O caso dos estudantes de medicina da UNISA expulsos por importunação sexual escancara problemas sobre as práticas violentas normalizadas nas universidades.
As análises e críticas (necessárias e até mesmo escassas) tomaram um rumo sobre o simbolismo, a possibilidade desse tipo de importunação sexual acontecer de forma impune; o privilégio dos estudantes, homens brancos, cometerem crimes e só repercutir meses depois na mídia. Sim, todas essas críticas são extremamente importantes e necessárias, principalmente na conjuntura machista, racista e extremamente problemática que temos nas nossas faculdades. Mas um ponto me chamou muito a atenção, que foram as defesas dos acusados.
Defender o indefensável, normalizar o abjeto: a função do trote universitário
A discussão que proponho aqui é que o trote universitário, a sua estrutura, história e formas de existir possibilitam que essa defesa deste crime deplorável através dele. Se existe o trote, enquanto esta instituição de perpetuação e normalização da violência, da humilhação, da hierarquização, esses argumentos nefastos continuarão existindo.
Parece-me óbvio o problema aqui. O arcabouço jurídico utilizado pela defesa dos acusados só é possível pois o trote existe como ele é hoje. Este discurso problemático da defesa existe porque o trote existe. Neste processo, perde-se o ponto daquilo que foi registrado: homens importunando sexualmente outras pessoas. A universidade, os advogados e toda a argumentação da defesa se baseia unicamente na existência do trote. Veja, a existência do trote serviu justamente o seu propósito em um dos níveis mais grotescos da sociedade. Ele normalizou crimes, defende atitudes abjetas, desumaniza todos aqueles ao seu redor.
A pequena resposta não resolve o problema todo
Logo, mostra-se mais um ponto do porque o seu fim é extremamente necessário para preservarmos as universidades brasileiras. Contudo, para além da possível verdade sobre o trote ou não neste caso viral, as estruturas das relações universitárias que passam pelo trote precisam ser reestabelecidas para que este tipo de defesa não exista mais. Para que não passemos pano para crimes por uma prática “tradicional”.
E o fio condutor desta problemática toda continua sendo a frágil e patética defesa da existência do trote enquanto brincadeira integradora. Já existe uma base teórica expondo que o trote, enquanto prática universitária, só causa a formação de discursos e atitudes machistas, racistas, LGBTQIAfóbicas, com o troco de um sentimento muito superficial de pertencimento e exclusividade.
Obviamente, cabe aqui reforçar que não, acabar com o trote não vai acabar com todos os problemas que foram citados aqui. Porém, o seu fim possibilita a existência da diversidade nas universidades e exima a existência da defesa do indefensável, a normalização do absurdo, a humilhação gratuita que forma profissionais imersos nestes discursos. É um passo pequeno, mas é um passo necessário.
Matheus Naville Gutierrez é Mestre e doutorando em ensino de Ciências e Matemática pela UNICAMP e licenciado em Ciências Biológicas pela UNESP. Sempre dialogando sobre educação, tecnologia, ensino superior, cultura e algumas aleatoriedades que podem pintar por ai.
Montagem com uma foto rasgada de de estudantes fugindo de jatos de substâncias amarelas e vermelhas que são lançadas sobre eles por fileiras de jovens usando luvas de látex branco.
Lembra do quanto amanhecemos Com a luz acesa Nos papos mais estranhos Sonhando de verdade Salvar a humanidade Ao redor da mesa (Por Aí, Nei Lisboa)
A semana de 18 a 22 de Janeiro, com destaque para o dia 21 de Janeiro (quando lançamos oficialmente a campanha #todospelasvacinas) foi intensa.
Grandes grupos de divulgação científica e divulgadores científicos trabalhando juntos desde o início de 2021 para esta semana dedicarem-se à visibilidade de uma causa que é, indiscutivelmente, importante ao nosso país e à população brasileira.
Hoje eu vim falar mais uma vez da campanha em relação à noção de “Cultura” e “Cultura Científica” e a relevância de ações conjuntas e entre diferentes setores da sociedade.
Cultura? O que isso tem a ver com Divulgação Científica?
Pois é… Parece óbvio o que vou falar, mas é importante eu fazer uma observação neste texto. Normalmente, quando trabalhamos em um meio acadêmico e científico, vamos formando um círculo de contatos cada vez mais fechado entre pessoas que são formadas ou em etapas de formação acadêmica. Aos poucos, naturalizamos a visão de que “todo mundo tem graduação hoje em dia”. O que é completamente fora da realidade brasileira.
Vamos destacar o relatório Educationat a Glance, publicado em 2019 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ao avaliar 45 nações. Neste relatório, o Brasil consta como um dos com menores médias de pessoas formadas em Ensino Superior (cerca de 21%, contra 44% de média geral). Porém, fica pior… Quando chegamos em formações em nível de mestrado temos cerca de 0,8% da população e para doutorado 0,2% (pessoas entre 25 e 64 anos). Isto significa estar entre as 3 piores colocações entre 35 países que forneceram os números para estas etapas.
