Tag: covid-19

  • Acredite na vacina e também no aquecimento global

    Se sairmos logo desta pandemia, o clima deve ser o tema de preocupação global mais urgente

    Se havia esperança de que o ano de 2021 seria diferente, pelo menos este primeiro semestre vai lembrar muito 2020. Mas 2020 não foi só o ano da pandemia. Foi também o segundo mais quente da história. A agência europeia Copernicus (2021), a partir de dados analisados, informou que 2020 se igualou a 2016 como o ano mais quente da história, com 1.25°C acima dos níveis pré-industriais. No ano passado, houve ondas de calor devastadoras na Europa, incêndios florestais sem precedentes no Brasil e na Austrália, milhares de mortes devido ao ciclone Idai na África, e uma série de outros eventos climáticos extremos.  

    E o que o coronavírus tem a ver com o clima? Os impactos do clima aumentam a probabilidade do surgimento de pandemias por consequência de mudanças nos habitats de vetores de doenças ou aumento do contato entre espécies resultante do desmatamento.

    No caso da COVID-19, os efeitos na saúde não param na infecção em si, pois são amplificados com consequências socioeconômicas que podem impactar gerações. O Banco Mundial já previu uma retração econômica em todo o mundo de 4,3% em 2020. Entre 40 e 60 milhões de pessoas serão levadas à pobreza extrema, uma perda equivalente a três anos no esforço de redução da pobreza. No Brasil, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) projetou queda de 5% do Produto Interno Bruno (PIB).

    Da mesma forma, as mudanças climáticas geram eventos em escala que afetam da produção agrícola à migração forçada de populações. Portanto, apesar desta crise de saúde sem precedentes, as mudanças climáticas ameaçam produzir choques de maior magnitude em períodos de tempo mais longos.

    Foto de Markus Spiske no Pexels

    Sem medidas suficientes, os impactos da crise climática na saúde e na economia tendem a ser crescentes e contínuos. A OMS já alertou que a poluição do ar custou quase US$ 3 trilhões, o equivalente a mais de 3% do PIB global, apenas em 2018, sendo responsável por 7 milhões de mortes todos os anos.  

    No Brasil, o transporte de passageiros é a fonte de emissão de gases de efeito estufa (GEE) que mais cresce. Dados do Observatório do Clima (2018) mostram que entre 1990 e 2012, houve um aumento de 84 para 204 mi/ton., sendo a principal fonte de emissões municipais e o segundo em nível nacional, perdendo apenas para a agropecuária. E em São Paulo, a poluição será responsável por mais de 50 mil mortes até 2030, segundo pesquisa do Instituto Saúde e Sustentabilidade e Escola Paulista de Medicina (2014).

    E agora, humanos?

    Podemos ter um vislumbre de esperança? Sim! Embora o caminho para controlar o coronavírus seja marcado por polêmicas e escolhas difíceis, há sinais de esperança. Os países estão provando que é possível achatar a curva e aproximar-se de uma imunização global a partir de esforços coletivos.

    Uma lição aprendida foi que a coordenação entre os países na corrida por uma vacina em tempo recorde resultou em parcerias bem-sucedidas a partir da ciência e da tecnologia. No entanto, a falta deste mesmo tipo de coordenação global para políticas climáticas decepciona. Uma governança ambiental global é mais do que necessária.

    Foto de Markus Spiske no Pexels

    Mas alguns países como a Japão, Canadá e Reino Unido já têm assumido compromissos “net zero” tanto na arena empresarial quanto governamental. A China tem feito esforços massivos para descarbonizar sua economia, investindo em energias limpas e cidades inteligentes, com a meta de neutralizar a emissão de carbono até 2060. E essa pauta deve se fortalecer com o retorno dos Estados Unidos à Agenda de Paris.

    E neste ano, a Conferência do Clima da ONU (COP 26), que acontece em novembro, em Glasgow, na Escócia, será decisiva ao reavaliar os objetivos e metas de redução de emissões do Acordo de Paris, que acaba de completar cinco anos.

    Mais do que nunca, temos a responsabilidade de fazer as coisas de maneira diferente para que o velho normal do insustentável “business as usual” não volte a ser o status quo e que a saúde das pessoas e do planeta seja prioridade.

    Fontes:

    COPERNICUS. Copernicus: 2020 warmest year on record for Europe; globally, 2020 ties with 2016 for warmest year recorded. Disponível em: https://climate.copernicus.eu/copernicus-2020-warmest-year-record-europe-globally-2020-ties-2016-warmest-year-recorded. Acesso em 08/01/2021.

    OMS. 7 million premature deaths annually linked to air pollution. Disponível em: https://www.who.int/mediacentre/news/releases/2014/air-pollution/en/. Acesso em 20/01/2021.

    OBSERVATÓRIO DO CLIMA. SEEG 8 – Análise das emissões brasileiras de gases de efeito estufa e suas implicações para as metas de clima do Brasil (1970-2019). Disponível em: http://www.observatoriodoclima.eco.br/seeg-8-analise-das-emissoes-brasileiras-de-gases-de-efeito-estufa-e-suas-implicacoes-para-metas-de-clima-brasil-1970-2019/. Acesso em 20/01/2021.

    VORMITTAG, E. M. P. A. A.; COSTA, R. R.; BRAGA, A. A.; MIRANDA, M. J.; NASCIMENTO, N. C.; SALDIVA, P. H. Monitoramento da qualidade do ar no Brasil. Instituto Saúde e Sustentabilidade, 2014. Disponível em: http://www.saudeesustentabilidade.org.br/site/wp-content/uploads/2014/07/Monitoramento-da-Qualidade-do-Ar-no-Brasil-2014.pdf. Acesso em 01/02/2021.

    Jaqueline Nichi é graduada em Jornalismo e Sociologia, com mestrado em Sustentabilidade pela EACH-USP. Atualmente, é doutoranda no Programa Ambiente e Sociedade do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM-UNICAMP). Sua área de pesquisa é centrada nas dimensões sociais e políticas das mudanças climáticas nas cidades e governança local.

    Este texto foi escrito originalmente no blog Natureza de Fato

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Diversidade viral e surgimento de novas variantes do SARS-CoV-2


    O que isso tem a ver com as “escapadinhas” da quarentena

    Texto escrito por Mariene Amorim

    Vírus. Nunca houve tanto interesse sobre o significado dessa palavra antes. O conceito de vírus é simples, em comparação com a complexidade do seu significado na natureza. Os vírus são partículas muito pequenas, formadas apenas por proteínas e ácido nucleico (material genético que pode ser DNA ou RNA), e alguns possuem ainda um envelope lipoproteico recobrindo a partícula.

    Todos os organismos vivos são compostos por células, às vezes por uma única célula, como as bactérias, e às vezes por milhares de células, como nos animais e nas plantas. Os vírus, por sua vez, não possuem células e dependem totalmente de componentes das nossas células para se replicarem.

    Sendo assim, enquanto as células possuem uma maquinaria específica responsável por corrigir eventuais mutações à medida que replicam seu DNA, esse processo não acontece nos vírus. Portanto, quanto mais os vírus se replicam e se espalham pela população, mais eles vão sofrendo alterações em seu material genético as quais não são corrigidas.

    As mutações

    Essas alterações são mudanças na sequência de nucleotídeos, que são as moléculas que compõem o DNA e o RNA, e são conhecidas como mutações. No entanto, o acúmulo de mutações, com o tempo, permite o surgimento de partículas virais um pouco diferentes umas das outras, que seriam as variantes virais. E vale ressaltar que essas mutações acontecem por acaso, e não propositalmente.

    Dessa forma, esse é um processo natural na história evolutiva dos vírus, e é esperado que aconteça. Todavia, alguns vírus sofrem mutações com mais frequência do que outros, devido a uma diversidade de fatores.  

    Os vírus de RNA costumam sofrer muitas alterações em seu material genético à medida que se replicam e se espalham. O SARS-CoV-2 é um vírus que possui como material genético uma fita simples de RNA, e acumula cerca de 1 a 2 mutações a cada mês. A pandemia do novo coronavírus começou em dezembro de 2019, e diversas variantes já foram reportadas por todo o globo. Entretanto, várias destas mutações não alteram significativamente a ação do vírus.

    As mutações e as infecções

    Já sabemos também da existência de algumas mutações específicas que acabam favorecendo a infecção de alguma forma. Por exemplo, uma alteração que proporciona uma melhor ligação do vírus com o receptor celular para a entrada do vírus na célula que ele precisa infectar, que chamamos de célula hospedeira.

    Mas, o que isto quer dizer? Apenas para relembrar o que já vimos em textos anteriores. O vírus entra na célula a partir de um receptor – uma proteína que se localiza na membrana de nossas células. No caso do SARS-CoV-2, esta molécula presente nas nossas células chama-se ACE2. Já a proteína do vírus que se encaixa na ACE2 é a “famosa” Spike. A Spike funciona como uma chave, que consegue acessar a fechadura (a proteína ACE2) para entrar nas células.

    Recentemente, duas variantes do SARS-CoV-2 têm chamado muito a atenção das autoridades e da população mundial, devido ao acúmulo de várias mutações em seu RNA, que aparentemente favorece sua dispersão, ou seja, essas variantes se espalham mais rapidamente do que as outras variantes locais. São elas a B 1.1.7 reportada pela primeira vez no Reino Unido, e a 501.V2, ou B 1.351, reportada pela primeira vez na África do Sul, que já são encontradas em outros países. 

    A análise filogenética da variante B 1.1.7 mostra uma alta taxa de evolução molecular.

    O que isto quer dizer?

    Bom, “análise filogenética” é como se fosse uma análise dos “antepassados”, na biologia. Só que neste caso, analisamos a evolução dos seres e populações a partir de sua genética. Neste tipo de análise, conseguimos estabelecer o acúmulo de mutações e como elas vão dando origem a seres ligeiramente diferentes – até tornarem-se (por exemplo) outro ser completamente diferente. 

    Claro que vírus não são considerados seres vivos! Todavia, eles têm RNA ou DNA e, assim, é possível traçar também uma linha que explica e nos ajuda a analisar as mutações e as variações.

    Dito isto, vamos à variante B 1.1.7.

    Essa variante possui um acúmulo significativo de mutações (no total de 17 mutações!). Aparentemente, a grande questão desta variante é que as mutações podem estar proporcionando maior transmissibilidade. Dito de maneira mais simples: esta variante se espalha mais e de maneira mais eficiente do que a “versão anterior” do coronavírus. 

