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  • Dados da Covid: como pesquisadores e imprensa toureiam o Quinto Risco

    Texto produzido por Marcelo Soares

    Há um ano, comecei a observar com lupa as informações disponíveis sobre o espalhamento da doença. Isto às vésperas daquele breve momento em que São Paulo parou quase completamente para evitar o espalhamento do então novo coronavírus. Queria ter uma ideia do que se sabia sobre o vírus. A resposta era simples: muito pouco. 

    O Ministério da Saúde tinha um painel atualizado diariamente, mas apenas com o estado conhecido do vírus naquele dia. Os dados eram granulares apenas por Estado, o que não permitia muita sofisticação de análise.

    Uma das principais peculiaridades de um país do porte do Brasil é ter cidades mais populosas que países inteiros. Antes do distanciamento social, consegui ir duas vezes de uma cidade tão populosa quanto a Bolívia (São Paulo) para outra tão populosa quanto o Chipre (Campinas). A razão das viagens eram minhas primeiras aulas no mestrado do Labjor. Ao sair de casa às seis da manhã, usava um moletom. Todavia, ao chegar à Unicamp, estava suando em bicas mesmo com o moletom na mochila. A área de São Paulo é semelhante à do Reino Unido inteiro. E o vírus se espalha de maneiras diferentes conforme as diferentes populações mudam de comportamento. Nesse contexto, dados agregados por Estado não são tão úteis para entender a dinâmica da pandemia.

    Os dados de Coronavírus no Brasil

    Inicialmente, o painel federal trazia três categorias de números. Primeiramente, o número de casos suspeitos (ou seja, pessoas que buscaram atendimento e foram testadas). Também tinha os casos descartados (ou seja, testes negativos) e, por fim, confirmados – até ali, ainda não havia mortes. Em seguida, passaram a ser publicados apenas os casos confirmados. Em 9 de março, tornei meus gráficos públicos pela primeira vez, no site da minha empresa, Lagom Data

    A fonte era o Ministério da Saúde, que por qualquer lógica seria a única fonte legítima de informações sobre saúde no país. Entra governo, sai governo, o corpo técnico do Sistema Único de Saúde é altamente qualificado e estaria preparado para qualquer parada. 

    O Quinto Risco

    Estaria preparado, exceto uma situação… Se estiver mais vulnerável do que de costume ao que Michael Lewis chamou de “O Quinto Risco”. Ou seja, “o risco que a sociedade corre quando adota o hábito de sanar riscos de longo prazo com soluções de curto prazo”. O livro trata do governo Trump, mas aplica-se bem aos governos que tentam imitá-lo. Por lá, como mostra o livro, o que por diversas vezes salvou a sociedade dos ímpetos de um político populista, foi o espírito público do funcionalismo estável e qualificado. 

    Nas semanas seguintes, veríamos dois ministros serem “fritados” e, mesmo não sendo ministros dos sonhos, serem substituídos por um pesadello. Dessa forma, toureando com uma das mãos uma emergência global de saúde e com a outra o Quinto Risco, fornecer dados da melhor maneira possível acabou se encaixando nas prioridades do ministério primeiro como uma filigrana e depois como um campo de batalha. 

    Quando esse gráfico acima foi publicado, eu já tinha percebido um padrão curioso. Por exemplo, a Bahia permaneceu por uns três dias com apenas três casos confirmados da doença. Por curiosidade – principal ferramenta de trabalho de um jornalista -, chequei o site da Secretaria da Saúde da Bahia. Estavam lá nove casos. A forma de coleta de dados do Ministério da Saúde consistia em aguardar o telefonema das secretarias estaduais para atualizar os dados. Isto segundo explicou uma reportagem do “El País”. Isso mesmo que vocês leram. Temos um Sistema Único de Saúde, presente em todos os municípios brasileiros e, bem ou mal, equipado para centralizar alertas sobre doenças de notificação compulsória. Mas o Ministério aguardava telefonemas com dados.

    Garimpando dados “na unha”

    Então, comecei a visitar diariamente os sites das 27 secretarias estaduais de saúde do Brasil para coletar os novos dados. Para quem cobriu eleições nos anos 90, nos primórdios da internet e do voto eletrônico, quando a apuração durava dias e dias, não era nada de outro mundo. 

    A lógica era simples: assim como o governo federal detalhava por Estados, os estaduais detalhariam por município. E foi o que fizeram. Só que, sem orientação central sobre como fazê-lo, cada secretaria fez isso do jeito que achou melhor. Umas publicavam releases: “Ontem, foram identificados X casos na cidade Y”. Outras publicavam cards em redes sociais. Algumas outras, em PDF – um formato que permite fazer de conta que se abre dados mesmo dificultando a vida de quem quer analisá-los. Outras ainda, em tabelas no site. Entretanto, uma minoria publicava em planilhas. Assim, em poucos dias, um levantamento que me tomava 15 minutos já estava tomando uma hora. E depois aumentou.

    Essa bagunça de formatos só mudou quando a ONG Open Knowledge Brasil criou um ranking de transparência dos Estados com os dados da Covid-19. Para subir no ranking, cada Estado pôs pressão em suas equipes para melhorar o formato de divulgação dos dados. Em dois meses, os maiores fiascos de março eram modelos de transparência. 

    Apenas em maio, às vésperas da saída do segundo ministro da Saúde da pandemia, o ministério passou a publicar os dados por município. Até aquele ponto, as únicas fontes de dados que compilavam informações de todos os municípios do Brasil, eram o monitoramento da Lagom Data e uns dois ou três outros que surgiram depois com a mesma lógica.

    Por algumas vezes, jornalistas e pesquisadores diziam que esses monitoramentos eram a fonte mais confiável de informações sobre a doença. Sempre achei isso perigoso.

    Seguro ou completo? Para que serve um monitoramento de dados?

    Mais completos, com certeza os bancos de dados independentes eram – a finalidade de um monitoramento assim é justamente mostrar ao poder público, que gera as informações, que esses dados são cruciais para monitorar a emergência e que eles podem ser organizados de maneira mais útil. A confiabilidade, porém, sempre esteve longe das nossas mãos.

    É um erro achar que dados obtidos de segunda mão possam ser mais confiáveis do que dados de primeira mão. Por melhor organizados que estejam, eles dependem dos dados de primeira mão para existir. E a primeira mão é necessariamente a de quem define e executa as políticas de enfrentamento da doença nos municípios, Estados e governo federal. É a mão de quem pode frear o Quinto Risco. Lá na ponta, costumo dizer, os dados são profundamente humanos. No caso dos dados da Covid, eles são anotados em fichas de papel pelos mesmos profissionais da saúde exaustos que atendem a pacientes em casos emergenciais com escassez de equipamentos de proteção individual e outros recursos. 

    Para haver um número de casos confirmados, precisaríamos de mais testes aplicados.

    O Brasil sempre testou muito menos do que outros países, em parte pelo gigantesco tamanho da sua população. Mais ainda: o Brasil no agregado é uma ficção; as extremas desigualdades do país apareceram com força no combate à Covid. Nos testes, cada Estado aplicou do jeito que pôde ou achou mais conveniente. Em Minas Gerais, por exemplo, o secretário da Saúde dizia em março que até tinha testes para aplicar, mas testava pouco porque estava guardando esses preciosos recursos para quando se fizessem realmente necessários. Sabe-se lá quando seria esse dia, não sei se ele já chegou. Mas, com critérios diferentes de testagem em toda parte, era temerário comparar os dados róseos de Minas Gerais com os dados assombrosos que vinham de Pernambuco, um dos primeiros Estados cujo sistema de saúde entrou em colapso. 

    Para haver um número de mortes confirmadas, era preciso que o paciente estivesse ao menos com suspeita de Covid.

    Os primeiros pacientes a morrer de Covid no Brasil sequer eram considerados casos suspeitos da doença. Pela orientação original do Ministério da Saúde, deviam ser testados apenas os pacientes que tivessem viajado ao exterior ou soubessem ter tido contato com alguém que viajou. Enquanto o primeiro a ter a doença confirmada, em São Paulo, era um empresário que voltou de viagem à Lombardia, a primeira senhora que morreu, no Rio, era a diarista cuja patroa havia voltado de viagem. O primeiro morto em São Paulo era um porteiro. Nenhum dos dois estava sendo tratado como um caso de Covid antes da morte.

    Enquanto isso, os hospitais iam lotando numa medida que não refletia exatamente os dados oficiais da Covid. Ao final de março, os pesquisadores do Infogripe, da Fiocruz, alertaram para uma alta nos casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave de causa não identificada, uma classificação genérica criada quando não se tem como confirmar o que causou a internação. Em Belo Horizonte, capital daquele Estado que guardou os testes para quando fossem necessários, em junho havia 9 mortes de SRAG para cada uma confirmada como sendo de Covid. Já em 2021, a Fiocruz cravou que 70% dos casos de SRAG não identificada no Brasil eram Covid mesmo. 

    O fato é que a pressão da sociedade civil, especialmente da imprensa e de pesquisadores independentes, fez com que se tivesse muito mais dados disponíveis no país. Desde maio, é possível baixar os microdados de SRAG, com informações sobre cada paciente. O governo que não me ouça, mas os dados do painel do Ministério da Saúde melhoraram muito em disponibilidade e qualidade depois da pressão exercida de fora. 

    Uma pausa? [lógico que não]

    No início de junho, parecia que o monitoramento da Lagom Data não tinha mais razão para existir. Ao menos em termos de informação fornecida oficialmente, estava tudo mais tranquilo. Não precisávamos mais ser caçadores e coletores, poderíamos trabalhar mais no processamento dos dados, na análise de suas lacunas. Lógico que eu estava errado. 

    Dia após dia, naquela fase em que o servidor batia seu cartão pela manhã sem saber quem seria seu chefe à tarde, o Ministério da Saúde foi jogando para mais tarde a divulgação dos dados federais. Em 5 de junho, eles divulgaram o dado depois das 21h30, e nas palavras do próprio inquilino do Alvorada isso ocorreu para que o número de 1.005 mortes confirmadas em um só dia não fosse notícia no Jornal Nacional. 

    O Quinto Risco “estava on” com todas as barrinhas acesas.

    Inclusive nos dias seguintes, o governo ativamente buscou sabotar o fornecimento de dados, inclusive tirando seu painel do ar por alguns dias. (Mesmo nesse período, os dados continuavam sendo atualizados diariamente no site no formato que o inquilino do Alvorada queria extirpar. O funcionalismo estável com espírito público continuou cumprindo sua missão, apesar da bateção de cabeça no topo.)

