano é criminoso deve morrer, fulano é pobre não é tão dramático, fulano é velho (…) é o início de uma infecção. E essa infecção não é controlada só naquele grupo. A gente tem que reprimir inclusive a nossa vontade de que alguns líderes morram, temos que reprimir inclusive isso (…) Nem para eles. Nem para eles se pode desejar doença ou morte: todos são humanos” (Karnal, 2020, na #livedoatila).

    Eu vou hoje analisar algumas falas que circulam “por aí” na sociedade que falam da pandemia, banalizam mortes e como isto se relaciona com a eugenia. Eugenia, como assim? A eugenia é uma distopia da busca pelo ideal… É eugenia cada vez que legitimamos vida, morte, ou investimentos em seres humanos a partir de premissas que dividem seres humanos com características que se supõe puramente biológicas. 

    Como assim, puramente biológicas? Como assim “supõe?

    Apontamos uma característica humana, por exemplo, “sobrepeso” ou “obesidade”, classificando em grupos: “uns” e “outros”. O que estamos fazendo? Agrupando e segmentando, simplificando causalidades, naturalizando como algo único o que no fundo são características complexas que estão enredadas em múltiplos fatores biológicos, sociais, culturais.

    Junto a isso, há o cerne da ideia eugenista: a escolha por quem vive, quem morre e quem pode e merece atenção e investimento. E isto é crueldade por tomar como simples, puro e biológico algo que é um emaranhado de conceitos, ideias, sem linearidade causal fácil de ser traçada.

    A busca de políticas públicas deve se pautar, sim, por escolhas técnicas, lógicas e racionais. No entanto, mesmo o olhar técnico apresenta, sempre, relações com o seu tempo e o pensamento de grupos sociais. Não existe isenção e neutralidade, mesmo nas escolhas lógicas e racionais (para saber mais sobre a construção do conhecimento científico, temos este texto aqui).

    Assim, neste sentido específico, é fundamental demarcar: políticas pautadas em características humanas que são dispensáveis foram, são e serão execráveis e assassinas. Alia-se a isso uma população, de acordo ou não com o governo, que apoia este discurso em muitos sentidos. Reforça-se neste conjunto governo e população que há, sim, quem seja dispensável. A morte destes “outros”, neste sentido, só potencializa o quanto “uns” estão no lado do “ideal”. 

    Tá, mas e para quê este falatório todo? Onde é que viste tanta eugenia assim?

    O que temos visto em diversos espaços – seja jornalístico, seja na política pública, seja em conversas informais em redes sociais – são muitos cortes biologizantes, com ares de descuidado de si e, portanto, merecimento de morte – o obeso, o diabético, o idoso, o fura quarentena, o conspiracionista que não acredita na severidade da situação.

    Pois bem, lembremos que basicamente para uma pessoa se contaminar, ela precisa entrar em contato com alguém contaminado (ou um objeto contaminado por uma pessoa). Podemos também simplificar o contágio como a prática do contato social “descontrolado” – em outras palavras o que era nossa vida social antes do mês de março.

    Para que a pessoa adoeça, no entanto, e entre em um modo crítico ou severo da doença, existem múltiplos fatores – e nenhum deles é possível prever individualmente… Isto é: quando apontamos uma possibilidade estatística de adoecimento, estamos falando de uma população. Existem características humanas que estatisticamente aparecem com maior probabilidade de acarretar em um agravamento da doença – o que geram os chamados grupos de risco. 

    Há três falas mais genéricas que eu gostaria de analisar, hoje: a Seleção Natural, a imunização de rebanho, e sobre as comorbidades (em especial a ideia de “ninguém mandou se comportar de maneira X”). Nessas três falas há uma série de itens ignorados (deliberada e cientemente ou não) que legitimam a morte de pessoas, tomando-os não apenas como menos importantes socialmente. É pior do que isso.

    Estas ideias apontam para a intencionalidade da morte como causa justa para desonerar quem vive e merece seguir vivo. Isto é, todas as falas são falas que usam ideias científicas em defesa de si mesmos como o ideal a ser seguido.

    Tão arrogante, quanto patético, tais discursos desconsideram inúmeras questões.

    A seleção natural quando apontada para aquele que fura a quarentena, no fundo aponta que este ato é deliberadamente colocar-se em risco e, portanto, merecidamente ser atingido. 

    A imunidade de rebanho insere uma lógica biologicista de recursos infinitos para atender todos os doentes em tempo hábil e morte só dos que “não teriam condições mesmo” e estão “dentro da estatística de letalidade da doença”. Naturaliza, também, o mais fraco como fatídico e sem solução.

    Por fim, a ideia do “ninguém mandou se comportar de maneira X”, relacionado às inúmeras doenças humanas simplifica fatores de adoecimentos, individualizando a culpa e a responsabilidade. Eximem, assim, necessidade de as políticas públicas terem qualquer ação real com os indivíduos.

    Neste último item, é importante apontar que existem múltiplos fatores (biológicos e sociais) para adoecimentos que, agora na COVID-19 que acabam agravando a situação. Incutir a culpa em obesos pois “era só não comer”, ou diabéticos pois era “só controlar a glicose”, é ignorar a multiplicidade de condições para sermos saudáveis (ou melhor: prescrições de uma vida saudável) que nenhum de nós segue. 

    Este discurso é sim biologicista, na medida em que torna a doença algo mecânico e simples de ser tratado, como simples rota metabólica a ser arrumada (só comer bem, só cuidar glicose, só fazer exercício regularmente…). É também um discurso moralista, que aponta – sempre no outro, claro – comportamentos condenatórios e não compatíveis ao que “nós” (o grupo de bem) consideramos correto.

    Estes são discursos cruéis, montados em uma biologização e naturalização da doença, usando (sim!) ideias científicas. No entanto, as usam a partir de distorções, carregadas de preconceitos a partir de contextos sociais, políticos, econômicos, culturais específicos. que são distorcidas às vezes, mas são preconceituosas sempre, pois apontam que há grupos que nós não precisaríamos nos preocupar. Há trechos de DNA, sequências específicas, fisiologias determinadas, anatomias escancaradas, faixas etárias declaradas que não precisam ser salvas, melhor seria deixar sucumbir de vez. Assim restariam os que são imunes às problemáticas atuais. Seleção Natural, imunização dos fortes, morte dos indisciplinados e enfermos: a sociedade, enfim, poderá voltar à normalidade (sem trocadilhos). A estatística populacional neutra e límpida mostrará a régua do que deve permanecer! (Será?).

    [Por outro lado]

    Em governos que agem à revelia, fazendo feriado ao invés de propor fechamento das cidades/estados, promovendo abertura de comércio “com protocolo de segurança anti-covid-19”, retirando do auxílio emergencial categorias profissionais inteiras por considerá-las essenciais (sem protocolo de segurança, sem EPI indicado, sem essencialidade comprovada), que indicam medicamentos para tratamento com evidências científicas apontando riscos severos no seu uso, que trocam de cargos máximos de instâncias de saúde (nos deixando sem representante) em um período de crise como este, que reduzem transporte público “pois há menos pessoas na rua” – tornando-os lotados pela quantidade reduzida, ao invés de proporcionar aos trabalhadores que precisam circular, espaço com segurança… Em governos que se eximem das responsabilidades de gerenciamento da crise, riem da morte de sua população – por COVID-19 ou por miséria…

    [pausa para respirar]

    (ufa) Em governos que agem como estamos vendo agir, com populações que poderiam reforçar a segurança e contenção da doença, mas não o fazem por ignorância ou impossibilidade: não se faz piada biologizando a doença, usando a seleção natural como fato simples. Especialmente nestes tempos, não se reforça ideais eugênicos como política pública válida e socialmente aceita. Não se retira a responsabilidade pública, coletiva e social por individualizar situações e culpabilizar pessoas, especialmente sem analisar a complexidade do que vivemos.

    Quando falamos que nem todos que se arriscam merecem adoecer, logo se pensa em profissionais da medicina e enfermagem, inclusive os tomando como heróis. Pois em um país como o nosso, cada indivíduo que caiu nas malhas dos trabalhos informais e “microempreededorismos individuais”, autônomos e aquele conjunto de pessoas que foi empobrecendo e colocando sua vida como negociata para pouco mais que nada de dinheiro, e que têm sido sistematicamente descartado como parte do que importa de vida aos gestores deste imenso território chamado Brasil – que tenta salvar grandes CNPJs e descarta CPFs… – biologizar as causas de mortes evitáveis é aceitar o genocídio “dos outros” como fato inconteste e natural.

    É naturalizar, literalmente, que ações políticas não têm efeito sob o atual cenário. É rir de todos aqueles que não têm condições de se resguardar de tudo isso.

    Não se ironiza Seleção Natural como se nossa sociedade estivesse isenta de políticas e ações que mudam a nossa vida e suas condições. Não se desfaz, ou dá de ombros quando há grupos de pessoas historicamente determinando quem pode ou não viver. Tampouco se ironiza o adoecimento, usando ciência para criar cortes de vida e morte, enquanto homens sentam-se em volta de uma mesa, com toalhas brancas, sãos e salvos, determinando quais dinheiros podem ser gastos sem problema amparando-se em intelectuais nazistas, que definem que investimento na sociedade e em humanos é quebrar o país, que leis devem ser aprovadas para se passar a boiada, que os membros de um dos pilares da democracia devem estar presos, enquanto discursos dispersos para desviar a atenção se fazem e seres humanos cotidianamente morrem por falta de ação real.

    Não se faz piada, enquanto subsistência se faz a céu aberto em vala comum. Nunca. Jamais.

    Para saber mais

    ARNT, Ana de Medeiros (2013) Genomas, sexualidade, seleção de parceiros, anomalias, defeitos, aborto, seleção de embriões: educando e governando vidas e sujeitos pelo determinismo biológico enunciado genes na revista ciência hoje

    IAMARINO, Atila; KARNAL, Leandro (2020) Live 24/05 – O pior lado da Pandemia, com Leandro Karnal #FiqueEmCasa.

    KECK, Frédéric e RABINOW, Paul (2008) Invenção e representação do corpo genético. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques e VIGARELLO, George História do corpo: as mutações do Olhar, O século XX. Petrópolis: Vozes, p.83-105.

    LEWONTIN, Richard (2002) O Sonho do Genoma Humano, Revista Adusp.

    MBEMBE, Achille (2018) Necropolítica, 3ed, São Paulo, 2018.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
  • Os 7 tipos de Fake News sobre a Covid-19

    Autoria de Cesar Augusto Gomes

    Conforme escrevi neste Especial Covid-19, há dois meses, a pandemia trouxe consigo a necessidade de estancar a disseminação de falsas informações a respeito dessa terrível doença.

    Neste sentido, o presente texto pretende analisar e classificar os tipos de desinformação que circulam relacionados à Covid-19 e indicar um roteiro de perguntas básicas que você deve fazer antes de acreditar e / ou compartilhar informações que vale tanto para o Coronavírus quanto para as demais fake news sobre saúde, que circulam desde sempre.

    Para esta análise e classificação utilizo como método os 7 Tipos de Desinformação, inspirado na classificação feita por Wardle e Derakhshan (2017), para quem o termo fake news é inadequado, ambíguo e simplista para descrever o fenômeno da produção, difusão e consumo de uma gama variada de informações e não dá conta tanto da natureza quanto da escala do problema:

    Neste relatório, evitamos usar o termo “fake news” por dois motivos. Primeiro, é lamentavelmente inadequada para descrever os complexos fenômenos da poluição da informação. O termo também começou a ser apropriado por políticos de todo o mundo para descrever organizações de notícias cuja cobertura eles acham desagradável. Desta forma, está se tornando um mecanismo pelo qual os poderosos podem reprimir, restringir, minar e contornar a liberdade de imprensa. (WARDLE e DERAKHSHAN 2017:05)

    As informações foram coletadas entre os dias 26 de fevereiro de 2020 (data do 1° caso de Covid-19 registrado no Brasil) até o dia 10 de maio de 2020 (data da produção deste texto) e serão elencadas por ordem cronológica a partir do momento em que elas foram publicadas[1] pelas agências e editorias de fact-checking brasileiras, além Projeto Comprova, que atualmente se empenham em fazer o debunk das informações não factuais que circulam. Houve a seleção de um único exemplo de desinformação por categoria, com o intuito único de ilustrar os mesmos e não se buscou quantificá-los, hierarquizá-los nem relacioná-los a quaisquer correntes políticas ou a seus interesses subjacentes.