    É importante ressaltar que até o momento, esse conjunto de mutações apresentadas pela B 1.1.7 não está diretamente relacionado ao desenvolvimento de casos mais graves da doença. Todavia, é necessário que seja feita uma vigilância genômico- epidemiológica para acompanhar os casos, além de investigações laboratoriais para verificar antigenicidade e mecanismos de patogênese.

    Calma! Como assim?

    É fundamental, neste momento, acompanharmos como esta nova variante está se espalhando, fazendo sequenciamento genético destes vírus, para avaliar a situação epidemiológica da doença – que diz respeito à velocidade que se espalha, em que situações, como se diferencia da “variante de coronavírus original”. Isto é: precisamos monitorar esta variante e analisar seu impacto na população.

    As investigações laboratoriais dizem respeito ao sequenciamento, mas também a como esta variante reage no nosso organismo e como nosso organismo responde a esta nova variante (se o agravamento da doença passa a existir, se conseguimos nos defender desta variante como da anterior etc.).

    Reino Unido… África do Sul… São países distantes, de outros continentes… Isso nunca vai acontecer no Brasil, certo? Errado!

    Dois casos da variante B 1.1.7 já foram reportados no Brasil, em dezembro do ano passado, aproximadamente na mesma época em que essa linhagem foi reportada no Reino Unido. Encontrar essas variantes não é uma tarefa fácil, e demanda árduas horas de trabalho dos pesquisadores, investimento, e parcerias com unidades de saúde. Porém, apenas assim é possível identificá-las.

    Foi no intuito de investigar as variantes circulantes em Manaus, atualmente uma das cidades que mais tem sofrido com o avanço da pandemia em nosso país, que pesquisadores identificaram uma nova variante, ou linhagem, que recebeu o nome de P1, descendente da B 1.1.28.

    Foi visto que a P1, encontrada em Manaus, tem mutações em comum com a B 1.1.7 e com a B.1.351, em regiões do material genético que codifica a proteína Spike que comentamos anteriormente. Ou seja, essa variante também pode ter maior transmissibilidade. Estaria ela associada ao recente aumento de casos em Manaus e às reinfecções?

    Mas, vamos guardar essa pergunta para os próximos capítulos!

    Os vírus são partículas muito pequenas, de constituição simples, mas que podem ser complexos na sua maneira de existir no mundo, e gerar problemas globais. O número de casos de COVID-19, e a pandemia na qual nos encontramos é, de fato, algo que ficará marcado na história.

    A maneira como esse vírus se espalha tão facilmente, e o crescente número de casos, resulta no aumento da diversidade do vírus, e podemos a qualquer momento nos deparar com um vírus mais facilmente transmissível, mais perigoso, mais mortal. Portanto, sim, variantes virais importantes também podem surgir no Brasil, bem debaixo (ou dentro) do nosso nariz. Bem como, a transmissão está diretamente relacionada a maneira como nos comportamos diante dessa grande tragédia, e da nossa responsabilidade social.

    Por fim

    É sempre importante retomar a necessidade dos cuidados básicos de higiene e distanciamento social. Neste momento, claro que as novas variantes nos assustam. Mas não é “culpa” delas tudo o que estamos vivendo agora. Assim, é fundamental seguirmos cobrando políticas públicas que possibilitem que o máximo de pessoas fiquem em casa com segurança.

    As novas variantes também são decorrentes da enorme circulação dos vírus que temos. Em suma, é necessário que a gente diminua a circulação dos vírus – e todas as suas variantes – da maneira mais urgente e imediata possível.

    #maisresponsabilidadesocial #menoscoronavirus

    Mais textos sobre coronavírus neste blog:

    Como é que um vírus que ataca o sistema respiratório, causa danos no cérebro?

    Para saber mais

    1. Rambaut, Andrew et al (2020) Preliminary genomic characterisation of an emergent SARS-CoV-2 lineage in the UK defined by a novel set of spike mutations. Virological org Dezembro de 2020

    2. Faria, Nuno R (2021) Genomic characterisation of an emergent SARS-CoV-2 lineage in Manaus: preliminary findings. Virological org Janeiro de 2021.

    3. Candido, Darlan S et al (2020) Evolution and epidemic spread of SARS-CoV-2 in Brazil Science, Vol369 (6508), p. 1255-1260, 2020

    4. Voloch, CM et al (2020) Genomic characterization of a novel SARS-CoV-2 lineage from Rio de Janeiro, Brazil medRxiv.

    5. Tegally, H et al (2020) Emergence and rapid spread of a new severe acute respiratory syndrome-related coronavirus 2 (SARS-CoV-2) lineage with multiple spike mutations in South Africa, medRxiv.

    6. Duchene, Sebastian, Leo Featherstone, Melina Haritopoulou-Sinanidou, Andrew Rambaut, Philippe Lemey, and Guy Baele (2020) “Temporal Signal and the Phylodynamic Threshold of SARS-CoV-2” Virus Evolution 6 (2): veaa061.

    A autora

    Mariene Amorim Natural de Salvador, Bahia, e biomédica formada pela Universidade Tiradentes – Aracaju, Sergipe. Mestre em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, na área de Virologia. Trabalha com vírus emergentes desde 2015. Atualmente é doutoranda em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, e participa de um estudo genômico-epidemiológico e de multi ômicas do novo coronavírus (SARS-CoV-2), a fim de acompanhar a evolução molecular do vírus, entender o desenvolvimento da COVID-19 e acompanhar o avanço da pandemia na cidade de Campinas e região metropolitana. Mariene também é membro da Força-Tarefa contra a COVID-19 da Unicamp.

    Nossos sites institucionais:

    Força Tarefa da Unicamp

    Unicamp – Coronavírus

    Este texto foi escrito originalmente no blog EMRC

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Como é que um vírus que ataca o sistema respiratório, causa danos no cérebro?

    Texto escrito por Fernanda Crunfli* e Ana Arnt

    Quando a pandemia pelo novo coronavírus começou, foi um caos mundial para todos, principalmente para os profissionais da área da saúde. Assim, ninguém sabia nada sobre o novo coronavírus, e nem como realizar a melhor conduta médica para essa nova doença. Desde o início da pandemia, as evidências já demonstravam que o SARS-CoV-2 não era apenas uma gripe comum. Isto é, ela logo foi compreendida como uma nova doença com características incomuns e singulares. Um dos aspectos mais intrigantes do novo coronavírus é o número de sistemas do corpo que o vírus pode afetar.

    Hoje em dia, com toda a comunidade científica se voltando para o vírus, já temos mais informações e conseguimos traçar melhor qual é o caminho desse vírus e seus efeitos no corpo humano. 

    O início dos sintomas neurológicos na infecção pelo coronavírus

    Voltando para o início da pandemia, a comunidade médica começou a observar que um dos principais sintomas dos pacientes com a Covid-19 era a perda de olfato e paladar, funções comandadas pelo cérebro. Além disso, os problemas desses pacientes não eram apenas os problemas respiratórios. Por exemplo, aproximadamente 30% dos pacientes com Covid-19 apresentavam sintomas neurológicos, como dor de cabeça, confusão mental, fadiga, depressão e até convulsões. À medida que o número de casos aumentou, tornou-se mais evidente que a Covid-19 não apresentava apenas as manifestações comuns da doença, mas também as incomuns, como os problemas neurológicos graves.

    Diante disso, os neurologistas e neurocientistas do mundo inteiro começaram a questionar:
    – o que o coronavírus fazia no cérebro?
    – como esse vírus chegava até o cérebro? 
    – quais seriam os possíveis danos neurológicos ocasionados pelo vírus?

    Foi aí que nós, cientistas brasileiros da Unicamp, junto com cientistas da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) unimos esforços para investigar o que o vírus faz no cérebro!

    Nossa primeira pergunta foi se o coronavírus era capaz de chegar até o cérebro e se ele conseguiria infectar as células do cérebro. Dessa forma, nós observamos que: sim o vírus chega até o cérebro e ele é capaz de infectar e se replicar nos astrócitos.

    Calma que a gente explica…

    Astrócitos são as células mais abundantes do sistema nervoso central. E elas são responsáveis por apoiar os neurônios nos processos metabólicos. Pois nas autópsias de vítimas da Covid-19, percebeu-se que estas células eram muito afetadas.

    Os astrócitos são encarregados de manter o bom funcionamento dos neurônios, possuem um papel dinâmico na regulação da função neuronal. Mas, como isto ocorre? Digamos que os astrócitos percebem tudo o que está ocorrendo nas comunicações entre os neurônios e são responsáveis por manter esta comunicação eficiente e ativa, conforme a necessidade – isto se dá regulando neurotransmissores e outras substâncias que podem interferir no funcionamento dos neurônios. 

    Os astrócitos também são responsáveis pela nutrição dos neurônios, atuando como “sensores metabólicos do cérebro”, mantendo um bom funcionamento neuronal. Além disso, os astrócitos também participam da resposta neuroinflamatória. Isto é, quando ocorre uma lesão ou um dano no cérebro, os astrócitos respondem a esse estímulo. 

    A infecção dos astrócitos pelo coronavírus

    Parece bem evidente a ideia de que se os astrócitos são infectados e funcionam mal, uma verdadeira bagunça pode ocorrer no cérebro, correto? Então, basicamente é isto: os astrócitos são as células mais abundantes no cérebro. Elas são verdadeiras “faz tudo” dos neurônios. Assim, se elas forem infectadas pelo coronavírus, atrapalhando suas atividades básicas como consequência, prejudicam o funcionamento dos neurônios e de todo o equilíbrio cerebral. 

    É como uma reação em cadeia. Ou seja, o coronavírus ataca os astrócitos e, quando infectados, eles morrem ou deixam de executar seu papel de manter o bom funcionamento dos neurônios. Dessa forma, o resultado pode ser a morte do tecido cerebral, e consequentemente sintomas como perda de memória, ansiedade, depressão e dificuldade de raciocínio.

    Astrócito infectado pelo SARS-CoV-2 (o vírus são os pontos vermelhos na imagem). Foto de: Flávio Protásio Veras

    Ainda na análise das autópsias do cérebro de vítimas da Covid-19, o coronavírus foi capaz de alterar proteínas associadas às doenças neurodegenerativas, como Parkinson e Alzheimer. Em suma, agora precisamos compreender se o coronavírus desencadeia ou não doenças neurodegenerativas em quem tem algum potencial genético para isso.

    E agora?