    Esse breve apagão não teve impacto no trabalho que a Lagom Data fazia, nem mesmo afetou o que as outras iniciativas coletavam. Pois, desde o começo, elas se organizaram a fim de suprir a falta de informações centralizadas no governo federal. Pelo contrário, isso emprestou ainda mais relevância ao nosso trabalho de caçadores e coletores. Tanto que rapidamente surgiu um novo caçador e coletor na área: um consórcio que reunia os principais meios de comunicação brasileiros. Montou-se uma parceria historicamente inédita. Ou seja: fazer exatamente a mesma coisa que meia dúzia de iniciativas independentes e mal financiadas já vinham fazendo havia três meses. Dessa forma, vendo que não adiantava esconder o dado, e pressionado por decisões judiciais, o governo voltou imediatamente a publicar o que tentou esconder. E nunca mais voltou atrás. 

    Nos meses seguintes, o campo de batalha mudou por diversas vezes.

    A questão do número diário de casos e mortes conhecidas foi pacificada a partir dali. Isto é, há pouco questionamento no debate público sobre o tamanho da subnotificação (que continua existindo). A transparência de outros dados passou a se tornar importante. 

    Um dos motivos pelos quais milhões de testes apodreceram num depósito foi justamente a baixa transparência sobre a disponibilidade e aplicação destes. Assim, agora em março de 2021, meses depois da descoberta dos testes vencendo, o governo tentou generosamente doá-los ao Haiti, que os recusou por estarem vencidos. Dias depois do começo da vacinação, o Ministério da Saúde começou a publicar diariamente microdados detalhados sobre as vacinas aplicadas no país. Todavia, isso aconteceu após o questionamento de casos de “vacinas de vento”. Esses microdados tinham muitas inconsistências, mas quando a mesma ONG Open Knowledge os tornou públicos, eles começaram a sanadá-las em poucos dias. 

    Se os dados básicos de certa maneira já estão resolvidos, hoje não podemos falar em apagão na disponibilidade dos dados. A grande questão agora centralizava-se na qualidade dos dados e das decisões de política pública que os governos tomam a partir deles. As idas e vindas das medidas de supressão da circulação do vírus em São Paulo, por exemplo, seguem mais pesquisas de popularidade do que pesquisas epidemiológicas. Dessa forma, há meses existem dados suficientes para ajudar a dar foco a um plano de contenção. Todavia, mesmo assim as medidas e exceções parecem decidir-se na base de quem grita mais alto. Poucos têm os pulmões dos cartolas das igrejas e dos times de futebol, por exemplo. 

    Ou seja, o Quinto Risco não é apenas federal. E ele não deve acabar tão cedo.

    Pesquisadores e jornalistas estão exaustos após doze meses aparentemente gritando ao vento. Mas sempre que pusemos nossos neurônios e análises nessa tarefa, fazendo uma divulgação científica competente, conseguimos fazer as políticas públicas avançarem alguns passos. Isso mesmo que pequenos. Por mais que um governo possa despriorizar a voz da ciência, o que o último ano mostrou é que o corpo técnico estável ouve essa voz. E eles são quem mais consegue defender a sociedade do Quinto Risco.

    Para Saber Mais:

    LEWIS, Michael (2019) “O Quinto Risco” Intrínseca, 2019

    www.lagomdata.com.br/coronavirus

    O autor

    Marcelo Soares é jornalista, diretor do estúdio de inteligência de dados Lagom Data, membro do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) e mestrando no Labjor/Unicamp.

    Este texto é original e exclusivo do Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Ciência para crianças! A vacina do Butantan

    No quadrinho anterior, pudemos acompanhar o pequeno Dragonino aprendendo sobre o que são os vírus. Antes disso, Dragonino também aprendeu sobre a importância do isolamento social para combater a pandemia de Covid-19. Hoje, Draco explicará a seu filho como a ciência deu mais um importante passo nessa batalha! Venha junto com o Dragonino para conhecer mais sobre a vacina do Butantan!

    Quadrinhos da série "Ciência para Crianças!", com o tema "A vacina do Butantan".

    Os cientistas de diversas partes do mundo estão trabalhando bastante para ajudar a combater o novo coronavírus! Algumas vacinas que foram desenvolvidas em diferentes laboratórios já foram testadas, aprovadas e estão sendo produzidas e distribuídas para a população.

    Draco e Dragonino estão muito felizes com o início da vacinação, mas sabem que ainda é preciso manter todos os cuidados. Ainda não é hora de voltar a fazer aglomerações ou sair de casa sem usar máscara! É preciso ter paciência e esperar até que a maioria da população esteja vacinada. Só assim será possível reduzir a circulação do vírus e garantir que menos pessoas fiquem doentes.

    Enquanto isso, que tal aproveitarmos para aprender mais sobre como as vacinas funcionam? Fiquem de olho nos próximos quadrinhos, pois Dragonino está muito curioso e ainda tem muitas dúvidas que precisam ser esclarecidas!

    Fontes de informações:

    Equipe: 

    • Design, pesquisas e roteiro: Giovanna S. Veiga e Carolina S. Mantovani

    Este texto foi escrito originalmente no blog Nas asas do dragão

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Divulgação científica em tempos de pandemia: como elaboramos conteúdos?

    Talvez vocês se perguntem sobre o processo de fazer divulgação científica em canais virtuais. Bem como lidamos com a desinformação, os artigos publicados, preprints… Talvez ainda como avaliamos se nós deveríamos postar tudo o que nos chega assim naquele último minuto?

    A primeira questão é que não: nós não saímos publicando tudo o que vemos pela frente!

    Em geral, o trabalho de divulgação envolve várias etapas que são importantes. Ao ler um capítulo do livro “Pedagogia Profana” para nosso encontro do Grupo de Pesquisa, achei que era importante falarmos sobre isso…

    “A verdade é a verdade”.

    Esse é o trecho de abertura, analisado no capítulo “Agamenon e seu porqueiro”, por Jorge Larrosa. Em um primeiro momento, o porqueiro pode parecer um típico negacionista. Todavia, conforme vamos percorrendo a leitura deste capítulo, vemos que Larrosa aponta sobre a impossibilidade de sabermos quem é que afirma o que é “a verdade”. Além disso, o porqueiro impõe exatamente esta questão – eu não preciso aceitar a verdade, caso não saiba de onde ela vem.

    Como assim?

    O porqueiro de Agamenon é alguém que não toma a verdade como algo desconectado de quem está falando. Ele também não se desconecta da racionalidade vinculada à “verdade” – para tanto, quer saber de onde ela vem e onde se ampara…

    A partir daí, inicia-se um debate sobre o que é ou não real. Isso em função das narrativas criadas em diversas instâncias (educacionais, mídia de massa, governamentais, etc.). É interessante que este texto é escrito em 1998 e provoca desconforto ao trazer a problemática da “existência” da realidade.

    E o que isto tem a ver com o ritmo de postagens da Divulgação Científica? Ou com como postamos e que tipo de conteúdo em tempos de pandemia?

    Bom, dentro do trabalho da divulgação científica, temos várias análises acontecendo simultaneamente. E temos algumas etapas possíveis para realizarmos nosso trabalho no dia a dia. Hoje eu resolvi trazer um pouco sobre 4 etapas. Vamos a elas?

    1º nossa área de formação propriamente dita!

    Esta nos dá condições de não apenas fazer um fio sobre um artigo qualquer. Assim como cards explicativos no instagram, ou textões no facebook, vídeos no youtube, etc.

    Ela nos dá, antes disso, condições para termos CONHECIMENTO TÉCNICO E CIENTÍFICO para entendermos um artigo, pois temos uma bagagem de conhecimento prévio. Isto é: conhecemos os jargões, os símbolos a linguagem específica, etc.

    Isto quer dizer que quem não tem formação científica – ou não é cientista não pode trabalhar com Divulgação Científica? Não! Não é este o ponto. Portanto, a questão é: precisa, sim adentrar no mundo da linguagem científica. É fundamental aprender os jargões das áreas, compreender as etapas de método científico. Assim como, reconhecer os modos de fazer ciência – e compreender que existem diferenças significativas entre áreas bem próximas. E uma área de formação técnica científica te ajuda nisso (e muito).

    2º estudar comunicação e o veículo utilizado

    Isto é algo que vemos cada vez mais cientistas se dando conta. Como assim? Não basta ter o conhecimento técnico, eu tenho que APRENDER a falar com as pessoas, usando ferramentas e linguagens específicas. Aqui no Blogs, por exemplo, além das postagens de texto, nós temos uma equipe inteira que estuda as redes sociais. Esta equipe busca organizar os conteúdos das postagens para as redes sociais. E cada rede têm uma atenção especial e materiais em formatos específicos! A Erica Mariosa vem produzindo conteúdo específico sobre isto e, recentemente, falou da nossa equipe das redes sociais e as etapas de trabalho desenvolvidas!

    3º ler, ler muito, mas ler até ficar zonzo – e aprender a organizar as ideias 

    Parece meio besta falar isto. Mas é verdade: parte da divulgação científica não é apenas ter formação técnica, nem só compreender os veículos de comunicação. Nosso cotidiano passa longe de ficar só nisso.

    Dessa forma, aprender a se organizar nas leituras é estabelecer diálogos entre vários fatores. Por exemplo:

    – os jargões prévios da nossa área;
    – novos conhecimentos de artigos recém publicados e
    – pensar em modos de esquadrinhar isto em ideias para uma população específica.

    Tudo isto sem perder o foco de que em “tempos de covid” que saem muitas publicações todos os dias.

    Então temos os artigos técnicos e científicos – e eventualmente trabalhos de colegas da Divulgação Científica que são publicados cotidianamente. Mas nós também estamos sempre atentos à jornais, revistas, informações em geral. Isto para ver se existe algum ponto que está nos escapando, ou se existem questões sociais urgentes para trabalharmos!

    Assim, aqui chegamos onde eu queria chegar! É fundamental neste esquadrinhamento nós selecionarmos conteúdos. Com isto realizamos recortes para divulgarmos o conteúdo da maneira mais acessível possível a quem acompanha nosso material – seja no veículo que for.

    E que tipo de ação é esta?

    Comecemos pelo o que nosso conteúdo não é!

    – Isto não é uma “tradução” de conteúdo. Ou seja: nós não traduzimos de um suposto idioma científico para um idioma das ruas

    – Também não é “transposição” didática. Isto é, transformações adaptativas para o conteúdo

    – Muito menos “simplificação” ou (a pior de todas na minha percepção) um “conteúdo pouco aprofundado”. Ou seja, pessoas não especialistas não são rasas para precisarem de um conteúdo “pouco aprofundado”. Tampouco são incapazes de compreender ciência a ponto de precisarmos de uma simplificação.

    Assim, a Divulgação Científica trabalha com a produção de conteúdos e conhecimentos técnicos e científicos acessíveis. Quando eu falo “produção de conteúdos”, estou me referindo, como diz Larrosa, a esta construção de sentidos, significados, simbologias através da linguagem. É, portanto, uma escrita completamente nova e diferente de um artigo científico – seja ele avaliado por pares ou preprint.

    Os conteúdos de Divulgação Científica articulam conhecimento técnico científico a outros elementos da cultura. Bem como, vinculam-se a diferentes valores sociais e como todo processo comunicativo – são interessados e endereçados (no nosso caso: interessantes também!). 

    E escrevemos por quê?

