Tag: economia

  • Space Economy

    Autoria

    Leonardo Dias Nunes

    Introdução

    Realizaremos uma introdução à space economy nos artigos que serão publicados este ano no Blog Sobre Economia. Iniciaremos essa introdução tomando como base o livro Space Economy, escrito pela astrofísica italiana Simonetta Di Pippo [1]. O tema foi escolhido devido ao destaque que essa indústria vem recebendo na mídia e por ser a fonte de inúmeras reflexões, especulações e promessas de novas formas de desenvolvimento capitalista.

    As possíveis transformações econômicas e sociais advindas das tecnologias mais complexas são sempre um material rico para a criação de tendências, perspectivas e ficções. Analistas dessa matéria mostram como é grande a capacidade do homem de se maravilhar com os avanços tecnológicos sem dar maior atenção à análise da sociedade em que tais avanços são observados [2].

    A internet, a inteligência artificial e a conquista do espaço pelo homem são avanços tecnológicos transformadores, sem dúvida. Por isso, muitas vezes, esses avanços foram e continuam sendo apontados como um remédio milagroso que resolverá todos os problemas da humanidade. Será que resolverão? Antes de tentar responder a esse questionamento, buscaremos dimensionar a space economy para compreendê-la de forma introdutória. Posteriormente, teremos condições de fazer uma análise das promessas de transformações econômicas e sociais que são difundidas com base nessa indústria que cresce vertiginosamente.

    Assim, para iniciar essa série de artigos, o primeiro foi dividido em duas partes. Na primeira, serão apresentadas as dimensões econômicas da space economy. Na segunda, será apontada uma característica diferenciadora da atual space economy e a relação desse setor com a transformação digital.

     

     

    As dimensões da space economy

    No livro Space Economy, publicado no ano de 2023, Simonetta Di Pippo defende que esse setor será o fundamento de um novo boom no desenvolvimento da economia global e sua democratização irá melhorar as condições de vida no Planeta Terra.

    Sem dúvida, a space economy utiliza as tecnologias mais avançadas produzidas pelo homem e nela há uma conjunção de setores de alta complexidade, fazendo dela um imenso centro de atração de investimentos. De acordo com os argumentos da autora, com o desenvolvimento desse setor, a espécie humana poderá se transformar em uma espécie multiplanetária que extrairá minerais da Lua, desenvolvendo uma economia lunar. Consequentemente, tais transformações terão efeitos positivos para a economia capitalista global.

    Fundamentada no Space Report publicado em 2021 [3], Di Pippo afirma que a space economy estava dimensionada em 428 bilhões de dólares em 2019, 447 bilhões de dólares em 2020 e 469 bilhões de dólares em 2021.

    Já de acordo com os dados da The Satellite Industry Association [4], a space economy valia 371 bilhões de dólares em 2020. As diferenças entre as estimativas apresentadas pela autora ocorrem devido às distintas metodologias de mensuração utilizadas pelas instituições de pesquisa.

    Deve ser ressaltado que o setor cresceu de forma considerável. Ao utilizar mais uma vez os dados presentes no relatório da Space Report de 2021, observa-se um crescimento de 176% da space economy entre 2005 e 2020. Adicionalmente, as projeções presentes no Space Economy Report elaborado pela Euroconsult apontam para um crescimento de 74% do setor até 2030, atingindo assim o valor de 642 bilhões de dólares [5]. Por fim, o Bank of America estima que o setor valerá 1,4 trilhões de dólares em 2030, cifra similar ao valor global da economia do turismo.

     

     

    New space economy e a transformação digital

     

     

    New space economy

    Simonetta Di Pippo afirma que a old space economy tinha suas atividades desenvolvidas por instituições de pesquisa governamentais, como a NASA (National Aeronautics and Space Administration) nos Estados Unidos. Já a new space economy tem Elon Musk e Jeff Bezos como os principais representantes de uma indústria que está repensando a forma de fazer negócios. Atualmente, a new space economy está atraindo cada vez mais investimentos devido à diminuição das barreiras à entrada e ao aumento das práticas empreendedoras das áreas relacionadas e não relacionadas a esse setor.

    Esses empreendedores possuem grandes ambições, quais sejam, realizar viagens para qualquer parte do Planeta Terra em menos de uma hora, realizar o turismo espacial e transformar os seres humanos em uma espécie multiplanetária [6]. Esses projetos são o prelúdio de um novo estilo de vida no Planeta Terra.

     

     

    Transformação digital

    Simoneta Di Pippo afirma que a space economy está diretamente relacionada com a transformação digital que ocorre em todas as partes do mundo. De acordo com os dados do ano de 2021, 63% da população mundial tinha acesso à internet. Dos 37% que não tinham acesso, 96% viviam nos chamados países em desenvolvimento.

    De acordo com o The Age of Digital Interdependence [7], existe o objetivo de alcançar a conectividade completa para todos os adultos do mundo em 2030. A conexão total levará a internet para regiões remotas, possibilitará o desenvolvimento de sistemas de utilização mais fácil e aprimorará serviços financeiros e de saúde. Para alcançar esses objetivos, Di Pippo argumenta que a space economy oferece soluções com as mega constelações de satélites, definidas como “(…) um conjunto de satélites que são utilizados de forma coordenada em órbita”.

    As mega constelações de satélites auxiliarão na implementação da conectividade de todos os humanos adultos à internet e no funcionamento dos sistemas autônomos. Além de todos esses desenvolvimentos que a space economy pode gerar, a autora também aponta para os futuros desenvolvimentos relacionados ao mercado lunar, quais sejam, comunicação extraterrestre, assentamentos humanos na Lua, comunicação e infraestrutura de navegação lunar.

     

     

    Considerações finais

    Nesse artigo, apresentamos de forma sucinta as dimensões da space economy, as novas características desse setor em relação à segunda metade do século XX e sua estreita conexão com a transformação digital. Para concluir, destacamos o otimismo apresentado pela autora em relação ao progresso que a space economy poderá induzir na economia global. Será que já existem críticas às promessas de desenvolvimento capitalista orientadas pela space economy? Essas críticas e outros temas presentes no livro escrito por Simonetta Di Pippo serão explorados nos próximos artigos.

     

    Notas

    [1] DI PIPPO, S. Space economy: the new frontier for development. Milano: Bocconi University Press, 2023. Informações adicionais da autora podem ser encontradas aqui. [2] Sobre essa discussão, ver: PINTO, Á. V. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. v. I. [3] Os dados apresentados nessa seção foram citados pela autora no capítulo intitulado Definition and size of the space economy. [4] O relatório da Satellite Industry Association de 2021 pode ser acessado aqui. [5] O Euroconsult Space Report pode ser acessado aqui. [6] Um vídeo explicativo sobre esse tipo de viagem pode ser encontrado aqui. [7] O relatório The Age of Digital Interdependance pode ser acessado aqui.

    Sobre quem escreveu

    Leonardo Dias Nunes, Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (2008), mestrado (2012) e doutorado (2018) na área de História Econômica do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Econômico da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. 

    Como citar:  

    NUNES, Leonardo Dias. (2024). Space Economy. Revista Blogs Unicamp, Vol.10, N.1, Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/space-economy/. Acesso em: DD/MM/AAAA

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    Edição: clorofreela

  • O bem-estar do povo brasileiro e o êxito econômico dependem da conservação do oceano

    Qual a importância da conservação marinha para o Brasil e seu desenvolvimento econômico e bem-estar da população?

    Autoria

    Juliana Di Beo

    Arquipélago de Trindade e Martim Vaz. Foto: Wikimedia Commons

    Levantamento inédito sobre a biodiversidade marinha e costeira brasileira e seus serviços ecossistêmicos alerta os tomadores de decisão sobre a importância econômica da preservação do oceano.

    Salvador (BA) – Milhares de fiéis comparecem à Praia do Rio Vermelho, com oferendas para Iemanjá, durante as comemorações de seu dia. Foto: Wikimedia Commons

    O sumário para Tomadores de Decisão do “1º Diagnóstico Brasileiro Marinho-Costeiro sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos” foi lançado no dia 23 de novembro pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) e pela Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano. O relatório reúne os principais resultados de forma contundente e objetiva que demonstram o papel do oceano na economia, no bem estar, na regulação climática e na geração de benefícios imateriais – relacionados à cultura, aprendizagem e experiências –  inestimáveis.

    As atividades econômicas relacionadas a regiões marinhas e costeiras respondem por 20% do Produto Interno Bruto nacional e abrangem setores distintos, como pesca, aquicultura, turismo, mineração e navegação. Por outro lado, a degradação a que o oceano vem sendo submetido ameaça os ambientes marinhos  – que abrigam a rica diversidade de espécies, responsável por sustentar processos ecossistêmicos que são a base dos benefícios providos pelo oceano.

    A fragmentação e a perda dos ambientes marinhos  – explica o diagnóstico – são causadas, sobretudo, pela transformação no uso do solo e do mar; poluição, sobre-exploração de recursos, ou seja, a exploração para além da capacidade de recuperação natural; a introdução de espécies exóticas invasoras e mudanças climáticas.

    Dentre os ambientes marinhos que são mais impactados, estão os manguezais que perderam 2% de área entre 2000 e 2022, praias e dunas sofreram diminuição de 15% entre 1985 e 2019, e as pradarias e gramas marinhas perderam entre 30 e 50% no período de 1980 até os anos 2010. A perda gradativa desses ambientes expõe a zona costeira aos danos intensificados ou provocados pela mudança climática, como erosão, aumento do nível do mar e tempestades.

    Trazer à luz a agenda oceânica

    O relatório sistematiza conhecimentos que não deixam dúvidas sobre a urgência de ações de conservação para reverter essa crise ambiental. Mas, para Alexander Turra, professor do Instituto Oceanográfico da USP e um dos autores do diagnóstico, ainda são poucas as ações dos tomadores de decisão para conservação oceânica.