    Há, sem dúvida, a menção à política dentro das explicações porque ela atravessa o tema aqui estudado.

    (1) Manipulação do Conteúdo: quando a informação ou imagem genuína é manipulada para enganar.

    Foto editada publicada em post nas mídias socias (à esquerda) e frame de reportagem do canal pago GloboNews (à direita)

    31/03. A linguista da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Roxane Rojo (2012), ao diferenciar mídias digitais e analógicas, explica que estas faziam parte de um processo de comunicação unilateral em que o receptor estava incapacitado de responder ou interagir com a informação ou conteúdo que recebia.

    Por outro lado, aquelas, com a evolução tecnológica, permitem “que o usuário – ou o leitor/produtor de textos humano – interaja em vários níveis e com vários interlocutores – interface, ferramentas, outros usuários, textos/discursos etc.” (ROJO, 2012:23).

    Assim, o fácil acesso às tecnologias digitais permite não apenas receber conteúdos passivamente, mas interagir com eles e até interferir, produzindo outros conteúdos a partir do que foi lido, publicá-los e ser lido em qualquer parte do mundo por milhares de pessoas que tenham a acesso à internet.

    Essas possibilidades, que inegavelmente democratizam a comunicação de uma maneira nunca antes vista, podem estar se tornando uma armadilha para a Democracia, pois, têm servido a interesses de grupos de que delas se aproveitam para obter dividendos econômicos, e políticos, inclusive para defender o fim da Democracia, passando ao largo do interesse público.

    Portanto, a Manipulação do Conteúdo é um claro exemplo concreto dessa distorção, pois, no caso em destaque, o autor se utiliza de um frame de uma reportagem sobre chuvas do ano anterior e sobrepõe – por meio de uma legenda que imita a fonte da emissora de TV – uma informação não factual envolvendo a Covi-19. Um leitor desavisado e que não tenha a curiosidade de investigar a veracidade da informação, certamente vai absorver a versão transmitida por meio da montagem.

    (2) Conteúdo Fabricado: conteúdo novo que é 100% falso, criado para ludibriar, prejudicar.

    Frames de vídeo publicado no YouTube (à esquerda) e ilustração de fórmulas químicas (à direita)

    14/04. A produção de fake news não é exclusividade de um partido ou de uma corrente política, não agora, mas na história da humanidade. No entanto, no caso específico da Covid-19, no Brasil de 2020, uma corrente específica manifesta claramente o seu desprezo pelas determinações dos cientistas, o que não é segredo para ninguém, muito pelo contrário, alguns se orgulham disso. Isso talvez justifique a ansiedade (talvez, não seja nem maldade) de se produzir uma cura, que venha a desmentir tudo o que as pesquisas e os cientistas disseram até agora, revelado pela frase dita ao final do vídeo pela autora: “Isso a Globo não te conta!”.

    A protagonista (é bom pontuar porque ajuda a explicar o contexto da produção) tem pretensões político-eleitorais, conforme um site local e o perfil de seu partido num site de rede social noticiam que ela foi “aprovada no processo seletivo para Vereadora de Campo Grande/MS”. Se o objetivo era divulgar seu nome, deu certo, pois, num único perfil do site de rede social Twitter ela teve mais de 2 milhões de visualizações. É exatamente para isso que muitas vezes se produzem Fake News: dado o absurdo de algumas narrativas, uma parte das pessoas acabam compartilhando para criticar o que foi dito e outra parte, por concordar. De um modo ou de outro, a pessoa consegue aquilo que buscava: notoriedade. A estratégia tem se mostrado bastante eficiente, principalmente para fins eleitorais, como parece o caso.

    Podemos classificar como Conteúdo Fabricado todas as Fake News que circulam propondo algum tipo de cura para a Covid-19, sem nenhuma comprovação científica, como é o caso da recomendação para beber água quente ou ingerir Vitamina C e chá de erva-doce.

    (3) Falsa Conexão: quando manchetes ilustrações ou legendas não confirmam o conteúdo.

    Post que circula nas mídias sociais (à esquerda) e captura de tela (screenshot) de decreto emitido pelo Governo Federal (à direita).

    14/04. Outro caso bem comum de se encontrar, novamente ligado à política, porque no Brasil de 2020 a pandemia ganhou uma dimensão política, aparece uma linha de produção de Fake News que busca isentar a figura do presidente da república das consequências econômicas inevitáveis que virão pós pandemia. Isso do ponto de vista do debate democrático é legítimo, desde que feito baseado em fatos. Não é o caso do post acima que circulou nos sites de redes sociais ligados a determinado espectro político.

    A Falsa Conexão – muito parecida com o Conteúdo Enganoso – procura, a partir de um fato, distorcer parte da informação. A diferença é que o Conteúdo Enganoso distorce os dados omitindo as fontes e comunicando aquilo que lhe convém. Já a Falsa Conexão apresenta sim uma fonte oficial, porém distorce o conteúdo dessa fonte oficial, apostando no hábito do leitor ubíquo de não pesquisar a fonte e se contentar com o que está ali colocado para acredita na postagem. Logicamente isso está associado a uma série de questões como o viés de confirmação e tantos outros motivos que levam as pessoas a acreditar em Fake News, mas que não vamos discutir neste momento.

    (4) Falso Contexto: quando o conteúdo genuíno é compartilhado com informação contextual falsa.

    Frame de vídeo que circula no aplicativo WhatsApp (à esquerda) e frame de vídeo que ilustra reportagem da EPTV São Carlos, pertencente ao Grupo Globo (à direita)

    30/04. Com o agravamento da pandemia no Brasil, o Amazonas despontou como um dos primeiros Estados que apresentaram colapso em seu sistema de saúde. Como há uma questão política envolvendo a Covid-19 no país, não tardaram surgir desinformações questionando o número de mortos e as medidas de isolamento social.

    Na falta de provas materiais de seus interesses, os produtores de fake news encontraram na rede um vídeo genuíno, porém, gravado em 2017 em que uma exumação foi realizada e encontradas pedras em lugar de ossos humanos. Assim se caracteriza o Falso Contexto: uma informação factual, ocorrida num momento diferente, porém trazida a público como se fosse atual, com a clara intenção de enganar.

    (5) Conteúdo Enganoso: uso enganoso de informações para enquadrar uma questão ou um indivíduo.

    Montagem de posts que circulam nas mídias sociais (à esqueda) e captura de tela (screenshot) dos dados de mortos por Covid-19 no Amazonas (à direita)

    07/05. Ainda no Amazonas, o ex-Ministro da Saúde, Nelson Teich, visitou o Estado no último dia 04 de maio para acompanhar de perto as ações desenvolvidas no enfrentamento à COVID-19, no Estado. Rapidamente, pipocaram nas mídias sociais informações de que o número de mortos havia diminuído após a chegada do político (conforme ilustração acima). Como de costume, este tipo de desinformação não apresenta nenhuma fonte oficial e circula por meio de imagens e vídeos de perfis ligados a determinadas posições políticas.

    Está caracterizado, assim, o Conteúdo Enganoso: partir de uma informação factual – no caso, a visita do ministro – e distorcer informações ou dados decorrentes desta – no caso a informação de que os óbitos em decorrência da Covid-19 teriam caído a 02 pessoas quando na verdade eles giraram entre 36 e 102, durante a passagem do ministro. A intenção é clara: levar os (e)leitores a deduzir que se a primeira informação é factual, a segunda também o será.

    (6) Sátira ou Paródia: nenhuma intenção de prejudicar, mas tem potencial para enganar.

    (7) Conteúdo Impostor: quando fontes genuínas são imitadas.

    Capturas de tela (à esquerda) de post publicado no site de rede social Twitter e (à direita) descrição do perfil da autora do post no mesmo site.

    A produção de notícias falsas como elemento de humor e ironia não começa com a internet. A revista Casseta Popular (paródia da Gazeta Popular) foi criada em 1978, por estudantes de engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e o jornal Planeta Diário surgido em 1984 – que chegou a alcançar a tiragem mensal de 100 mil exemplares – inauguraram um tipo de humor tendo como conteúdo paródias e notícias falsas baseadas em fatos reais. A união das duas redações deu origem em 1988 ao Casseta & Planeta, que ficou no ar pela TV Globo entre 1992 e 2010, cujo lema era “Jornalismo mentira, humorismo verdade”.

    Ocorre que, naqueles suportes – impresso e TV – havia condições de identificar o objetivo da publicação e a não veracidade das “notícias” publicadas. Com a chegada das mídias digitais – no sentido que Rojo (2012) lhe atribui, conforme dito anteriormente – houve a migração desse tipo de humor para as plataformas de mídias sociais, o que tornou a vida do leitor muito difícil para – no afã de compartilhar um grande volume de informações que lhe chegam a todo momento em seus dispositivos – diferenciar uma piada com ares de verdade e uma notícia factual, produzida pela mídia denominada tradicional, aqui entendida como “o conjunto de meios enquanto indústria da comunicação, com suas empresas e rotinas próprias” (GUAZINA, 2007:54).

    O Conteúdo Impostor, ao que se tem notícia, é utilizado no Brasil apenas para sites de humor, como a Falha de S. Paulo, paródia do jornal paulistano Folha de S. Paulo, e o G17, paródia do portal G1, do Grupo Globo. Embora não se descarte sua intencionalidade político-partidária, a Sátira ou Paródia, diferentemente dos demais tipos de desinformaçãonão têm o objetivo de enganar, mas sim, entreter.

    7 Dicas para identificar uma notícia falsa

    Segundo o biólogo Atila Iamarino nesta pandemia o raciocínio negacionista está sendo desconstruído pelo rápido confrontamento com os fatos. As fake news, que em boa medida bebem nas fontes negacionistas, estão tendo o mesmo destino. Embora saibamos que o alcance de uma desinformação é muito maior do que o seu desmentido, no curto prazo, as agências e editorias de fact-checking têm um papel fundamental, valorizando ainda mais os profissionais do jornalismo.

    No médio prazo, os legisladores propõem projetos para tentar coibir quem divulga fake news com pesadas multas. No entanto, no longo prazo somente a educação para leitura crítica da mídia pode vir a dirimir esse problema.

    Infelizmente, a Covid-19 nem as fake news sobre ela vão esperar, assim, inspirado no método de identificação de notícias falsas da International Federation of Library Associations and Institutions (IFLA), enumero a seguir 7 considerações às quais o leitor deve levar em conta antes de compartilhar uma história:

    1. Considere a fonte: clique fora da história para investigar o site, sua missão e contato.
    2. Considere o título: ele corresponde ao conteúdo do texto ou só quer obter cliques?
    3. Considere o autor: há um autor que assina o texto?  Ele tem credibilidade?
    4. Considere a data: repostar notícias antigas como se fossem atuais, é uma estratégia.
    5. Considere outras fontes: a história aparece em outros sites com a mesma versão?
    6. Considere sua ideologia: seus valores e crenças afetam seu julgamento nessa história?
    7. Considere o Humor: pesquise se o site de origem é adepto do gênero humorístico.

    No passado, na Grécia Antiga, a Ágora ateniense era o espaço, físico, onde o cidadão fazia discussões políticas, entre outras atividades. Por ser o espaço da cidadania, era considerada um símbolo da democracia direta e, em especial, da democracia ateniense, na qual todos os cidadãos tinham igual voz. Hoje, as mídias sociais são os espaços (virtuais) mais frequentes em que os cidadãos (onde há dispositivos eletrônicos e conexão de internet) encontram “palco” para se manifestar. Infelizmente, essa Ágora Moderna está sendo destruída por quem não tem apreço à democracia, muito menos à vida humana, pois uma pessoa que tem a coragem de espalhar uma desinformação sobre saúde está (ou deveria estar) consciente de que sua atitude pode levar uma pessoa a deixar de tomar um remédio que poderia lhe salvar a vida ou tomar um que pode lhe tirar. O mundo todo está enfrentando a pandemia da Covid-19, no entanto os brasileiros enfrentam duas.