    Muitas vezes, estes conteúdos que produzimos é instigado por artigos incríveis que chegam em nossas mãos. Outras vezes, por perguntas de quem nos acompanha! (Sim!!! Isso é absolutamente comum e o diálogo é motor de pesquisa e estudo!).

    Também acontece de lermos conteúdos que estão espalhando desinformação. Neste caso, eles podem causar risco potencial para a população – o que em tempos de Covid-19 e negacionismo, sempre gera um alerta imenso! E nós já falamos sobre isto no Blogs e consideramos cada ponto deste toda a vez!

    O que me faz chegar no 4º e último ponto:

    4º A responsabilidade sobre o que produzimos.

    É claro que cientistas erram e divulgadores erram. E é claro que reavaliamos constantemente nossas ações. Estamos em grupos e mais grupos (e mais grupos e outros grupos ainda mais) com outros comunicadores, debatendo o quê, quando e onde publicarmos.

    Discutimos artigos, debatemos se determinado preprint é bem organizado, escrito e robusto. Também pensamos conjuntamente e – de maneira geral – podemos dizer que existe bastante apoio entre comunicadores.

    Bueno, mas e aí?

    Temos debatido também outras estratégias para analisarmos a desinformação e quando devemos intervir e falar sobre algum dado recente. Tudo isto mexe com algo muito delicado acerca da responsabilidade com a informação, que diz respeito à ética!

    Isto é: como decidir falar sobre dados, quando eles podem não ser satisfatórios?

    Veja, trabalhar com comunicação responsável é se dar conta que estamos sempre selecionando conhecimentos, fazendo recortes e produzindo novos textos, novas informações, novos conhecimentos.

    É isso a que Larrosa se refere quando fala da “produção, dissolução e uso da realidade”. Isto é, significa mais do que manipular informação (e evitamos usar esta palavra pela conotação negativa). Estamos:

    – Esmiuçando a informação inteira, destrinchando-a (dissolução)
    – Escrevendo outro tipo de informação (produção) quando
    – Divulgamos conhecimento técnico científico (uso).

    Ter noção destas etapas é fundamental para estabelecermos uma relação ética com o conhecimento e com quem têm acesso a este conhecimento pela divulgação. E é por isso que, muitas vezes, decidimos apresentar dados que ainda são incipientes. Nós analisamos e assumimos o conhecimento técnico da leitura que fazemos, sim. Ressalto aqui que isto passa a milhas e milhas de distância da arrogância. É análise mesmo do material, passando por estas etapas que eu fui mencionando no texto!

    Mas é mais do que isso

    Por termos analisado de que maneira ele está sendo divulgado, em que tipo de “bolhas”, quem nos faz perguntas, como chegam as perguntas, tomamos decisão. Por exemplo, elaboramos o risco de, ao ver tudo isto, não falar nada sobre…

    São decisões importantes que não se restringem ao saber técnico, mas são uma junção destes 4 pontos que tocam nosso trabalho na divulgação.

    Além disso, é fundamental apresentarmos a ciência também a partir de suas contradições, seus erros e percalços. A ciência não é linear, não se faz só por acúmulo de ideias e conhecimentos. Ela é um campo de debates – é e deve ser sempre.

    O porqueiro de Agamenon…

    Assim o porqueiro de Agamenon, que contesta a frase “a verdade é a verdade”, o faz não por ser negacionista ou birrento. Talvez ele esteja à espera de um debate mais aprofundado acerca do que fundamenta esta verdade e onde ela se ancora – dados, debates, ideias.

    Também não é apenas reiterar uma postura crítica “só porque sim” e contestar tudo. Pois é uma busca pelos tempos de pensar, analisar e buscar mais conhecimento para tomar decisões.

    Assim, se partimos do pressuposto (e defendemos) que o acesso ao conhecimento faz parte de um processo fundamental da democratização da ciência. E se assumimos que isto tem que ser a base de nosso trabalho – não estamos aqui para apenas divulgar notícias maravilhosas. 

    Nem resolvemos trabalhar com divulgação científica para dizer que tudo vai dar certo. Quando nos chegam materiais (artigos, vídeos, perguntas) que apresentam riscos de aumentar a desinformação, nós vamos SIM elaborar um conteúdo. Vamos apontar suas limitações, vamos destrinchar suas potencialidades. E, tal como o porqueiro de Agamenon, diremos “não me convence”, se assim acharmos pertinente!

    O estabelecimento das enunciações científicas é, ou deveria ser, a partir do diálogo por possíveis “não convencimentos”. E isto mais do que por aceitação em silêncio, sem contrapontos a serem analisados.

    A verdade é a verdade” – dita por uma voz que não sabemos de quem é, mas temos que aceitar, só indica crença metafísica e inquestionável. Não é assim que a divulgação científica deveria trabalhar. Nem é assim que nos dirigimos a quaisquer pessoas que nos acompanham e/ou que buscam dialogar para compreender mais, tirar dúvidas, apontar falhas.

    Não é assim que a ciência deveria se fundamentar.

    E não é assim que um trabalho que se supõe construção coletiva de conhecimento deve atuar. Especialmente, tendo em vista que ninguém sabe tudo e que aprendemos uns com os outros.

    A Divulgação Científica é (e tem que ser) maior que a soberba do suposto saber. Ela tem que ser ponte, ciente, responsável e ética – entre pares e extra pares. E calcada no diálogo que constrói mais do que nas assertivas que seguem, tal como a oculta personagem de Agamenon, apontando a verdade como a verdade. Ou seja, sem possibilidade de questionamento.

    A todos nossos colegas que, mesmo exaustos, seguem se abrindo para o diálogo. Àqueles que seguem apontando para as trajetórias da ciência com ética e responsabilidade. Aos que assumem isto como rumo e lembrando sempre que a ciência, sem questionamento e diálogo, é só outra religião dogmática. A todas as divulgadoras científicas e divulgadores científicos incansáveis: dedico este texto de hoje. Por construções mais saudáveis e caminhos mais suaves.

    Para saber mais:

    Gouvêa, G. (2015) A divulgação da ciência, da técnica e cidadania e a sala de aula. In: Giordan, M., Cunha, M.B. (org) Divulgação Científica na sala de aula. Ijuí: Editora Unijuí. pp.13-42.

    Larrosa, Jorge (2003) Pedagogia Profana

    Mariosa, Erica (2021) Como fazemos a divulgação da divulgação científica no Blogs de Ciência da Unicamp?

    Machado, Dayane (2021) Corrigindo boatos de forma estratégica

    Este texto foi escrito originalmente no blog PEmCie

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Como a percepção do risco afeta nosso comportamento na pandemia?

    Texto escrito por Marco Antonio Coelho Bortoleto*

    Viver com a iminência do risco 

    O risco representa um elemento da vida, uma ameaça, um impulsionador, uma razão para pensá-la. Da filosofia clássica à ciência moderna o risco vem sendo objeto de inúmeras reflexões. E, algumas situações acabam ampliando nossa atenção sobre o risco, como vem sendo o caso do atual período da pandemia Covid-19.

    Como vemos cotidianamente, podemos analisar o risco nas suas mais variadas dimensões (econômica, reconhecimento social, saúde, êxito profissional, etc)1. Nos interessa aqui, tratar do risco à integridade/manutenção do estado de bem estar e da própria vida. Uma conversa que perpassa, portanto, a noção de segurança, de prevenção, controle e mitigação do risco, que em conjunto compõem um sub-campo denominado gestão do risco.

    Sociologia do risco

    Nesse ainda efervescente contexto pandêmico, a sociologia do risco emerge como uma possibilidade2. Mais ainda, a noção de PERCEPÇÃO DO RISCO tão relevante para essa área do conhecimento, pode ajudar a melhor entender o modo individual (cada um de nós) e coletivo (grupos sociais) com que as pessoas vivem a ameaça viral e como constroem e reconstroem seu enfrentamento.

    De entrada vemos polarizações semelhantes àquelas já encontradas nas posições políticas, mostrando algumas pessoas/grupos despreocupadas (ao menos discursivamente), outras atentas e buscando atender às medidas de contenção/prevenção e, por fim, outras oscilando entre um lado ou outro. Assim, discursos e comportamentos refletem desde a percepção de uma gripezinha até mesmo a hipertrofia do medo com crises de pânico e depressão. Um problema de saúde pública, como poucos que já vivemos. Eis a razão que explicaria que tantos profissionais e veículos de comunicação têm abordado o fato!

    Um olhar atento à complexidade do risco, pode revelar o que está nas entrelinhas do reconhecimento e o trato do risco. A análise dos múltiplos indicadores (objetivos e subjetivos) faz-se necessária e, como temos visto, pode variar muito entre profissionais (especialistas) e também entre a população em geral. Aliás, opinar é importante, ao revelar o grau de liberdade e de existência numa sociedade democrática, contudo, eleva o grau de risco uma vez que proliferam todos os tipos de análises, criando, com frequência, um estado de confusão ainda maior.

    Logo, quer seja utilizando ferramentas estatísticas, métodos de prospecção probabilísticos, ou mesmo, opiniões fundadas em preceitos religiosos e de sentido comum, o que observamos é um sem fim de comportamentos reforçando ou criticando/negando o risco da pandemia. Enganam-se aqueles que acham que somente os “leigos” erram, ou que os especialistas sempre acertam. Há muito risco – explicado pela epidemiologia dos acidentes – no ambiente doméstico, na condução de veículos por vias próximas e conhecidas, na conduta  do trabalhador experiente. E, certamente há muito ainda que aperfeiçoar nos modelos e algoritmos que utilizamos para predizer a dinâmica de um fenômeno tão complexo quanto essa pandemia, como todos vimos acontecer ao longo de décadas com os dispositivos utilizados para previsão meteorológica, por exemplo.

    Percebendo o risco – estamos diante de um dilema

    É precisamente, a Percepção do Risco, que nos ajuda a refletir em como, entre outras coisas, alguns pesquisadores e profissionais da saúde – que se enquadram na categoria de especialistas – seguem negando a pandemia, sua amplitude bem como alguns ou todos os mecanismos preventivos adotados pelas autoridades. Ou, também, como amigos, pessoas próximas e familiares divergem tanto um dos outros nesse tema. Esse dilema, nos apresentou mais uma CRISE, que já tinha sido notada no campo da política-eleitoral recentemente.

    Assim, a negação ou a minimização do risco pode converter-se num comportamento de risco: ou seja, em condutas que podem ampliar o risco já elevado e, suas consequências. Pior, ainda que eu queira ser esperançoso, muitas vezes, a tentativa de esconder ou infra valorizar o risco representa uma estratégia que visa redirecionar a atenção para outras dimensões da vida individual ou social (econômica, política, ética, laboral, afetiva, …). o referido comportamento de ignorar e/ou minimizar o risco já foi amplamente observado – no campo da sociologia – quando um conjunto de pessoas experienciaram o estado de guerra por um tempo prolongado, ou quando enfrentam uma pandemia, como a do vírus HIV. Temos, então, mais um indicador que contribui para entender o que temos visto Brasil afora, após um ano de pandemia. 