E o que isto tem a ver com cultura?
Cultura, ao contrário do que muitas vezes é debatido – enquanto o “melhor já produzido por seres humanos” nas artes – é um termo em disputa e que precisa ser pensado como espaço humano de vivências e práticas cotidianas.
Neste sentido, cultura não se vincula apenas a grandes óperas em pomposos teatros. Tampouco às tragédias gregas, tão lindamente descritas – e atualmente pouco lidas. E, antes que cancelem este blog, também não quero dizer que isto não é cultura.
Mas, certamente, cultura é muito mais do que isto. São práticas humanas, compartilhadas e vivenciadas, ensinadas e aprendidas na rotina, em atos cotidianos. E, sim, relacionam-se à arte. Todavia, relacionam-se ao hábito da leitura, das conversas, dos ensinamentos entre anciãos e crianças em diferentes sociedades.
Também é cultura as práticas patriarcais e opressoras das sociedades, as resistências de povos minoritários aos discursos hegemônicos, a vivência científica e aprendizados do método dentro de universidades e laboratórios, o letramento nas escolas, a compreensão do que é ser menina e menino em sociedades com lógica binárias e cisnormativa (senhoras e senhores, ela adora uma polêmica mesmo). Assim, a versão curta da definição de cultura poderia ser “tudo aquilo que vivemos em nosso cotidiano e tem significado na sociedade”.
Isso inclui, para uma pequeníssima, minúscula, quase insignificante (numericamente falando), parcela da população: fazer, estudar, pensar a partir do método científico todos os dias.
Cultura científica e Ciência enquanto prática cultural
Não é recente o debate sobre a noção de cultura científica e sua importância na sociedade, no meio acadêmico. Em 1982, por exemplo, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), vai lançar a Revista Ciência Hoje com o
“intuito de estimular um debate mais amplo em torno da ciência e de seu impacto social, bem como de integrar a atividade de divulgação ao cotidiano dos pesquisadores como parte importante de suas responsabilidades profissionais e sociais”.
Eu, particularmente, gosto muito desta citação. Ela traz um ideia necessária à ciência: responsabilidade social como parte de seu cotidiano. Aqui, não apenas a ciência amarra-se fortemente com a relação de cultura. Mas principalmente de executar isto a partir de princípios éticos.
Vogt e Morales (2018) consideram que a cultura científica, na contemporaneidade, pode ser conceituada não como a ciência “em si”, mas um ato de pensamento da ciência sobre si mesma, sua produção, sua organização e prática cotidiana. A cultura científica, assim, seria parte constitutiva do que é ciência também.
Isso provavelmente não possa ser compreendido exatamente como sinônimo de ciência enquanto prática cultural. Embora tenha sim vínculos. Vamos ver… Esta noção se aproximaria mais, talvez, da ideia de que a ciência, enquanto prática humana, possui rotinas, vivências, rituais que são próprios e circunscritos a determinados espaços e grupos sociais.
Tá, e daí?
Vocês devem estar se perguntando “dessa vez ela tá enrolando mais do que o usual…”. Então vamos ver sobre o que isso tudo se trata… Entender ciência enquanto prática cultural nos possibilita pensar nos limites que a própria percepção humana, incluindo intelectualidade, pensamento situado histórica e socialmente, tem.
E é aqui que o debate ético é importante: perceber nossos limites é admitir falibilidade do que fazemos. E sem isto, a ciência não passaria de um dogma. A ciência pode (e deve) ser questionada, pois este é o ponto de partida e, também, compreensão de limites – nossos mesmo! Humanos. Nada de errado nisso. E, claro, questionar não é dizer que temos que voltar ao tempo antes de resultados obtidos. Apenas situa que há muito mais a compreender e precisamos rebuscar nossas ferramentas. Simples assim (ao menos idealmente… na prática precisamos de tempo, amadurecimento e um pouco de suor e humildade).
Quanto à cultura científica seria a busca por essa reflexão da ciência sobre si mesma, percebendo-a como necessária para a sociedade. Entretanto, não sendo feita de qualquer modo e não olhando para nós mesmos como seres messiânicos que salvaremos a todos. A cultura científica, a partir de um pensamento ético e empático, com responsabilidade social, se percebe, também, falho no diálogo. A cultura científica olha para a comunicação como ferramenta.
Tal como nos diz Vogt e Morales
ainda que parte integrante da própria ciência, a comunicação, quando voltado para o público que não participa do processo científico, do ponto de vista técnico, – que se dá com a sociedade de um modo geral -, atua como elemento transformador da ciência, inserindo-a na cultura e configurando, assim, o terceiro elemento dessa relação, a cultura científica. Na outra ponta, o conhecimento científico poderia ser considerado o elemento de transformação da cultura com as características próprias da contemporaneidade. Ou seja, os produtos da pesquisa científica, na forma do conhecimento por ela produzido – trazendo consigo a sua racionalidade, práticas e procedimentos -, transformam a cultura imprimindo-lhe as formas e os conteúdos como hoje os vivenciamos e conhecemos.