    Referências:

    GUAZINA, Liziane. O conceito de mídia na comunicação e na ciência política: desafios interdisciplinares. Porto Alegre. Revista Debates, v. 1, n. 1, p. 49-64, jul.-dez. 2007.

    RODA VIVA. Entrevista a Atila Iamarino. TV Cultura. São Paulo. | 30/03/2020. Disponível em https://youtu.be/s00BzYazxvU acesso em 14 mai. 2020;

    ROJO, Roxane; MOURA, Eduardo. (Org.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012. 264p.

    WARDLE, Claire; DERAKHSHAN, Hossein. Information Disorder – Toward an interdisciplinary framework for research and policy making. Council of Europe. Estrasburgo, França. 27 out 2017. Disponível em https://rm.coe.int/information-disorder-toward-an-interdisciplinary-framework-for-researc/168076277c. Acesso em 15 mai. 2020


    [1] Exceção feita à Sátira e ao Conteúdo Impostor que, por pertencerem ao gênero humorístico, não passam por checagem das agências.

    Autoria de Cesar Augusto Gomes


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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • E a escola, como vai?

    O ensino remoto nos faz retornar a décadas passadas, onde o acesso à educação era para poucos, num formato totalmente tecnicista, com um currículo imutável e por meio da aplicação de uma mesma “técnica pedagógica”.

    É provável que muitos dos que irão ler este texto tenham filhos em idade escolar ou conheçam pessoas que os tem. É provável também que se perguntem como têm sido as atividades desenvolvidas pelas escolas e se há sentido a educação remota imposta pelo confinamento social. Um fato é, dentre pais, professores, gestores e estudantes, provavelmente encontraremos grande insatisfação com esse formato. Mas enfim, o que fazer em relação a esta situação? E se tivermos um segundo semestre também a distância?
    Sabemos que no Brasil há muitos formatos de educação dentro de um mesmo sistema. Estados, municípios, redes militares, redes federais e privadas compõem um espectro de modelos educacionais e, nesse período de isolamento, toda essa variedade migrou para o caráter remoto. Nessa migração, à outrora importantíssima diversidade do sistema educacional brasileiro tem se colocado como um desafio por vezes insuperável para as instituições e os resultados a se esperar de todo esse processo não tem sido tão promissores.

    Olhando para as propostas
    Ao percorrer os modelos de ensino remoto implementados vemos semelhanças e diferenças. O estado de São Paulo, por exemplo, adotou a proposta remota pela implementação de um aplicativo de celular para disponibilização de conteúdos por meio de arquivos e aulas, com preparo de um material específico para o momento da pandemia além das salas virtuais por meio da plataforma google classroom. Nesse formato, os estudantes da rede entram TODOS ao mesmo tempo no aplicativo para assistir as aulas (que tem horário definido por série) ou o fazem por meio do canal digital da tv cultura, minando qualquer possibilidade de interação). O material produzido não carrega conteúdos síncronos com aqueles estabelecidos em cada série(1).
    Numa linha totalmente diferente, o Instituto Federal de São Paulo (IFSP), por sua vez, optou pela suspensão das atividades, mantendo ações de vínculo com os estudantes enquanto planeja ações futuras. Nesta estratégia são desenvolvidas ações como clubes de leituras, debates sobre filmes, temas atuais, etc., mas sem a cobrança de uma formalização do ensino ou cumprimento de conteúdos curriculares.
    Já as redes privadas, para desespero dos pais, têm adotado cada qual a sua estratégia de sobrevivência. Aulas síncronas ou gravadas, plantões online, disponibilização de materiais e tarefas que devem ser elaboradas e entregues para o acompanhamento pelo professor, dentre outras. O objetivo, na maior parte dos casos, é manter o conteúdo em dia, preocupação que pode girar em torno da manutenção do número de matrículas (e pagamentos) como também em relação aos exames vestibulares.
    A linha comum de todas as propostas no entanto, se mantêm: os estudantes, juntamente com seus responsáveis (no caso da Educação Fundamental), devem acessar o conteúdo em casa, realizar ações e de algum modo apresentar uma devolutiva. Tudo remotamente. É diante deste cenário que estamos e que podemos pensar um pouco a respeito. Me proponho a colocar três questões das inúmeras que são possíveis para o debate.
    Primeiramente, como já apresentado por Natália Flores e Ana Arnt, para além do acesso aos recursos, nem todos os estudantes têm condições adequadas de aprendizado no ambiente domiciliar. Podemos considerar que a escola é um espaço pensado para prover condições mínimas de estudo (ainda que consideremos as condições problemáticas de algumas instituições). Independente de uma proposta tradicional, construtivista, sócio-interacionista, etc., o ambiente escolar possibilita um espaço-tempo onde é possível ler, escrever, dialogar, além, é claro, de obter orientações do e com o profissional professor. Nas casas, o conteúdo produzido (neste momento de forma pouco planejada) é transmitido para um aluno que muitas vezes não possui condições físicas para estudar nem orientação adequada para tal. Na na escola reconhecemos os ritmos e nos adequamos a eles enquanto que no ensino remoto isso não tem sido possível.
    O segundo ponto que toco é a forma como a implementação das ações foi pensada e quais aspectos foram considerados. Todos que trabalham com educação conhecem bem os termos avaliação diagnóstica e planejamento. A ideia de avaliação diagnóstica vai além de conhecer conhecimentos prévios de física, química, matemática ou qualquer outra área. Soma-se a isso, conhecer quem são os estudantes e suas realidades para que o planejamento educacional seja feito e refeito quantas vezes for necessário.
    E então nos questionamos: que dados diagnósticos foram considerados na proposição de uma plataforma única de acesso a conteúdos? Distribuem-se aplicativos a quem não tem acesso, propõe-se um material diferente do currículo e que nem ao menos tem-se a certeza de estarem chegando aos domicílios. Propõem-se que os pais realizem as tarefas com os filhos quando estes também têm trabalho remoto a fazer (na melhor das hipóteses).
    Para além dos dados gerais como os da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAD 2017, que mostra que o acesso dos municípios à banda larga temos os dados específicos, das escolas, as quais conhecem os estudantes matriculados. Quando se propõe a implementação de um único projeto a populações totalmente distintas, incorre-se no erro crasso de acreditar que todos são perfeitamente iguais em temos de condições e de aprendizagem. Ou seja, nessa proposta, esquecemos o fundamental: quem são os alunos!
    Soma-se a este fato, como terceiro aspecto, a supervalorização da técnica frente ao objeto do aprendizado. Nunca antes se falou tanto em tecnologias educacionais como antes. Nós, professores, buscamos aprender a lidar com ferramentas novas de um dia para o outro (literalmente), empurramos aos alunos e pais que também aprendessem. E produzimos conteúdos digitais de maneiras como nunca faríamos, não fosse a pandemia, com uma falsa impressão momentânea de que com isso venceríamos toda a problemática imposta. Triste fim.
    Ainda que todos tivessem acesso, esquecemos que o formato digital imposto é, sim, limitador a uma proposta tecnicista de ensino uma vez que vem tolhe a interação e o diálogo, impondo um mesmo conteúdo apresentado da mesma forma à todos. A diversidade, outrora aspecto de possibilidades para o ensino, é nesse momento desprezada pois a técnica, por mais atualizada que seja, não considera a realidade. O ensino remoto nos faz retornar à décadas passadas, onde o acesso a educação era para poucos, num formato tradicional, com um currículo imutável e por meio da aplicação de uma mesma “técnica pedagógica”.
    O que podemos fazer diante deste cenário? Manter ou cancelar o ano? Trabalhar conteúdos ou não trabalhar? E o vestibular?
    Obviamente não há saída mágica para a situação. Mas é fato que dados nos auxiliam em ações. Estamos a completar quase dois meses de isolamento e, dependendo do sistema, de duas a oito semanas de ensino remoto. Temos, além dos dados que foram desconsiderados inicialmente, de quem são nossos estudantes, temos ainda o número de acessos, materiais recebidos, respostas ao sistema e podemos ainda acessar outros, se assim for desejável. Então, consideremos estes e nos perguntemos “O que aprendemos com isso e como podemos nos utilizar desses dados para repensar e replanejar as ações?” Na iminência de um segundo semestre também a distância, o mais coerente a se fazer é planejar com bases e não com achismos. Observar que as escolas, mesmo fazendo parte de um mesmo sistema educacional tem especificidades e buscar agir de acordo com estas características é crucial. E se tivermos um segundo semestre a distância? Muitos erros estão aí. Cabe a nós planejarmos as ações, para não cometê-los novamente.

    1. Portal de notícias do Estado de São Paulo: https://www.saopaulo.sp.gov.br/ultimas-noticias/educacao-retoma-ano-letivo-com-ensino-remoto-e-distribuicao-de-material-pedagogico/

    2. Nota da Reitoria do Instituto Federal de São Paulo. Disponível em: https://www.ifsp.edu.br/images/pdf/Noticias/Comunicado_01_2018_PRE.pdf
    3. Natália Flores. Ensino Remoto Emergencial: não é só sobre acesso e equipamentos… disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/covid-19/ensino-remoto-emergencial-nao-e-so-sobre-acesso-e-equipamentos/.
    4. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2017 – disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101631_informativo.pdf


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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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  • O cérebro em quarentena

    Como ajudar nosso cérebro a driblar a ansiedade e lidar melhor com o estado de isolamento?

    [Esta é uma versão expandida de um texto escrito para a edição de maio de 2020 da revista Ciência Hoje, por André L. Souza e Lucas Miranda]

    O corpo humano é um organismo altamente complexo, cheio de segredos ainda não descobertos e com habilidades que você provavelmente nem sabe que existe. É estranho imaginar que a gente não conhece o próprio corpo e muito menos o controlamos por completo. Mas isso é normal! Aprender mais sobre como nós funcionamos é essencial para mantermos um estado de bem-estar e de saúde mental. E é sobre isso que vamos conversar.

    Nosso cérebro é uma máquina feita para buscar respostas e perceber padrões. O tempo todo, esse órgão que controla tudo que você faz e pensa, está analisando o mundo e as coisas ao seu redor na tentativa de encontrar esses padrões e, com isso, prever o que vai acontecer.

    cérebro jogando bola
    Ilustração do Vitor Hugo de Oliveira (@myFairy_King) feita com exclusividade para esse texto

    Imagine, por exemplo, uma partida de futebol. Neymar está com a bola e um adversário, bem na sua frente, aguarda o momento de dar o bote. Para o atacante decidir o que fazer, o cérebro dele vai analisar um monte de coisas: a distância que o adversário está, o quão bem o adversário joga, a presença de outros jogadores do seu time, a distância que ele está do gol, o seu nível de cansaço, etc. Essas informações vão ajudar o cérebro do Neymar a prever o que pode acontecer em cada uma das suas possíveis escolhas. E é com essas previsões que uma decisão será tomada.

    Esse processamento de informações ocorre no cérebro o tempo todo e em frações de segundo! Você poderia pensar: então, quanto mais informações o meu cérebro processa mais bem fundamentadas serão as minhas decisões, certo? Não exatamente. Imagine se o cérebro do Neymar decidisse analisar também a cor do cabelo do adversário, a vaia de alguém que está na torcida, uma borboleta que passou voando… Essas informações não serão nada úteis para a previsão específica da sua próxima jogada. Elas só irão dar mais trabalho para o cérebro e dificultar a tomada de uma decisão.

    Em momentos de incertezas, como é o caso de uma pandemia e de isolamento, não é fácil para o nosso cérebro saber quais informações são relevantes para fazer as suas previsões: “devo prestar atenção nas notícias de saúde? Ou devo me preocupar mais com as notícias da economia? Será que preciso saber como o coronavírus funciona? Ou posso mesmo só entender que lavar as mãos ajuda?”. Todo esse excesso de informação vai deixando o nosso cérebro perdidinho, sem saber como fazer suas previsões.

    Quando isso acontece e o cérebro não consegue mais montar padrões, ele aciona uma espécie de alarme interno para te avisar que tem algo errado e que alguma coisa precisa ser feita. É como se dissesse: “Ei, estou sendo sobrecarregado aqui. Precisamos fazer alguma coisa”. Esse sentimento, que chamamos de ansiedade, nos paralisa, porque exige toda a nossa atenção e energia voltadas para resolver o que precisa ser resolvido no cérebro para que ele volte a se sentir bem e a encontrar suas respostas e padrões.