    Cabe relembrar que não é uma novidade a proliferação de frases de efeito, para combater o risco, como, por exemplo: “precisamos viver”, “abram tudo”, “apenas alguns vão morrer”, “é melhor enfrentar o vírus de peito aberto do que fugir dele”, “essa doença é para os fracos”, …  um discurso forte, repetido e maquiado por agumentos supostamente válidos, pode assumir o controle do comportamento de algumas pessoas e, algumas vezes, das massas.

    Em poucas palavras, notamos que a percepção do risco – como construção subjetiva – pode variar significativamente, considerando o quão distante estamos do problema (o imaginamos estar), quais informações temos sobre os riscos, quanto temos a perder, entre outros aspectos. Com efeito, a opinião de uma pessoa, pode, quando reverberada nos meios e com a força adequada, tornar-se uma percepção coletiva. Por isso, o poder conferido às autoridades e, de certa forma tod@s @s internautas das redes e dos apps, representam, na atualidade, um poderoso mediador dessas percepções. Por conseguinte, relevantes indicadores para a sociologia do risco.

    Controlar o risco – mais que uma opção, uma necessidade

    A mesma sociologia do risco indica que, a observação dos fatos (acidentes, epidemias, lesões, …) e dos comportamentos, constituem uma boa metodologia para o controle do risco. Aprendemos, pois, que a busca por mecanismos redundantes de verificação (medir a temperatura, testagem em massa, …). Possuir uma “cópia de segurança”, solicitar uma segunda opinião no diagnóstico, verificar a informação em outra fonte, exigir um segundo laudo pericial, utilizar outra ferramenta/algoritmo para os cálculos, são alguns dos mecanismos de redundância empregados em distintas áreas. Deixar de realizar essas operações, como usar outro amigo do mesmo grupo do whatsapp pode, pelo contrário, promover a confirmação de um diagnóstico equivocado.

    Por isso, a instauração de um olhar complexo incluindo variáveis biológicas/genéticas, psicológicas, afetivas, econômica e sociais, são fundantes para a constituição de uma “cultura de segurança” que, mesmo incapaz de extinguir o risco pode ajudar na instauração de um controle amplo e tolerável, oferecendo condições para a normalização da vida.

    Desse modo, os protocolos sanitários (uso de EPI, verificação constante dos avanços farmacológicos e procedimentais, emprego amplo da vacinação, …) são empregados como modelos a serem seguidos. Isto é, são necessários para enfrentar o caos que temos observado nos discursos e nas práticas de governantes, gestores, especialistas e da comunidade em geral. 

    O controle do risco, por meio de mecanismos preventivos e sua consequente ampliação do estado de segurança, é apontado pela sociologia e com forte apoio das pesquisas em Saúde Pública e Economia, como uma ação mais efetiva. O tratamento, uma vez instaurado o problema (o contágio pelo vírus nesse caso), é mais oneroso, lento e exigente, ampliando os sacrifícios pessoais e institucionais. 

    Isso posto, mesmo não existindo uma solução simples, pragmática e rápida, apesar da urgência e gravidade da situação, fomentar os procedimentos de controle do risco representa uma missão de todos, principalmente das autoridades.

    Comportamento de risco – ponderando sobre nossas decisões

    Devemos entender que nossas decisões e, por consequência, nosso comportamento na esfera íntima e, especialmente, na pública, não deveria balizar-se numa conduta de risco deliberado como numa APOSTA3. Perder, quando a integridade da vida é o que se está apostando, pode representar o fim, uma tragédia para nós e/ou para muitos que convivem conosco. Sendo assim, “apostar” no não uso da máscara em meio a tantas evidências de sua eficácia no controle (diminuição) do contágio, representa um bom exemplo de comportamento de risco. Uma clara sinalização de estarmos subestimando o risco real por razões que carecem de comprovação factual, como já mencionamos.

    Esse e outros comportamentos que negam a magnitude da atual pandemia mundial, vêm construindo uma percepção turva dos riscos4, um cenário confuso que entorpece as decisões (individuais e coletivas), ao ponto de ignorar muitas das estratégias preventivas, como o isolamento social, a higienização recorrente das mãos, entre outras5. Constitui-se, dessa forma, um cenário favorável para a emergência de diferentes condutas de risco 2, muitas vezes inadvertidas e que ignoram o risco e suas consequências para a vida. 

    O controle do risco é, com frequência, mais eficiente quando realizado com múltiplos agentes, estando ainda baseado em distintas perspectivas teórico-metodológicas. A prevenção, como estratégia, costuma ser mais barata e eficiente, do que a remediação, como já dissemos. Consequentemente, a implementação de procedimentos avaliativos e preventivos que contribuam para minimizar os riscos e aumentar o controle de segurança, torna-se um empreendimento de co-responsabilidade (individual-coletivo). Em suma, um dever de tod@s!

    Em oposição, condutas temerárias, como a de publicar ou reverberar informações dúbias, fake news ou mesmo narrativas representam um ato de construção de uma percepção negacionista do risco, ampliam nossa dificuldade de afrontar a pandemia. O mesmo se aplicaria à condutas como dirigir embriagado, não utilizar EPI em trabalhos que os exijam, indicar medicação sem o devido diploma para tal, dentre tantas outras.

    Vale lembrar que o risco não deve ser encarado como um aspecto negativo, como algo RUIM, mas como uma dimensão da vida que pode ajudar na sua manutenção. Reconhecendo sua natureza ambivalente6. Por isso, numa sociedade superprotetora parece-me ainda mais urgente, rever o processo de educação do RISCO, nem subestimando-o, nem promovendo a hipertrofia do medo. 

    Fica patente que a gestão do risco deve integrar todos, mostrando que somos CO-RESPONSÁVEIS, individual e coletivamente. A busca e a difusão dos protocolos e dos comportamentos devem compor a agenda universal. Evidentemente, a gestão do risco pode e deve ser debatida considerando diferentes perspectivas (das teorias psicológicas à matemática da Teoria dos Jogos). Mas esse será tema para uma outra conversa.

    Para saber mais

    1. COLLARD, L., « Le risque calculé dans le défisportif », L’Année sociologique, n° 2, vol. 52,2002.

    2a. LE BRETON, David. La sociologie du risque. Paris: PUF , 2016.

    2b. Le Breton D (2017) Conduites à risque. Des jeux de mort au jeu de vivre. Paris: PUF.

    3. COHEN, J (1956) Risk and gambling, New York: Longmans, Green and Co Inc.

    4. BRETON, David Le (2019) Ambivalences du risque. Sociologias,  Porto Alegre ,  v21, n52, p34-48.

    5. Percepção do risco e prevenção na pandemia (2020)

    Saber mais 

    Aplicabilidade no campo da segurança do trabalho (Risco e Segurança no Circo) – Reportagem Revista CIPA

    Lupton Deborah (ed.). Risk and Sociocultural Theory: New Directions and Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press,  1999.

    O que é risco 

    O autor

    Marco Antonio Coelho Bortoleto Professor Associado do Departamento de Educação Física e Humanidades (DEFH) da FEF/UNICAMP Suas pesquisas no campo da Sociologia e particularmente da Sociologia do Risco tiveram início devido ao interesse na noção de risco (e algumas derivadas: segurança, prevenção, …) no campo das práticas acrobáticas – principalmente da Ginástica Artística e do Circo.  Há mais de 15 anos estabeleceu a “cultura de segurança” como uma linha de pesquisa, com diversas publicações, com destaque para a co-organização de um livro “Segurança no Circo: questão de prioridade”; e um recente capítulo publicado na França sobre a percepção do risco entre artistas circenses brasileiros.

    BORTOLETO, MAC. Perception du risque et causes d’accidents, un challenge permanent dans l’éducation des artistes brésiliens. IN: GOUDARD, Philippe; BARRAULT, Denys. (ed.). 

    Médicine et Cirque, Sauramps Medical, Montpelier, 2020.

    FERREIRA, D.; BORTOLETO, MAC.; SILVA, E. Segurança no Circo: questão de prioridade. Várzea Paulista, Ed. Fontoura, 2015. 

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Qual a relação entre Naruto, anticorpos e tratamento de COVID-19?

    Provavelmente você já deve ter ouvido falar sobre o mangá e anime “Naruto”, de 2007. Na história, o ninja adolescente enfrenta diversos vilões com o sonho de se tornar o líder da aldeia em que vive. Se você conhece um pouco da história, com certeza já viu o “Jutsu Clone das Sombras”, em que o Naruto cria diversas cópias de si mesmo para combater um inimigo. Mas o que isso tem a ver com COVID-19?

    Fig.1. Naruto e os Clones (2007). Imagem de Masashi Kishimoto

        Nosso sistema imune possui diferentes tipos de células e, dentre elas, os linfócitos B. Essas células são capazes de produzir um tipo de molécula, chamada de anticorpo, que se liga a corpos estranhos que invadem nosso organismo. Por exemplo, podemos produzir anticorpos contra o pólen das flores, vírus e bactérias. Porém, a nossa produção de anticorpos naturais acontece através de vários linfócitos B diferentes, sendo chamada de resposta policlonal. Com o objetivo de simular a resposta natural do nosso organismo, mas de maneira mais direcionada e eficiente, a ciência desenvolveu uma maneira de criar clones específicos, assim como o Naruto, para combater agentes agressores no nosso corpo: anticorpos monoclonais. 

    Os anticorpos monoclonais são feitos em laboratório e conseguem se ligar a lugares específicos do agente causador da doença. Isto é, com o objetivo de “imitar” uma resposta que nosso corpo teria contra ela, por exemplo a COVID-19. Os anticorpos monoclonais têm surgido como uma classe nova de remédios e já são utilizados para tratar alguns tumores e doenças autoimunes, como a esclerose.

        Esses anticorpos são produzidos através de um linfócito B diferenciado, chamado de plasmócito. Cada plasmócito é um clone, e esse clone irá produzir um único tipo de anticorpo, que é chamado de anticorpo monoclonal. Em um laboratório, é possível identificar qual é a especificidade desse anticorpo, e se ele será útil para um tratamento ou não. 

        Mas como é possível criar um clone para o que eu quero?

    Essa técnica foi descrita pela primeira vez por Georges Kohler e Cesar Milstein em 1975. Primeiro, é necessário infectar um animal com o patógeno (vírus ou bactéria da doença que estamos estudando), normalmente um camundongo. Este processo é chamado de imunização. Depois disso, pegamos as células B (plasmócitos) desse camundongo e provocamos a junção dessas células com células tumorais, através de um processo chamado de fusão, igualzinho a fusão que acontece em Dragon Ball.

    Essa fusão é importante pois células tumorais têm uma capacidade de se dividir muito rápido. Dessa forma, ajudará o plasmócito a criar mais clones. Se a fusão funciona, essas células passam a ser chamadas de hibridomas. Cada hibridoma produzirá apenas um tipo de anticorpo.