    O próximo passo foi analisar os sintomas e efeitos neurológicos de 81 pacientes com sintomas leves da Covid-19. Para isso, um estudo avaliou o cérebro desses pacientes através de uma ferramenta chamada Ressonância Magnética Funcional. Sabe aquelas imagens de cérebro que sempre aparecem quando falamos de pesquisa deste órgão? Pois é, é gerada com esta ferramenta.

    Bom, o  resultado foi: o coronavírus promoveu alterações significativas na estrutura do córtex, a região do cérebro mais rica em neurônios e responsável por funções complexas como linguagem, memória e atenção. Além disso, esses pacientes apresentaram sintomas graves de ansiedade e depressão, e até mesmo déficits cognitivos. Com o atual cenário do Brasil, com mais gente adoecendo, mais pessoas sofrerão esses problemas, e isso é alarmante. 

    Todavia, resta ainda saber a gravidade destas lesões, e entender se lesões neurológicas são passageiras ou irreversíveis. Por isso, o grupo da Dra Clarissa irá acompanhar esses pacientes pelos próximos 3 anos para saber se o vírus desencadeia doenças neurodegenerativas, e se essas lesões serão reversíveis. Esperamos que sim!

    Já está bem claro que a Covid-19 pode afetar o nosso cérebro.  No entanto, a ciência ainda busca elucidar os mecanismos pelos quais o sistema nervoso central torna-se alvo do vírus. Entretanto, fica a pergunta:

    Como é que um vírus que ataca o sistema respiratório pode causar danos no cérebro? 

    O novo coronavírus é capaz de atacar todas as células que possuem a porta de entrada dos vírus. Essas portas são diferentes receptores acoplados à membrana da célula, explicados aqui e aqui . Assim, a ciência continua investigando a possibilidade do coronavírus usar outros receptores como porta de entrada também. Da mesma forma, esses receptores estão presentes no cérebro, em menor quantidade quando comparado com o sistema respiratório, mas ainda estão lá. Então, o vírus consegue infectar as células do cérebro.

     Agora a maior dúvida é como o coronavírus chega até o cérebro?

    A primeira hipótese, é que o coronavírus consiga passar a barreira hematoencefálica. Mas, vamos por partes: esta barreira do nosso organismo protege a entrada de substâncias tóxicas, medicamentos e infecções bacterianas e virais no Sistema Nervoso Central.

    O primeiro indício que o coronavírus é capaz de atravessar a barreira foi demonstrado em animais. Isto é, as proteínas do coronavírus conseguiram passar a barreira hematoencefálica, exemplificando o que poderia acontecer no cérebro humano. Como a perda do olfato é sintoma comum, uma outra possibilidade seria a entrada do vírus no cérebro via nervo olfatório.

    A segunda hipótese, seria que os danos cerebrais observados poderiam ser sintomas secundários da doença. Ou seja, um resultado indireto da Síndrome Respiratória causada pelo vírus. Assim, os danos neurológicos podem ocorrer pelo efeito indireto da falta de oxigênio e da infecção grave (“tempestade de citocinas”) da Síndrome Respiratória. Até agora, há mais evidências de que os sintomas neurológicos possam ser primários e não secundários à Síndrome Respiratória. Entretanto, determinar a relação de causa e efeito dos danos neurológicos ainda é um desafio que precisa ser investigado. 

    Por Fim

    Todos esses estudos mostram-se essenciais para compreender o mecanismo de ação do novo coronavírus, e ajudar a encontrar alvos para o tratamento da doença. Assim, se nós sabemos quem é o nosso inimigo e qual é o seu plano de ataque, fica mais fácil combatê-lo. Isso aumenta as nossas chances de combate à doença. Uma das perguntas que precisam ser respondidas é como o vírus chega ao cérebro. A comunidade científica ainda tem um grande desafio pela frente. Porém, devemos seguir atentos na batalha contra a Covid-19, pois essa doença é como um sorteio de loteria, não sabemos quem será contemplado com quais sintomas graves ou não.

    A autora

    Fernanda Crunfli Possui graduação em Biomedicina (2011) e mestrado em Neurociências e Comportamento pelo programa de Biociências aplicada à Saúde pela Universidade Federal de Alfenas (2013). Doutora em Ciências (Fisiologia Humana) pela Universidade de São Paulo (2013-2017) com período sanduíche na Universidad Francisco de Vitoria em Madrid, Espanha (2017) no laboratório de Endocanabinoides e Neuroinflamação. Atua nos temas: modulação do sistema canabinoide, doenças neurodegenerativas e psiquiátricas, metabolismo neuronal e processos neuroinflamatórios. Atualmente, trabalha no Laboratório de Neuroproteômica (Unicamp) no estudo das bases moleculares da esquizofrenia. Com a pandemia da COVID-19 passou a estudar o efeito do SARS-CoV-2 no Sistema Nervoso Central, especialmente nos astrócitos.

    Este post foi escrito por Fernanda Crunfli, primeira autora do artigo

    Crunfli, FC et al (2020) SARS-CoV-2 infects brain astrocytes of COVID-19 patients and impairs neuronal viability

    Este artigo fez parte da pesquisa do Laboratório de Neuroproteômica da Unicamp e faz parte do trabalho desenvolvido pela Força Tarefa da Unicamp contra a Covid-19 junto com o Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID) da USP de Ribeirão Preto. Este artigo foi coordenado pela Fernanda Crunfli, Victor Corasolla Carregari, Flavio Protásio Veras, Clarissa Lin Yasuda, Marcelo A. Mori, Thiago Mattar Cunha e Daniel Martins-de-Souza.

    Nossos sites institucionais:

    Força Tarefa da Unicamp

    Unicamp – Coronavírus

    O projeto vinculado a esse artigo está registrado pelo nº Processo FAPESP: 2020/04746-0
    Fundo de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (FAEPEX) Unicamp – 2274/20

    Mais textos sobre o tema, neste blog

    Diversidade viral e surgimento de novas variantes do SARS-CoV-2

    Para Saber mais

    ANDREWS, MG et al (2021) Tropism of SARS-CoV-2 for Developing Human Cortical Astrocytes

    Bélanger, M, Allaman, I & Magistretti, PJ Brain energy metabolism: focus on astrocyte-neuron metabolic cooperation Cell Metab 14, 724–738 (2011)

    De Felice, FG, Tovar-Moll, F, Moll, J, Munoz, DP & Ferreira, ST (2020) Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2) and the Central Nervous System Trends Neurosci 43, 355–357.

    Lau, K-K et al (2004) Possible Central Nervous System Infection by SARS Coronavirus Emerging Infectious Diseases vol 10 342–344.

    MERGENTHALER, P et al (2013) Sugar for the brain: The role of glucose in physiological and pathological brain function Trends in Neurosciences, v 36, n 10, p 587–597.

    Moriguchi, T et al (2020) A first case of meningitis/encephalitis associated with SARS-Coronavirus-2 Int J Infect Dis 94, 55–58.

    Turner, DA & Adamson, DC (2011) Neuronal-astrocyte metabolic interactions: understanding the transition into abnormal astrocytoma metabolism J Neuropathol Exp Neurol 70, 167– 176.

    Varatharaj, A et al (2020) Neurological and neuropsychiatric complications of COVID-19 in 153 patients: a UK-wide surveillance study Lancet Psychiatry 7, 875–882.

    ZHANG, X et al (2021) Role of Astrocytes in Major Neuropsychiatric Disorders Neurochemical Research.

    Este texto foi escrito originalmente no blog EMRC

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Desinformação e vacinas: cuidados necessários

    Recebemos hoje uma notícia animadora: as novas datas de vacinação já saíram!

    Uhuuuu! Vamos lá! Espalha essa notícia sim! Vai pro zap sim! Encaminha prá todo mundo sim!

    Não. Calma. Pera lá…

    Nunca encaminhe nenhuma mensagem antes de conferir tudo…

    Olhando com mais calma, vimos alguns sinais de alerta e já fomos conferir!

    Primeiro sinal: o site é do governo de São Paulo! Será que é o site mesmo?

    Sim, o site é real, é sobre a vacinação em São Paulo… Todavia, o restante da mensagem, não era bem assim. Aqui mora o cerne de como a desinformação se propaga! Veja, o site existe, a vacina existe (Sim! Ela existe!), mas as datas não foram confirmadas ainda. E este é só um dos detalhes…

    Também consta nesta mensagem a data de vacinação de pessoas entre 0 e 28 anos. A vacina ainda não teve seus resultados de eficácia para menores de 18 anos. Portanto, esta faixa etária de menores de idade não será vacinada por enquanto!

    A desinformação é ardilosa sabe? Ela traz informações que muitas vezes são reais (como o site do governo), aliadas com aquelas que queremos que sejam reais (datas próximas de vacinações). E isso nos atrapalha mesmo. Por isso, nós trouxemos para vocês algumas dicas para ajudar, em cima do encaminhamento que recebemos! Vamos lá?

    Sobre fake news e desinformação, vocês podem saber mais informações aqui

    Texto produzido para o especial e também para compor todo o trabalho que seguimos fazendo na campanha #todospelasvacinas

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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  • Tudo vale a pena por vacinas e divulgação científica? Funk e K-pop

    Semana passada fizemos parte de um grande evento de divulgação científica – bem militantes de internet, sabe? Sentados na frente da tela, e ficamos lá, por horas e horas 24/7 como dizem por aí, e no dia 21/01 aconteceu: viramos militantes de twitter.

    Como se não bastasse isso, os maiores grupos de divulgação científica do país (no fim do post a lista completa dos grupos) saíram convidando artistas e personalidades públicas para militar todos juntos.

    Descansa, militante: o mundo da ciência e suas campanhas

    Dia desses, fui interrogada sobre qual o motivo que eu achava que esta campanha feita por cientistas e divulgadores de ciência faria diferença e outras que tantas vezes fazemos – como marchas para ciência ou ações na internet – não fizeram.

    Claro que não tínhamos certeza, no momento em que a pergunta foi feita, que a campanha seria um sucesso (e ela foi). No entanto, já existiam alguns indícios de que teríamos algum destaque nas redes sociais. Assim, a confirmação de algumas personalidades influentes era um destes indícios.

    No entanto, a ideia não era apenas ter “personalidades” sorrindo e acenando para a campanha. Isto é, era – e segue sendo – defender conjuntamente ao nome “Todos pelas vacinas” que a vacina seja para todos.

    O diálogo com pessoas: nossa, isso existe!