    Por isso, é uma boa ideia adotar estratégias que tragam uma maior sensação de controle para o seu cérebro, para evitar que esse alarme seja acionado.

    Tudo sob controle

    Você acabou de chegar de uma atividade e tudo que você quer é um delicioso suco de frutas. Se você decidir jogar no liquidificador 300 tipos de frutas, de vários tamanhos e formatos, o que vai acontecer quando você o ligar? Obviamente, ele não vai conseguir triturar tudo e ainda vai transbordar e fazer a maior bagunça.

    Assim é o nosso cérebro com as informações. Não adianta jogar lá um tanto de informação de diferentes fontes e formatos e esperar que o cérebro faça um suco legal com elas. Se para fazer um bom suco é importante escolher poucas frutas, de preferência as que você gosta e que te deixam bem, e cortá-las em pedaços pequenos, o mesmo deve ser feito com nosso cérebro. Escolha um número pequeno de informações essenciais e de fontes que sejam confiáveis e se exponha apenas a elas. Dessa forma, seu cérebro vai conseguir digerir essas informações com calma e formar os padrões que ele precisa sem se sentir bombardeado.

    Mas como saber que fruta escolher, ou melhor, como saber que informação devo consumir? Basta você pensar o seguinte: a maioria de nós não vai descobrir sozinho a vacina do coronavírus e nem a melhor política pública para lidar com essa pandemia. Essas soluções virão através do esforço coletivo de especialistas das diversas esferas da nossa sociedade. Assim, você não precisa ficar consumindo toda e qualquer informação que apareça, isso só vai adicionar “mais frutas” e deixar o seu sistema cognitivo sobrecarregado. Foque em informações que dizem respeito diretamente a você, e foque nas fontes seguras e que te fornecem informações corretas, precisas e que não te deixem em pânico.

    Ficar em casa é um ato heroico

    Existem várias coisas que não estão sob nosso controle: a composição genética do vírus, a sua letalidade, a maneira como ele ataca as nossas células. E isso é um tanto ruim para o nosso cérebro, porque, como você deve ter percebido, ele é um pouco controlador. Mas que tal focarmos mais em coisas que estão sob nosso controle?

    Você deve saber que o coronavírus não tem asas e nem sabe se teletransportar. Isso significa que para ele chegar no nosso sistema nosso sistema respiratório e alcançar outras pessoas ele precisa de uma carona. Carona das nossas mãos, do nosso corpo, da nossa saliva, do nosso espirro. E essa carona é uma das coisas que podemos controlar. Como garantem os cientistas em todo o mundo, o ato de se isolar fisicamente é uma ótima forma não dar carona para o vírus.

    Pode ser difícil perceber o ato de ficar em casa como uma ação que está sob nosso controle. Afinal, muitos pensam que estamos apenas “esperando o tempo passar”. Mas não encare dessa forma. O ato de ficar em casa é uma ação que dificulta o trabalho do coronavírus de se espalhar e de chegar nas pessoas mais vulneráveis. E, nesse sentido, ficar em casa (para as pessoas que podem) é um ato heroico, principalmente para o nosso cérebro, que não encara muito bem essa história de isolamento físico.

    Ajudando o cérebro a lidar com o isolamento

    Nosso cérebro é, por natureza, um órgão que precisa das interações sociais. Como ajudá-lo a se acostumar com um estado de isolamento físico? A resposta é: através da criação de hábitos e rotina.

    A gente está o tempo inteiro criando hábitos e rotinas no nosso dia-a-dia. E isso é bom. Hábito é uma forma que o nosso cérebro encontra de economizar energia nas coisas que faz. É como se ele colocasse certas ações no piloto automático e usasse a energia que sobra pra fazer outras coisas. Só tem um problema: uma vez que um comportamento entra no piloto automático, é muito difícil o interromper. Se você tem o hábito de entrar no Twitter a cada 5 minutos, quebrar esse hábito será extremamente difícil. Mas como nosso cérebro sabe criar novos hábitos com facilidade, a melhor forma de acabar com um hábito é criar um outro em seu lugar.

    Ao invés de falar: “não vou entrar no Twitter”, você deve falar “vou fazer outra coisa ao invés de entrar no Twitter”. Crie hábitos bons que substituam hábitos que te fazem mal. Modificar seu ambiente para facilitar que esse novo hábito seja criado também é uma boa ideia. Não adianta querer diminuir o acesso a alguma rede social se ela fica a um clique de distância de você.

    E para contribuir para a sensação de controle, que é tão importante para o nosso cérebro, você pode criar pequenas rotinas no seu dia-a-dia. Ficar em casa o dia todo sem hora definida para nenhuma atividade é como estar em um barquinho no meio do oceano, você vai acabar se perdendo e não indo para lado nenhum.

    Se você precisa estudar durante a quarentena, é importante avisar seu cérebro da hora de estudar. Para isso, você pode criar uma rotina que envolva se arrumar como se estivesse indo pra escola, definir um lugar para estudar e se sentar sempre lá, como se fosse o seu lugar na sala de aula, e se comportar nesse lugar como você se comportaria na escola (de preferência sem pegar o celular a cada 5 minutos).

    Estabeleça a hora de começar, a hora de fazer um intervalo e a hora de acabar. A criação de uma rotina como essa faz com que seu cérebro entenda e se prepare para esse momento. Isso não apenas vai dar a ele uma sensação de controle, como vai te ajudar a se organizar e separar um tempo do seu dia para fazer as coisas que são importantes para você.

    Isolamento físico vs. Isolamento social

    É importante ter em mente que o isolamento necessário para conter a pandemia é um isolamento físico, não social. E há uma diferença muito grande entre essas duas coisas!

    O nosso cérebro é cheio de neurônios, que são células que estão o tempo todo se comunicando umas com as outras. Um neurônio “fala” com outro que fala com outro que fala com outro, e é com esse bate-papo que as informações são processadas. Essa comunicação dos neurônios é estimulada por várias coisas, mas a principal delas é a estimulação social. Como estamos o tempo todo conversando uns com os outros, trocando ideias, emoções e experiências, os nossos neurônios ficam em constante contato para processar todas essas informações que estão recebendo.

    Quando nos isolamos socialmente, nós perdemos esses estímulos e os neurônios vão parando de se comunicar uns com os outros. Sem essas conexões entre os neurônios, todo o nosso processamento cognitivo fica pior. Imagine isso acontecendo com o cérebro do Neymar, por exemplo. Ele vai levar muito mais tempo para decidir o que fazer com a bola (e talvez nem consiga chegar facilmente a uma boa decisão).

    Por isso, precisamos manter o contato social constante, mesmo com o distanciamento físico, conversando com os amigos, rindo, brincando, e explorando novas ideias e emoções. Isso vai manter seu cérebro ativo e fazendo o que ele faz de melhor: processar informações, montar padrões, prever o que vai acontecer e, no caso do Neymar, ajudá-lo a fazer gols.


    André L. Souza
    Neurocientista e divulgador de ciências
    https://twitter.com/andrelesouza

    Lucas Miranda
    Físico e divulgador de ciências
    Colunista na Ciência Hoje e Editor do Ciência Nerd

    Agradecimento especial ao Vitor Hugo de Oliveira (https://www.instagram.com/myfairy_king/), que nos presenteou com sua ilustração do cérebro jogando bola, e à Ciência Hoje, pela publicação do texto e pela parceria de sempre!


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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp.
    Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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  • Da fatalidade epidemiológica à ferramenta de extermínio: a gestão necropolítica da pandemia

    Texto escrito por Leonardo Oliveira*

    O crescente número de infectados e mortos pelo novo Coronavírus (Sars-Cov-2) ao redor do mundo tem gerado preocupação e exigido a tomada de atitudes inéditas entre governos e cidadãos para frear a pandemia. As medidas de distanciamento social e isolamento recomendadas pela Organização Mundial da Saúde, até então o meio mais eficaz de diminuir o ritmo de disseminação da doença e amenizar o iminente colapso dos sistemas de saúde, têm causado mudanças drásticas nos hábitos e comportamentos da população. O esforço dos agentes públicos e da mídia para efetivar o isolamento não tem surtido o efeito desejado (SÃO PAULO, 2020). Cultivando o desejo de retorno a uma normalidade cotidiana potencialmente mortal, ainda é possível verificar aglomerações e ruas com intensa circulação de pessoas, mesmo com a suspensão de todos os eventos e reuniões públicas e interrupção dos serviços não essenciais. Uma realidade alarmante diante da célere escalada da curva de infecções no Brasil.

    A campanha “#FicaEmCasa” tem buscado conscientizar a população sobre a importância de sair às ruas apenas para as atividades estritamente necessárias e o respeito ao isolamento como uma atitude cidadã. Entretanto, como irão aderir à campanha aqueles que não possuem uma casa?

    Somente em São Paulo, epicentro da epidemia no Brasil, são mais de 24 mil pessoas vivendo nas ruas em situação insalubre e vulnerável, segundo dados da própria prefeitura (SÃO PAULO, 2020). Como poderão evitar aglomerações pessoas que vivem em uma favela como Paraisópolis, que ostenta a maior densidade populacional do país? (EBC, 2016). Isso, claro, sem contar a carência de tratamento do esgoto e fornecimento de água, numa situação onde o vírus pode ser transmissível pelas fezes (TORMENTE, 2020) e a lavagem das mãos em água corrente é a forma mais eficaz de evitar o contágio. E o que dizer dos mais de 770 mil presos que compõem população prisional nas penitenciárias brasileiras superlotadas? (BRASIL, 2020). Um prato cheio para o vírus e uma bomba relógio para a sociedade. A situação de rua, a favelização e o encarceramento constituem ‘mundos de morte’ (MBEMBE, 2018), espaços de concentração de um determinadas parcelas populacionais sujeitas à uma situação de sobrevida, ao estatuto de mortos-vivos. Lugares submetidos ao império da necropolítica (MOREIRA, 2019). 

    Enquanto o vírus se alastra pelo território nacional, o atual mandatário da Presidência da República tem cultivado crises institucionais entre os poderes e dentro do próprio governo. Em entrevistas, ao comentar sobre a mortandade causada pela pandemia, Bolsonaro declarou: “Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, é a vida”; “Brasileiro precisa ser estudado, pula no esgoto e nada acontece” e “E daí? Lamento. Quer que eu faça o que? Sou Messias mas não faço milagre”. Estas e tantas outras falas de flagrante descaso com a saúde e com a vida da da população se alinham sob a ordem necropolítica.

    O termo necropolítica, cunhado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe (2018), visa elucidar como a regimentalização do poder de matar nas sociedades modernas funciona como uma política de controle social. A distribuição desigual das oportunidade de vida e de morte que são base do modelo capitalista de produção impõe uma hierarquia em que uns valem mais que outros e aqueles que não têm valor são simplesmente descartados. Trata-se de uma radicalização e reinterpretação da biopolítica de Foucault, em que a administração da vida divide espaço com a dministração da morte (ESTÉVEZ, 2018).

    Segundo Valencia (2010) quando a morte, mais do que a vida, se encontra no centro da biopolítica ela se converte em necropolítica. Através de estratégias de exploração e destruição de corpos como a execução, o feminicídio, a escravidão, o sequestro, o tráfico de pessoas, o encarceramento; práticas legitimadas por dispositivos jurídico-administrativos, são ordenados e sistematizados os efeitos, as causas e as justificativas das políticas de morte. O poder atua para a manutenção do sujeito vivo, mas em estado de marginalização aguda, injúria e intensa crueldade, implementando uma forma de morte em vida até que se alcance a morte de fato.

    Mbembe parte do pressuposto de que a expressão máxima do poder soberano consiste em deixar viver, matar ou expor à morte. A partir do momento em que a soberania escolhe quem vive e quem morre, o próprio viver se torna uma manifestação do poder soberano (MBEMBE, 2003).

    E no Brasil?