    Nas palavras dele: “as pessoas e os tomadores de decisão estão mais preocupados com a temática porque isso vem sendo fortalecido no âmbito da sociedade e com isso eles se sentem pressionados. Pontualmente, vemos alguns tomadores de decisão trabalhando com isso de forma muito estruturada e consistente, mas não necessariamente isso é algo generalizado”.

    O estudo lança luz para a importância da implementação efetiva de políticas públicas para frear a degradação dos ambientes, segundo o diagnóstico “o futuro do oceano e da biodiversidade da zona marinha-costeira depende da implementação efetiva e da avaliação de políticas públicas com vistas à sua adaptação”.

    É preciso também de ações de divulgação e difusão da cultura oceânica, um movimento global que tem a intenção de fazer as pessoas reconhecerem a influência do oceano em suas vidas e a influência humana sobre o oceano, com potencial de engajamento da população tornando o conhecimento acessível e democrático. Além disso, o relatório enfatiza que o oceano sustentável depende da sinergia entre conhecimentos científicos e das comunidades tradicionais, pesqueiras e indígenas.

    “A valorização dos diferentes saberes e o fomento à pesquisa preencherão importantes lacunas de informação para a tomada de decisão, como a compreensão da estrutura e do funcionamento dos sistemas ecológicos e sociais, o monitoramento das tendências sociais e ambientais ao longo do tempo e o desenvolvimento de novas tecnologias para a inovação”, concluem os autores do relatório.

    Fonte: BPBES – Adaptado (cores)

    Agora é preciso que os tomadores de decisão pautem o relatório em suas ações políticas para consolidar uma agenda oceânica robusta. Turra comenta sobre este próximo passo, “espero que o relatório seja usado para trazer bastante objetividade na forma como a gente discute a temática de oceano, para que a transição para um oceano sustentável ocorra, considerando os princípios de governança que nós trazemos, e que aqueles indicadores, ou aquela situação que a gente colocou seja alterada.

    Eu também imagino que seria muito importante que a gente conseguisse fortalecer um sistema de indicadores que pudesse permitir uma variação mais periódica do que a gente traz no diagnóstico, que são as importâncias do ambiente marinho, as informações sobre biodiversidade que sustentam essas importâncias e os vetores que vão pressionar. Precisamos colocar isso em prática”.

    Parceria:

    Sobre quem escreveu

    Juliana Di Beo: sou bióloga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bolsista Mídia-Ciência Fapesp pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp. Atuo com comunicação científica para fortalecer a cultura oceânica e o acesso aberto ao conhecimento na Rede Ressoa Oceano.

    Como citar:  

    Di Beo, Juliana. O bem-estar do povo brasileiro e o êxito econômico dependem da conservação do oceano. Revista Blogs Unicamp, Vol.10, N.1, Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/o-bem-estar-do-povo-brasileiro-e-o-exito-economico-dependem-da-conservacao-do-oceano/, Acesso em: DD/MM/AAAA

     

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Por keemkai villadums no Pexels (original) e expansão generativa Photoshop

    Edição: clorofreela

  • De onde vem a hegemonia do dólar?

    Autoria

    Victor Augusto Ferraz Young

    Introdução

    Conforme havíamos prometido, este ano trataremos de recortes sobre a economia global contemporânea. Não temos a pretensão de explicar aqui o funcionamento do sistema capitalista e as relações que este determina entre os países que dele fazem parte. Buscaremos trazer as questões mais relevantes para instigar aqueles que se interessam pelo tema e nos procuram com suas dúvidas. Tratarei primeiramente do que considero fundamental para o funcionamento do atual sistema econômico global, ou seja, o uso do dólar estadunidense como o principal meio internacional para as trocas comerciais e operações financeiras que é, ao mesmo tempo, o principal ativo financeiro de reserva de valor. Pretendo apresentar, dessa maneira, como a centralidade do dólar no sistema internacional se deu por determinações político históricas.

    O Ouro e a Libra Esterlina

    Primeiramente, e de forma bastante suscinta, podemos dizer que, antes do advento de um sistema econômico com base no dólar, o principal meio para a conservação da riqueza e para as trocas comerciais e financeiras internacionais era o ouro. Havia, até o início do século XX, moedas de diferentes países que podiam ter seu valor cotado em ouro, sendo a libra esterlina a referência mais estável. Este era o chamado padrão-ouro ou padrão libra-ouro. Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a crise financeira internacional desencadeada alguns anos depois com a Quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929, este padrão monetário internacional deixou de ser predominante até o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), momento em que o Sistema Financeiro Internacional foi redefinido.

    A Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e o Dólar-Ouro

    O fim da Segunda Guerra Mundial marca, ao mesmo tempo, a emergência da hegemonia norte-americana sobre o bloco de países capitalistas e dá início ao antagonismo norte americano em relação ao bloco de países comunistas sob a liderança da então União Soviética, a chamada Guerra Fria. A constituição desse bloco passou a ser vista pelos Estados Unidos como uma ameaça vital a seus interesses e até mesmo à sua própria existência, já que sua forma de organização sócio-política não considerava a propriedade privada do capital e dos meios de produção.

    Os Estados Unidos, que não haviam passado pela destruição da guerra em seu próprio território, eram, por sua vez, uma potência vencedora que havia projetado sua marinha e exército por todo o globo terrestre. Eles detinham a tecnologia da bomba atômica, haviam renovado sua capacidade industrial e tecnológica, contavam com superávits comerciais crescentes, eram os maiores credores das potências econômicas sobreviventes e possuíam um estoque de ouro equivalente a 70% das reservas mundiais. Os americanos, dessa maneira, se empenharam na reconstrução do sistema capitalista e buscaram estabelecer sua liderança sobre a nova ordem capitalista emergente. O desenho dessa ordem levaria em conta o objetivo de enfraquecer e/ou anular a chamada ameaça comunista.

    A reconstrução dos países capitalistas exigia certo controle sobre as relações econômicas dentro do sistema, assim, a determinação do dólar como a principal moeda internacional foi elemento de fundamental importância nas conferências para reestruturação do sistema financeiro em Bretton Woods em 1944. Naquela convenção, a proposta do representante norte-americano, Harry Dexter White, estabeleceu que o dólar lastreado em uma certa quantia de ouro seria a divisa internacional balizadora para o valor fixo (mas ajustável) de outras moedas dos outros países que fizeram parte da reunião[1].

    Com o poder que detinham, os EUA impuseram o dólar como moeda internacional em contraposição a ideia de uma unidade monetária alternativa, o bancor, sugerida na conferência pelo economista e representante inglês, John Maynard Keynes[2]. Esta outra seria uma moeda internacional a ser emitida por uma entidade internacional multilateral, não estando, dessa forma, sob supervisão do banco central norte-americano. Naquele momento, os EUA fizeram valer sua força política e econômica e ficou estabelecido o padrão dólar-ouro como divisa chave para todas as operações comerciais e financeiras entre os países. A vantagem desse modelo ficava, obviamente, para a economia norte-americana, já que seu governo poderia, no futuro, dispensar superávits comerciais e empréstimos internacionais para conseguir recursos para comprar e/ou financiar qualquer coisa que desejasse no exterior. Ou seja, o Estado americano não precisaria necessariamente acumular reservas internacionais, bastaria, grosso modo, emitir a sua própria moeda.[3]

    Além do Dólar

    Em Bretton Woods, além do dólar-ouro, havia por parte dos norte-americanos a preocupação com a reconstrução de um sistema capitalista destruído física e moralmente. Era necessário superar a atração exercida pela ideia de igualdade comunista. Naquela conferência, estabeleceu-se que os fluxos financeiros seriam controlados unilateralmente pelos estados, eliminando a livre circulação de capitais e seus consequentes efeitos especulativos. Além disso, as taxas de câmbio seriam fixadas em relação ao dólar. Estas iniciativas visaram estabilizar no longo prazos as finanças e o comércio internacional, permitindo crescimento econômico mais rápido. Além disso, duas novas instituições de auxílio ao novo sistema foram criadas. No caso em que os países viessem a ter reiterados déficits no balanço de pagamentos com eventual falta de divisas fortes, tais países poderiam recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI) em busca de socorro financeiro.

    Para a reconstrução do pós-guerra e o financiamento do desenvolvimento econômico, os países requerentes poderiam buscar financiamento junto ao Banco Mundial. O que ocorreu, todavia, foi que estas novas instituições tiveram seus aportes, em grande medida, reaizados pelos próprios EUA o que as tornou na maioria das vezes dependentes de suas decisões. Os recursos alocados também não foram suficientes para os objetivos propostos e as futuras demandas. Depois da conferência, e ainda no sentido de evitar a ameaça comunista, os Estados Unidos criaram o Plano Marshall para ajuda econômica à Europa e os planos de ajuda econômica ao Japão que tinham como objetivo acelerar a recuperação desses países. As empresas norte-americanas não deixaram de penetrar nos mercados europeu e japonês, assim como, em função dos interesses geopolíticos, os EUA permitiriam a expansão e penetração das empresas daqueles países em seus mercados.

    O redesenho da estrutura financeira e comercial internacional com base no dólar-ouro depois de 1944 foi o que definiu, num primeiro momento, sua preponderância até os dias de hoje. Assim, a recuperação do sistema capitalista do pós-Segunda Guerra Mundial foi feita com o uso do dólar e definiu que esta moeda seria a forma da reserva de riqueza propriamente dita. Até que sua validade fosse questionada em momento posterior houve duas décadas ininterruptas de recuperação e desenvolvimento econômico nos principais países capitalistas e em outros em desenvolvimento. No próximo texto veremos como foi o fim da ordem de Bretton Woods, o fim do dólar-ouro e o início da ordem globalizada com o advento do dólar flexível.