    Um dos pontos que para mim foi interessante na campanha foi conversar com diversas personalidades famosas ou que tem lá seu público seguidor. Dessa forma, ao falar com estas pessoas, além de explicações sobre a campanha em si, eu conversava também sobre dúvidas das vacinas, a ciência e tudo mais. Às vezes a conversa engrenava para outras coisas, desde sugestão de pautas, até piadas e memes (Brasil né, mores).

    Quando eu soube que os K-pops iriam entrar no dia levantando a tag, e quando eu vi que Kondzilla divulgou nosso conteúdo eu percebi que a campanha estava acontecendo mesmo.

    E com o passar dos dias, eu soube responder meu colega melhor: essa campanha vai funcionar pois estamos conversando (ou tentando conversar) com pessoas.

    Como assim?

    Ora, existe muita dificuldade em fazer divulgação científica no nosso país ainda. Além disso, há falta de definições objetivas acerca do que é divulgação científica e diferenças de jornalismo científico ou de comunicação científica, uso de diferentes mídias e mídias sociais, dentre outros problemas que não cabem em um post…

    Todavia, há mais problemas em conseguirmos dialogar com quem é nosso “público não especialista” ou “público alvo”. O também conhecido e famoso termo “furar bolhas” ou “parar de falar para convertidos” (sinceramente, odeio este último). Mas sim, é difícil furarmos bolhas e conversarmos com quem está fora do círculo.

    Vamos lá…

    Uma das dificuldades é abordarmos a ciência de forma sisuda, fechada, ensimesmada, falando de seu rigor e robustez para si mesma, tão centrada em suas terminologias que não podem ter metáforas que ninguém além de nós mesmos, consegue entender.

    Outra dificuldade é acharmos que o que nós falamos é essencial para as outras pessoas e que elas deviam nos escutar. Afinal, estamos falando de verdades científicas relevantes de um modo supostamente acessível. Assim, nós estamos avisando… Mas não nos escutam.

    não que seja um problema comunicadores que não conseguem ser escutados, longe de mim dizer isto

    Tá, Ana… Desembucha

    Bom… talvez a gente não seja escutado por não estarmos escutando muito também. E quando eu digo escutar quero dizer parar um tempo e prestar a atenção no que outra pessoa, “gente como a gente”, está falando.

    Assim, ao invés de ridicularizar diminuir situações em que se articulam setores diferentes da nossa sociedade, talvez seja hora de cientistas e divulgadores aprenderem um pouco mais sobre como a sociedade funciona.

    O funk e o kpop não vão salvar a divulgação científica. Mas talvez nos salve de nós mesmos. Esta semana vimos um funk falando de vacinas e kpops e Army tuitando (insanamente) nossa campanha. Foram horas nos trending toppics. Teve Zé gotinha dançando até o chão, teve samba, teve chorinho, teve poesia declamada.

    Nada disso foi, em si, divulgação científica.

    Mas foi pela divulgação científica, por uma campanha promovida pela divulgação científica, tentando evidenciar conteúdos científicos dos grupos de divulgadores científicos. E foi por uma causa específica – as vacinas – para todos

    Não foi “nós (divulgadores e cientistas) por nós (divulgadores e cientistas)”. Propusemos uma campanha, para debater uma demanda social efetivamente para todos

    Para todos é K-pop. Mas, também é funk, rap, samba, frevo, milonga, moda de viola, sertanejo, axé, rock, ópera, clássico, ___ (insira aqui o ritmo que tu adoras e eu esqueci de mencionar).

    Para todos é aprendermos a olhar para a sociedade e percebermos sua não-homogeneidade. Quando falamos todos é por estarmos dispostos a ver, respeitar, pensar, ouvir a diversidade e entender (e principalmente aprender) por qual motivo as campanhas científicas nunca funcionam. Bem como, perceber que, em geral, quando falamos em todos, normalmente falamos em “grupos seletos que há décadas têm oportunidades similares às nossas”.

    O que eu aprendi como divulgadora científica?

    Nas redes, aprendi que K-pops sequestram pautas, têm posicionamento político, se baseiam em metas, se organizam e podem potencializar uma visibilidade na rede social, como podem pulverizar um movimento (e muito rapidamente).

    Com isso aprendi mais sobre algoritmos funcionando numa massa, do que em anos falando com pessoas que estudam academicamente isso e eventualmente me explicavam. Isto, óbvio, não é desmerecer colegas que arduamente tentaram me explicar. Só me fez pensar que as vezes a gente precisa quebrar a cabeça mesmo e aprender ficando embasbacado com o número girando ali na nossa frente.

    Na música, poesia e desenho, aprendi que o conceito científico não dá conta de nos emocionar e mobilizar. Mas a arte pega um detalhe da ciência e a transforma em combustível. Que faz chorar, sorrir e nos abraça e conforta de modos que métrica e estatística alguma vai dar conta de descrever, mensurar e especificar.

    Quer ver um pouco de nossa arte?
    VacinArtes

    Mas tudo aquilo se constituiu como divulgação científica?

    A divulgação científica pode ser entendida como um ato de comunicadores (cientistas e jornalistas, por exemplo) que apresentam a ciência de modo acessível a um público externo à academia ou àquela área específica que está sendo abordada (para saber mais sobre Divulgação aqui no blogs, recomendo o MindFlow).

    Tudo o que aconteceu no dia 21 de Janeiro foi dar visibilidade a uma causa, que tem como pano de fundo a ciência aplicada a uma causa social urgentíssima. #Todospelasvacinas se constituiu como uma campanha em prol da vacinação. Para que as pessoas compreendam o que é uma vacina e quais razões para confiar nas vacinas. Mas também para exigir e criar o debate de que as vacinas são um direito de todos e um dever do poder público – em todas as instâncias e níveis.

    Se o ato em si não foi divulgação (sei lá o preciosismo da questão aqui), ele foi um ato que levou às pessoas a procurar informações de divulgação científica. Sim, levou milhares de pessoas a procurar conteúdos sobre vacinas nos grupos que trabalharam no evento de lançamento.

    Sobre termos funk e kpop na campanha

    É um modo não apenas de dar visibilidade, mas também de aprender, mostrar e pensar que o que chamamos de cultura científica precisa lidar com o fato de ser cultura. E que kpop é cultura e funk é cultura.

    Talvez aqui precisemos olhar novamente para autores das áreas das humanidades e entender, novamente, o que é cultura, antes de falar que a cultura científica bibibi-bobobo não deveriam precisar disto ou daquilo se distancia de tudo isso e precisa se distanciar.

    Mas isto é tema de outro longo post.

    Este é o primeiro “Tudo vale a pena por vacinas e divulgação científica?”. Eu vou retomar o conceito de cultura, cultura científica e falar mais sobre o que aconteceu dia 21 de Janeiro e por qual motivo foi uma data histórica na divulgação científica brasileira. Também vamos falar sobre a importância de uma campanha como essa e sua continuidade, próximos passos e sobre os grupos que se envolveram de cabeça nesta empreitada. Por fim, um pouco dos bastidores da equipe e sua semana sem dormir, mas dormindo, para compor este coletivo que foi incrível.

    Todos pelas Vacinas
    Grupos que participaram:
    Observatório Covid-19
    Blogs de Ciência da Unicamp
    Rede Análise Covid-19
    UPVacina
    Equipe Halo
    Projeto Divulga
    Eu e as Plantas

    Para saber mais:

    Andrade, Karolin (2021) Organizações científicas lançam campanha “Todos pelas Vacinas”, para conscientizar sobre a importância das vacinas, Kondzilla.

    Gouvêa, Guacira (2015) A divulgação da ciência, da técnica e cidadania e a sala de aula. In: Giordan, M, Cunha, MB (org) Divulgação científica na sala de aula: perspectivas e possibilidades. 

    Kondzilla (2020) O que é Coronavírus, Covid-19?

    Kondzilla e Equipe Halo (2020) Qual é a das vacinas do Corona?

    Kusuma, A, Purbantina, AP, Nahdiyah, V, Khasanah, UU (2020) A Virtual Ethnogpraphy study: Fandom and Social Impact in Digital Era, ETNOSIA: Jurnal Etnografi Indonesia, 5(2):238–251.

    MC Fiote (2021) MC Fioti – Vai Com o Bum Bum Tam Tam (KondZilla)

    PORTO, CM, org (2009) Difusão e cultura científica: alguns recortes. Salvador: EDUFBA, A internet e a cultura científica no Brasil: difusão da ciência, p.149-165.

    Este texto foi escrito originalmente no blog PEmCie

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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  • Vacinas: uma ação de Saúde Pública

    Vacinas são ferramentas importantes no combate à doenças e devem ser pensadas para o bem público. Elas já enfrentam o desafio da desinformação, às fake news, e capitalizar esse momento de vacinação contra a COVID-19 é colocar mais um obstáculo para sua implementação. 

    Temos acompanhado passo a passo o desenvolvimento das vacinas, seus testes, avaliações e aprovações, aprovadas. Todos temos visto, exultantes, as últimas notícias sobre as vacinas no país.

    Há, óbvio, expectativa e urgência em tudo isso. Pois, as vacinas são um dos instrumentos de saúde mais fantásticos já elaborados pela ciência. E, também, um grande passo da ciência que vem se aprimorando cada vez mais ao longo do século XX e agora no século XXI.

    Dessa forma, já houve, sim, muito questionamento acerca de sua segurança. O movimento anti-vacinas que vemos hoje não é o mesmo de décadas anteriores. Mas retoma receios da população, misturados com mentiras e falácias acerca de um (mentiroso) risco às pessoas.

    Neste post, nós vamos propor pensarmos sobre a Vacina Como Produto e a necessidade de olharmos para as Vacinas como uma conquista de cientistas e da humanidade – e não de indivíduos isolados. Vamos entender melhor sobre isso?

    As Vacinas são uma conquista de saúde pública: e é só isso?

    As vacinas são, sim, uma estratégia fundamental para combater doenças sem tratamento. É a partir das vacinas que conseguimos erradicar poliomielite, coqueluche, sarampo no Brasil. E será pelas vacinas que conseguiremos diminuir, e muito, as mortes e as contaminações por Sars-CoV-2 em nosso país e em todo mundo.

    Conquistarmos vacinas seguras e eficazes em tão pouco tempo foi um feito enorme de nossa sociedade. Não é um risco, as vacinas não foram feitas “rápido demais”. Isto foi um investimento estrondoso, nunca visto antes no mundo. Parece clichê, mas realmente foi um grande esforço científico para um bem comum e é espantoso tudo o que conquistamos, como espécie, em 10 meses de pandemia. Mas atrás desse processo, há décadas dedicadas ao estudo de vacinas. 