    No Brasil a necropolítica não é algo inusitado, nem recém inaugurado. Na verdade não existe história do Brasil apartada das políticas de morte. Estamos falando do país com a polícia que mais mata e mais morre no mundo (CÂMARA, 2019). Estamos falando do país que lidera o ranking mundial de homicídios em números absolutos (UNODC, 2019). Estamos falando do país que registra o maior número de linchamentos no mundo (MARTINS, 2015). Estamos falando do país que mais mata LGBTs no mundo (GGB, 2018). Estamos falando de um país em que a legislação contra a violência doméstica, uma conquista histórica, faz diminuir os casos de morte entre mulheres brancas e disparar os casos de feminicídios das mulheres negras (IPEA, 2018). Este cenário não surgiu de forma mágica ou repentina.

    Estamos falando de uma nação inaugurada pelo genocídio dos povos originários, sustentada por séculos à base da mão de obra escravizada. Um território colonizado e arquitetado por um patriarcado conservador latifundiário e aristocrata (SADER, 2011). Não houve, nem haverá no curto prazo, um dia em que, neste país, não esteja em curso um plano de genocídio, extermínio, marginalização, encarceramento, subjugação de algum ou de vários segmentos da sociedade. Sejam índios, negros, mulheres, travestis ou comunistas. O discurso do inimigo interno é parte estruturante da necropolítica de “segurança” nacional (MENDONÇA, 2015). 

    Quando, em um país com estas características, chegam ao poder políticos que em meio a manifestações, negam a ciência e a importância dos setores públicos na promoção da equidade social, a partir de dados técnicos, científicos e sociais, torna-se notória a iminência da catástrofe. Um exemplo do caráter funesto que revestiu a política nacional, coadunando com vários setores e grupos sociais, pode ser observado na popularidade do fetiche punitivista: bandido bom é bandido morto (PRADO, 2020).

    Ao traçar como objetivo político a aniquilação daqueles classificados como inimigos, a imposição da soberania se dá pelo exercício do poder de matar, como ocorre em um contexto de guerra.  Está em andamento uma investida deliberada de necroempoderamento visando a institucionalização da necropolítica como estratégia de poder consolidada no senso comum. Trata-se de um esforço de deformação da moralidade para a difusão, naturalização, aperfeiçoamento e perpetuação da necrofilia como pressuposto de um projeto nacional.

    No escopo deste projeto, o Estado não monopoliza a soberania, mas disputa o poder com entidades privadas necroempoderadas, como as milícias e as facções que funcionam como um estado paralelo, controlando a população, o território, a segurança e a política; se apropriando criminalmente dos elementos fundamentais da governamentalidade, administrando a vida e a morte para exploração de recursos e obtenção de lucro nas lacunas e nos limites do poder Estatal (VALENCIA, 2010; ESTÉVEZ, 2018).

    A Necropolítica e a COVID-19: algumas considerações

    Embora os aspectos sanitários e econômicos tenham tomado a centralidade na pauta da pandemia, outras questões de cunho político, social e cultural estão imbricadas nesta crise sem precedentes. Certamente sequelas e traumas próprios da nossa realidade nacional irão impor singularidades sobre a manifestação da Covid-19. Considerando a capacidade de atendimento hospitalar do país, o pico agudo de infectados e o colapso dos sistemas de saúde, questionamos: quem morrerá com falta de ar e quem continuará respirando? Quantos milhares de pessoas irão morrer? Quem serão estes mortos, suas classes, cores, idades e identidades? Como estes corpos adoecidos estão sendo inscritos na ordem do poder?

    Quando governantes explicitam que não é preocupação política central garantir que cada cidadão tenha condições de continuar respirando, estão assumindo a responsabilidade de escolher quem vai ter a chance de lutar pela vida entubado num leito de UTI e quem vai ser lançado à própria sorte até o último suspiro. Esta gestão da morte deixa cristalino o funcionamento da necropolítica, pois nem todos são afetados da mesma forma.

    Se o último grau de expressão do poder político soberano consiste em determinar quem pode viver e quem deve morrer, porquê e como, no Brasil desde sua fundação, à luz de sua história, fica nítido quem são os corpos selecionados para viver e quem são os corpos selecionados para sobreviver antes de morrer. Esta noção continua válida e certamente será acentuada nesta situação de crise, convertendo o que seria tão somente uma fatalidade epidemiológica em uma ferramenta de extermínio. 

    Se até então a escolha sobre quem vive ou quem morre era exclusividade do poder soberano, a pandemia transformou este cenário. Segundo Mbembe, a Covid-19 democratizou o poder de matar (BERCITO, 2020). Qualquer pessoa que tenha contraído o vírus, potencialmente mortal, tem condições de transmiti-lo inconsciente ou deliberadamente. Todos temos, neste contexto, o poder de matar. O isolamento e distanciamento social seriam, portanto, uma forma de regular este poder. Analisando através deste prisma, as manifestações Brasil afora que reivindicam o fim do isolamento pretendem justamente a revogação da regulação deste poder de matar.

    Enquanto é amplamente reconhecia a possibilidade de diminuição da letalidade da doença através do isolamento e do distanciamento, estes grupos reacionários querem justamente o oposto: usufruir do direito de usar o próprio corpo como arma biológica, fazem questão de assumir o papel de vetores genocidas. Agentes voluntários da perversa administração necropolítica da pandemia.

    Ainda não é possível estimar a dimensão dos impactos que esta pandemia irá causar no mundo moderno capitalista globalizado e financeirizado. Mas é certo que este lúgubre evento abre uma janela de possibilidades para a introdução de pautas que contribuam para a redução da desigualdade, proteção e seguridade social. A emergência de uma doença que afeta mais severamente os pobres e os idosos evidencia que o envelhecimento e a pauperização da população não se resolvem com reforma da previdência, mas com fortalecimento dos sistemas públicos de saúde, assistência e seguridade.

    Mais do que nunca o SUS demonstra sua importância e reivindica a urgência de financiamento massivo. O subfinanciamento e sucateamento para o desmonte da saúde pública que estava a todo vapor encontra um enorme obstáculo e o fortalecimento do SUS deve assumir a centralidade na pauta progressista e no senso comum.

    Além disso, ideias como a renda básica universal, a taxação de grandes fortunas, auditoria cidadã ou moratória da dívida pública, reforma tributária progressiva, que anteriormente eram tidas como pautas da esquerda, passam a ser consideradas medidas necessárias até por setores liberais. Dinheiro não é problema para a oitava economia mundial, mas as prioridades precisam ser revistas. Nunca foi razoável e agora é ainda mais absurdo escoar uma fatia gigantesca do orçamento da união na amortização de uma dívida nada transparente enquanto o povo perece.

    Certamente iremos resistir e superar este doloroso teste de resiliência. Até lá nos resta cultivar a biofilia (FROMM, 1996): nos cuidar, cuidar de quem a gente ama e nos fortalecermos enquanto sociedade, para que a normalidade inaugurada pós pandemia seja melhor que normalidade por ela encerrada.

    Para saber mais

    BRASIL. Governo do. Dados sobre população carcerária do Brasil são atualizados. Segurança, 2020. Disponível em: <https://www.gov.br/pt-br/noticias/justica-e-seguranca/2020/02/dados-sobre-populacao-carceraria-do-brasil-sao-atualizados>

    BERCITO, Diogo. Pandemia democratizou o poder de matar, diz autor da teoria da ‘necropolítica’. Folha de São Paulo, 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica.shtml>

    CÂMARA, Olga. Polícia brasileira: a que mais mata e a que mais morre. Jus, 2019.

    EBC, Agência Brasil. IBGE divulga Grade Estatística e Atlas Digital do Brasil. Economia, 2016. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2016-03/ibge-divulga-grade-estatistica-e-atlas-digital-do-brasil>

    ESTÉVEZ, Ariadna. Biopolítica y necropolítica:¿ constitutivos u opuestos?. Espiral (Guadalajara), v. 25, n. 73, p. 9-43, 2018.

    FROMM, Erich. Ética e psicanálise. Minotauro, 1996.

    GGB. Grupo Gay da Bahia. Mortes violentas de LGBT+ no Brasil: Relatório 2018. Bahia, 2018. Disponível em: <https://grupogaydabahia.files.wordpress.com/2019/01/relatório-de-crimes-contra-lgbt-brasil-2018-grupo-gay-da-bahia.pdf>

    IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da Violência 2018. Disponível em: <www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf>

    MARTINS, José de Souza. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. Editora Contexto, 2015.

    MBEMBE, Achille. Necropolítica.. 3. ed., São Paulo, 2018.

    MBEMBE, Achille; MEINTJES, Libby. Necropolitics. Public culture, v. 15, n. 1, p. 11-40, 2003.

    MENDONÇA, Thaiane. Política de segurança nacional e a construção do conceito de “inimigo interno” no Brasil. UFRGS, Porto Alegre, 2015. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/sicp/wp-content/uploads/2015/09/Thailane-Mendonça_Política-de-segurança-e-a-construção-do-conceito-de-inimigo-interno-no-Brasil-Thaiane-Mendonça.pdf>

    MOREIRA, Rômulo Andrade. A Necropolítica e o Brasil de ontem e de hoje. Justificando, 2019. Disponível em: <https://www.justificando.com/2019/01/08/a-necropolitica-e-o-brasil-de-ontem-e-de-hoje/>

    PRADO, Monique Rodrigues do. O fetiche punitivista: bandido bom é bandido morto? Âmbito Jurídico, 2020. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/noticias/o-fetiche-punitivista-bandido-bom-e-bandido-morto/>

    SADER, Emir. O Maior massacre da história da humanidade. Disponível em: <https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/emir-sader-o-maior-massacre-da-historia-da-humanidade.html>

    SÃO PAULO, Governo do Estado de. Isolamento social em SP é de 49%, aponta Sistema de Monitoramento Inteligente. Portal do Governo, 2020. Disponível em <https://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/isolamento-social-em-sp-e-de-49-aponta-sistema-de-monitoramento-inteligente/>

    SÃO PAULO, Prefeitura de. Prefeitura de São Paulo divulga Censo da População em Situação de Rua 2019. Secretaria Especial de Comunicação, 2020. Disponível em: <http://www.capital.sp.gov.br/noticia/prefeitura-de-sao-paulo-divulga-censo-da-populacao-em-situacao-de-rua-2019>

    TORMENTE, Fabiana Vieira. O vírus da Covid-19 pode ser transmitido através das fezes? Microbiologando. UFRGS, 2020. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/microbiologando/o-virus-da-covid-19-pode-ser-transmitido-atraves-das-fezes/>

    UNODC. Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Estudo Global sobre Homicídios, 2019. disponível em: <https://dataunodc.un.org/GSH_app>VALENCIA, Sayak. Capitalismo Gore. 2010.

    Sobre o autor

    Leonardo Oliveira é Biólogo, professor de Biologia e mestrando em Ensino de Ciências e Matemática (UNICAMP).


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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • “Quando fecho a porta da minha casa, me sinto mal acompanhado”: impactos da pandemia e do isolamento social na saúde mental

    Texto produzido por Débora Bicudo de Faria Schützer* e Lia Keuchguerian Silveira Campos**

    A necessidade de isolamento social a fim de controlar a transmissão da COVID-19, preconizada pela OMS traz impactos significativos à saúde mental da população em todo o mundo (1). O isolamento é a única ferramenta possível na atualidade para controlar a nova doença, entretanto, sabe-se que ele pode aumentar a incidência de crises psicológicas (2). No Brasil, temos enfrentado um cenário de contradições e de conflitos políticos que acentuam os efeitos psicossociais negativos dessa condição (3). Dessa forma, angustiados e isolados, temos que nos haver com nossos conteúdos psíquicos e questões psicológicas preexistentes.

    Em curto período de tempo, as rotinas foram alteradas. Não podemos ir ao local de trabalho ou de estudo, não temos mais confraternizações com os amigos e até os que estão padecendo da doença encontram-se isolados da família. Essa nova realidade, apesar de sabermos que é momentânea, nos traz muitas incertezas e inseguranças. A sensação atual, como disse Minerbo (4), é a de que “estamos sem chão”. O trabalho mental de que perdemos algo da nossa vida que nos parecia tão seguro e conhecido nos coloca em um terreno psíquico árido, de luto, de ansiedade e de medo.