     

    Referências:

    ANDERSON, Perry. A política externa norte-americana e seus teóricos. São Paulo, SP: Boitempo, 2015.

    EICHENGREEN, Barry J. A globalização do capital: uma história do Sistema Monetário Internacional. São Paulo, SP: Editora 34, c2000.

    HOBSBAWM, E. J. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1998, 1994.

    MAZZUCCHELLI, Frederico Mathias. Os dias de sol: a trajetória do capitalismo no pós-guerra. Campinas, SP: FACAMP, 2013.

    MEAD, Walter Russell. Special providence: American foreign policy and how it changed the word. New York, NY; London: Routledge, 2002.

    VAROUFAKIS, Yanis. O Minotauro Global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia global. São Paulo, SP: Autonomia Literária, 2016.

    YOUNG, Victor Augusto Ferraz. O Governo de Ronald Reagan (1981-1989) e a Consolidação da Nova Ordem Econômica Internacional. 2018. 1 recurso online (220 p.) Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia, Campinas, SP.

    [1] Uma onça troy de ouro (31,104 gramas) passaria a valer 35 dólares.

    [2] Temos vários textos sobre Keynes e suas ideias em nosso blog. Ver: As ideias fundamentais de Keynes; As propostas de reforma social de Keynes; e A Teoria Geral de Keynes: uma apresentação didática.

    [3] Os detalhes sobre este ponto específico veremos no próximo texto.

    Sobre quem escreveu

    Victor Augusto Ferraz Young, economista, pesquisador do Centro de Estudos de Relações Econômicas Internacionais (CERI) do Instituto de Economia da UNICAMP, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico nesta mesma Universidade, é professor de graduação da FACAMP.

    Como citar:  

    Young, Victor Augusto Ferraz. (2024). De onde vem a hegemonia do dolar? Revista Blogs Unicamp, Vol. 10, N.1. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/de-onde-vem-a-hegemonia-do-dolar/ Acesso em: DD/MM/AAAA 

    Sobre a imagem destacada:

    Foto: Moeda do fundo – reproduzida de coleção de moedas (original)

    Mapa-mundi de moedas – por Monstera Production no Pexels (original)

    Edição: clorofreela

  • Raça, classe e fascismo no Brasil

    Raça, Classe e fascismo no Brasil

    Autor

    Gustavo Zullo

    De início, é importante destacar que este texto foi elaborado inicialmente como uma sequência de alguns ensaios, que para a edição final da revista foram reorganizados em um só texto. Neste ensaio, verso sobre os eixos de um projeto de pesquisa que articula raça, classe e fascismo.

    O texto está dividido em três partes. Nesta primeira parte, apresento alguns determinantes sociais, socioeconômicos e psicossociais importantes para entender a estrutura da segregação social no Brasil, do que destaco a formação do trabalho informal e suas relações raciais. Na segunda parte, determinantes econômicos nacionais e internacionais, me detenho no período mais recente, em que articulo a estrutura social apresentada aqui a alguns aspectos da economia contemporânea nacional e internacional. Já na terceira parte, violência e autoritarismo no Brasil, organizo o texto a partir da estrutura socioeconômica brasileira apresentada nos dois primeiros textos para estabelecer alguns nexos importantes do fascismo brasileiro contemporâneo.

    Determinantes sociais, socioeconômicos e psicossociais

    O padrão de exploração do trabalho no Brasil se consolidou como uma adaptação das formas de proscrever e marginalizar o negro forjadas na colonização e adaptadas ao regime de classes sociais (Fernandes, 1965, vol I). A extrema intolerância ao conflito, típico da sociedade moderna que conviveu por mais tempo com a escravidão, desaguou em um padrão de exploração do trabalho assalariado que não generalizou o trabalho como elemento de classificação social. O trabalhador de baixa escolaridade e que não possuía maior especialização foi obrigado a buscar estratégias de sobrevivência, o que hoje é identificado à informalidade e ao emprego informal (Fernandes, 1968; Portugal Júnior, 2012). Ao contrário das economias capitalistas desenvolvidas, essa sempre foi a norma da economia brasileira, acostumada a conviver e articular estas duas dimensões da existência social, o que muitas vezes foi confundido com dualidade.

    Essas formas de atrofiar o elemento do trabalho no Brasil não apenas se baseou na exploração do trabalho escravo, que consolidou um nível tradicional de vida muito baixo, como preservou o negro na parte de baixo da pirâmide social. Em outras palavras, o nível de exploração da escravidão no Brasil e o nível tradicional de vida do escravo se constituíram no parâmetro histórico da constituição e consolidação do padrão de exploração do trabalho assalariado. Ao mesmo tempo, na medida em que as hierarquias raciais foram preservadas, o trabalhador negro teve de se contentar com as posições sociais que na maioria das, sob o regime de classes, não classificava nem valorizava socialmente o indivíduo. Nos primeiros 50 anos após a abolição praticamente não havia indivíduos negros que trabalhavam como médico, dentista, jornalista, proprietário de pequeno comércio, etc. E os pouco que superaram a barreira imposto pelo preconceito e discriminação o fizeram sob grande terror psicológico em meio às formas adaptadas de proscrever o negro.

    O movimento negro que se consolidou nos anos 1930, embora de orientação varguista, foi importante para impulsionar mudanças neste padrão (Fernandes, 1972). Embora este movimento tenha alcançado uma parcela relativamente reduzida da população negra naquele momento, ele foi o gérmen de movimentos importantes, como o Teatro Experimental do Negro, o TEN, liderado por Abdias Nascimento. Essas e outras expressões do movimento negro no Brasil foram importantes para educar a população negra a navegar no regime de classes, inclusive no que se refere a ocupar melhores postos de trabalho, e a criar redes de proteção e amparo social e psicológico (Fernandes, 1965, vol. II). Mais que isso, esse movimento educou também o branco que, em alguma medida, teve que aprender a conviver com o negro no trabalho, no sindicato e em outros lugares sociais novos para o negro – o que não significa que esta convivência estivesse livre de formas de proscrever o negro. Se o golpe militar de 1964 e outros processos autoritários não tivessem concorrido para a sua interrupção e articulação com outros movimentos mais amplos de luta pela democracia no Brasil, talvez hoje vivêssemos uma sociedade mais livre e afastada do fascismo. Além de possíveis benefícios sociais, econômicos e políticos, a consolidação de formas mais tolerantes e construtivas de vida seguramente teria conformado indivíduos psiquicamente mais inteiros, isto é, menos cindidos pelas frustrações que estruturam a psique autoritária (Reich, 1933).

    Pintura de uma senhora, branca, sentada em um sofá, com uma criança. Ao seu redor há três pessoas negras, e dois bebês. As pessoas estão trabalhando (costurando e servindo). Os bebês estão no chão, brincando, sem roupa.
    Uma Senhora Brasileira em seu Lar. 1823, Jean-Baptiste Debret. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023.

    De todo modo, a história não levou a uma modificação significativa do padrão de exploração do trabalho nem da convivência social. Pelo contrário, as formas violentas de impor padrões, além da própria violência desses padrões em si mesmos viabilizaram a continuação de estruturas senhoriais e escravistas em meio à democracia formal no Brasil.[1] A estrutura da segregação social no Brasil, inclusive no que se refere a sua fundamentação racial, não foi modificada (Fernandes, 1975).

    Não apenas a expansão da riqueza preservou uma enorme concentração de renda, riqueza e poder, como estes continuaram a ser processos fortemente racializados. Embora as possibilidades de ascensão social tenham sido aproveitadas senão por alguns poucos indivíduos brancos e negros, a escala em que estes o fizeram foi enormemente inferior, evidenciando o racismo das estruturas de poder que controlam e estabilizam a hierarquia social no Brasil. Não por outra razão a informalidade no país possui uma cor, que é a cor negra de milhões estigmatizados pela cor de sua pele e por toda e qualquer expressão cultural de matriz africana, que é um dos gatilhos do que Florestan Fernandes denominava como medo-pânico. Desta maneira, não só as possibilidades racializadas de ascensão social evidenciam a natureza da segregação no Brasil, como a articulação destes processos segregacionistas, de raça e classe, aproximam o país de uma divisão que autoriza gestões sociais autoritárias.

    Determinantes econômicos nacionais e internacionais

    A partir de agora, exploro alguns determinantes econômicos mais recentes, nacionais e internacionais, que concorrem para fazer do negro o principal alvo da precarização do trabalho, do que enfoco as formas de trabalho em plataformas de aplicativo. De outro modo, o racismo foi preservado como fator estruturante das relações de classe no Brasil, o que contribuiu para a modernização de um nível tradicional de vida que não só é muito baixo como, ao longo do tempo, vem se mostrando profundamente rígido.

    Embora a industrialização tenha viabilizado alguma ascensão social para parte do proletariado, ela tendeu a beneficiar trabalhadores brancos. Em sua maioria, a população negra ficou de fora deste movimento ascensional que, não bastasse os seus problemas, foi interrompido pela ditadura militar. Segundo Furtado (1972)[2], a repressão social, cultural e política inviabilizou qualquer aumento da participação do proletariado na renda nacional durante o Milagre, que associou crescimento extraordinário do produto com arrocho salarial. Em outros termos, o regime militar limitou severamente o trabalho como instrumento de valorização e prestígio social para o proletariado, o que foi espacialmente danoso para o negro, cercado por obstáculos econômicos, sociais, culturais e psicológicos ainda piores que os que cercam a população em geral.

    Imagem em que no primeiro plano aparecem vários rostos de trabalhadores, ocupando o canto esquerdo, em uma diagonal. Os trabalhadores estão de máscara, capacetes e mochilas semelhantes às de entregadores de refeição por aplicativo. Atrás, em segundo plano, prédios.
    Arte: crisvector. Fonte: https://ctb.org.br/trabalho/precarizacao-do-trabalho-um-campo-fertil-para-a-extrema-direita/ Acessado em: 11/04/2023.