    Temos neste momento no Brasil, a autorização para uso emergencial de duas vacinas.

    A primeira a vacinar pessoas, logo após a aprovação da Anvisa ontem, foi a CoronaVac, da empresa Sinovac, que em parceria com o Instituto Butantã será produzida e distribuída em São Paulo para todo o Brasil. Teremos em breve, ao que tudo indica, a vacina Astrazeneca, de Oxford, em parceria com a Fiocruz, também será produzida e distribuída para todo o Brasil (a partir de fases de aplicação da vacina, estabelecidos pelo PNI).

    Ambas vacinas são seguras, eficazes e serão fundamentais para diminuirmos a incidência da doença, diminuirmos internações em UTIs, ou mesmo ambulatoriais. Repetimos, neste sentido, tudo isto é fantástico e estamos ansiosos por nossa vez para nos vacinarmos também!

    O que trazemos como questão aqui – e temos abordado ao longo dos últimos meses sobre vacinas e outros temas – é a necessidade de isto ser tratado como pauta da saúde pública. Isto é: as vacinas estão acima dos interesses político-partidários, ou de políticos específicos. E devem assim ser compreendidas! Não existe torcida para uma ou outra funcionar melhor.

    A ciência não funciona a partir de torcidas, mas a partir de observação dos fenômenos, elaboração de perguntas, elaboração de hipóteses, organização e estrutura de metodologias de coleta e tratamento de dados, análise de dados coletados, apresentação e discussão de resultados.

    A avaliação de todos estes processos acontece por pares (colegas da mesma área). A torcida não faz parte de nenhuma etapa disto que conhecemos por método científico. Isto não quer dizer que não tenhamos expectativa pela vacina e não queiramos resultados positivos de segurança e eficácia. Isto quer dizer, apenas, que nossa expectativa e esperança não coleta dados, não pode interferir no processo e, definitivamente, não adulterar resultados.

    Isto vale para cientistas, isto vale para políticos. Além disso, é fundamental a transparência no processo de desenvolvimento científico (a pesquisa sobre a vacina desde o início). Todavia, também devemos cobrar por transparência e objetividade na comunicação acerca deste desenvolvimento. Especialmente pelo momento delicado em que vivemos.

    Assim, usar a vacina como moeda de troca entre setores do governo, fazendo de cada etapa um grande espetáculo que retira das pessoas diretamente envolvidas – cientistas, profissionais de saúde e instituições públicas – o protagonismo pode ser um problema. Ademais, há também um possível descrédito gerado exatamente pela quantidade de informações, demasiadamente técnicas e – para quem não conhece todo o procedimento – contraditória.

    As vacinas obedecem protocolos científicos elaborados em conjunto por vários cientistas: não é um produto de apenas uma mente ou de uma pessoa. Elas funcionam como uma ferramenta de saúde pública por serem efetivas não quando uma ou outra pessoa se vacina, mas quando a maioria de uma população se vacina. Isto é o que chamamos de cobertura vacinal.

    A Desinformação e  as Vacinas

    As vacinas e as campanhas de vacinação não se fundamentam, apenas, no conhecimento técnico científico. Tampouco conseguimos convencer pessoas que estão amedrontadas sobre a segurança de seus filhos, pais idosos ou parentes em grupos de risco apenas afirmando que “é científico, nada de mal vai acontecer”.

    Estes movimentos de desinformação e fake news que implantam o medo são complexos e não se desenrolam apenas apresentando a informação verdadeira, cientificamente embasada.

    É fundamental fazermos isto que chamamos de “trabalho de formiguinha”. Isto é, conversar e propor diálogo, responder perguntas, apontar caminhos, artigos, argumentos e não perder a paciência. Há que se ter em mente que muitos conhecimentos técnicos são desconhecidos por grande parte da população. Não por que possuem uma linguagem difícil ou impossível de compreender-se, mas por ainda não fazerem parte cultura geral da nossa sociedade Eles acabam sendo pouco acessíveis na linguagem. Ou, ainda, pouco divulgado a um público diferente do público habituado ao discurso científico e acadêmico.

    Ainda sobre Desinformação

    A desinformação, em tempos de internet, segue lógicas de grande financiamento, criação de perfis falsos (os chamados bots) que servem para espalhar rapidamente um termo, tag ou tipos de publicações específicas, criando artificialmente “trending toppics”. Também conhecidos como Assuntos do Momento no Twitter.

    Este modelo de espalhar desinformação, de forma organizada e financiada, vem sendo combatida a partir da denúncia em massa de determinados perfis e da tentativa de rastrear de onde vem a informação primária – para eventualmente derrubar estes perfis e/ou publicações.

    Explicando assim, parece até simples de executar a tarefa.

    No entanto, há dificuldades em apagar publicações falaciosas, mentirosas ou com informações duvidosas e sem embasamento. Além disso, muitas vezes, derrubar estes perfis é um processo demorado, o que pode causar bastante estrago enquanto o tempo passa.

    O procedimento de inserir um comunicado de que a informação é contrária às indicações médicas e da OMS é um importante passo no combate à desinformação e algumas redes sociais têm começado a aderir a isto de forma mais comprometida.

    Há outros movimentos que buscam rastrear empresas que financiam propagandas em sites – e eventualmente sites que propagam desinformação. Assim, com estas denúncias, há empresas que têm retirado o financiamento em sites que espalham essas notícias falsas. O grupo mais famoso no Brasil é o Sleeping Giant, muito atuante no Twitter.

    O que queremos dizer com isto afinal?

    Que é urgente priorizar o que, neste momento, realmente importa: a população. As rusgas via mídias sociais e coletivas de imprensa acusando um ou outro setor, desmentindo, alardeando e promovendo discussões, mais do que informar e propor políticas rápidas e eficientes, que salvarão vidas, têm gerado palco de protagonismo que atrasam a política, geram insegurança na população e, de fato, pouco informam.

    Isto, de modo algum é despolitizar as vacinas. Fazer política pública é atuar pelo público. É preciso que as decisões sejam tomadas para o bem da população e não para promoção de pessoas e nomes que queiram, como costumamos dizer, capitalizar com este momento.

    Por fim

    Tendo em vista este trabalho de formiguinha, o Blogs de Ciência da Unicamp e outros GIGANTES que também são formiguinhas maravilhosas lançaram hoje o site Todos Pelas Vacinas. Uma ação que mostra que formiguinhas juntas, podem ter ações de impacto! Lá vocês encontram textos, vídeos, podcasts, artes, informações e uma parte de tudo o que temos batalhado, juntos, para um mundo cientificamente informado e empaticamente responsável!

    Blogs de Ciências da Unicamp, Observatório Covid-19, Rede Análise Covid-19, Equipe Halo (ONU), ABRASCO, Sociedade Brasileira de Imunologia, União Pró-Vacina, Instituto Questão de Ciência: Todos Pelas Vacinas

    Campanha Todos Pelas Vacinas (arte oficial da campanha)

    A ciência e a divulgação científica seguem batalhando para que as informações científicas e as produções da ciência (neste caso específico, as vacinas) sejam acessíveis à população, como direito humano básico. Compartilhe esta ideia! 😉

    Para saber mais

    Bisol J (2020) Politização da vacina é irresponsabilidade sanitária. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário 9(4): 192-197.

    Garcia, LP, Duarte, E (2020) Infodemia: excesso de quantidade em detrimento da qualidade das informações sobre a COVID-19, Epidemiologia e Serviços de Saúde Pública 29 (4), 

    Oliveira, T (2020) Como enfrentar a desinformação científica? Desafios sociais, políticos e jurídicos intensificados no contexto da pandemia, Liinc em Revista

    PROGRAMA RADIS DE COMUNICAÇÃO E SAÚDE (2020) Vacinas na corrida: da politização aos esforços da ciência, RADIS: Comunicação e Saúde, n218, p6-7, nov.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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  • Fazer Divulgação Científica sobre pandemia em uma sociedade do espetáculo

    Em dias como os que temos vivido temos sempre uma enxurrada de informações, decorrentes da imensa expectativa que temos sobre os números de eficácia, segurança, incidência e vários e outros termos que nos chegam sem que consigamos parar para pensar e elaborar os dados com cautela.

    Claro que vocês todos – nós todos… – temos cobrado publicação de dados. Também é verdade que, diferente de qualquer outro momento experienciado por quem está vivo hoje, nunca tivemos tanto interesse em uma vacina. Simultaneamente a isso, nunca uma pandemia em um mundo em que as informações nos chegam em tamanha velocidade e quantidade.

    Toda essa expectativa, frente a este cenário, é perfeitamente compreensível. Há uma ansiedade imensa em termos os dados em mãos para dizermos:

    – temos a solução!
    – assim vai funcionar!
    – eis aqui a resposta final!

    Todavia, a ciência não funciona com respostas finais. Nem com resultados estanques. Para fazer ciência, para termos respostas, para analisarmos nossos dados: precisamos de tempo.

    Penso no que diria Guy Debord, escritor da obra Sociedade do Espetáculo (1967) e Comentários do Espetáculo (1988) ao ver como não apenas a mídia tradicional torna a realidade imagética – mas a partir das redes e mídias sociais, todos nós participamos disso de diferentes modos. Como assim? Ora, como atualmente vemos o tempo inteiro imagens de nós mesmos, dentro de aplicativos em que “produzimos conteúdos” para sermos consumidos, como produtos.

    Mas o que isto tem a ver com a pandemia e as vacinas?

    O processo de midiatização de nós mesmos já era crescente nas redes sociais. Ao iniciarmos uma vivência de isolamento social, para aqueles que têm acesso a esses recursos digitais, o uso das redes tornou-se muitas vezes não somente um momento de fuga para lazer, compartilhamento de memes e notícias, mas trabalho cotidiano e, também, único meio de comunicação constante.

    Neste cenário, temos um aumento de divulgadores científicos e jornalistas cada vez mais aparecendo em todas as mídias e redes, buscando produzir conteúdos diversificados para públicos diferentes. Estas ações em tempos de pandemia funcionam como uma forma de se comunicar com um público cada vez maior, numa tentativa de “furar bolhas” como costumamos falar.

    Em alguns momentos desta pandemia, a ideia dos excessos de informação se fez mais presente. A OMS, por exemplo, tem trabalhado com o termo de “infodemia”, que seria essa “pandemia de informações”. No sentido que vem sendo debatida, a infodemia não se vincula apenas a informações falsas. Ou seja, se relaciona a qualquer tipo de informação sobre a COVID-19 e sua enorme quantidade sendo publicada cotidianamente no mundo, sem que consigamos acompanhar, filtrar, ler/ver/ouvir, aprender, pensar…

    A questão, portanto, é o excesso. Mas também à dificuldade que temos de peneirar tudo isso, com a calma e acurácia necessária.