    Sabemos que o impacto emocional diante do potencial de contaminação pelo vírus, com seu consequente aumento da mortalidade, juntamente com o isolamento social, causa ansiedade em todos os seres humanos, independentemente da idade e de pertencer ou não a um grupo de risco. Entretanto, estudos indicam que sobretudo pessoas com algum comprometimento em saúde mental, idosos, profissionais de saúde e acometidos pela COVID-19 merecem mais atenção nesse momento (5,6).

    Pacientes com confirmação do diagnóstico de COVID-19, assim como os com suspeita, experienciam além dos sintomas físicos que já aumentam a ansiedade também o medo da morte, a culpa devido ao potencial de contágio e sofrem pelo estigma frente a sua família e seus amigos. A quarentena provoca sentimento de vazio, de solidão e até de mesmo raiva (2).

    Importante salientarmos o fato de que este momento de privações diversas no qual estamos envolvidos pode potencializar questões emocionais preexistentes e assim temos a experiência de estarmos “mal acompanhados com nós mesmos” em relação aos nossos recursos internos para lidar com essas questões. Todos somos colocados à prova de nossas capacidades mentais no que se refere à resiliência, à criatividade e à capacidade de lidar com frustração e perdas. Sem contar com o medo da morte ao qual somos expostos quando estamos falando de uma condição de saúde pouco conhecida, uma doença sem vacina, sem remédio e que vem sobrecarregando sistemas de saúde no mundo todo.

    Dessa forma, é preciso estabelecer redes de apoio e diversas maneiras de manter conexão com outras pessoas por meio das mídias eletrônicas. Embora, essas mídias também devam ser utilizadas com cautela já que podem representar uma grande fonte de informações falsas que aumentam o estresse, além das atualizações constantes em relação a número de mortos e de contaminados (6).

    Toda essa angústia à qual estamos sendo expostos gera a necessidade de um rearranjo que exige de nós um trabalho mental exaustivo, que afeta nosso cotidiano de diversas maneiras, inclusive influenciando na qualidade de vida. Assim como o corpo aciona seu sistema de defesa diante de uma ameaça, a mente também tenta se defender frente a uma nova situação. Nesse momento, utilizamos mecanismos de defesas variados, que dependem das nossas condições emocionais preexistentes e se tornam evidentes no modo como nos comportamos. Resultados de investigações em epidemias anteriores (5) demonstraram que os comportamentos relacionados à ansiedade desempenham um papel importante já no curso de uma epidemia, pois comportamentos inadequados devido ao aumento do estresse e da ansiedade psicológicos prejudicam a implementação de estratégias e de medidas de tratamento além de contribuírem para uma maior disseminação da pandemia.

    Percebemos que o mecanismo de defesa mais prejudicial à sociedade vem sendo a negação da realidade. Entende-se que a apreensão da realidade está ligada à compreensão dos mecanismos que organizam a lógica social vigente para valorização da saúde e da vida, como por exemplo o que é comprovado cientificamente e o consenso das principais autoridades de saúde. O indivíduo que nega essa realidade não coloca em risco apenas a sua própria saúde, mas a da população em geral. Resistente em cumprir com a necessidade de quarentena, acaba por expor também seu círculo social mais íntimo. A negação está ligada a um pensamento mágico e a uma incapacidade de esperar e de tolerar frustração.

    Essa questão também foi abordada por Kübler-Ross (7), quando a autora incluiu a Negação como o primeiro estágio vivenciado pelos seres humanos em um processo de luto, seguido pelos períodos de Raiva, Negociação, Depressão e Aceitação. Recentemente Weiss (8) publicou um artigo sobre a importância dessas fases de luto para compreendermos nossas emoções durante a pandemia. O autor considera que a Negação no momento atual pode ser expressa por meio de enunciados como “Essa coisa toda é tão exagerada. Que circo da mídia. As pessoas contraem a gripe todos os anos e quase ninguém morre. Eu não sou do grupo de risco então ficarei bem”. Para o autor, na fase da Raiva podem surgir questionamentos como “Isso é tudo culpa da China. Se eles tivessem colocado em quarentena mais cedo, não estaríamos tendo esse problema”. Durante a fase de Negociação, Weiss sugere que o indivíduo pode pensar “não haver problema em passar tempo com outras pessoas, desde que elas lavem as mãos antes de me verem”. Na fase da Depressão, a pessoa poderia ter pensamentos como “Não posso trabalhar, não posso ganhar dinheiro. Em breve, estarei sem dinheiro e sem teto. Essa epidemia é o novo normal. Eu posso dizer adeus às minhas esperanças e sonhos. Eu sou de alto risco e provavelmente vou morrer”. Já na fase de Aceitação podem aparecer ideias como “Não consigo controlar a pandemia, mas posso fazer minha parte isolando-me em casa, lavando as mãos e mantendo-me positivo. O fato de não poder sair de casa não significa que minha vida tenha que parar. Posso trabalhar em casa e ainda posso me conectar com meus amigos e familiares via telefone e internet”. É importante alertar que essas fases são fluídas e não ocorrem necessariamente nessa ordem.

    Em relação às crianças (9), os reflexos do isolamento apresentam traços delicados com o prolongamento do fechamento das escolas e com o confinamento em casa que pode trazer efeitos negativos para saúde física e mental, assim como identificamos nos adultos. Com redução da atividade física, aumento da exposição a telas, padrões irregulares de sono e mudanças na sua rotina alimentar, o resultado é de ganho de peso, aumento da ansiedade e até mesmo de comportamentos agressivos. Além disso, tendo elas sido privadas do contato social com outras crianças, assim como do contato direto com professores, e estando expostas à educação a distância sem fundamentação teórica suficiente para embasamento pedagógico das escolas brasileiras, vemos acentuar quadros de ansiedade, de déficit de atenção, de hiperatividade, além de fobias e de quadros psicossomáticos.

    Em relação aos adolescentes e jovens, a atenção e o cuidado também se tornam importantes. Essa população está em plena fase de socialização e de construção da identidade com relativa independência dos pais e estão se vendo obrigados a ficar confinados, em alguns casos, justamente com eles (10). Diante disso, muitos conflitos internos também podem surgir, é preciso ouvi-los, respeitar sua individualidade e compreender com sinceridade que não é fácil para eles também. É muito importante manter a preocupação de não os sobrecarregar com demandas escolares e de “produtividade”, desconsiderando que estão enfrentando medos em relação a serem infectados ou a perderem pessoas queridas, além de estarem frustrados em relação às privações de contato social, com pouco espaço em casa e até mesmo preocupados com perdas financeiras que possam haver nesse quadro socioeconômico resultante da quarentena (9).

    Entendemos que a educação a distância pode ser uma ferramenta interessante para o enfrentamento da situação atual, mantendo o vínculo com a instituição educacional e com o conhecimento. Destacamos, no entanto, que há a necessidade de uma adequação ao contexto histórico, social e econômico em que estamos vivendo, considerando que o excesso pode resultar em sobrecarga emocional e ser prejudicial, causando um efeito contrário no processo de aprendizagem.

    De qualquer forma, estamos todos sendo confrontados pela pandemia do coronavírus. É um chumbo grande sobretudo em relação à saúde mental. Além do isolamento e da sensação de solidão, ainda somos obrigados a lidar com o medo e a constante reflexão sobre a própria saúde, a saúde da família e dos amigos. Minerbo (4) nos alerta que estamos vivendo um momento de incerteza que nos desafia a dar o próximo passo “no vazio”.

    Claro que a ciência e os pactos sociais nos colocam também em um outro patamar de possibilidades e de direcionamento. Mas isso nem sempre parece alcançar a todos e uma questão importante nesse processo está ligada à saúde mental: “quanto posso me colocar no lugar do outro, me solidarizar? ” Dessa forma, entendemos que o momento também pede que possamos tirar proveito de um mal negócio, e transformarmos algumas atitudes para contribuirmos com um melhor desfecho para essa pandemia. Há a importância de se poder fazer parte desse pacto social e de se responsabilizar pela situação da disseminação dessa doença, assim como de controlar de certa maneira os impactos que o difícil, mas necessário, isolamento social nos impõe.

    Nesse cenário muitas vezes é importante reconhecer o momento de procurar uma ajuda profissional para si mesmo ou para algum conhecido. Vimos aqui a importância da psicoterapia, que nesse enquadre está sendo até mais acessível diante da possibilidade de teleatendimento. Além disso, é oportuno investir nas relações, nas trocas afetivas, na comunicação aberta com as pessoas ao nosso redor, amigos, familiares, idosos, pessoas que moram sozinhas. O momento é de envolver-se com as necessidades emocionais, num esforço para aceitar diferenças e conhecer a própria individualidade e a do outro, abrindo um espaço para relacionamentos genuínos que só serão possíveis se estivermos bem com nós mesmos e com a sensação de que, ao fecharmos a porta de casa, possamos encontrar acolhimento interno durante essa experiência de vida tão difícil à qual fomos submetidos.

    Para Saber mais
    1. World Health Organization. Mental health and COVID-19, 2020. http:// www.euro.who.int/en/health-topics/health-emergencies/coronaviruscovid-19/novel-coronavirus-2019-ncov-technical-guidance/ coronavirus-disease-covid-19-outbreak-technical-guidance-europe/ mental-health-and-covid-19
    2. Xiang, Y.T., Yang, Y., Li, W., Zhang, L., Zhang, Q., Cheung, T., Ng, C. (2020). Timely mental health care for the 2019 novel corona vírus outbreak is urgently needed. Lancet. Psychiatry 7, 228–229. https://doi.org/ 10.1016/S2215-0366(20)30046-8.
    3. Editorial Lancet (2020), Covid-19 in Brazil: “So what?” Lancet 395(10235):1461. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31095-3
    4. Minerbo, Marion. Isolamento para você qual e a pior parte 2020. Disponível em: https://loucurascotidianas.wordpress.com/2020/04/17/isolamento-para-voce-qual-e-a-pior-parte/
    5. Hahad, O., Gilan, D. A., Daiber, A., & Münzel, T. (2020). Bevölkerungsbezogene psychische Gesundheit als Schlüsselfaktor im Umgang mit COVID-19. Das Gesundheitswesen. doi:10.1055/a-1160-5770
    6. Sood S. (2020). Psychological effects of the Coronavirus disease-2019 pandemic. RHiME 7:23-6.
    7. Kübler-Ross, E., & Kessler, D. (2005). On grief and grieving: Finding the meaning of grief through the five stages of loss. New York; Toronto: Scribner.
    8. Weiss, R. (2020). COVID-19 and the Grief Process. What happens to our differences when our experience is shared? https://www.psychologytoday.com/us/blog/love-and-sex-in-the-digital-age/202003/covid-19-and-the-grief-process
    9. Wang, G., Zhang, Y., Zhao, J., Zhang, J., Jiang, F. (2020) Mitigate the effects of home confinement on children during the COVID-19 outbreak. Lancet 21;395(10228):945-947. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)30547-X
    10. Preto, M. O. Os Adolescentes na Pandemia. In: http://www.fepal.org/os-adolescentes-na-pandemia/


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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • A ciência pelos olhos da Profª Drª Tania Ueda-Nakamura

    É com satisfação que hoje, em parceria com minha colega de blog Marina Felisbino, publicamos a entrevista realizada com a Professora universitária, farmacêutica e microbiologista Dra. Tania Ueda-Nakamura, dando seguimento ao nosso Especial Epidemias, em virtude da atual pandemia causada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2, responsável pela doença COVID-19.

    A Drª Tania graduou-se em Farmácia pela Universidade Estadual de Maringá em 1980, obteve seu título de Mestrado em Ciências Biológicas – Microbiologia (1990) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e o título de Doutorado em Ciências Biológicas – Biofísica (2001) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

    Realizou, entre 2010 e 2011, um pós-doutorado no Centro Nacional para a Pesquisa Científica (em francês, Centre National de la Recherche Scientifique), considerado pela revista britânica Nature como a primeira instituição mundial de pesquisa especializada em ciências e pesquisa, e  a maior instituição pública de pesquisa científica na França.

    De volta ao Brasil, Tania atualmente é professora associada ao Departamento de Ciências Básicas da Saúde na Universidade Estadual de Maringá, onde orienta projetos de pesquisa de alunos de Mestrado e Doutorado no laboratório de Atividade Antiviral junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas.