    A industrialização liderada pelo capital internacional e pela autocracia burguesa, portanto, pioraram uma situação que ainda viria a se degenerar com a Crise da Dívida e outros elementos que crescentemente obsoletizaram o parque industrial brasileiro e facilitaram a ladeira abaixo que seria a desindustrialização iniciada nos anos 1990 (Suzigan, 1992; Espósito, 2016).

    Já sob o neoliberalismo, precarizaram-se as condições socioeconômicas da classe trabalhadora brasileira, cada vez mais distante do trabalho formal. A perda de elos da cadeia produtiva e de graus de autonomia da política econômica, aprofundadas no Plano Real, aumentaram a participação do desemprego e do trabalho informal (Pochmann, 2001). Pior, conforme a população crescia num contexto de baixo crescimento, o estoque de desempregados e informais cresceu assustadoramente durante a Década Perdida e os anos posteriores de estagnação econômica. Esses processos fragilizaram os movimentos sindicais e gerou novas formas de estranhamento do trabalho no Brasil e no mundo (Zullo e Duarte, 2012).

    Nem mesmo as gestões dos governos do PT reverteram substantivamente esta tendência. Embora a formalidade tenha crescido, forçando uma redução da taxa de informalidade e do desemprego, os seus estoques não foram reduzidos a contento, o que evidencia a fragilidade deste processo. Não só os salários dos empregados formais que se abriram se concentraram na faixa de até 2 salários mínimos como ocorreu sob um contexto de aprofundamento da desindustrialização (Zullo, León, 2020). A economia não ofereceu meios para se sustentar uma melhora da estrutura de ocupações, particularmente danosa à população negra (Almeida, 2021).

    Não obstante estes desafios, as relações de trabalho pioraram sensivelmente. Alguns dos processos mais assustadores foram (i) o aumento de contratos de curto prazo, inclusive de trabalhadores formais, e (ii) o aumento das formas flexíveis de contratação. Além disso, destaco aqui a reforma trabalhista de 2003, que agravou o futuro de toda a classe que vive do trabalho. Assim como em outras partes do mundo, também duramente golpeadas pela ofensiva neoliberal, desde os anos 1990 vem se obrigando a classe trabalhadora a tolerar a incerteza e a assumir e defender a gerência individual dos riscos de sua própria existência (Dardot, Laval, 2016). Isto é, o neoliberalismo tem aflorado posturas autoritárias de trabalhadores frustrados e amedrontados pela ameaça do desemprego e, de modo geral, pela aproximação de um futuro desbotado.

    Para além da EC 95/2016, que aprofundou a tendência estrutural de estagnação das condições socioeconômicas da classe trabalhadora, levando milhões ao desemprego e à informalidade, revertendo os já frágeis avanços dos governos do PT, essa situação se agravou com o alargamento da indústria 4.0. Sobretudo as plataformas digitais, atualmente as maiores empregadoras do país, aproveitaram da miséria da classe trabalhadora brasileira, tributária de um padrão de vida em que a herança da escravidão ainda é muito importante, e oferecem condições de trabalho e remuneração inadequadas a uma vida digna. Embora existam diferentes situações, um dos piores cenários conduziu à formação de uma enorme massa de entregadores de plataformas digitais sem direitos.

    Segundo relatório recente da CUT/OIT/IOS, 68% destes trabalhadores são homens negros, evidenciando muito bem quem são os principais impactados pela regressão das forças produtivas no país. As estratégias mais precárias de sobrevivência são “aproveitadas” precisamente pelos trabalhadores que balizaram um nível de vida extremamente baixo, o qual procurei associar à marginalidade social e ao trabalho informal. Ou seja, os negros continuam ocupar esta posição social mesmo depois de passados quase 135 da Abolição.

    Esta, portanto, não é uma questão de conjuntura nem é “meramente” identitária. Esta é uma questão estrutural do trabalho no Brasil. Elevar as condições de trabalho e remuneração do negro é elevar as condições de trabalho e remuneração de todos os trabalhadores no Brasil. Isto é, além de políticas econômicas que mirem o crescimento, é preciso não só regular o trabalho de modo a reduzir drasticamente a quantidade de contratos flexíveis e outros problemas, como também é urgente se reforçar ações afirmativas e estimular a conscientização sobre a questão racial como peça chave para se elevar o nível de vida da população como um todo. Ou seja, não se trata “apenas” de civilizar o mercado de trabalho, mas, sim, de democratizar o Brasil.

    Violência e autoritarismo no Brasil

    A terceira e derradeira parte desta sequência avança mais diretamente sobre a questão do fascismo no Brasil a partir de uma apresentação da formação histórica do país e sua estrutura autoritária e violenta, o que se confunde com a escravidão e a exploração do trabalho que nos é peculiar. Em suma, apresento um brevíssimo ensaio que articula a história do trabalho no Brasil à forma que o fascismo assume neste espaço e neste tempo. Para tanto, avanço sobre a forma, a morfologia e a estrutura da exploração do trabalho que funda a colônia, o que dialoga sobretudo com o primeiro artigo desta sequência. Em seguida, num salto histórico, discuto algumas razões macro-estruturais que nos ajudam a entender a ascensão do fascismo brasileiro e seus nexos com o mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo.

    Dentro desta perspectiva, é fundamental destacar que a colonização brasileira impôs a escravidão mercantil de africanos e indígenas como padrão de exploração do trabalho e como fundamento do controle militar do território e da restrição do prestígio e da valorização social aos colonos e seus herdeiros (Fernandes, 1976). De certo modo, a formação do Estado brasileiro obedece à análise de Engels, para quem a orientação étnica e racializadora determina quais serão os grupos no poder, assim como as suas adjacências e os grupos que serão, racializados, inferiorizados e explorados. Mais que isso, observa-se que, do ponto de vista individual e social, constituem-se hierarquizações absolutamente afastadas de formas democráticas de existência (Fernandes, 1965). No lugar de passos convergentes à homogeneidade e respeito pela diversidade, acentuaram-se o medo, a violência e a perseguição paranoica (o medo-pânico) de tudo que pode desestabilizar um castelo de cartas forjado e preservado por castas e estamentos que foram absorvidos pelo regime de classes (Fernandes, 1975). Isso evidencia a articulação entre elementos políticos e psicossociais, como denominava Florestan Fernandes.

    No Brasil moderno, essa estrutura de poder adaptada da colônia integrou o negro na sociedade de classes sem descongelar a descolonização, evidenciando seu vigor e capacidade coletiva para desenvolver a cultura de forma acumulativa e segura. Esta estrutura se desenvolveu sem se desligar socialmente do passado, que é renovado e reafirmado por novos agentes sociais que emergem na história como adaptações dos colonizadores. De tal modo, o poder político e econômico no regime de classes foi preservado como uma estrutura burguesa ainda ligada a princípios e técnicas de segregação estamental e de casta.

    O fim da escravidão não foi seguido por nenhuma forma de reparação, deixando o negro livre para viver em uma sociedade absolutamente hostil a ele. Esse processo se constituiu como a adoção de uma determinada maneira de deixar negros morrerem sem que se abdicasse por completo de exercícios organizados de extermínio da população negra mesmo sob o regime de classes. Aqui, biopolítica e necropolítica se combinam e se complementam e, sempre que se entende ser necessário, a burguesia suspende direitos, o que se expressa no famigerado AI-5 e nas incursões frequentes da PM às favelas e espaços racializados e miseráveis. Não por acaso, os efeitos particularmente perversos destes processos acometem lideranças ideológicas e a população negra ou, de outro modo, os inimigos internos reais, potenciais e fantasmagoricamente preventivos do poder instituído no Brasil. Nesse sentido, Florestan Fernandes expõe a tendência da autocracia burguesa no Brasil conduzir à fascistização do Estado nacional e seus mecanismos de controle social, cultural, econômico e político (Fernandes, 1981), ao que acrescentaria a tendência em gérmen, porém sempre presente, deste processo ganhar contornos de massa.

    Em momentos de crise, como o que vivemos hoje, com aumento da concorrência no mercado de trabalho, estas tendências emergem com força ainda maior. Estes processos tendem a sublevar com mais força as tensões estruturais, como são o preconceito e discriminação raciais no Brasil, mas também outras que são denominadas de forma um tanto pejorativa como pautas identitárias e que tendem a ser desarticuladas de temas como trabalho e valor. Isto é, questões socioeconômicas tendem a acirrar conflitos da psique de ordem individual e coletiva, sobretudo quando uma determinada conjuntura, como a atual, já vinha sendo marcada pelo aprofundamento de tensões identitárias (Haider, 2017; Almeida, 2018) antes mesmo do acirramento da disputa no mercado de trabalho. As dificuldades próprias da garantia pela sobrevivência, sobretudo em um mundo que impôs a concorrência como eixo organizador da vida, fazem com que a atual conjuntura do Brasil, considerados os seus problemas estruturais, se assemelhem a uma tragédia anunciada.

    Foto com uma estrutura de metal, formando um palanque, com pessoas falando ao microfone e, abaixo, de costas, várias pessoas escutando. Todas elas vestidas com as cores da bandeira brasileira. Há placas escrito "s.o.s. forças armadas" e "intervenção militar já"
    Foto fonte: https://intersindicalcentral.com.br/

    Parece não haver outro horizonte que não o de uma catástrofe social, econômica, política e cultural – para não entrar nas questões ambientais que hoje se mostram mais do que urgentes. Esse conjunto de coisas favoreceu que a rápida deterioração do horizonte social de amplas e heterogêneas frações da classe trabalhadora insuflasse afetos avessos à coesão social dentro de uma conjuntura complexa. Isto é, o esgotamento do breve ciclo de expansão econômica no início do século XXI, contraditoriamente acompanhado pelo aprofundamento da desindustrialização, acirrou tensões sociais que silenciosamente ganhavam uma massa de trabalhadores precários e sem perspectiva. Não que pessoas conservadoras bem remuneradas e com emprego estável não venham a aderir ao fascismo no Brasil. Pelo contrário, aderem também em grande número. Mas a questão para aqui é que sem essa dimensão de precarização socioeconômica, dificilmente o fascismo teria ganhado proporções de massa no Brasil e em outros lugares do mundo.