    Esses anticorpos são testados para saber se são específicos ou não, e, se a resposta for positiva, nós expandimos esse clone. Assim como o Naruto, essas células são capazes de criar muitas cópias de si mesmas, e a produção de anticorpos passa a ser tão grande que é possível tratar os pacientes. 

    Ficou confuso ainda assim? Então olha o esquema abaixo que montamos para ti!

    Figura 02. Produção de anticorpos monoclonais

        Os anticorpos monoclonais e a Covid-19

    Recentemente, a FDA (Food and Drug Administration) autorizou o uso de dois anticorpos monoclonais como forma de tratamento emergencial, o bamlanivimab e o etesevimab em casos de COVID-19 leve e moderada de adultos e crianças, incluindo pacientes com comorbidades. As duas moléculas agem especificamente na proteína spike, ou espinho, do SARS-CoV-2, impedindo que o vírus infecte as células humanas. Em um estudo clínico, esses anticorpos foram capazes de reduzir tanto a hospitalização, quanto a taxa de mortalidade de pacientes quando comparado com o grupo placebo (que não recebeu o tratamento). 

    Diferentemente dos anticorpos monoclonais, as vacinas fornecem uma proteção mais longa, mas demoram mais para gerar essa proteção, já que o corpo precisa gerar a resposta imune. Neste momento, onde precisamos de respostas rápidas, o uso desse tipo de tratamento é muito importante, já que ele oferece uma proteção “instantânea” e que pode durar de semanas até meses.  

    O distanciamento social, uso correto de máscaras e tratamentos cientificamente comprovados, associados com uma campanha de vacinação efetiva são as principais chaves para o fim dessa pandemia!

    https://www.ccjm.org/content/early/2021/02/17/ccjm.88a.ccc074

    Para saber mais: 

    Pallotta, AM, Kim, CY, Gordon, SM and Kim, Alice(2021) Monoclonal antibodies for treating COVID-19, Cleveland Clinic Journal of Medicine

    Wang, C., Li, W., Drabek, D. et al. A human monoclonal antibody blocking SARS-CoV-2 infection. Nat Commun 11, 2251 (2020). h

    FDA (2021) Coronavirus (COVID-19) Update: FDA Authorizes Monoclonal Antibodies for Treatment of COVID-19

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Conheça a Dra. Katalin Karikó, a cientista que desenvolveu a técnica da vacina de RNAm para a COVID-19

    Katalin Karikó durante o doutorado em 1980 no Laboratório de RNA do Centro de Pesquisa Biológica na Academia de Ciências Húngara. Imagem retirada de https://www.telegraph.co.uk/global-health/science-and-disease/redemption-one-scientists-unwavering-belief-mrna-gave-world/

    Texto escrito em colaboração por Carolina Francelin e Gabriela Mendes, com contribuições de Juliana Lobo.

    No final do ano passado, em meio às notícias de que as primeiras vacinas para a COVID-19 haviam sido aprovadas ao redor do mundo, começamos a pesquisar sobre a Dra. Katalin Karikó, pioneira no uso da tecnologia de RNAm, que prontamente foi escolhida para ser o tema do primeiro texto da categoria “Colírios Científicos” no Ciência Pelos Olhos Delas em 2021.

    Diante da pandemia causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), a ciência provou sua magnitude no século XXI e vários laboratórios pelo planeta lançaram, em tempo recorde, diferentes tipos de vacina com eficácia comprovada. Em meio a uma verdadeira corrida contra o relógio para frear o avanço pandêmico, não há como não destacar o trabalho inovador da Dra. Katalin Karikó na criação da vacina de RNA mensageiro (RNAm), a molécula responsável por produzir as proteínas codificadas pelo DNA dentro das células.

    A tecnologia desenvolvida pela Dra. Karikó está nas vacinas aplicadas pelas empresas de biotecnologia Moderna (EUA) e BioNTech (Alemanha), sendo que essa última atua em acordo de produção e distribuição da vacina com a farmacêutica Pfizer. Por causa da extensa pesquisa feita por Katalin e por seus colegas nas últimas décadas, e também devido à tecnologia disponível atualmente, a produção da vacina de RNAm específica para o novo coronavírus foi feita num curtíssimo espaço de tempo (de dezembro de 2020 a janeiro de 2021) e doses dela já foram distribuídas e aplicadas em vários países, como Estados Unidos e Inglaterra. 

    Com esse texto sobre a Dra. Katalin Karikó, queremos ressaltar o quão importante foram a perseverança e a resiliência dessa cientista que, durante décadas, trabalhou incansavelmente em um tema de pesquisa que ela acreditava ter um grande potencial terapêutico. Além disso, compartilhamos também um pouco da sua vida pessoal e trajetória como imigrante nos Estados Unidos.

    A vida e o início da carreira da Dra. Katalin Karikó

    Katalin Karikó nasceu na Hungria em 1955, logo após a reinstalação do regime comunista no país. Assim que concluiu seu doutorado pela University of Szeged, ela se viu limitada a continuar a pesquisa em seu país por dois motivos: a Hungria passava por uma recessão financeira que restringia o incentivo à pesquisa, e seu tema de estudo, já então sobre o RNA¹, era menosprezado e até mal visto frente às novidades acerca do DNA². Dessa forma, em 1985 ela migrou com seu esposo e sua filha de dois anos para os Estados Unidos para assumir um cargo de pós-doutorado na Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia. 

    Mesmo enquanto cientista nos EUA, a insistência e o interesse de Katalin na pesquisa envolvendo terapias com base no RNAm fizeram com que ela fosse desprezada muitas vezes durante a sua carreira. Na vida científica – e principalmente no meio acadêmico – isso significa ter pedidos de financiamento para desenvolver a pesquisa negados diversas vezes, tanto por agências federais quanto privadas. 

    Essas negativas prejudicaram a produção de artigos da Dra. Karikó, e também resultaram em  descrédito pelos colegas da área. Durante o seu trajeto para alcançar uma posição como professora da Universidade da Pensilvânia, a pilha de pedidos de financiamento negados aumentava e a instituição recusou a promoção de Katalin. Mas ela foi persistente e o sonho de salvar vidas por meio da terapia com RNAm sintético a fez insistir e seguir adiante a cada crítica negativa recebida.

    Katalin trabalhando em um laboratório. Image retirada de https://nypost.com/2020/12/05/this-scientists-decades-of-mrna-research-led-to-covid-vaccines/

    Os 40 anos de pesquisa sobre RNAm 

    Em uma época em que o DNA tinha acabado de ser sequenciado, por volta de 1962, a descoberta do RNAm abriu novas oportunidades para terapias pontuais. Naquele tempo, Katalin já acreditava que para tratar algumas doenças não era necessário mudar os genes, no DNA,  e sim somente produzir, ou deixar de produzir, a proteína de interesse por um determinado momento, durante um tratamento terapêutico, por exemplo. 

    Para isso, ela desenvolveu a terapia de RNAm, que consiste em injetar uma sequência de RNAm no paciente através de uma injeção intramuscular. O RNAm consegue entrar nas células e, uma vez dentro delas, induzirá a produção da proteína de interesse. Contudo, os experimentos de Katalin não traziam resultados satisfatórios, principalmente porque após o RNAm ser injetado, as células do sistema imune do paciente reconheciam a molécula como estranha, e tentavam combatê-la e eliminá-la antes mesmo dela conseguir desempenhar sua função de produzir a proteína específica dentro de uma célula. 

    A mudança de trajetória e o sucesso da vacina de RNAm para a COVID-19

    Durante esses anos difíceis, sem resultados concretos e sem financiamento, a Dra. Karikó foi rebaixada de cargo na Universidade da Pensilvânia e somente ao se encontrar com o Dr. Drew Weissman, em 1997, que ela ganhou novos ânimos. O trabalho de 7 anos da dupla culminou na descoberta do método para prevenir a resposta do sistema imune do organismo ao RNAm sintético. Eles descobriram que ao mudar apenas uma letra do código genético do RNA, as células do sistema imune do paciente não reconheciam mais a molécula como estranha, permitindo sua ação dentro da célula. 

    Essa descoberta ocorreu em 2004 e gerou para a Universidade da Pensilvânia a venda de patentes da metodologia para criar o RNAm modificado e, com isso, a reputação da Dra. Katalin se transformou. Com a venda das patentes, um grupo de cientistas estadunidenses fundou a Moderna, em 2010, e comprou os direitos sobre as patentes de Karikó e Weissman. O rumo da carreira de Katalin mudou de direção e além do cargo de professora e pesquisadora da Universidade da Pensilvânia, em 2013 ela começou a trabalhar na empresa BioNTech, que também adquiriu as patentes da biotecnologia de RNAm sintético, e onde atualmente é vice-presidente

     A inovação da vacina de RNAm é que não há partícula viral ativando o sistema imunológico para produzir anticorpos e células de memória para combater uma possível infecção. Essa partícula de RNAm sintética é o código para a produção de proteína viral, que sozinha não é capaz de causar doença, mas que ativa células do sistema imune a ficarem de prontidão para a eventual contaminação com agente infeccioso. Ou seja, o RNAm induz nosso sistema imune a produzir anticorpos contra o patógeno em questão – nesse caso, o novo coronavírus. 

    O primeiro RNAm sintético foi criado em 1961 e o objetivo dos cientistas era utilizar as células tratadas com ele para produzirem substâncias de interesse terapêutico. Somente em 2020, quase sessenta anos depois, essa tecnologia foi efetivamente aplicada como a vacina para combater a COVID-19.

    Foto recente de Katalin trabalhando em home office durante a atual pandemia. Imagem retirada de https://www.statnews.com/2020/11/10/the-story-of-mrna-how-a-once-dismissed-idea-became-a-leading-technology-in-the-covid-vaccine-race/

    Sem dúvidas, a história da Dra. Karikó é um verdadeiro exemplo de resiliência de uma cientista que, em meio a tantas dificuldades, persistiu com a pesquisa do RNA mensageiro, cuja importância ela sempre acreditou. Em entrevista recente para o The New York Post, ela afirmou que “ninguém deveria ter medo de tomar a vacina”, frase que pode soar simples, mas que é extremamente simbólica ao considerarmos não só o trajeto de Katalin, como também a necessidade de ressaltar o valor da ciência e de combater desinformações a respeito da vacinação. Tanto ela quanto o Dr. Weissman foram as primeiras pessoas a receber a vacina produzida pela BioNTech. 

    Começamos 2021 com mais esperança de que a pandemia chegará ao fim com a imunização das pessoas ao redor do mundo, conquista possibilitada pela pesquisa fundamental da Dra. Katalin Karikó. Depois de uma trajetória com altos e baixos, hoje vários cientistas, incluindo os fundadores da Moderna, opinam que a Katalin deve receber o Prêmio Nobel de Química por sua contribuição à ciência. 

    Notas:

    ¹ RNA: Molécula complementar ao DNA que, ao ser decodificada, produz as proteínas necessárias para o funcionamento do nosso organismo.