    Sua pesquisa tem focado na área de Microbiologia e Virologia, como a avaliação da atividade antiviral de produtos naturais e sintéticos. Possui uma produção científica de destaque, com quase 200 artigos publicados ao longo de sua carreira em revistas científicas, além de capítulos de livros e inúmeros resumos em anais de congressos internacionais. 
    Na entrevista a seguir, a Professora Tania compartilha conosco suas experiências e seus posicionamentos sobre a pandemia causada pela COVID-19 e sobre mulheres na ciência, além de abordar também dificuldades e carreira acadêmica. Confira abaixo:

    1. Cientista – Era isso que você queria ser quando crescesse?

    Na infância, não me lembro de ter esse tipo de pensamento: o que queria ser quando crescesse. Apenas brincava. De casinha, com bonecas, pega-pega, e como quase todas as crianças brincava de escolinha, e fazia de conta que eu era a professora. Sempre gostei de observar as coisas e depois, tentar buscar soluções para os problemas. 

    Possivelmente isso já sinalizasse a vocação para a academia, mas acredito que na época, ser “cientista” parecia ser algo muito distante e inatingível para alguém crescendo no interior do Brasil, e talvez isso ainda seja uma realidade.

    2. Algum cientista ou descoberta científica a inspirou na escolha dessa carreira?

    Nem um cientista, nem uma descoberta científica em particular, mas vários fatores podem ter contribuído para seguir essa carreira. Quem viveu a infância e a adolescência nas décadas de 60 ou 70 foi muito influenciado pelos filmes e seriados de ficção científica, e que a mim particularmente chamavam muito a atenção. 

    Meus pais, apesar de não terem o curso superior, sempre nos estimularam a dedicar aos estudos de uma forma leve, respeitando as nossas limitações, e fornecendo meios e ferramentas para buscar conhecimentos. Tínhamos acesso a muitos livros e revistas em casa. 

    No início da década de 70, uma coleção chamada “Os cientistas” podia ser adquirida nas bancas de revistas. Cada fascículo era dedicado a um cientista acompanhado por um kit contendo peças que permitiam reproduzir experimentos relacionado ao cientista: Lavoisier, Dalton, Pasteur, Newton, e assim por diante. 

    Assim, a cada quinze dias minha mãe chegava em casa com um kit novo, e o que mais me chamou a atenção foi o kit que trazia um microscópio juntamente com uma coleção de lâminas. A única peça desta coleção, que guardei por muito tempo foi o microscópio. Coincidência ou não, hoje sou Microbiologista.

    3. Sempre se interessou em estudar os vírus? Como sua trajetória acadêmica a levou à especialidade de virologia?

    O fascínio pelos vírus surgiu quando, logo após a graduação, no início da década de 80, eu precisei estudar para a obtenção do título de Especialista em Análises Clínicas. O conteúdo contemplava vários assuntos, e entre eles a Virologia. E ao aprofundar o estudo nesta matéria, fiquei fascinada por este agente infeccioso tão pequeno, mas ao mesmo tempo tão intrigante. 

    Quando me vi inclinada a seguir a carreira acadêmica, a primeira oportunidade foi a Bioquímica, mas tinha maior afinidade mesmo com a Microbiologia, a área que finalmente escolhi. Porém, cultivar vírus é um desafio, pois além da partícula viral ativa precisamos também de uma célula hospedeira, portanto, a pesquisa em Virologia era restrita aos grandes centros de ensino e pesquisa. 

    Apesar de ouvir opiniões de que eu não teria chance de progredir nesta área em uma universidade jovem no interior do Paraná, eu decidi enfrentar esse desafio e fiz o meu mestrado na área de Virologia, na Universidade Federal de Minas Gerais. Ao ingressar definitivamente na carreira acadêmica, de fato, trabalhar com vírus resumia-se em realizar testes imunológicos e de biologia molecular, que eram onerosos e faltavam recursos financeiros para desenvolver pesquisa. 

    No doutorado, sob orientação do Dr. Wanderley de Souza do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (UFRJ), estudando a biologia das leishmânias, tive a oportunidade de me atualizar em biologia celular, aprender a cultivar células e trabalhar com modelos animais. 

    Era início do século 21, a economia no país melhorara, e como consequência os recursos destinados à pesquisa aos poucos foram chegando às instituições do interior do país, juntamente com os cursos de pós-graduação. 

    A busca por agentes antimicrobianos a partir de produtos naturais, a linha de pesquisa iniciada na década de 90 pelo nosso grupo de forma tímida com bactérias e fungos, foi então ampliada para Leishmania sp e Trypanosoma cruzi. E por que não buscar agentes antivirais? 

    Incentivado pelo nosso colega Dr. Benedito Prado Dias Filho, contando com o apoio de meu companheiro de vida e trabalho, Dr. Celso Nakamura, e com a ajuda de um grande amigo que conhecemos durante o doutorado, Dr. José Andrés Morgado Diaz, pesquisador do Instituto Nacional de Câncer (INCA) no Rio de Janeiro, começamos a cultivar as células de mamíferos em nosso laboratório. 

    O próximo passo foi cultivar os vírus, e eis que agora contamos com um Laboratório de Atividade Antiviral e também um biotério experimental, onde realizamos os ensaios pré-clínicos. Foram muitos os pesquisadores, colegas, pessoal técnico e alunos que contribuíram, e ainda contribuem para esta realidade. Não é possível nominar a todos, mas é o resultado do trabalho de uma grande equipe.

    4. Como são desenvolvidas as pesquisas em virologia? Há alguma dificuldade específica que você gostaria de ressaltar?

    Para realizar pesquisa com bactérias e fungos precisamos de um laboratório equipado e condições mínimas para garantir qualidade e segurança, e se contarmos com pessoal treinado é possível realizar um bom trabalho. 

    O grande desafio quando se trata de pesquisas em virologia reside na necessidade de cultivar o vírus. Além dos quesitos segurança e estrutura adequada, o fato do vírus ser um parasita intracelular obrigatório, aumenta a complexidade do estudo, pois precisamos sempre lidar com dois modelos biológicos: a célula e o vírus. 

    Claro que quando estudamos outros parasitas, precisamos também levar em consideração a relação parasita-hospedeiro, mas quase sempre é possível cultivá-los em meio artificial, sem o seu hospedeiro, o que simplifica muito o trabalho. 

    A evolução das metodologias de biologia molecular e imunológicas propiciou um salto muito grande na evolução da Virologia, agilizando a descoberta e o estudo dos vírus emergentes, tal qual o mundo vem testemunhando nos últimos tempos, particularmente nos últimos meses, com a pandemia do COVID-19. 

    No entanto, para compreender a biologia do vírus, buscar agentes antivirais e vacinas eficazes precisamos realizar os testes in vitro e os ensaios pré-clínicos, que invariavelmente leva à necessidade de cultivar o vírus. No caso do SARS-CoV-2, um vírus novo altamente contagioso e potencialmente fatal, assim como outros vírus (Hepatites virais, Dengue, etc) requerem laboratórios com alto nível de biossegurança, porém é uma estrutura onerosa que em nosso país é rara, estando disponível e concentrada em determinadas regiões. 

    Considerando as dimensões geográficas e a densidade demográfica de nosso país, constatamos na prática que esta situação é muito desfavorável num cenário de pandemia como a que estamos vivendo, ou seja, não há estrutura disponível para a realização das pesquisas, e inclusive dos testes para o diagnóstico da doença por falta de infraestrutura adequada longe dos grandes centros. E durante a pandemia da COVID-19 pudemos perceber também que mesmo em grandes centros, a estrutura existente – assim como pessoal qualificado e treinado – ainda não é suficiente.

    5. Você acha que estamos perto de encontrar um remédio (antiviral) eficiente? E vacina? Quais os desafios em se criar um antiviral ou uma vacina?

    Sim, se considerarmos os avanços tecnológicos e os conhecimentos acumulados, que ainda estão em franca evolução, é possível que tanto um fármaco antiviral assim como uma vacina, eficazes e seguros, sejam disponibilizados em curto de espaço de tempo. Mas isso tudo dependerá das características do novo Coronavírus e da doença, cuja fisiopatologia ainda não é totalmente conhecida. 

    Sabemos que a chave do problema será o desenvolvimento de uma vacina, pois assim protegemos a população de risco. Vários candidatos à vacina em breve serão disponibilizados, e se tudo der certo, ou seja, se o nosso organismo for capaz de responder prontamente à vacina e conseguir manter os níveis de anticorpos capazes de neutralizar o vírus, ainda precisaremos aguardar pelo menos um ano para que se possa comprovar se a imunização foi eficiente, e seguir monitorando se não surgem cepas mutantes do vírus. 

    Para os indivíduos infectados, que apresentam sintomas e podem desenvolver quadros mais graves, não há outra possibilidade senão lançar mão de procedimentos terapêuticos e de suporte, sendo que o tratamento farmacológico parece envolver uma estratégia complexa na COVID-19. 

    Considerando que a disponibilização de um novo agente antiviral eficaz e seguro no mercado pode levar pelo menos dez anos, a tendência atual é optar pelo reposicionamento de fármaco, que acelera o processo, pois estes já são utilizados no tratamento de outras doenças, e se tem informações sobre a toxicidade e a farmacocinética. 

    Mesmo assim, estamos percebendo que não é tão simples. Desta forma, ainda precisamos compreender a fisiopatologia da COVID-19, de modo a buscar uma estratégia terapêutica adequada e eficaz para cada fase da doença.

    6. Como você vê o cenário mundial de enfrentamento da pandemia nesse momento?

    Embora a humanidade já tenha enfrentado diversas pandemias no passado e outras tragédias, a pandemia em curso vem causando um impacto devastador não apenas no sistema de saúde, mas na vida das pessoas em nível mundial nunca presenciado desde o fim da Segunda Guerra Mundial. 

    Os tempos são outros, temos uma tecnologia avançada, conhecimento e informação, e por isso, tudo acontece numa velocidade muito grande, e a globalização vem influenciando o rumo da epidemia em vários países. Entre erros e acertos, só o tempo para nos mostrar quais foram as medidas mais efetivas. 

    Assim, a vida pós-COVID-19 no mundo dependerá da forma como os governantes, as autoridades e a população conseguirão equilibrar as medidas necessárias para controlar a pandemia e as medidas políticas de sustentação econômica, minimizando ao máximo os problemas sociais. Mas uma coisa é certa: dias muito difíceis ainda estão por vir em praticamente todo o planeta. 

    Independente das consequências, as mudanças que aconteceram certamente vão influenciar diretamente no modo de vida das pessoas no mundo todo. Da mesma forma que pessoas e nações sempre se solidarizam diante de uma grande tragédia, agora não é diferente, mas percebemos que de um modo geral muitos passaram a ter outros valores. 

    A valorização da Ciência é notória em vários países, mas no Brasil ainda precisamos avançar muito. A situação que estamos vivendo é uma oportunidade para que todos percebam a importância do investimento em prol da Ciência. E quando pensamos em Ciência não se trata somente da busca de um remédio para a cura de uma doença, mas o conhecimento em todas áreas que contribuirão para a solução dos problemas.

    7. Corremos o risco de termos um outro vírus com o mesmo comportamento do novo coronavírus em breve?

    O conhecimento das características do vírus e da doença, o entendimento de como o vírus pode ter surgido, e como ele evoluiu serão essenciais para tomar as medidas de vigilância e de prevenção adequadas. Assim, acredito que outro vírus semelhante não apareça tão cedo, mas não podemos descartar a possibilidade de surgimento de outro vírus, talvez com outras características.

    8. Ao longo da sua carreira, você já enfrentou alguma dificuldade enquanto cientista por ser mulher?

    A minha formação e a carreira acadêmica se desenvolveram em paralelo aos meus projetos pessoais graças ao incentivo e apoio de meu marido, de minha família, e de todos que estiveram ao meu redor. E na carreira acadêmica normalmente a mulher não enfrenta grande dificuldade e nosso trabalho tem sido reconhecido. 

    As dificuldades que encontramos, na verdade são desafios inerentes a qualquer profissão, pois na maioria das vezes, a mulher divide o tempo entre o trabalho fora de casa, a tarefa de administrar uma casa e os cuidados com a família, mesmo que ela tenha a ajuda de outras pessoas. 