    Ressentimentos relacionados a novas dinâmicas normativas dos “corpos, desejos, sexualidade e identificações” (Safatle, 2023), do que a luta antirracista é um capítulo especial no Brasil, se somam à regressão das forças produtivas e à reafirmação da autocracia burguesa. Juntos, produzem um movimento de massas que exige de forma violenta a retomada de uma ordem mítica, configurando o fascismo brasileiro no século XXI.

    Para Saber Mais

    AGAMBEN, Giorgio (2004) Estado de exceção, São Paulo: Boitempo.

    ALMEIDA, Pedro (2021) Capitalismo dependente e o negro na sociedade de classes Elementos para uma análise histórico-estrutural da raça, emprego e salário no Brasil (1980-2010). Campinas: IE-Unicamp (dissertação de mestrado).

    ALMEIDA, Sílvio (2018) O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento.

    CUT; IOS (2022) Condições de trabalho, direitos e diálogo social para trabalhadoras e trabalhadores do setor de entrega por aplicativo em Brasília e Recife, São Paulo: Central Única dos Trabalhadores.

    DARDOT, Pierre, LAVAL, Christian (2016) A nova razão do mundo, São Paulo: Boitempo.

    ENGELS, Friedrich (1884) As origens da família, da propriedade privada e do Estado, São Paulo: Centauro, 2004.

    ESPÓSITO, Maurício (2016) A importância do capital internacional nas transformações da estrutura produtiva brasileira. Da industrialização à desindustrialização, Campinas: IE-Unicamp (dissertação de mestrado).

    FANON, Frantz (1952) Pele negra, máscaras brancas, Salvador: EDUFBA, 2008.

    __________ (1961) Os condenados da terra, Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

    FERNANDES, Florestan (1946) Introdução, In: MARX, Karl Contribuição à crítica da economia política, São Paulo: FLAMA, pp 7-28.

    __________ (1972) O negro no mundo dos brancos, São Paulo: Global, 2007.

    __________ (1965) A integração do negro na sociedade de classes – vols I e II, São Paulo: Editora Globo, 2008a.

    __________ (1975) A revolução burguesa no Brasil Ensaio de interpretação sociológica, São Paulo: Editora Globo, 2005.

    __________ (1976) Circuito fechado Quatro ensaios sobre o poder institucional, São Paulo: Global, 2010.

    __________ (1968) Sociedade de classes e subdesenvolvimento, São Paulo: Global, 2008b.

    FOUCAULT, Michel (1976) Em defesa da sociedade Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp 75-98.

    FURTADO, Celso (1972) Análise do ‘modelo’ brasileiro, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

    HAIDER, Asad (2017) Armadilha da identidade: Raça e classe nos dias de hoje, São Paulo: Veneta, 2019.

    MBEMBE, Achile (2018) Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte, São Paulo: n-1 edições, 2018.

    POCHMANN, Marcio (2001) A década dos mitos, São Paulo: Contexto, 2001.

    PORTUGAL JÚNIOR, José Geraldo (2012) Padrões de heterogeneidade estrutural no Brasil, Campinas: IE-Unicamp (tese de doutorado), 2012.

    REICH, Wilhelm (1933) Análise do caráter, São Paulo: Martins Fontes, 2001.

    SAFATLE, Vladimir (2023) Violências e libido. Fascismo, crise política e contrarrevolução molecular, Revista Estilhaço, nº 1, 2023.

    SUZIGAN, Wilson (1992) A indústria brasileira após uma década de estagnação: questões para política industrial, Economia e Sociedade, Campinas, vol1, pp 89-109, agosto.

    TAVARES, Maria da Conceição e SERRA, José (1971) Más allá del estancamento: Una discusión sobre el estilo de desarrollo reciente, El Trimestre económico, México, vol 38, n 152, pp 905-950, outubro/dezembro.

    ZULLO, Gustavo e DUARTE, Pedro (2012) Crise do capital, desemprego estrutural e novas formas de estranhamento do trabalho, CEMARX, Campinas.

    ZULLO, Gustavo e LEÓN, Jaime (2020) As determinações da desindustrialização sobre o mercado de trabalho na fase terminal da Nova República, In: PERRUSO, Marco, SANTOS, Fábio, OLIVEIRA, Marinalva, O pânico como política: O Brasil no imaginário do lulismo em crise, Rio de Janeiro: Mauad X, 2020, pp 167-180.


    [1] Para uma inspiração mais geral desse processo, que não se restringe ao Brasil, ver Fanon (1952, 1961).

     [2] Esta é uma peça central do debate de Furtado (1972) com Maria da Conceição Tavares e José Serra (1971).

    Sobre o autor

    Gustavo Zullo é economista, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp.

    Como citar:  

    ZULLO, Gustavo. (2023). Raça, classe e fascismo no Brasil. Revista Blogs Unicamp, Vol. 9, n.2, 2023. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/11/29/raca-classe-e-fascismo-no-brasil/. Acesso em: dd/mm/aaaa.

    Sobre a imagem destacada:

    Imagem de Freepik. Arte por Juliana Luiza.

  • Mundialização do capital

    Adicione o texto do seu título aqui

    Autores

    Texto publicado por Leonardo Dias Nunes

    Como citar:  

    Dias Nunes,Leonardo (2023) Mundialização do capital. Revista Blogs Unicamp, V.09, N.01, 2023. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/08/04/mundializacao-do-capital/
    Acesso em dd/mm/aaaa
    Sobre a imagem destacada:

    Sobreposição de imagens: à direita pessoa segurando dólares americanos e no fundo há dólares espalhados uniformemente na imagem.

    Atribuição:

    Arte por Juliana Luiza e Clorofreela.

  • O Brasil tem a maior carga tributária do mundo?

    Por Victor Augusto Ferraz Young

    No Brasil, nos mais variados meios de comunicação, assim como em conversas informais, quando o assunto é economia, algumas frases sempre se repetem: “No Brasil, paga-se muito imposto!”; “O Brasil tem a maior carga tributária do mundo!”; ou “Se não fosse o tamanho da carga tributária, o Brasil já teria se tornado um país desenvolvido!”. Estariam estes diagnósticos corretos? Baseiam-se em dados econômicos concretos? Neste texto, pretendemos verificar estas afirmações, discutir de um modo geral a questão do peso dos tributos sobre a nossa sociedade e responder com algumas informações a estas perguntas.

    A princípio, temos que ter claro que a maioria dos tributos (também chamados de impostos) correspondem a um valor que se subtrai da renda gerada no país a partir do processo produtivo, ou seja, uma parte da renda gerada com a produção de todos os bens e serviços produzidos em nosso território será sempre retida pelo governo no sentido de custear a infraestrutura estatal e a oferta de bens e serviços públicos. Para esta discussão, utilizaremos com frequência o conceito de carga tributária, isto é, o percentual correspondente ao valor dos impostos cobrados em relação ao valor do PIB a preços de mercado (% de carga tributária sobre o PIB) [1]. Também usaremos o conceito de base de incidência de impostos que é, grosso modo, um certo percentual que se cobra sobre determinada renda ou valor de atividade econômica. Para fundamentarmos nossa análise, nos utilizaremos de tabelas e gráficos produzidos pelo Centro de Estudos Brasil Século XXI que se baseiam em dados e informações de instituições oficiais.

    A carga tributária brasileira é a mais alta do mundo?

    Para responder a esta primeira pergunta, podemos dizer que a carga tributária bruta, no Brasil, entre 2002 e 2019, esteve em média em 32,7% do PIB (os valores para cada ano estão na tabela abaixo, na coluna CTB. Se descontarmos os valores referentes aos repasses desses impostos por parte do governo para a Previdência, Assistência Social, Subsídios e Juros da Dívida Pública, teríamos um valor ainda menor conforme as linhas azul e vermelha do gráfico que se segue).

    Sabendo, portanto, que o valor da carga tributária no Brasil gira em torno de 33% do PIB, podemos considerar isso um valor alto ou baixo? Uma forma plausível de se fazer essa avaliação é comparando o Brasil com outros países que tenham uma economia de tamanho parecido[2]. Vejamos então, no gráfico seguinte, a carga tributária de outros 27 países desenvolvidos e em desenvolvimento que fazem parte da OCDE mais a média de todos os países dessa mesma organização (OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento. Organismo constituído predominantemente por países ricos).

    Podemos verificar que, no ano de 2018, entre os 28 países mais a média da OCDE, o Brasil está na 18ª posição em termos de carga tributária, estando, por exemplo, mais de 10% abaixo da carga mais alta, registrada na França no patamar de 46,1% sobre o PIB. Se dividirmos este apanhado de nações em duas partes, o Brasil se encontra entre os países com a menor carga tributária em relação a outra metade que tem a carga maior ou igual a 35%. Os Estados Unidos, que é sempre mencionado por comentarista econômicos, registraram uma carga menor, de 24,3% sobre o PIB. Todavia, a economia norte-americana é 15 vezes maior do que a economia brasileira, fornecendo, portanto, uma base maior para a arrecadação de impostos[3]. A Alemanha e a Itália, que também têm economias maiores do que a do Brasil, registram cargas tributárias de 38,2% e 42,1% respectivamente. Neste conjunto, apenas 9 países tem uma carga tributária menor do que 33%. Os países ricos e em desenvolvimento que fazem parte da OCDE registram em média 34% de carga tributária sobre o PIB. Nossa primeira conclusão, portanto, é a de que a carga tributária brasileira não é a mais elevada do mundo. Ela não está sequer entre as mais altas, considerando um conjunto significativo de economias próximas a do Brasil. Outra constatação é a de que, entre os países desenvolvidos, se estes não têm uma carga tributária parecida com a brasileira, usualmente têm um percentual tributário bem maior. A única exceção neste caso, seriam os EUA, país que, contando com 24,4% de carga tributária, tem uma arrecadação de impostos maior do que qualquer um dos outros países aqui considerados. Podemos afirmar, dessa maneira, que a carga tributária brasileira não é a mais baixa, mas definitivamente não é a mais alta.