    ² DNA: Conhecido também como código genético, a molécula de ácido desoxirribonucléico fica dentro do núcleo da célula e é responsável por codificar todas as informações sobre as células do nosso corpo. 

    Referências:

    https://nypost.com/2020/12/05/this-scientists-decades-of-mrna-research-led-to-covid-vaccines/

    https://www.telegraph.co.uk/global-health/science-and-disease/redemption-one-scientists-unwavering-belief-mrna-gave-world/

    https://edition.cnn.com/2020/12/16/us/katalin-kariko-covid-19-vaccine-scientist-trnd/index.html

    https://www.theguardian.com/science/2020/nov/21/covid-vaccine-technology-pioneer-i-never-doubted-it-would-work

    https://www.timesofisrael.com/the-hungarian-immigrant-behind-messenger-rna-key-to-covid-19-vaccines/

    Este texto foi escrito originalmente no blog Ciência Pelos Olhos Delas

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • O Paradoxo COVID: aumento de cirurgias ortopédicas na quarentena.

    Texto escrito por Alessandro Zorzi

    Estudo realizado no Hospital de Clínicas da UNICAMP para avaliar o impacto da quarentena sobre a formação do médico residente em Ortopedia e Traumatologia, detectou aumento do número de cirurgias ortopédicas de urgência entre Março e Julho de 2020 (período mais rígido da quarentena), em comparação com o mesmo período de 2019.

    Em Janeiro de 2020 o mundo tomou ciência de uma epidemia na China por uma nova cepa do coronavírus, chamada COVID-19. No mês seguinte, o vírus se espalhou rapidamente pela Europa e assistimos aterrorizados o impacto devastador da doença na Itália. No Brasil, o temor do colapso do sistema de saúde diante de um pico previsto para Março, levou as autoridades a decretarem quarentena. Com a demora da chegada do pico, a quarentena foi se estendendo até meados de Julho, quando finalmente as autoridades divulgaram um plano gradual de reabertura.

    Neste período de quarentena mais rígida, houve uma diminuição da circulação de veículos no transito das grandes cidades. Sabemos que o número de acidentes de transito tem relação com a quantidade de veículos na rua. Logo, era lógico imaginar uma diminuição no número de cirurgias para tratamento de lesões causadas por acidentes motociclísticos e automobilísticos. Certo? Errado.

    Muitos hospitais interromperam o atendimento da maioria das doenças para reservar leitos e se preparar para o pico. Hospitais de campanha e tendas foram montados em várias cidades. Internações eletivas foram proibidas e ambulatórios fechados. Diante deste cenário, somente os casos urgentes, aqueles traumas graves, trazidos de helicóptero ou por ambulâncias do SAMU, poderiam ser recebidos pela equipe da Ortopedia no HC da UNICAMP.

    Imediatamente surgiram ações para adaptar o ensino teórico dos médicos residentes. Aulas presenciais foram substituídas por aulas online a distância. Mas como ensinar uma cirurgia? Chegou-se a cogitar a proposta de considerar 2020 um ano perdido e fazer os residentes repetirem um ano em sua formação. Mas o que observamos na prática foi exatamente o contrário.

    Um estudo conduzido pelo residente Renato Schneider Laurito, com auxílio e orientação de médicos e professores do Departamento de Ortopedia, Reumatologia e Traumatologia da UNICAMP, constatou um aumento da atividade dos residentes da Ortopedia no centro cirúrgico. Os resultados deste estudo foram apresentados no Congresso Brasileiro de Ortopedia e Traumatologia em Novembro de 2020 (CBOT 2020) e estão sendo preparados para publicação.

    De acordo com o estudo, não houve prejuízo grave na formação dos médicos residentes neste período, porque apesar da proibição das internações eletivas e da realização de cirurgias não emergenciais, ocorreu um aumento do número de fraturas expostas e outros traumatismos com necessidade de tratamento cirúrgico urgente. Além disso, os médicos residentes foram afastados de outras atividades hospitalares, tais como o atendimento ambulatorial, passando a frequentar um maior número de horas no centro cirúrgico, em virtude do aumento da demanda.

    A figura abaixo mostra a comparação do número de cirurgias de urgência nos dois períodos. Urgência significa todo tratamento que precisa ser instituído o mais rápido possível, não excedendo oito horas de espera, para evitar prejuízos graves e sequelas ao paciente. As cirurgias que podem esperar mais de oito horas ou que podem ser realizadas no dia seguinte são classificadas como eletivas.

    Foram registradas 169 cirurgias ortopédicas urgentes entre Março e Julho de 2019, enquanto no mesmo período de 2020, em plena quarentena, esse número saltou para 188. Um aumento de 11,2%.

    Enquanto isso, o número de cirurgias eletivas, aquelas realizadas em pacientes com problemas ortopédicas crônicos ou que permitem espera, despencou de 300 de Março a Julho de 2019 para apenas 196 no mesmo período de 2020.

    Parece razoável pensar que o número de acidentes deveria diminuir durante a quarentena, com a menor circulação de pessoas no transito. Entretanto, uma possível explicação para este resultado foi o aumento exponencial da demanda por entregas e serviços de “delivery”. A maioria realizada por motocicletas. Além do aumento da demanda, houve um grande aumento do número de pessoas que buscaram no ramo de entregas uma forma de sobrevivência diante de demissões e fechamentos de empresas. Muitos com pouca ou nenhuma experiencia na condução de motocicletas.

    Estes dados ajudam a entender a dinâmica da sociedade e o impacto na demanda por serviços hospitalares diante de situações que exijam quarentenas no futuro, para que haja um melhor planejamento na distribuição dos recursos. É necessário fazer estudos mais extensos, com dados de outros hospitais, para confirmar estes achados.

    O Autor

    Alessandro Zorzi

    Médico ortopedista e pesquisador na UNICAMP e no Hospital Albert Einstein, com mestrado e doutorado em ciências da cirurgia pela UNICAMP e especialização em pesquisa clínica pela Harvard Medical School.

    Este texto foi escrito originalmente no blog Fêmur Distal

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Anticorpos Monoclonais! Quê?

    Anticorpos monoclonais? Clones de anticorpos? Que isso, voltamos para 2001 junto com o Dr. Albieri? (vocês eram nascidos já para esta referência?)

    Vamos com calma! Não é bem assim.

    Já falamos bastante de resposta imune humoral, anticorpos e até o uso de plasma convalescente aqui no Blogs, e hoje vamos explicar mais uma ferramenta que temos para combater cânceres, doenças autoimunes e doenças infecciosas, entre elas a própria Covid-19.

    Respira fundo e vêm comigo entender o que são esse tipo de anticorpos.

    História

    A descoberta dos anticorpos data do final do século XIX, por volta de 1890. Nesses anos, dois cientistas – Kitasato e von Behring – observaram que animais que tinham contraído difteria ou tétano possuíam no soro do seu sangue uma “anti-toxina” capaz de neutralizar a toxina causadora de ambas as doenças. Em 1891, um ano depois, outro cientista – Paul Ehrlich – propôs o nome de Anticorpo (Antikörper em alemão) para essa “antitoxina” (1, 2). Nos anos que se seguiram foram feitos grandes avanços no desenvolvimento do conhecimento sobre o que são os anticorpos, suas estruturas e funções (algo que você pode conferir em outros textos já publicados aqui no blog). 

    Anticorpos Policlonais vs Monoclonais.

    Com todo o conhecimento acumulado atualmente sobre anticorpos, hoje sabemos que o que torna a resposta imune humoral tão potente é (dentre outros fatores) a capacidade de produzir milhares de cópias de anticorpos diferentes contra uma única molécula (ou antígeno, como se diz no meio científico), que são os chamados de Anticorpos Policlonais. Achou confuso?

    Vamos exemplificar: quando um linfócito B reconhece um antígeno estranho, ele começa a produzir milhares e milhares de cópias de um único anticorpo. Essa célula B específica produz esse anticorpo específico. Ao mesmo tempo, essa mesma célula B começa a se multiplicar, gerando várias células filhas dela mesma (ou clones). Cada um desses clones vai produzir anticorpos ligeiramente diferentes daquele produzido pela célula mãe. Vamos considerar que a partir dessa célula B mãe foram produzidos três clones (ou células filhas). Cada uma delas reconhece três porções diferentes daquele mesmo antígeno estranho que a célula B mãe reconheceu, produzindo milhares de cópias de três outros anticorpos. Novamente, não podemos esquecer que cada um desses linfócitos B filhos produzem um anticorpo específico, que é único de cada célula, mas que pode ser produzido aos milhares. 

    Agora, o exemplo que nós demos foi de uma célula mãe reconhecendo um antígeno e gerando três células filhas, mas o que acontece na realidade são centenas de linfócitos B reconhecendo centenas de diferentes pedaços de diferentes antígenos de um mesmo patógeno (como um vírus ou bactéria), e dando origem a dezenas de células filhas, que originam outras dezenas de células filhas. No final, o que nós temos são centenas de milhares de clones (ou células filhas), cada um produzindo um anticorpo em específico, cada um ligeiramente diferente de todos os outros, e reconhecendo diferentes partes do antígeno estranho. Daí que surge o nome Policlonal, ou seja, muitos clones, muitas cópias). Nosso sistema imunológico sempre vai produzir uma resposta policlonal de anticorpos para contra atacar a uma ameaça.

    Por outro lado, também existem os chamados Anticorpos Monoclonais. Isso é, anticorpos produzidos em laboratório com o uso de engenharia genética para que várias células (ou clones de células) produzam o mesmo anticorpo e assim tenha-se acesso em larga escala a esse tipo em específico (e daí o nome monoclonal, ou único clone). Essa nova biotecnologia surgiu em 1975 quando Georges Köhler e César Milstein desenvolveram uma forma de isolar anticorpos a partir de células híbridas (chamadas de Hibridomas) originadas da fusão de uma célula de mieloma (cancerígena) com uma célula produtora de anticorpos. Essa linhagem celular híbrida era capaz de se multiplicar indefinidamente em placas de cultura ao mesmo tempo que mantinha a capacidade de produzir milhares de anticorpos idênticos (monoclonais), consequentemente, com a mesma especificidade e afinidade (3, 4, 5). 

    Imagem original Nature, traduzida pelo autor

    E quais são suas aplicações na medicina?

    Hoje, quase 50 anos após essa descoberta, o uso de anticorpos monoclonais já é amplo e muito utilizado no combate a diversos tipos de cânceres e doenças autoimunes, por se ligarem especificamente a uma única molécula de interesse terapêutico. Nas terapias contra doenças autoimunes, já se utilizam anticorpos monoclonais para impedir que células como linfócitos T e monócitos entrem em órgãos e ataquem células deste; que citocinas sejam reconhecidas por essas células imunes ou até mesmo para “desligá-las” (2). 