    9. Descreva, em poucas palavras, a ciência pelos olhos da Dra. Tania Ueda-Nakamura.

    Desde sempre a Ciência tem definido os rumos da humanidade contribuindo para a sua evolução. Cabe ao homem a difícil tarefa de tomar as decisões certas.

    Equipe de trabalho da profª Tania no laboratório de Microbiologia aplicada a produtos naturais e sintéticos (Universidade Estadual de Maringá) em diferentes anos. Arquivo pessoal.

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    É um prazer enorme divulgar um pouco do trabalho e dar visibilidade para mulheres cientistas que contribuem imensamente para a pesquisa brasileira. Agradecemos profundamenteà Profa. Tania pela oportunidade de entrevistá-la nesse momento em que a valorização da ciência se faz tão necessária.

    Nota

    Confira aqui o nosso primeiro “Colírio Científico” do Ciclo temático “Epidemias”.


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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • O problema da ação coletiva para o enfrentamento da Covid-19 no Amazonas

    Francisco Alcicley Vasconcelos Andrade

    Este artigo tem como objetivo de estabelecer conexões entre a teoria da Ação Coletiva e a crise pandêmica do novo coronavirus e as soluções propostas por Ostrom (1990). Como já é divulgado pela imprensa, o Estado do Amazonas é o epicentro da pandemia do novo coronavírus na Região Norte do Brasil. Dentre muitos outros fatores, o problema da Ação Coletiva discutida por Olson (1965) e Ostrom (1990) torna-se o foco deste artigo.

    Olson (1965) descreve que, o alinhamento de interesses em uma ação coletiva não está na equivalência do interesse próprio da pessoa, mas sim, no fato de que os indivíduos têm necessidades em comum e que, somente podem atingir satisfatoriamente os objetivos propostos por meio de ações em conjunto. Contextualizando com a pandemia atual do novo coronavírus, percebe-se que o achatamento da curva de contaminação ocorrerá com a colaboração de todos, por meio de atitudes como o isolamento social, a higienização pessoal e das residências, o uso de máscaras e a solidariedade para com o próximo. A concepção de Ação Coletiva reside na colaboração mútua, solidariedade e empatia pelo próximo.

    Com todas essas orientações propagadas pela mídia, o isolamento social manteve-se baixo e, em contrapartida, os casos de coronavírus começaram a aumentar vertiginosamente, alcançando, inclusive, áreas indígenas de municípios do sul do Amazonas e, tão logo, a cidade de Manaus entrou em colapso funerário e de saúde, visto que os casos graves são deslocados para a capital por meio de UTI aérea, sendo apenas três aviões equipados para atenderem 61 municípios do interior do Estado. Além disso, o transporte de suspeitos e/ ou enfermos das comunidades rurais para os centros urbanos dar-se-ão via embarcações com motores ‘rabeta’ e de ‘ambulanchas’, dada as especificidades geográficas da região amazônica.

    Como proposta de solução para redução de casos confirmados, o governo decretou o fechamento de serviços não-essenciais e de fronteiras internacionais e interestaduais sob pena de multa e prisão, com o objetivo de evitar aglomerações e contaminações. Essa questão é discutida por Ostrom (1990) ao afirmar que as instituições são importantes mecanismos para resolução do problema da Ação Coletiva. As instituições, de acordo com North (1991), são as restrições (regras) criadas pela humanidade para estruturar as interações humanas, e atuam como mecanismos para reduzir a incerteza em ambientes e cenários complexos e incertos, como é o caso da pandemia do novo coronavirus.

    A adoção dessas instituições são capazes de gerar mudanças institucionais em dois grandes grupos, segundo North (1991): o primeiro grupo refere-se aos países flexíveis às mudanças institucionais e que se anteciparam em adotar medidas restritivas de circulações de pessoas, como foi o caso da Costa Rica, Índia e Portugal; e o segundo grupo diz respeito aos países conservadores e que adotaram tardiamente as regras de isolamentos sociais, como Itália, Espanha e Estados Unidos. Infelizmente, o Brasil e, especificamente o Estado do Amazonas, enquadram-se neste último grupo, em que criaram os primeiros comitês de enfrentamento ao novo coronavirus para definição dessas restrições e ações de combate à pandemia após dezenas de vítimas fatais.

    Sobre os diversos comitês de estratégias de enfrentamento ao Covid-19 criados em diferentes esferas, Olson (1965) discute sobre o tamanho desses grupos. Contextualizando, o autor afirma que, quanto maior e mais diversificado esses grupos (comitês), dotados de pensamentos e posições heterogêneas, mais difícil para se constituir estratégias efetivas para combater o Covid-19, pois a complexidade dos comitês aumenta conforme a inclusão de novos integrantes. Ao contrário que, em comitês menores, a tomada de decisões é mais célere e direcionada.

    Em linhas gerais, Orenstein (1998) corrobora com Olson (1965) pois, defende que comitês menores possuem membros mais atuantes e que os comitês maiores são mais susceptíveis a não atingirem seus objetivos, desestimulando o indivíduo, e que a ausência de um integrante não apresenta grande impacto sobre o resultado, como geralmente ocorre em grupos pequenos.

    Nessa perspectiva, espera-se que durante essa pandemia, possamos fortalecer a Ação Coletiva sob as premissas da colaboração, solidariedade e que nos tornamos mais humanos e que nossos representantes políticos sejam mais efetivos na adoção de instituições mais rígidas e que sejam fiscalizadas a contento. A humanidade está ultrapassando um momento delicado, mas que é necessário a união de todos, mesmo que isolados, para conter essa crise pandêmica.

    REFERÊNCIAS

    NORTH, Douglas. Institutions, institutional change and economic performance. The Journal of Economic Perspectives, Vol. 5, No. 1. (Winter, 1991).

    OLSON, Mancur. A lógica da ação coletiva. São Paulo, Edusp, 1965.

    ORENSTEIN, Luiz. A estratégia da ação coletiva. Rio de Janeiro, 1998. OSTROM, Elinor. Governing the Commons: the evolution of institutions for collective action. UK, Cambridge University Press, 1990.

  • O que é essa curva que a gente tem que achatar? – parte 2

    No último post falamos sobre como analisar e obter muitas informações de um gráfico. Agora vamos dar mais um passo para entender de vez o que é essa curva que a gente tem que achatar e o que resulta disso.

    Para começar, vamos observar o que podemos entender de um gráfico que mostra o curso de uma doença levando em conta o número de casos e o tempo.

    Observe que o gráfico abaixo começa em uma curva que sobe até um nível máximo (que é o pico) e depois começa a diminuir. O pico está representado pelo ponto amarelo no topo do gráfico, achou!? Mas, se observamos mais atentamente, observamos que a inclinação dessa curva varia ao longo do tempo. Vemos isso analisando as retas que traçamos ao longo da curva! Quanto mais inclinada (mais vertical) mais rápido o curso da doença. Quando menos inclinada (mais horizontal), mais lento o curso da doença.

    Sabendo disso, fica mais fácil entender a variável R. Ela indica quantas pessoas são contaminadas a partir de cada indivíduo contaminado.

    Temos estimado para o Brasil (em 01/05/20) um R entre 2 e 3. Isso significa que, para cada caso confirmado, espera-se que ocorram mais 2-3 novos casos. Podemos falar que quanto menor o R, mais suave (menos inclinada) é a curva de crescimento de casos. Quando o R=1, a curva fica plana, uma linha horizontal, porque não há aumento ou diminuição de casos (é a linha amarela). E, para que a curva comece a diminuir, o valor de R deve ser negativo.

    É a partir dessa ideia do valor que R que vem a expressão “VAMOS ACHATAR A CURVA!”. Vamos falar disso aqui embaixo, usando como base o gráfico que ilustra a nossa série– e que parece o morro do Pão de Açúcar no Rio de Janeiro!

    Em ROSA temos uma curva qualitativa de número de casos por tempo. Como você deve ter visto, a COVID tem muitos sintomas graves que podem levar os infectados a dependerem de hospitalização. Em alguns casos, inclusive, os pacientes precisam ser internados em UTIs. A quantidade de leitos é limitada e mal distribuída pelo país. Mesmo dentro dos estados, esses leitos podem estar concentrados em uma determinada cidade ou região. Esse limite imposto pelo número de leitos é o que estou chamando aqui de “capacidade máxima do sistema de saúde”. A partir do momento em que essa capacidade é atingida, pessoas deixam de ser atendidas e a chance de morte aumenta muito (lembra o que aconteceu na Itália?). Olhe no gráfico acima como uma parte dos casos fica acima dessa capacidade limite… esses casos representam as pessoas que não terão nem mesmo a chance de tentarem um leito, já que não haverá nenhum disponível.

    Agora podemos falar da curva AZUL. Nela vemos uma situação em que medidas de contenção da contaminação foram tomadas, reduzindo o valor de R. Observe como o aumento de casos foi menor e espalhado por um período de tempo maior. Com isso, observamos que o número de novos casos foi suportado pelo sistema de saúde até iniciar seu declínio. Veja que o ponto máximo do gráfico (o pico) ficou bem mais embaixo.

    Você provavelmente deve ter ouvido que o pico seria em março, depois no início de abril, aí falaram que seria no final de abril, em maio, em junho… Por que isso acontece? Vamos entender, agora, por que o pico da COVID está sendo estimado cada vez mais para frente

    Como falamos ali em cima, R é uma variável e ela é impactada diretamente pelas medidas de prevenção que estão sendo tomadas (quarentena, lock down, uso de máscaras….). Quanto mais efetivas as medidas de proteção e maior a adesão pela população, menor o R. Quanto menor o R, mais a curva é achatada. Quanto mais achatada a curva, mais o pico é postergado (deslocado para frente no tempo). Ficou complicado? Olha essa figura aqui embaixo que vai ficar mais claro! 

    Isso mostra que, quanto mais afastada a nova data do pico, mais as medidas de distanciamento social estão funcionando e menos sobrecarregado fica o sistema de saúde.

    Então, só para falar mais uma vez: O objetivo dessa estratégia (achatar a curva) é permitir que as pessoas sintomáticas de COVID que necessitem ser internadas tenham leitos hospitalares disponíveis. 

    No site especial sobre a COVID no Our World in Data temos acesso a vários gráficos interativos, nos quais podemos selecionar os países que queremos comparar.

    Separei dois gráficos que relacionam mortalidade por COVID e tempo, ambos atualizados até o dia 01/05/2020. A seleção dos países foi feita com o objetivo de obter diferentes padrões de curva para que possamos aplicar os conceitos que trabalhamos nesses dois posts. Vamos trabalhar agora com uma análise quantitativa – e com dados reais!

    O primeiro gráfico nos mostra dados que permitem avaliar se estamos atingindo o pico da curva com base no número de mortes por dia em cada país. Selecionei o Brasil e o Equador porque eles apresentam comportamentos bem interessantes. Comentários de interpretação estão nas bordas dos gráficos.

    Este segundo gráfico nos mostra o número total de mortes por país. Ou seja, diariamente são acrescentadas, ao montante anterior, as novas mortes ocorridas naquele dia. Para esse gráfico selecionei os Estados Unidos, a Espanha, o Brasil e a China – todos com comportamentos bem distintos. Como no outro gráfico, os comentários estão nas laterais. Mas quero chamar atenção para as letrinhas de A a E que coloquei nos gráficos. Se observarem com atenção, bem clarinho no fundo, conseguimos observar o desenho das curvas de acordo com a velocidade de aumento no número de mortes (as letrinhas indicam essas curvas) – é bem interessante!

    Espero que você tenha gostado dessa postagem e que eu tenha conseguido mostrar como analisar esses gráficos pode não ser tão difícil como pode parecer, além de ser bem interessante e nos fornecer muita informação!

    Se você ainda ficou com alguma dúvida ou tem algum gráfico que quer que a gente dê uma olhadinha, entre em contato em alguma rede social!

    Até a próxima! =)

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    Para mais informações, além das dicas passadas, dê uma olhadinha nesses sites também!

    *Doença Causada Pelo Novo Coronavírus (COVID-19): mais perguntas do que respostas, no site da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.

    *Site especial sobre a COVID-19, no Our World in Data


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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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