    Os brasileiros pagam muitos impostos?

    Esta outra questão se refere à sensação de que no Brasil, os preços dos bens e serviços seriam muito altos em função de uma carga tributária muito alta. Seria esta uma sensação real? Sim e não. Podemos dizer que no Brasil, tudo depende de como cada indivíduo obtém sua renda e de como a utiliza depois que a recebeu. Se, por um lado, tudo o que um cidadão recebe é gasto por ele no consumo de bens e serviços, como é o caso dos indivíduos que fazem parte de classes sociais de renda média e baixa, então os impostos para estes incidem com maior peso. Por outro lado, se o gasto realizado com bens e serviços não é pouco, mas é comparativamente pequeno em relação ao total da renda recebida, então os impostos são sentidos com intensidade muito menor, ou seja, no Brasil, a maior parte dos impostos são cobrados sobre o consumo e não sobre a renda recebida ou sobre a propriedade privada. Assim, as classes sociais que não utilizam toda a sua renda para o consumo tendem a pagar uma proporção menor de impostos em relação a sua renda. Esta renda que não é utilizada para consumo é usualmente aplicada em outras atividades rentáveis que tendem a não sofrer o mesmo impacto tributário que o consumo. Grosso modo, no Brasil, os contribuintes pagam mais impostos sobre o consumo do que sobre eventuais rendimentos de sua poupança[4]. O resultado é o de que a carga tributária que recai sobre uma parcela social mais abastada acaba sendo relativamente menor do que aquela que recai sobre a parcela social mais humilde.

    Para que esta afirmação fique mais clara, primeiramente iremos separar os impostos cobrados no Brasil da seguinte maneira:

    • Imposto sobre a Renda de Capital (juros, lucros, dividendos, aluguéis, etc.): IR; IOF; etc.
    • Imposto sobre a Renda do Trabalho (salários e rendimentos autônomos): IR.
    • Impostos sobre o consumo de bens e serviços: IPI; ICMS; ISSQN; PIS; COFINS; etc.
    • Impostos sobre propriedade: IPTU; IPVA; ITR; ITBI; etc.

    Em segundo lugar, definiremos dois indivíduos hipotéticos que se encontram, cada um, em um extremo da pirâmide social.

    • João é um indivíduo sem muitas posses que no Brasil ganha um salário mínimo (R$1.212,00 no ano de 2022), e deverá, em grande medida, utilizar praticamente todo seu salário para o sustento próprio e o de sua família. Em função do valor de sua renda João paga pouco, ou praticamente nada, de imposto sobre a renda do trabalho (IRPF)[5]. Os impostos sobre os seus ganhos recairão, dessa maneira, predominantemente sobre os bens e serviços que consome.
    • Antônio, por outro lado, recebe rendimentos de capital provenientes de lucros, de aplicações financeiras e do aluguel de propriedades que possui. Sendo o montante de sua renda mensal elevado, somente uma parte pequena de toda a renda se destina ao consumo pessoal e o de sua família. Antônio paga, assim, relativamente menos impostos sobre consumo e mais impostos sobre rendas de capital e sobre rendas de propriedade.

    Vejamos então, na tabela a seguir, como os impostos tendem a incidir sobre a renda destes dois indivíduos no caso do Brasil[6]:

    Conforme a tabela, os impostos incidem com mais força sobre o destino da renda (a compra de bens e serviços) do que sobre as origens das rendas. Em 2019, os impostos sobre consumo incidiram, em média, em 43,3% sobre o valor dos bens e serviços, tendo sido esta incidência ainda maior em anos anteriores. De outra maneira, mesmo que a incidência do imposto de renda chegue a 27,73% para os trabalhadores que recebem as melhores remunerações, a incidência sobre as rendas de capital e aplicações financeiras foi de 22,45% para estas, de 4,82% sobre a propriedade e de 1,7% sobre as transações financeiras. Podemos constatar preliminarmente que a incidência de impostos sobre a renda, os salários, a propriedade e as transações financeiras é, em todas elas, muito menor do que sobre o consumo de bens e serviços.

    Grosso modo, para João e toda a população que depende totalmente do salário e gasta todo ele em consumo, a tributação é alta. Para Antônio e as famílias que dependem de rendimentos de suas posses em termos de propriedades, de capital e de aplicações financeiras – consumindo bens e serviços com parte proporcionalmente muito menor de sua renda total – a tributação só em termos de incidência é quase a metade.

    Nossa segunda constatação é a de que parcelas mais humildes da sociedade entregam ao fisco uma parte maior de sua renda total do que parcelas sociais de renda mais elevada.

    Se não fosse o tamanho da carga tributária, o Brasil já teria se tornado um país desenvolvido?

    Verifiquemos então esta última questão. Podendo já afirmar que a carga tributária brasileira está longe de ser das mais altas do mundo, podemos verificar como se distribui a carga no Brasil comparando esta aos países desenvolvidos. Analisemos os gráficos a seguir:

    No gráfico acima, referente a 2017, podemos verificar que em termos de carga tributária o Brasil impõe um peso de 14,3% do PIB sobre a sociedade no que se refere ao consumo de bens e serviços. Entre os 32 países analisados, verificamos que a carga tributária brasileira sobre o consumo de bens e serviços é uma das mais altas do mundo, ficando atrás apenas de Hungria, Grécia e Dinamarca. Quatro pontos percentuais a mais do que a média dos países que compõem a OCDE.

    Neste outro gráfico acima, também em 2017, a carga tributária brasileira sobre os rendimentos do salário (incluindo recolhimento previdenciário) está entre os países que menos oneram as remunerações, estando 1% abaixo dos países da OCDE e com pelo menos a metade do percentual do primeiro colocado, a França.

    A carga de tributos cobrados em relação ao conjunto renda, lucros e ganhos de capital, no Brasil em 2017, conforme este outro dado acima, é, por outro lado, uma das mais baixas (7%) frente aos outros 32 países da comparação. Junto com Chile, Polônia, Hungria e Eslovênia, a carga tributária brasileira é de apenas 7% sobre esses rendimentos, estando quatro pontos percentuais abaixo da média da OCDE.

    Quanto aos tributos cobrados sobre a propriedade, novamente o Brasil está entre os países que impões relativamente menos impostos sobre a propriedade privada de seus contribuintes, ou seja, de acordo com o gráfico acima, a carga é de 1,5% do PIB. Esta é maior do que a da República Eslováquia (0,4%) – a mais baixa carga tributária neste quesito -, mas é bem menor do que a da França, que impõe uma carga de 4,4% do PIB em impostos sobre propriedade.

    O que se confirma novamente é que, no Brasil, os impostos recaem com muito mais peso sobre o consumo de bens e serviços do que sobre a origem das rendas em geral. Na comparação com os chamados países desenvolvidos que compõem a OCED, o Brasil faz exatamente o inverso, ou seja, cobra mais impostos dos mais pobres e menos impostos dos mais ricos. Isso perpetua a má distribuição de renda existente no país e impede uma expansão do consumo que poderia dinamizar a economia.

    Dessa forma, talvez não seja a carga tributária total sobre o PIB, mas a distribuição desta entre as camadas sociais o que perpetue no Brasil a concentração de renda e, tendo como consequência a manutenção da desigualdade social e do subdesenvolvimento econômico.

    Conclusão

    Nossa análise buscou fazer uma aproximação geral do quadro de tributação no Brasil. Para isso, fizemos uma comparação desse panorama brasileiro com países desenvolvidos e em desenvolvimento. Utilizamos como parâmetro a carga tributária percentual sobre o PIB e a base de incidência dos impostos. Esta análise poderia ser ainda mais profunda, mostrando diferenças entre cada faixa de renda, o que tornaria este texto muito extenso para nossos propósitos[7]. Com o que levantamos, contudo, já podemos responder com segurança que a carga tributária brasileira, na atualidade, depois de comparada com 27 países da OCDE, está abaixo da média destes e abaixo da média de todos países da OCDE em conjunto. A incidência, todavia, é a que parece ser a grande injustiça do sistema tributário brasileiro, comparando-a com outros países. Em função da forma como os tributos são cobrados no Brasil, famílias de renda mais baixa pagam um montante muito elevado de impostos, enquanto as de renda mais elevada pagam um montante relativo muito menor. Conforme nosso exemplo, a injustiça se faz presente e se perpetua com o fato de que João, de baixa renda e de poucas posses, paga muito imposto sobre o que ganha, enquanto que Antônio, de renda alta e de muitas posses, paga relativamente muito menos sobre aquilo que recebe. Este infortúnio é, a nosso ver, um dos elementos que atrapalham nosso pleno desenvolvimento social e econômico.

    Referências

    Para o acesso aos dados utilizados neste texto, ver:

    [1] O PIB corresponde a soma do valor de todos os bens e serviços finais produzidos dentro de uma economia nacional no período de um ano. Geralmente, os meios de informação utilizam o conceito de PIB a preços de mercado, tendo em conta que no valor do PIB estão inclusos os impostos e descontados os subsídios concedidos pelo governo.