    Sociedade da Informação

    Não é recente também o debate sobre a sociedade da informação – esta que nos impossibilitaria a vivência de experiências. Por quê? Exatamente por estarmos sempre atrasados em relação à última notícia, leitura, livro, vídeo, live, stories, do momento. Larrosa diz que na sociedade da informação estamos sempre muito bem informados – mas não no sentido de termos sabedoria, mas de termos muitas informações sobre tudo. Mais do que isso, ao termos informações, temos também que expressar muitas opiniões o tempo inteiro. 

    (Que o diga quem tem Twitter e segue os “assuntos do momento”…)

    E por ter informação e, consequentemente, opinião, que o sujeito informado não consegue que nada lhe aconteça. Nada acontece ao sujeito informado e opinativo pois não há tempo para viver. É preciso consumir a próxima notificação, com mais informação, para novamente falarmos nossa próxima opinião.

    Parece uma grande obviedade, não é mesmo?

    Juntemos as ideias da sociedade da informação e da sociedade do espetáculo. Isto é, nossa sociedade precisa não só produzir constantemente informações, mas conteúdos e imagens (que serão consumidos por pessoas).

    E é assim que temos lidado diariamente com nossa comunicação – falamos de engajamento, seguidores, alcance de cada palavra, cada tag, cada foto, imagem e vídeo que obtivemos a cada publicação. Acompanhamos métricas, nos aprisionamos nos gráficos e consumimos a nós mesmos nesse processo.

    Na pandemia, portanto, não só nossa vida tornou-se isso tudo (ou só isso?). Mas tudo acaba sendo de alguma maneira disponibilizado ao vivo. Enquanto produzimos e reproduzimos em plataformas simultaneamente, escrevendo freneticamente.

    Comentamos, escutamos livres, conversamos, baixamos os últimos artigos, tentamos entender os cálculos, os modelos, os protocolos, as métricas, as imagens…

    Terça-feira, mais uma vez, a coletiva de imprensa para divulgar os dados da Coronavac, vacina que será produzida pelo Instituto Butantã, em convênio com a Sinovac, virou um grande espetáculo de dispersão e tensão.

    Expectativa? Imagine…

    Estamos super tranquilos. Sim! Estamos ansiosos e, óbvio, queremos muito ter dados que nos indiquem que a solução está logo ali, na etapa que virá.

    De modo algum este texto nega a urgência de minimizar os impactos da pandemia na sociedade.

    Todavia, o frenesi que novamente caímos (e nos incluímos nisso), causa também desencontro de informação, confusão e ajuda (SIM) no processo de desinformação.

    O conhecimento científico tem seu tempo para ser construído. Temos falado sobre isso desde o início da pandemia. O tempo da divulgação também precisa ser retomado. 

    Estava no texto manuscrito que “é preciso que respiremos”… Tendo em vista a situação noticiada hoje, sobre Manaus, eu diria que É PRECISO QUE TODOS NÓS CONSIGAMOS NOS UNIR PARA QUE TODOS RESPIREM!

    O conhecimento não se faz com furor e pelos excessos. Tampouco se faz de maneira solitária e com um ou outro ato de grande nome que salvará – ou condenará – a todos. Não estamos em uma ficção em que um herói (branco, hétero, pai de família) explode um avião, percorre o mundo, estanca um apocalipse zumbi e consegue retornar para os braços da família que o aguarda.

    A sociedade do espetáculo – que transforma nossa vida em uma narrativa ficcional, não se trata do consumo de informações e imagens dos outros, mas de nós mesmos. Nosso tempo de vida, nossa condição de diálogo, nosso tempo com nossos pensamentos e com uma análise mais calma e menos superficial de tudo o que tem acontecido.

    A vacina

    Sim. Ela foi anunciada. A vacina que temos e teremos em breve é a que, neste momento, é possível. Se a ciência tem seu tempo, fez – até o momento – a que teve condições de produzir.

    Nossa, então ela não é boa, nem confiável? Sério?

    Vamos lá: as vacinas que estão sendo produzidas e serão aplicadas em nosso país são eficazes, são seguras e diminuirão MUITO os efeitos que temos vivido nesta pandemia.

    Isso inclui lotação em UTIs e capitais SEM OXIGÊNIO nas alas hospitalares. Isso inclui diminuir pessoas morrendo em casa por falta de espaços em hospitais. Também se relaciona a uma quantidade menor de pessoas adoecendo. Isso, por fim, significa um tempo para retomar nosso país.

    É verdade que nunca se perguntou a eficácia e à segurança de vacinas antes, do modo como temos visto agora. Também é preciso admitir que nunca tínhamos vivido uma pandemia, cujo isolamento tornou a informação em tempo real tão acessível (na quantidade, na qualidade, na linguagem), mas tão inacessível (na quantidade, na qualidade, na linguagem).

    Aligeiramentos

    Se o jornalismo precisa de novidade, é importante lembrar que não em detrimento da análise embasada e da promoção do burburinho caótico. No entanto, se a divulgação ainda tem dúvidas, antes de dar respostas aos seguidores, precisa atentar-se ao tempo da análise dos dados.

    E, acima de tudo, embora humanos e todos erremos (muitas e muitas vezes – e façamos o mea culpa, sincero e fundamental), o diálogo ainda é a nossa ferramenta mais basal para construção coletiva e colaborativa, que vale a pena investir. 

    Assim, não é atropelando processos que conseguiremos estancar notícias falsas. Não é escrevendo sem fôlego que frearemos as ansiedades exacerbadas.

    Furor

    Após todo o espetáculo e comentários do espetáculo de terça-feira, as notícias de quarta, e o caos sem fôlego desta quinta – dias, cálculos e notícias nada triviais – precisamos sim de cobranças severas e direcionadas. Bem como precisamos nos atentar à ética das palavras, da divulgação, das notícias. Além disso, seguimos buscando a empatia das ideias, das defesas científicas, em cada cobrança de políticas públicas de nossos governantes.

    A espetacularização ocupa as telas e nos impõe estados de urgência. Urgência que já está sendo vivida por todos aqueles que estão expondo-se sem auxílios financeiros, aguardando testes diagnósticos (que apodrecem em estoques empoeirados). Ou, ainda, quando vemos mães que perdem empregos por não ter onde (ou com quem) deixar seus filhos.

    A vida inteira aconteceu quando pequenos donos de seus negócios batalham diariamente por decisões que levam ao endividamento ou à demissão de funcionários. Quando não são os dois acontecimentos simultaneamente.

    Enquanto isso,

    Nas lives com palavras de exaltação, entre flashes, dúvidas e palmas, as covas cotidianas e coletivas seguem sendo abertas, as UTIs sendo lotadas, oxigênio faltando (OXIGÊNIO FALTANDO), metrôs permanecem abarrotados, entre contas bancárias tão vazias.

    Dessa forma, tentamos entender os dados, analisá-los, debater com colegas. Neste meio tempo, vemos as fake news sendo propagadas, distorcendo nossos diálogos e análises – por pessoas que ocupam postos em veículos de comunicação tidos como mídia tradicional. E isto não pode deixar de ser mencionado!

    No meio de tudo isto, seguimos produzindo o espetáculo. Entretanto, seguimos não conseguindo respeitar o que prometemos defender: o tempo da ciência, do conhecimento, da divulgação científica para apresentar e analisar DADOS. E com estes dados, cobrar posturas políticas que (aí sim) minimizem os efeitos tão vorazes, desta pandemia.

    Não por um preciosismo extremo e sisudo. Mas por defendermos que é pelo acesso ao conhecimento científico e pelo diálogo estabelecido entre pessoas, sobre o conhecimento construído, que tomaremos decisões menos submissas, com menos opressão, obscurantismo e autoritarismo.

    Um dia de cada vez – mas sem esquecer que muitos dias nos esperam.

    Por fim,

    Este texto é um desabafo, teoricamente embasado. Mas ainda assim, um desabafo. E um abraço, longo e demorado, em cada colega da Divulgação e Jornalismo Científicos que tem arduamente trabalhado para analisar dados, artigos, documentos, buscando agir da maneira mais ética, empática e socialmente responsável quanto possível.

    E segue sendo um desabafo, para que tenhamos tempo, com responsabilidade e consigamos (juntos) ajudar a todos os que vem (literalmente) perdendo o fôlego e a vida no meio deste caos cotidiano.

    Para Saber Mais

    DEBORD, G (2000) Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.

    DEBORD, G (1997) A Sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro: Contraponto.

    LARROSA, Jorge (2002) Notas sobre a experiência e o saber da experiência, Revista Brasileira de Educação.

    MORAES, ALC (2016) Cultura da imagem e sociedade do espetáculo. São Paulo: UNI, 2016

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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  • Estratégias de vacinação: o que se leva em conta?

    Nunca se debateu tanto vacinas e vacinação: o que é eficácia, segurança, testes, grupos de risco, planos nacional, estadual, etc.

    Por muito tempo no Brasil, o Programa Nacional de Imunização ocorria anualmente, com campanhas, grupos prioritários e estratégias de imunização para diminuir a incidência de doenças evitáveis sem que houvesse qualquer polêmica atrelada a isto. 

    Talvez uma das perguntas que agora fundamentais de responder: existem critérios para a escolha dos grupos prioritários para a vacinação? A ciência possui metodologias e estudos que apontem como isto deveria organizar-se?

    Estas perguntas são importantes. Por um lado, já temos indicação de quais grupos podem se vacinar – pelos testes tanto de segurança, quanto de eficácia. Por outro lado, por toda a estrutura de vacinas ser muito recente, não teremos vacinas imediatamente para todo o mundo. Sendo assim, é preciso priorizar, montando listas de acordo com algum critério.

    Considerando que estamos vivendo uma pandemia, de uma doença altamente contagiosa, os profissionais de saúde ocupam um dos postos prioritários para a vacinação. Por quê? Ora! É fundamental que estes profissionais mantenham-se saudáveis e bem, para seguir trabalhando na urgência que temos precisado.

    A discussão ronda o “segundo lugar” das prioridades – e todos os lugares que se sucedem ao segundo… Montar uma lista de prioridades, neste caso que vivemos, é basear-se em modelos epidemiológicos e matemáticos de como a doença avança e como podemos interromper este avanço, com a vacina.