#TodosPelasVacinas
Que tolos fomos nós, que bom que foi assim Que achamos um lugar pra ter razão Distantes de quem pensa que o melhor da vida É uma estrada estreita e feita de cobiça Que nunca vai passar por aqui (Por aí, Nei Lisboa)
Todos Pelas Vacinas teve como proposta falar de ciência a partir de perguntas, de danças de funk, de artes resgatando o nosso tão querido Zé Gotinha (personagem brasileira que qualquer criança da década de 80 conhece tão bem!). Seja por um apelo emocional e saudoso, seja por aspectos que temos dentro de nós – músicas de balada funk, melodias como samba e choro, paródias de músicas consagradas – cientistas e divulgadores buscaram um pouco de si mesmos fora dos espaços formais dos jalecos, números e livros.
E nada disso nos fez menos científicos. Tampouco menos divulgadores. Talvez tenha feito pensarmos o quanto é necessário lembrar cotidianamente que ciência precisa fazer parte da cultura para fora destes espaços.
A cultura – essa que é vivida cotidianamente na sociedade – tem muito a nos ensinar, quando queremos entender sobre coletividade, impacto social e comunicação. Estudar comunicação não é comunicar-se. Fazer ciência não basta para falar de ciência. Trabalhar com divulgação científica é aprender, mais do que falar.
Foi gratificante ver vários colegas apontando o dia 21 de janeiro como um marco para a “história da Divulgação Científica”, tanto quanto foi gratificante receber tantos e tantos vídeos de músicos de diferentes gerações lutando por uma causa que, nós cientistas, acreditamos ser fundamental.
Estaria a comunicação científica, salva?
Não né gente. Tem chão ainda. A humildade é prato que tem que ser comido diariamente nesta vida, igual arroz e feijão.
Mas foi relevante esta visibilidade para a ciência perceber a si mesma. Quanto às ações sociais, talvez tenha chamado a atenção, também, internamente à divulgação científica, o quanto temos sim o dever de ter impacto social, de dialogarmos com a sociedade (em sua diversidade), entendermos suas perguntas, dúvidas, incertezas e inseguranças.
Todos pelas vacinas e Vacinas para todos
Mais do que um clichê barato (mas bem bonitinho, vai…) virou um mantra em falas sobre responsabilidade social da ciência. Saúde não é produto, conhecimento tão pouco. Ou nós batalhamos e nos juntamos, compreendendo o papel político de cientistas e divulgadores científicos, ou sucumbiremos. Não por ser nosso dever salvar a todos, em tom messiânico e dogmático.
Mas por nos abrirmos e nos percebermos como parte de tudo isso – e talvez também assumindo que nos afastamos e deixamos de lado por tanto tempo estas questões, achando que conhecimento é dever dos outros buscarem e não parte de um compartilhamento entre pares e extrapares entre indivíduos e grupos sociais.
Entre distopias, poesias e insanos (e fatídicos) caminhares cotidianos, espero seguir ao lado dessa gente toda que optou por dançar até o chão com zé gotinha, em prol do bem de todos, tuitando com kpopers não pela ciência, mas por todos e cada um da nossa população.
Seremos sempre assim, sempre que precisar Seremos sempre quem teve coragem De errar pelo caminho e de encontrar saída No céu do labirinto que é pensar a vida E que sempre vai passar Sempre vai passar por aí (Por Aí, Nei Lisboa)
Este texto foi escrito originalmente no blog PEmCie
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Tão em pauta nos dias de hoje, a ideia de se trabalhar gênero e sexualidade nas escolas tem gerado polêmica e muita confusão em diferentes espaços sociais. Por um lado, há quem defenda que abordar gênero e sexualidade na escola é incentivar práticas “imorais”. Isto se contraporia ao que deveria ser obrigação somente das famílias destas crianças e adolescentes. Por outro lado, há um longo debate que aponta a necessidade de isto ser uma política pública escolar. Isto se daria em função das questões de saúde, violência e intolerância em relação aos diferentes modos de viver e existir em nossa sociedade. Será que existe mesmo a necessidade de falarmos disso em nossa sociedade e, em especial, na escola?
Em um intervalo de 40 anos, o panorama intelectual brasileiro foi agitado por diferentes frentes: publicação de “Populações Meridionais do Brasil” de Oliveira Vianna (1920), fundação do PCB e do Centro Dom Vital, realização da Semana de Arte Moderna (1922), Manifesto Regionalista e Primeiro Congresso Brasileiro de Regionalismo (1926), Manifesto Antropófago (1928), a organização de instituições culturais como o Departamento de Cultura (1935), o I Congresso da Língua Nacional Cantada (1937). A lista é longa, mas somente quero ressaltar que ao final do anos 1950, um novo livro de Freyre esboçaria novamente o desejo de interpretar os processos sociais no Brasil: “Ordem e Progresso”.