    [2] Em 2019, o Brasil estava posicionado como o 12ª PIB mundial em termos de dólares depois dos EUA, China, Japão, Alemanha, Reino Unido, Índia, França, Itália, Canadá, Coreia do Sul e Rússia. Ver: World Economic Outlook Database. International Monetary Fund. Outubro de 2019.

    [3] Também não podemos deixar de mencionar que os Estados Unidos são os emissores do dólar, moeda reserva de valor internacional. Podem, dessa maneira, cobrir seus gastos governamentais com um endividamento crescente sem que isso provoque maiores prejuízos a sua economia.

    [4] O conceito econômico de poupança refere-se a parte da renda das famílias que não é gasta no consumo de bens e serviços. A teoria econômica dominante considera que a maior parte da poupança das famílias é usualmente emprestada aos agentes financeiros na forma de compra de papéis financeiros em troca de rendimentos futuros na forma de juros. Não podemos, portanto, confundir poupança com caderneta de poupança que é apenas um tipo de aplicação financeira.

    [5] Dependendo da faixa de salarial, o trabalhador brasileiro é isento do pagamento de imposto de renda de pessoa física (IRPF) ou paga alíquotas que sobem conforme se eleva o valor de sua renda. Ver: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/orientacao-tributaria/tributos/irpf-imposto-de-renda-pessoa-fisica#c-lculo-anual-do-irpf.

    [6] Salientamos que o conceito, base de incidência, que mostra o percentual de imposto incidente sobre uma renda especificada é diferente do conceito de carga tributária sobre o PIB, que se refere ao valor total arrecadado de determinado imposto em relação ao valor total do PIB.

    [7] Não fizemos uma abordagem mais profunda sobre isenções sobre aplicações financeiras, por exemplo. Tal análise pode expor as diferenças que existem entre grandes aplicadores e pequenos aplicadores.

  • Para além das vacinas: a dependência tecnológica e financeira brasileira

    Por Ulisses Rubio

    Recentemente tem se comentado sobre a dependência do Brasil com relação ao desenvolvimento de vacianas e em relação à fabricação dos insumos necessários para fabricá-las, os IFAs. No entanto, não é somente em momentos de dificuldade para importar que se pode ver a dependência Brasileira. Uma maneira de evidenciar esta dependência é analisando o balanço de pagamentos.

    Balanço de Pagamentos é o conjunto de contas através do qual um país elenca e calcula, em valores monetários, todas as transações entre seus residentes e não residentes. Visto por certa perspectiva, este Balanço mostra quanto de Dólares está saindo do país e quanto de Dólares etá entrando no país. Quando o saldo das transações entre residentes e não residentes é positivo, o país acumula Dólares. Caso contrário, há perda de Dólares. Uma vez que praticamente tudo o que um país compra do exterior deve ser pago em Dólares, obter Dólares é imprescindível. Dito de outra maneira, exportar é imprescindível. Mas, olhar para isto é ver somente parte do problema. E, ainda assim, estaríamos olhando bem superficialmente para esta parte do problema.

    Balança Comercial

    Expliquemos mais. O que os residentes no Brasil podem comprar de não residentes se resume a bens e serviços. Mas, os residentes no Brasil também podem vender bens e serviços para não residentes. Como ilustra a Figura 1.

    Figura 1: Balança Comercial (Bens e Serviços). Estamos construindo uma ilustração simplificada para o Balanço de Pagamentos.

    No caso dos bens, até que o Brasil consegue manter um saldo positivo (vende mais do que compra). Como podemos visualizar no Gráfico 1, após 2001 o saldo foi praticamente sempre positivo. Mas este saldo não é folgado e, portanto, suscetível de se tornar um saldo negativo (isto é, perda de Dólares), como foi a tendência entre 2012 e 2014. A despeito disso, o problema mesmo é com os serviços. O saldo entre os serviços que os residentes no Brasil vendem para não residentes menos o que compram de não residentes é persistentemente negativo e em valor monetário nada desprezível (Gráfico 2). Quando juntamos bens e serviços percebemos uma oscilação entre períodos com valores negativos e períodos com valores positivos, mas com os saldos negativos sendo mais persistentes e atingindo maiores magnitudes (Gráfico 3).

    Opa! Vamos respirar um pouco. Até agora falamos de bens e serviços. O Brasil vende muitos bens. Também compra muitos. O problema maior são os serviços, que o Brasil compra bem mais do que vende. Em resumo, nestas contas podemos notar a dificuldade em evitar períodos de saídas de Dólares. E… bem… vocês sabem… nós não fabricamos Dólares. Precisamos obtê-los.

    A Conta Financeira

    Mas aí vem a outra parte do problema. Digamos que somando o que os residentes no Brasil vendem para não residentes seja inferior ao que compram. Não dá para ficar saindo Dólares do país por muito tempo né? Aí entra a conta financeira. Em resumo esta conta abrange todo o dinheiro de residentes que é investido fora do país  menos todo o dinheiro de não residentes que é investido país (Brasil). Há duas formas principais de não residentes colocarem seu dinheiro no Brasil: se eles compram ou constroem uma empresa (é o chamado investimento direto) ou se eles compram papéis no mercado financeiro (chamado investimento em carteira). A ilustração pode ser vista na Figura 2.

    Figura 2: A Conta Financeira (Adicionada à figura da Balança Comercial – Bens e Serviços). Estamos construindo uma ilustração simplificada para o Balanço de Pagamentos.

    Se estiver entrando mais dinheiro (tecnicamente chamam de capital) do que saindo, o país está obtendo mais Dólares. Repare que para esta conta os saldos negativos significa entradas de Dólates (portanto, inverso ao que é para as outras contas). Em geral, este é o caso do Brasil. Como podemos ver nos Gráficos 4, 5 e 6, os saldos são predominantemente negativos, significando que entram mais investimentos de não residentes do que saem investimentos de residentes para o exterior. Isto significa entrada de Dólares, contribuindo para contrabalançar as saídas de Dólares devido aos períodos de saldo negativo na Balança Comercial de Bens e Serviços juntos.

    A conta Rendas

    Para muitos, atrair estes capitais deve ser a meta número um do Brasil. Mas, de outro ponto de vista, podemos ver que esta necessidade de atrair capitais externos pode trazer problemas. Este dinheiro não vem de graça, não é? Eles esperam se transformar em mais dinheiro ainda. Isto é, os investidores externos esperam receber de volta ou lucro, ou juros, ou dividendos (aquilo que as empresas na Bolsa de Valores pagam para quem tem ações dela). Começamos assim a falar da conta de Rendas. Esta é o saldo daquelas rendas que os residentes no Brasil recebem por terem investido seu dinheiro (capital) em outros países menos o que os não residentes recebem por terem investido seu dinheiro (capital) no Brasil  (algumas rendas derivadas do trabalho também entram na conta de rendas, mas é valor pouco significativo). Esta relação pode ser vista na Figura 3.

    Figura 2: A Conta Rendas (Adicionada na Figura 2). Temos uma ilustração simplificada para o Balanço de Pagamentos, mas suficiente para nosso objetivo no artigo.

    No caso do Brasil, a soma de valores de renda que é recebida por não residentes é bem maior do que o valor da soma que os residentes no Brasil recebem por investirem o seu dinheiro fora do Brasil, gerando saldos negativos contínuos na conta de Rendas (isto é, saída de Dólares), como podemos observar nos gráficos 7, 8, e 9.

    Transações Correntes

    Quando a Balança Comercial (Bens e Serviços) é somada à Conta de Rendas, temos as Transações Correntes: a soma das transações de bens, serviços e rendas. Como entre estas três contas somente há saldos positivos mais persistentes nas transações de bens, este saldo positivo não é suficiente para contrabalançar os saldos negativos nas contas de serviços e de rendas. De modo que os saldos em transações correntes são persistentemente negativos (ou seja, há saídas de dólares), como podemos observar no Gráfico 10.

    E como o Brasil paga por isto? Como obtemos os Dólares para pagar estes saldos negativos? Bem.. no geral são duas maneiras: 1) ou atrai ainda mais investimentos de não residentes (investimentos externos) ou 2) tenta ter saldos positivos na balança comercial. Aí vocês olham e dizem: – Eita!! Mas tem algo aí! Onde isto vai chegar? Considerando a opção 1: vem dinheiro; para pagar a remuneração deste dinheiro precisa que mais dinheiro de fora venha pro Brasil; este círculo é infinito?

    Como resposta, só posso dizer: – pois é! Pode ser que não. E muito provavelmente não será. Pode ser que chegue um momento que os não residentes não queiram mais trazer seus dinheiros (capitais) para o Brasil. O leitor otimista certamente me chamaria a atenção: – ainda bem que ainda tem a opção 2, né? Respondo: – Sim, tem. Mas não é tão simples.

    A dependência vista pelo Balanço de Pagamentos

    O problema é que em geral o Brasil exporta bens e serviços de baixa tecnologia e importa bens e serviços de alta tecnologia. Como os preços das mercadorias de baixa tecnologia aumentam e diminuem com maior rapidez, pode acontecer que mesmo exportando mais o Brasil não consiga obter tantos Dólares porque o preço, em Dólares, baixou.

    Ainda que não aconteça de o preço dos produtos que o Brasil exporta diminuírem (ou não diminuírem muito), ainda temos outro problema. Quando se diz que a economia vai bem, em geral, se diz que o PIB (Produto Interno Bruto) está crescendo. Se diz isto porque quando o PIB cresce significa que a renda dos brasileiros está crescendo também: isto é, mais lucros e mais salários. Bem… Se o total de lucros e salários está aumentando, este aumento não vai ficar paradinho, né? Em geral, ou vai para o consumo (gastos das famílias), ou para investimentos (empresas decidindo comprar coisas para aumentar a quantidade que podem produzir).