    Nós sabemos que a função prioritária da vacina é fazer com que os indivíduos vacinados consigam gerar uma proteção contra as doenças. Mas também já conversamos aqui no Blogs sobre como isto não é sobre um indivíduo protegido, mas sobre bloquear o avanço da doença na população.

    Pois bem: é sobre isto que estes modelos tratam.

    Um estudo publicado em preprint em dezembro de 2020 (1), mostra que para a COVID-19, vacinas com acima de 50% de eficácia já reduziriam muito o avanço da doença. Além disso, evitaria-se 50% de mortes com pelo menos 35% da população vacinada (fenômeno conhecido como Cobertura Vacinal) – comparando-se com o cenário de não termos tratamentos para a doença. Vacinas com esta eficácia e ampla cobertura vacinal, já atingiriam a meta (nos Estados Unidos) de ocupação dos leitos de UTI dentro das demandas passíveis de serem atendidas.

    Assim, no modelo proposto pelos autores, uma cobertura vacinal de 70% da população, com uma vacina que apresentasse 60% ou mais de eficácia, conteria a pandemia de Covid-19. (Este dado leva em conta uma baixa transmissão na população!). *Atualização: este texto foi elaborado antes do debate sobre as novas variantes. Tal dado tem sido revisto em novas análises e deve ser levado em consideração para um debate mais preciso [nota da autora].

    Tudo isto parece bem interessante e já temos visto bastantes notícias sobre a importância da cobertura vacinal… Todavia, como priorizar quem será vacinado primeiro?

    Depende…

    Ué! Como assim?

    Temos dito aqui no Blogs: a vacinação é uma estratégia de governo, uma política do país, para minimizar efeitos de uma doença na população. Por ser estratégica, ela deve possuir metas específicas a serem atingidas – e estas metas são organizadas a partir de estudos técnicos pelas instâncias de gestão de saúde pública. No nosso caso: Ministério da Saúde, Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde.

    Como não teremos vacinas para toda a população desde o início, existe a necessidade de estabelecimento destas metas e objetivos. Por exemplo, neste modelo indicado anteriormente, os autores dizem que dependendo da eficácia das vacinas (e outros fatores): 

    • Se a meta consiste em diminuir infecções sintomáticas e hospitalizações fora da UTI, deveria-se priorizar os grupos jovens, pois interrompe-se a transmissão em um dos grupos que mais circula;
    • Entretanto, se a meta é diminuir infecções em UTIs, com possibilidade de agravamento e morte, idosos devem ser prioridade de vacinação;

    Sugere-se estes modelos de modo generalista e os próprios autores propõem que novos parâmetros devem adicionarem-se adicionados, dependendo da realidade do sistema de saúde pública de cada país e, além disso, as questões de desigualdade social.

    Em outra pesquisa, também em preprint(2), os cientistas reforçam a ideia dos critérios de vacinação por idade, devido à alta mortalidade vista neste grupo.

    Mas então os critérios se restringem à idade?

    Também não. Para compreender como controlar a doença, as pesquisas usam esses modelos matemáticos elaborados a partir de modelos anteriores. Por exemplo, usamos modelos de gripe, mas vamos inserindo características da Covid-19 – até que esse novo modelo seja funcional para a nova doença e a represente com mais fidedignidade. Da mesma forma,  a Covid-19 servirá de modelo para alguma outra doença respiratória viral que  iremos enfrentar no futuro.

    As modelagens para controle da doença, via vacinação, levam em conta as taxas de infecção por idade e grupo de risco. Todavia, também buscam compreender e calcular a partir do desenvolvimento da doença em cada país ou região. Além disso, é preciso considerar a eficácia das vacinas, a cobertura vacinal para cada faixa etária e grupo de risco analisado.

    Por exemplo, países com populações que vivem abaixo da linha da pobreza ou em situação de vulnerabilidade, precisam ter incluídas na conta  como a transmissão e o risco de infecção atingem estas populações. Com isto, elaboramos as estratégias de vacinação a partir de riscos específicos. O mesmo pode ser dito e pensado acerca das prioridades de trabalhos e demandas sociais – escolas, transportes, setores alimentícios, populações urbanizadas ou rurais, etc.

    Cada um destes itens pode (e na medida do possível, deve) ser adicionado aos modelos que calculam o avanço da doença – ou sua contenção – junto com instrumentos como a vacina.

    A vacinação e as políticas públicas

    É sempre bom retomar a ideia de que sendo a vacinação da Covid-19 um acontecimento recente (por motivos óbvios), é imprescindível que ela seja planejada e estruturada para atingir não apenas uma grande cobertura vacinal, mas também grupos prioritários que vão diminuir a pressão em leitos hospitalares.

    Isto é, os grupos prioritários também são pensados em função de ocupação de leitos hospitalares e, portanto, diminuição de mortes de Covid-19, de outras doenças que atualmente estão sem leitos hospitalares e custos elevadíssimos para a saúde pública.

    Vacinar se torna, assim, uma ferramenta crucial para diminuir contágios e mortes, mas também gastos com a saúde de toda a população. Vou falar novamente, pois acho fundamental lembrar e bater nesta tecla:

    Para saber mais

    1. Matrajt, L; Eaton, J; Leung, T; Brown, E. (2020) Vaccine optimization for COVID-19: who to vaccinate first? 
    2. Bubar, K; Reinholt, K; Kissler, SM; Lipsitch, M; Cobey, S; Grad, YH; Larremore, DB (2020) Model-informed COVID-19 vaccine prioritization strategies by age and serostatus

    Outras Referências

    Brasil (2020) Programa Nacional de Imunização

    Brasil (2020) PLANO NACIONAL DE OPERACIONALIZAÇÃO DA VACINAÇÃO CONTRA A COVID-19

    Kornfield, M (2020) When will children get a coronavirus vaccine? Not in time for the new school year, experts fear. The Washington Post

    Outros textos do Especial sobre vacinas:

    Vacinas: se eu quiser eu tomo!                           

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os produziram-se textos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, os textos passaram por revisão revisado por pares da mesma área técnica-científica na Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Vacinas: se eu quiser eu tomo!

    Quando lemos sobre vacinas, temos visto um acirrado debate acerca de sua obrigatoriedade e as ações do governo para garantir a vacinação a todos. Além disso, há toda uma polêmica sobre o rápido desenvolvimento das vacinas.

    Todavia, hoje gostaríamos de falar de outra questão. Pois, talvez seja pouco compreendido (ou falado?) sobre como vacinas se transformaram, no mundo, em grandes ferramentas e estratégias por aliarem um conjunto enorme de áreas científicas: estatística, epidemiologia, virologia, biologia molecular, genética, demografia, geografia, ciências sociais, educação… 

    Vamos falar sobre Saúde Pública e vacinas?

    Situar a importância do advento das vacinas e a sua relação com a saúde pública, coletiva e individual torna-se fundamental.

    A saúde é um conceito complexo, que não se resume a ter uma doença ou à ausência de sintomas. Para a Organização Mundial da Saúde, Saúde é uma condição de “bem estar físico e mental”. E esta noção engloba uma série de fatores que falam mais do que termos sintomas específicos de alguma patologia. Este conceito aponta para, além de não termos sintomas, nos sentirmos bem (em aspectos amplos) conosco mesmos.

    Esta visão, no entanto, aponta para uma questão que é individual – ela conceitua a partir de um indivíduo consigo mesmo. A ideia de Saúde Pública, no entanto, precisa de outros indicadores. Quando falamos de saúde aqui no blogs, não estamos nos limitando à ideia de “ausência de doenças”, seja no nível individual, seja populacional.

    Assim, a saúde representa bem mais do que um ato médico – e não se limita ao saber deste profissional. Temos visto nestes tempos de Covid-19 profissionais biomédicos, farmacêuticos, químicos, biólogos, economistas, cientistas políticos e sociais, educadores, enfermeiros, historiadores falando sobre o tema a partir de diferentes pontos de vista e – cada um dentro de sua área – nos ajudando a entender tudo o que temos vivido sobre esta doença. 

    Além disso, também temos que compreender que a saúde, não apenas pensando sobre o “bem estar físico e mental”, como preconiza a OMS, mas de como uma população está vivenciando seu cotidiano – e como podemos observar estas vivências a fim de aumentar sua qualidade.

    Ah tá, quer dizer agora que eu tenho que pensar em todo o mundo da população…

    Calma! Não é que tenhamos que pensar em todo o mundo. Mas ao falar de saúde pública estamos tratando de população – que é o conjunto de indivíduos que vivem em um determinado território (cidade, estado, país, por exemplo…).

    Dessa forma, a questão é bem mais abrangente do que pode parecer! A ideia de população é recente em nossa história ocidental. “População” é um conceito que se relaciona, conceitualmente, à noção de estatística. 

    Como assim?

    É isso mesmo que tu leste! População não é uma ideia “natural” e que sempre existiu em nossa civilização. Esse conceito tornou-se presente vinculado a cálculos que mensuram indivíduos a partir de características específicas. Isto é, quando começamos a calcular unidades, a partir de similaridades que buscávamos entender. Por exemplo: quantidades de nascimentos em uma determinada região (uma cidade, por exemplo). Quantidade de mortes, nesta mesma região. Sobre as mortes, além de quantas mortes, do que será que estas pessoas morreram? Adoecimentos por patologias definidas, acidentes, assassinatos? 

    A partir do século XVII, embora mais presente no século XVIII, a estatística começa a tornar-se uma ferramenta central para governar populações, compreender a vida em sociedade e planejar em curto, médio e longo prazo como a vida dessa população, em um determinado espaço, deve acontecer.

    Nós conhecemos a ferramenta do CENSO, por exemplo, pesquisa feita pelo IBGE no Brasil, para levantar dados de como nossa população está naquele momento. Pois bem, como o CENSO é feito de maneira regular, temos ao longo do tempo indicadores que nos permitem avaliar como a nossa população está no momento em que o censo foi feito, mas também como foi se modificando ao longo das décadas e séculos. 

    Tudo bem. Mas o que isso tem a ver com a vacinação?

    Tu podes estar te perguntando “aonde mesmo esse post vai parar”. Pois bem… Quando falamos de saúde, censo, estatística, população estamos falando de aspectos da saúde pública e de conhecimentos técnicos que servem para governar uma população. 