    Já no combate a cânceres, os anticorpos monoclonais são usados de maneiras ainda mais variadas. Alguns servem como “caminhões”, levando drogas ligadas em si que são entregues somente para as células cancerígenas ou ativando moléculas na superfície das células tumorais, que fazem com que estas células entrem em processo de morte programada. Outros anticorpos monoclonais funcionam “mostrando” aos linfócitos T Citotóxicos e macrófagos (se não lembra quem eles são, aconselho dar uma olhadinha nesse texto aqui) onde estão e quem são as células cancerígenas que devem ser mortas, visto que muitas vezes tumores conseguem se esconder do sistema imunológico, além de gerarem ambientes imunossupressores, isso é, capazes de fazer com que linfócitos T e outras células imunes não se ativem próximo dali (2, 3).

    Além disso, assim como Kitasato e von Behring começaram fazendo há mais de 100 anos atrás, atualmente cientistas também estão desenvolvendo anticorpos monoclonais capazes de combater doenças infecciosas como malária, influenza e AIDS, testando eles individualmente ou na forma de coquetéis (2, 4, 6). Oficialmente, já existem três anticorpos monoclonais aprovados pelo FDA (agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos) para uso no combate a doenças infecciosas, sendo essas o vírus sincicial respiratório, anthrax, e Clostridioides difficile (uma bactéria gastrointestinal) (7).

    Mais uma arma contra a Covid-19.

    No que diz respeito à Covid-19, muitas estratégias foram e estão sendo pensadas para o combate à pandemia, como a vacinação em massa da população, o uso de plasma convalescente em pacientes internados, e claro, o uso de anticorpos monoclonais, apesar deste último ter tido menos atenção nos noticiários dos últimos meses. O principal alvo desses anticorpos é a proteína viral (Spike), na tentativa de impedir a ligação dela com o receptor nas nossas células – a molécula ACE2 – (8, 9), uma estratégia similar a que foi usada no desenvolvimento dos anticorpos monoclonais contra os vírus SARS-CoV-1 e MERS-CoV (7, 10). Contudo, outros alvos também estão sendo estudados, como as tentativas de se controlar a tempestade de citocinas liberada no corpo, levando aos casos graves (9, 11, 12).

    Entretanto, um problema quanto ao uso de anticorpos monoclonais para o tratamento da Covid-19 é a falta de informação sobre a quantidade de anticorpos que vão chegar nos principais órgãos afetados, como os pulmões (uma medida chamada de biodisponibilidade). Além desse fator, também é necessário monitorar a diversidade viral do SARS-CoV-2 na população, visto que eventuais mutações nas proteínas alvos dos anticorpos podem diminuir drasticamente sua eficácia (7). Por causa disso, já está se considerando o uso de dois anticorpos em conjunto, mirando em diferentes porções da Spike.

    Finalizando, apesar dos anticorpos monoclonais poderem ser utilizados de forma preventiva como em casos de pré-exposição (quando a pessoa sabe que vai ser exposta ao patógeno) ou pós-exposição (quando a pessoa sabe que se expôs mas não sabe se infectou-se), é muito mais comum seu uso de forma terapêutica, isto é, após ter certeza que se contraiu a doença e estar apresentando sintomas delas. Nessa forma, apesar de termos mais essa arma para combater a Covid-19, é necessário ressaltar que somente vacinando toda a população que venceremos a pandemia de uma vez por todas.

    Referências:

    1. Llewelyn, MB, Hawkins, RE, & Russell, SJ (1992) Discovery of antibodies, British Medical Journal, 305(6864), 1269-1272.
    2. Yamada, T (2011) Therapeutic monoclonal antibodies The Keio journal of medicine, 60(2), 37-46.
    3. Bayer, V (2019, October) An overview of monoclonal antibodies In Seminars in oncology nursing (Vol 35, No 5, p150927) WB Saunders.
    4. Rajewsky, K. (2019). The advent and rise of monoclonal antibodies.
    5. Posner, J., Barrington, P., Brier, T., & Datta-Mannan, A. (2019). Monoclonal antibodies: Past, present and future. Concepts and principles of pharmacology, 81-141. 
    6. Walker, LM, Phogat, SK, Chan-Hui, PY, Wagner, D, Phung, P, Goss, JL, & Protocol G Principal Investigators (2009) Broad and potent neutralizing antibodies from an African donor reveal a new HIV-1 vaccine target Science, 326(5950), 285-289.
    7. Marovich, M, Mascola, JR, & Cohen, MS (2020) Monoclonal antibodies for prevention and treatment of COVID-19, Jama, 324(2), 131-132.
    8. Jahanshahlu, L, & Rezaei, N (2020) Monoclonal antibody as a potential anti-COVID-19 Biomedicine & Pharmacotherapy, 110337.
    9. Saghazadeh, A, & Rezaei, N (2020) Towards treatment planning of COVID-19: rationale and hypothesis for the use of multiple immunosuppressive agents: anti-antibodies, immunoglobulins, and corticosteroids International immunopharmacology, 106560.
    10. Shanmugaraj, B, Siriwattananon, K, Wangkanont, K, & Phoolcharoen, W (2020) Perspectives on monoclonal antibody therapy as potential therapeutic intervention for Coronavirus disease-19 (COVID-19). Asian Pac J Allergy Immunol, 38(1), 10-18.
    11. Luo, P, Liu, Y, Qiu, L, Liu, X, Liu, D, & Li, J (2020) Tocilizumab treatment in COVID‐19: a single center experience Journal of medical virology, 92(7), 814-818.
    12. Toniati, P, Piva, S, Cattalini, M, Garrafa, E, Regola, F, Castelli, F, & Training, HUB (2020) Tocilizumab for the treatment of severe COVID-19 pneumonia with hyperinflammatory syndrome and acute respiratory failure: a single center study of 100 patients in Brescia, Italy, Autoimmunity reviews, 102568.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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  • E as escolas, devem voltar?

    Texto escrito por Ana Arnt e Isaac Schrarstzhaupt

    Vivemos um momento em que há uma tensão no ar, com impasses difíceis de resolver. Por um lado, temos crianças e adolescentes que estão afastados da escola e de tudo o que isto implica – vivência social, aprendizados do espaço coletivo, contato com amigos, etc. Por outro lado, temos uma doença que assola o mundo – e nosso país de maneira intensa – e cujo os contatos interpessoais é a grande propulsora dos contágios e adoecimento.

    Sim, as escolas são fundamentais para a estrutura social que nós vivemos no mundo contemporâneo. Mas será que temos condições de abrirmos com segurança sanitária para todos?

    Assim, temos noção que precisaríamos urgentemente de um planejamento para retomar inúmeras atividades presenciais, tendo em vista a continuidade da pandemia, por mais tempo do que outrora imaginado.

    Recomendações para aberturas

    É imprescindível olharmos para algumas recomendações para o planejamento de abertura do espaço escolar, embasando-nos em princípios científicos e pressupostos da Organização Mundial da Saúde (OMS), além das regulamentações, leis e normativas do estado, para que a retomada seja repensada para um planejamento mais seguro a todos os trabalhadores da educação.

    Vamos olhar, por estarmos situados no estado de São Paulo, para as resoluções daqui, tendo em vista a abertura desde o dia 08 de Fevereiro. Segundo a Resolução SEDUC 11, de 26-01-2021, publicada no diário oficial (SÃO PAULO, 2021a), é considerado que, para o retorno existe

    “a necessidade de se assegurar as condições que favoreçam a realização de atividades escolares presenciais de forma segura para estudantes e profissionais da educação”.

    Dentre as condições, nós gostaríamos de destacar a distribuição de Equipamentos de Proteção Individuais (EPIs), prevista pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, que aponta o uso de máscaras de tecido como obrigatória para servidores.

    É sabido que máscaras de tecido de algodão, com duas camadas, são eficientes como barreira mecânica. Entretanto, não são um equipamento de proteção individual. Ou seja, elas funcionam como barreiras de proteção a terceiros, caso o indivíduo em questão esteja contaminado, para minimizar riscos de outros indivíduos próximos. Isto é, por ser uma barreira mecânica, ela impede a dispersão de aerossóis. Mas para o indivíduo que utiliza a máscara, tem um efeito menor de proteção. Além disso, as máscaras de tecido frequentemente tem escapes de aerossóis, por não terem um isolamento adequado.

    Tendo em vista a necessidade de proteção dos servidores, como manutenção do serviço prestado à comunidade, os EPIs adequados deveriam atentar-se não apenas à proteção de quem convive no mesmo espaço, mas dos indivíduos trabalhadores em si.

    Dessa maneira, alguns especialistas têm indicado as máscaras N95 ou PFF2, que no início da pandemia eram desencorajadas, por estarem em falta para o corpo médico que atuava na linha de frente. A indicação destas máscaras não se restringem ao ambiente de trabalho, mas a espaços como transporte público e escolar.

    Todavia, na ausência destas máscaras, a OMS têm preconizado o uso de máscaras de tecido, com 3 camadas: uma camada hidrofílica interna, duas camadas (uma intermediária e uma externa) com características hidrofóbicas.

    Assim, a OMS ainda aponta fortemente a necessidade de testes e rastreamento de contatos, não limitando-se ao aparecimento de sintomas e casos suspeitos.

    Parece exagerado falar isso? Tal como já temos debatido em outros textos, reforçamos o fato de que o Brasil é o 3º país do mundo em casos confirmados de Covid-19. Não bastando este número, somos também o 2º do mundo em quantidade de óbitos. Todavia, em números totais de testes, somos o 11º país do mundo. Mas, pior que isto, em testes por milhão de habitantes, estamos em 116º lugar no mundo (WORLDOMETERS, 2021).

    Afinal, o que estes números indicam?

    Isto indica que, à revelia da intencionalidade de rastreio e testagem das escolas, nós temos falhado (E MUITO) nas testagens de qualquer brasileiro.

    Outras informações relevantes

    Ao olharmos o documento Volta às aulas Seguras, 2021 (SÃO PAULO, 2021b), consta que o retorno deveria ser feito após a testagem negativa, em casos suspeitos. No entanto, nossa pergunta, neste caso, é: onde este teste será feito? Como serão os encaminhamentos de testes? Haverá garantia para testes a todos os estudantes e servidores da rede? Isto deveria ser respondido, tendo em vista a baixa testagem em nosso país, ainda.

    Todas estas questões somam-se ao fato de que o Estado de São Paulo tem registrado diariamente mais do que 10 mil casos, com óbitos que ultrapassam 300 por dia. Por outro lado, analisando-se a Média móvel de internações, nas últimas semanas vemos um aumento da taxa de internações, mesmo com a mobilidade urbana estável, ou diminuindo.

    Figura 1. Internações de confirmados com COVID-19 em 2021 – Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, São João da Boa Vista e Taubaté. Fonte: SEADE, São Paulo

    Figura 2. Internações de confirmados com COVID-19 em 2021 – Marília, Presidente Prudente, Piracicaba, Registro. Fonte: SEADE, São Paulo
    Figura 3. Internações de confirmados com COVID-19 em 2021 – Bauru, Campinas, Barretos e Granca. Fonte: SEADE, São Paulo

    O que as Médias Móveis de Internação representam?