    Algumas pessoas têm falado sobre a vacinação ser um ato individual e que cabe a cada um decidir por si se vai ou não se vacinar. Também andamos escutando que a vacina não deve ser obrigatória e tudo mais… Falas como:

    eu vou me vacinar e aí está tudo bem no mundo, azar de quem não quer ou não pode
    ou
    eu já peguei Covid-19 e não preciso mais me preocupar com medidas sanitárias, nem com a vacina no país
    ou ainda
    eu não quero me vacinar, é um direito individual meu!

    Quando temos uma situação como a que estamos vivendo – de uma pandemia – ou de doenças que acometem uma parcela GRANDE de pessoas, temos alguns debates éticos fundamentais. A vacinação é um destes pontos de embates

    Embora os atos individuais sejam importantes e fundamentais para terem seus direitos resguardados, a segurança da população não é algo que pode ser negligenciado por governos. Desta forma, um governo precisa, simultaneamente, respeitar sim as individualidades, mas fundamentalmente ter a maior quantidade de ferramentas possíveis para proporcionar saúde e segurança a todos os indivíduos de uma população.

    hm, sei…

    Já comentamos anteriormente que a estatística é uma ferramenta para compreender e gerenciar a população. A partir dos cálculos estatísticos, nós conseguimos saber, por exemplo, quantas pessoas precisam ser vacinadas para que determinadas doenças não se espalhem em uma determinada região. Isto quer dizer que existem cálculos que nos permitem avaliar a quantidade de vacinas que aplicaremos, quais grupos mais emergenciais para serem vacinados primeiro para que a menor quantidade de pessoas possível seja contaminada e a doença pare de circular em nossa cidade, estado ou país

    Claro que tomar vacina, como indivíduo, diminui drasticamente as chances deste indivíduo adoecer. E isso é importante para este indivíduo.

    Entretanto, a vacinação é um ato de saúde pública. Ela funciona não apenas para que UMA pessoa não adoeça. Vacinas são conhecimento científico, desenvolvido para conter doenças simultaneamente em indivíduos e em populações.

    É contenção populacional pois quando muitos indivíduos são vacinados, cada vez menos os vírus têm pessoas para contaminar. Quando alguém se contamina, o vírus fica limitado àquela pessoa e não consegue contaminar mais gente ao redor.

    Cobertura vacinal

    É isto que temos chamado de cobertura vacinal: a porcentagem de pessoas, em uma população, que estão cobertas pela vacina (tomaram vacina, portanto).

    Temos visto uma queda na cobertura vacinal em várias vacinas. Se olharmos o Data SUS, veremos que, por exemplo, Hepatite B em crianças de até 30 dias, tinha uma cobertura vacinal de 90,93% em 2015. Em 2019 tivemos uma cobertura vacinal de 78,57%. No ano de 2020 tivemos uma queda ainda maior, chegando à 59,30%. 

    A Poliomelite (também conhecida como paralisia infantil) foi uma das grandes conquistas de erradicação via vacinas. No ano 2000, tínhamos uma cobertura vacinal de 101,44%, em 2010 tínhamos a cobertura em 99,35%. Entretanto, o ano de 2020 esta cobertura vacinal caiu para 72,74%!

    Dessa forma, doenças que eram consideradas erradicadas podem sim retornar e circular em nossa população! A hesitação em tomar vacina é característica e têm ganhado força no Brasil e no mundo. Sato aponta que:

    “As consequências são as frequentes epidemias de doenças imunopreveníveis, como sarampo e coqueluche que ocorrem atualmente em todo o mundo, e a ameaça da reintrodução da poliomielite em regiões nas quais já foi eliminada. Na Europa, nos primeiros oito meses de 2018 ocorreram mais de 41.000 casos de sarampo. Nos Estados Unidos, proporção substancial dos casos de sarampo ocorreu em indivíduos intencionalmente não vacinados. Da mesma forma, a hesitação vacinal também desempenhou um papel importante no ressurgimento da coqueluche, apesar de ser atribuído à perda de imunidade”.

    E a Covid-19?

    Estamos falando de um protocolo de vacinação que esta recém iniciando. As pesquisas realizadas para o coronavírus, claro, são recentes (uma vez que a doença é nova). Mas as tecnologias desenvolvidas para estas vacinas são antigas conhecidas das ciências. Assim, as etapas de testes de segurança e eficácia foram cumpridas e, reforçamos, a vacina não é um ato para quem toma ficar protegido.

    Ao tomarmos a decisão de não nos vacinarmos, não é apenas nós como indivíduos que corremos o risco. Ou seja, é abrirmos corredores dentro da população para o vírus circular e permanecer adoecendo mais e mais pessoas. Não é adoecermos amanhã: é um ato de deixar o vírus sobreviver por anos, circulando e adoecendo a população. Mais do que isso: matando e ocupando leitos hospitalares, trazendo custos sociais elevadíssimos, para algo que é fundamentalmente evitável.

    É demasiadamente importante incorporar-se à luta pela vacinação. Cobrar para que ela seja aplicada na população, com campanhas de massa, respeitando os grupos de riscos – no próximo post falaremos mais sobre isto e por que motivo defendemos que ela seja pública, gratuita, via SUS e feita de modo ágil e coordenado pelo governo federal, estadual e municipal, com apoio de todos os setores públicos.

    Para saber mais: 

    Ministério da Saúde (BR), Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS). Informações de saúde (TABNET)

    Moran-Gilad J, Kaliner E, Gdalevich M, Grotto I (2016) Public health response to the silent reintroduction of wild poliovirus to Israel, 2013-2014. Clin Microbiol Infect, 22 Suppl 5:S140-5

    Phadke VK, Bednarczyk RA, Salmon DA, Omer SB (2016) Association between vaccine refusal and vaccine-preventable diseases in the United States: a review of measles and pertussis. JAMA. 2016;315(11):1149-58.

    Sato, Ana Paula Sayuri (2018) What is the importance of vaccine hesitancy in the drop of vaccination coverage in Brazil? Revista de Saúde Pública, v52, 96

    Senra, Nelson de Castro. (1999). Informação estatística: política, regulação, coordenação. Ciência da Informação, 28(2), 124-135. 

    SENRA, Nelson (2008) Pesquisa histórica das estatísticas: temas e fontes, História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v15, n2,p.411-425. 

    Senra, Nelson (2018) Da DGE até hoje, com o IBGE, uma sucessão em linha reta Estadística y Sociedad, México, p.56-81, n.5 Noviembre. 2018

    Outras postagens do blogs sobre vacinas

    Especial Covid-19: vacinas

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Vocês sabem o que é “Clickbait”?

    Este termo é usado em manchetes e títulos para atrair a atenção (e cliques!) a partir do sensacionalismo. Sensacionalismo este que pode, inclusive, ser aversivo a nós, na primeira leitura.

    Pode parecer bobo! Mas na verdade o clickbait é super eficiente – e aí reside o perigo! A divulgação científica e o jornalismo tem debatido este tema, sua necessidade (na verdade a falta de necessidade) e a ética desta prática.

    Afinal, mais do que só clicar, a ideia é compartilharem nosso conteúdo!

    Nós sabemos, também, que muitas vezes não há leitura do material completo. Assim, um título ou manchete impactante – mas não necessariamente vinculado à verdades ou fatos – pode gerar exatamente o efeito contrário do que gostaríamos!

    Além disso, também é importante mantermos manchetes e títulos que angariem mais e mais pessoas possibilitando aprofundamento e argumentação com nosso material – e não engajamento por raiva, choque e por termos ficados estupefatos…

    Lidar com divulgação científica e jornalismo científico é lidar com ética e direito às pessoas terem acesso à informação confiável. Ou seja, rebatendo atos de raiva e cliques com compartilhamentos sem leitura e compreensão dos conteúdos. E isto é um pressuposto básico e ético de uma comunicação empática e ética. Dessa forma, mais do que cliques e seguidores, debates sobre fatos, argumentação sobre pressupostos, compreensão social da ciência e seus princípios!

    Ser sensacionalista – por exemplo com manchetes de “efeitos colaterais da vacina”, “mutação do nosso DNA com as vacinas” ou (pior) o “uso de fetos abortados e vacinas” – mexe com o imaginário de pessoas. Assim, assustamos, mais do que conversamos. Geramos raiva e desafeto, mais do que informamos. Produzimos pânico, mais do que propomos compreensão.

    Assim, seguimos uma pergunta crucial sobre nosso papel na produção de conteúdos diários para todos vocês!

    Isso inclui uma postagem sobre o clickbait, em plena pandemia da covid-19 – que já gera medo o suficiente em nossa população! Não precisamos alardear mais e mais receio, sem qualquer fundamento.

    Há estudos científicos sobre clickbait e estes estudos indicam perda de credibilidade dos veículos. Lá no twitter vocês podem ver nos “assuntos do momento” o quanto veículos se aproveitam para gerar aversividade e raiva para o engajamento.

    Com base na ciência, apontamos que precisamos de mais cautela e ética, especialmente em tempos de crise!

    Por fim, vamos inserir uma série de referências sobre isto – exatamente para reforçar que não é “só uma clicada”, não é “só um compartilhamento”, não é “apenas uma piada que gera engajamento”.

    Compromisso com notícias, com ciência, com divulgação científica não é apenas falar de fatos – e usar ironia ou buscar engajamento não pode ser feito à revelia de ética e empatia!

    Há estudos que indicam, sim, que isso pode ter um impacto social e estimulem produção de fake news.

    Em tempos de crise sanitária, qualquer clickbait que gere medo em relação às vacinas é triste, pois em nome do engajamento e compartilhamento do conteúdo, estimulamos raiva, descrença e fake news!

    Vamos apoiar boas práticas na ciência e na divulgação científica? 

    Divulgadora queridíssima do nosso coração que falou sobre o clickbait e fake news do momento (brilhantemente):
    @mellziland

    Para saber mais:

    Clickbait na wiki

    Pedro, M (2019) O clickbait no ciberjornalismo português e brasileiro: o caso brasileiro

    Bolton, DM (2017) Fake news and clickbait–natural enemies ofevidence-based medicine.

    Bourgonie, P (2017) From Clickbait to Fake News Detection:An Approach based on Detecting the Stance of Headlines to Articles.

    Potthast M., (…) (2016_ Lecture Notes in Computer Science, vol 9626. Springer, Cham. https://doi.org/10.1007/978-3-319-30671-1_72

    Hurst, N (2016) To clickbait or not to clickbait? : an examination of clickbait headline effects on source credibility.

    P.S.: Esse post veio de leituras aterrorizadoras pela manhã? Sim! Mas também veio de uma conversa com o @Dslmoura. obrigada por instigar 🙂

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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