    Mais do que apenas a taxa diária de ocupação dos leitos, é fundamental em uma crise sanitária como esta, observar a tendência de internações – se estamos aumentando ou diminuindo em um tempo determinado e analisar quais os motivos estão nos levando a esta tendência (de aumento ou diminuição das internações).

    Segundo os dados do SEADE, pode-se ver que à revelia de termos UTIs não ocupadas (temos ocupação de 66,7% segundo os dados de hoje, 10/02), conforme indicado pela Secretaria de Saúde do Estado, vivemos atualmente um aumento de casos de internação, considerando a manutenção do isolamento – e fechamento e controle de horários de estabelecimentos de comércio, bares e restaurantes durante o final de semana.

    E o que o aumento de casos de internação nos diz? Que estamos com aumento de pessoas contaminadas! Ainda assim, lembramos sempre que as internações se referem à infecções ocorridas há pelo menos 10 dias. Isto levando-se em conta o período de incubação da doença e mais o atraso na notificação da internação. Como podemos propor um aumento de mobilidade em uma situação de aumento de internações?

    Sobre as escolas e o isolamento

    O retorno das escolas representa exatamente o avesso da “manutenção de isolamento”. Isto é, um aumento significativo de pessoas circulando, especialmente em transporte público e escolar. Além disso, o óbvio aumento do contato direto diariamente – mesmo seguindo-se todas as recomendações apontadas em documentos oficiais e restringindo-se a 35% de crianças dentro do ambiente escolar.

    Estamos vivendo um momento de apreensão, com as novas variantes aparecendo – e se espalhando. Ao que tudo indica, com uma transmissibilidade maior do que o vírus original. Também temos vivido um relaxamento das regras de isolamento social em vários setores da sociedade.

    Percebemos, sim, as falas de: cansaço de pessoas, falta de convívio social das crianças com outras crianças, trabalho das mães que não podem fazer home office e cuidados necessários por avós que ficam das crianças.

    Entendemos que a escola também não é apenas conteúdo técnico e científico. Pois as perdas são muito maiores do que aprender regras de subtração, divisão celular, ou capitais de estados e países. A vivência escolar é incomensuravelmente maior que tudo isto. E jamais diríamos o contrário.

    E a APEOESP?

    Por fim, alertamos que a APEOESP – Sindicato dos Professores do Ensino Oficial de São Paulo – tem lançado os comunicados com escolas em que casos de contaminação estão acontecendo e, até o momento, há 100 escolas com contaminação registradas, inclusive com servidores em estado grave e registro de óbitos.

    Em suma, o retorno se apresenta com poucas condições para a manutenção segura e saudável dos nossos alunos e servidores – ainda considerando-se a quantidade de contatos que cada indivíduo tem (familiares próximos) que potencializa o risco iminente de surtos com complicações em pouquíssimo tempo.

    Entretanto…

    A centralidade de nosso ponto é que estamos falando em um aumento da média móvel de internações, estamos batendo recordes de mortes diárias, novamente. Temos uma campanha de vacinação que avança muito lentamente – e está longe de chegar ao alcance de servidores das escolas (que não foram priorizados nesta primeira fase) e familiares próximos.

    Vivemos um momento em que absolutamente todas as decisões têm sido tomadas em âmbitos individuais, pressionadas por posicionamentos do Estado que parecem não olhar para estes números de mortes, médias móveis de internações e para as condições precárias que milhões de famílias estão passando.

    A título de ilustração, abordamos um estudo (ainda em preprint) analisando cenários de retorno das atividades escolares na Europa. Neste estudo, levou-se em conta a diferença de transmissibilidade da Covid-19 em crianças e adolescentes. Assim, seria importante analisar a necessidade de abertura das escolas em cada uma das etapas de ensino. Nesta pesquisa, evitar a retomada do ensino fundamental e médio, em situações de aumento de casos – ou mesmo estabilidade – foi a recomendação.

    Além disso, em qualquer cenário analisado, os testes e rastreamentos seriam uma das ferramentas imprescindíveis para controle da Covid-19 (Domenico, 2021).

    Outra pesquisa, brasileira, também em preprint aponta que os critérios para abertura das escolas têm seguido parâmetros de:
    – Redução na propagação do vírus.
    – Sistema de Saúde com condições de abarcar casos graves;
    – Monitoramento (testes em larga escala e rastreamento de contatos)

    A partir destas questões

    O nosso ponto é: como podemos olhar para a escola como PRIORIDADE quando há denúncias de falta de condições, professores com medo e estabelecimentos comerciais não essenciais abertos? Assim, como priorizar escolas sem um plano em que servidores estejam vacinados e, com isso, protegidos entre si, e também em relação às crianças (que não poderão se vacinar ainda)?

    A pressão pelo retorno não poderia esperar por mais um mês? Em tempos em que estamos em uma corrida contra o tempo para os processos de vacinação, talvez fosse importante investir em diminuição dos casos. Isso enfatizando que, até que uma nova fase da vacinação se desenrolasse e tivéssemos, de fato, uma possibilidade de estes profissionais terem sua saúde garantida.

    Por fim, o retorno das escolas como política pública – mesmo que em âmbito de escolas privadas – deve ter recomendações específicas, com estratégias que visem proteção e segurança sanitária de servidores, crianças e familiares. Isto é, incluir EPIs adequados, testes em massa, rastreamento de contatos. Assim como, também seria fundamental repensar a retomada a partir de critérios específicos. Por exemplo, tomando estudos de lugares que fizeram a abertura das escolas e, também, análise de cenários destas aberturas.

    Nossos Materiais:

    Como Funciona a N95?

    Vamos abrir as escolas?

    Materiais de Parceiros

    Kokubun, F, Schrarstzhaupt, I, Fontes-Dutra, M, Santana, L (2020) Reabertura das escolas, Rede Análise Covid-19

    Mori, Vitor (2021) Qual máscara usar

    Material de referência

    Di Domenico, L, Pullano, G, Sabbatini, CE, Boëlle, PY, Colizza, V (2021) Modelling safe protocols for reopening schools during the COVID-19 pandemic in France

    SÃO PAULO (2021a) Resolução SEDUC 11, de 26-01-2021, Diário Oficial de São Paulo,Volume 131, Número 16, São Paulo, segunda-feira, 25 de janeiro de 2021.

    SÃO PAULO (2021b) Volta às aulas segura 2021.

    Letícia Soares, Teresa Helena Schoen (2021) Medidas de prevenção à Covid-19 no retorno às aulas:Protocolos de 13 países

    SEADE (2021) Leitos e Internações (Data até 06/01/2021).

    WHO (2020). Mask use in the context of COVID-19

    WORLDOMETER (2021) Coronavírus (6 de Fevereiro de 2021)

    Os Autores

    Isaac Schrarstzhaupt é Cientista de dados e Coordenador na Rede Análise Covid-19 (@analise_covid19) e gentilmente nos ajudou a levantar os dados, analisá-los para debatê-los com vocês.

    Ana de Medeiros Arnt é licenciada em Ciências Biológicas, pesquisadora do Grupo Pesquisa em Educação em Ciências (PEmCie) e coordena o Blogs de Ciência da Unicamp e o Especial Covid-19

    Este texto foi escrito originalmente no blog PEmCie, teve sua primeira versão publicada dia 10 de fevereiro, e revisado (especialmente o final do post) dia 12 de Fevereiro

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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  • Como funcionam as máscaras N95 / PFF2

    Figura 1 – Máscara N95. Fonte: Wikimedia Commons – banej (CC BY-SA 3.0)

        As máscaras N95 se provaram grandes aliadas no combate a pandemia de covid-19, sendo um equipamento de proteção essencial para os profissionais da saúde. Mas você sabe como elas funcionam? O mecanismo por trás dos processos de filtração é uma excelente aplicação da Física no nosso cotidiano!

        Uma primeira intuição nos diz que o tecido atua como uma espécie de “peneira”, assim as partículas não conseguiriam passar pelas frestas das fibras do tecido, porém a N95 não funciona assim! Ela é pensada para barrar tanto partículas grandes quanto pequenas.

    Figura 2 – Imagem de microscopia eletrônica de um filtro da máscara N95. Fonte: Okinawa Institute of Science and Technology

        Talvez você já tenha visto insetos ou lagartos andando sobre a água. Isto acontece devido às chamadas “Forças de Van der waals”, uma fraca força de escala molecular bastante importante na Química. Essa mesma força faz com que o material particulado que tente passar pelo filtro da máscara grude em suas fibras não permitindo sua passagem. Logo a máscara é mais parecida com uma teia de aranha do que uma peneira.

    Figura 3 – partículas de diferentes tamanhos tentando atravessar a máscara. Fonte: Minute Physics

        Para aumentar a chance de filtragem, as N95 possuem várias camadas de fibras, o que aumenta bastante a probabilidade de uma partícula encontrar uma fibra em seu caminho. Partículas grandes (cerca de 1 micrômetro) não tem sua trajetória muito afetada pelo fluxo de ar e costumam se locomover em linha reta, com altas probabilidades de grudar no filtro.

        Partículas pequenas (cerca de 0,1 micrômetro) se chocam a todo momento com as moléculas do ar, realizando um movimento aleatório conhecido como movimento browniano. Esse movimento, que pode ser imaginado como o caminhar de um bêbado, aumenta a probabilidade dessas partículas encontrarem uma fibra e serem filtradas.

        O maior problema são as partículas de tamanho intermediário (aproximadamente 0,4 micrômetros), pois essas costumam seguir o fluxo de ar e podem acabar escapando da filtragem. Lembre-se que o fluxo de ar sempre existe, pois o usuário da máscara está respirando.

        Porém, temos um truque a mais à nossa disposição! Podemos induzir uma carga eletrostática nos fios do filtro. Isto transforma-os em eletretos, que são parecidos com imãs, mas que geram campo elétrico ao invés de magnético. Esse campo elétrico atrai partículas de todos os tamanhos em direção aos fios. Mesmo as partículas neutras são atraídas pois as cargas dentro da partícula se rearranjam, criando regiões positivas e negativas na partícula.

    Figura 4 – Partícula sendo atraída pelo fio da máscara visto em corte. Fonte: Minute Physics

        Estes processos em conjunto dão uma eficiência enorme para as máscaras N95, proporcionando uma filtragem de material particulado de pelo menos 95% (segundo a norma estadunidense)! Uma incrível aplicação da Física, não acham? Mas infelizmente, devido a carga eletrostática não podemos lavar a máscara, o que a torna descartável.

    OBS: existem nomenclaturas quase equivalentes para máscaras de proteção dependendo do órgão regulador, como: KN95, PFF-2 e FFP2.

    Fontes e referências:

    [1] N95 Respirators and Surgical Masks – Centers for disease control and prevention 

    [2] N95-electrocharged filtration principle based face mask design using common materials – Okinawa Institute of Science and technology 

    [3] The astounding physics of n95 masks – Minute Physics

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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