    [porém]

    Acontece, minha cara ou meu caro leitora(o), que para aumentar a capacidade produtiva como um todo, em geral, é necessário importar máquinas e equipamentos (lembram das importações de alta tecnologia?) e muitas destas importações são acompanhadas de compra de serviços, como fretes e manutenção (lembra da balança de serviços?). Ou seja, para tudo isto precisamos de Dólares. Num momento em que pessoas de fora do Brasil não estão interessadas em trazer os seus dinheiros para cá, fica difícil de o Brasil obter os Dólares necessários para manter estas importações de bens e serviços.

    Finalmente está aí exposta a dependência financeira e tecnológica do Brasil. Não produz aquilo que é necessário para manter um crescimento do PIB. Então é necessário importar. Mas para importar precisa de Dólares. Se não entram Dólares porque os não residentes estão receosos de trazerem seus capitais para o Brasil, este país fica com dificuldades para manter suas importações. Com isto, fica difícil manter o crescimento, manter o número total de empregos. Assim, se entram Dólares através de investimentos externos, isto tende a prejudicar nossa capacidade futura para importar devido à saída de dólares para remunerar os capitais investidos (a conta de Rendas).

    O autor

    Ulisses Rubio Urbano da Silva, Graduado em Ciências Econômicas pela UNESP. Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da UNICAMP, enfatizando estudos em História Econômica. Pesquisas em Pensamento Econômico Brasileiro, em diálogo com Pensamento Social Brasileiro. Atualmente leciona Economia e disciplinas da área de Administração no CECA/UFAL.

    Este texto foi escrito originalmente para o blog Sobre Economia

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • O 7 de setembro de Jair Bolsonaro: defesa histórica da violência como fundamento da ordem

    Texto por Ulisses Rubio e Gustavo Zullo.*

    Consideramos que no pronunciamento realizado por Jair Bolsonaro no 7 de setembro algo foge ao estereótipo paradigmático dos discursos do atual presidente. Bolsonaro não repetiu as falas aparentemente desconexas, que têm deixado os analistas atônitos e os leva a análises no mínimo insuficientes, uma vez que enfatizam a incoerência e ressaltam um burro Bolsonaro. Ao contrário, consideramos que, na comemoração da independência, o presidente apresentou um discurso elucidativo e, na medida do possível, sereno sobre sua seleção do passado nacional e dos seus valores. Mais ainda, Jair Bolsonaro explicitou a sua visão de Brasil, na qual os dominantes desenharam a identidade nacional:

    “Naquele histórico 7 de setembro de 1822, às Margens do Ipiranga, o Brasil dizia ao mundo que nunca mais aceitaria ser submisso a qualquer outra nação”.

    Quem é o sujeito da ação? O Brasil. Mas quem é o Brasil? Mais que isso, quais seriam os “brasileiros [que] jamais abririam mão de sua liberdade”?

    Certamente não estão incluídos aí os negros escravizados, que permaneceram privados de sua liberdade ainda por mais de um quarto de século após a independência. Seriam os indígenas? Isto não seria coerente com as atuais políticas do executivo federal em relação aos povos indígenas, especialmente atingidos pela boiada incandescente que avança de modo acelerado sobre a Amazônia e o Pantanal.

     “A identidade nacional começou a ser desenhada, com a miscigenação entre índios, brancos e negros”.

    Nesse trecho do discurso, a vírgula após “desenhada” não é gratuita. Repare. A miscigenação não é o agente da passiva. O agente da passiva do verbo “desenhada” não aparece. A miscigenação é um aspecto muito importante da identidade nacional, mas não a sua realizadora. Assim, nos perguntamos quem seria este agente da passiva e por que ele teria sido ocultado? Para responder a estas questões, recorremos a um dos ícones do pensamento conservador brasileiro do século XX, Oliveira Vianna. Segundo ele, os principais acontecimentos que marcam a História do Brasil, inclusive a independência, foram protagonizados pela “Nobreza rural”. Coerente ao pensamento conservador, acreditamos que Bolsonaro está assumindo que são os dominantes que “desenharam” a identidade nacional.

    Implícita nesta posição está que a identidade nacional teria sido formada pelo andar de cima e para o andar de cima a partir da preservação da segregação social. E esta questão possui uma curiosidade quando a associamos à época da independência. Naquele período, a segregação social assumia a forma de um sistema escravista extremamente violento que, contudo, foi romantizado pelo conservadorismo brasileiro como um sistema em que se formaram afetos espontâneos entre negros e brancos. Como consequência, a interpretação conservadora da identidade nacional cancela a possiblidade dos dominados acessarem a cidadania sem que se o anuncie explicitamente – e aqui reside um dos grandes dilemas brasileiros.

    Na atual conjuntura, isto significa a supressão de todos os ensaios emancipatórios que se vislumbraram nos últimos anos, uma ofensiva a pautas sociais, culturais e econômicas que apontam para a construção de uma sociedade mais justa ou, se quiserem, menos injusta.

    Na visão conservadora da formação histórica do Brasil, a miscigenação cumpre um papel fundamental, mas não fundador, da identidade nacional. Para deixar ainda mais evidente o significado da miscigenação no discurso de Bolsonaro, recorremos a outro autor importantíssimo para o pensamento conservador brasileiro: Gilberto Freyre, autor que consolidou a ideia de que, no Brasil, vivemos numa “democracia racial” e que nos ajudará a decifrar a sequência do discurso de Bolsonaro.

    Assim, seguimos com o presidente: “Posteriormente, ondas de imigrantes se sucederam, trazendo esperanças que em suas terras haviam perdido. Religiões, crenças, comportamentos e visões eram assimilados e respeitados. O Brasil desenvolveu o senso de tolerância”.

    Bem… já identificamos “quem era o Brasil”. Agora vemos estes brasileiros serem “tolerantes”, “assimilando” e “respeitando” diferentes “religiões, crenças, comportamentos e visões”. A fala do presidente claramente retoma a “plasticidade” do português, o elemento branco da miscigenação exacerbada por Gilberto Freyre. Portanto, a suposta “democracia” racial decorreria da benevolência dos dominantes, caracterizada por sua plasticidade, isto é, por sua capacidade de “tolerar” e “assimilar” o caldo cultural dos dominados – e a esta altura já notamos que o termo “assimilação” significa dominar/sufocar. Mas esta não é uma dominação explícita – e esta tradição de se fazer parecer tolerante é preservada até por Bolsonaro, apelidado de “cavalão” nos seus tempos de exército. Isto é, se na frente das câmeras o discurso é de tolerância e mesmo de exaltação da diversidade, a prática é de perseguição social e policial de tradições e costumes não-hegemônicos, como ocorre com o candomblé.

    E aqui insistimos. O agente que integra é o mesmo brasileiro que realiza o movimento de independência. Este brasileiro absorve outros elementos culturais, mas não confere o mesmo valor à cultura dos povos escravizados e, consequentemente, não os concebe como dignos de fazerem reivindicações. Assim, a sua presença é tão somente tolerada na medida em que se preserva à sombra da sociedade. Portanto, compreendemos como “os diferentes tornavam-se iguais”, proferido na continuação da fala de Bolsonaro.

    Simula-se uma igualdade, posto que os povos dominados e as suas respectivas culturas jamais foram aceitos em pé de igualdade – isto é, o conflito nunca foi aceito como parte da construção de um ambiente verdadeiramente democrático. Esta “igualdade” a que Jair Bolsonaro se refere foi construída pelos dominadores. Isto é, uma igualdade que, na verdade, é absolutamente incompatível com a valorização real daquilo que o presidente ostenta orgulhosamente como um “conjunto de preciosidades culturais, éticas e religiosas”.

    Assim, a “plasticidade” que constrói a democracia racial de Gilberto Freyre pode se juntar à “placidez” da formação social brasileira de Oliveira Vianna, para quem “à sombra patriarcal deste grande senhor de engenhos, de estâncias, de cafezais vivem o pobre e o fraco com segurança e tranquilidade”.

    Com isto, Bolsonaro assume a figura de patriarca nacional, de defensor da ordem conservadora, entendendo que mobilizações sociais são bem vistas apenas quando subsidiam a sua ordem. E este detalhe é importante: a atuação do governo Bolsonaro não se restringe à perseguição de negros e indígenas, mas tem a relação histórica de perseguição e tutela a estes grupos como experiência a ser repetida quantas vezes forem necessárias para preservar privilégios.

    Podemos, assim, entender a narrativa que o presidente constrói no que segue de seu discurso:

    “Passados quase dois séculos da independência, nos quais enfrentou e superou inúmeros desafios, o Brasil consolidou sua posição no concerto das nações. Ainda no século XIX, durante o período do império, fomos invadidos e agredidos, derrotando a todos. Já no século XX, durante a II Guerra Mundial, a Força Expedicionária Brasileira foi à Europa para ajudar o mundo a derrotar o nazismo e o fascismo. Nos anos 60, quando a sombra do comunismo nos ameaçou, milhões de brasileiros, identificados com os anseios nacionais, de preservação das instituições democráticas, foram às ruas contra um país tomado pela radicalização ideológica, greves, desordem social, e corrupção generalizada”.

    O que vemos é a exaltação de três governos autoritários que sufocaram manifestações sociais que chacoalhavam a ordem.

    Estamos, portanto, preparados para entender a coerência do discurso do presidente quando ele afirma defender a democracia e a liberdade:

    “O sangue dos brasileiros sempre foi derramado por liberdade. Vencemos ontem, estamos vencendo hoje e venceremos sempre. No momento que celebramos esta data tão especial, reitero, como presidente da República, meu amor à Pátria e meu compromisso com a Constituição e com a preservação da soberania, democracia e liberdade, valores dos quais nosso País jamais abrirá mão. A independência do Brasil merece ser comemorada hoje, nos nossos lares e em nossos corações. A independência nos deu a liberdade para decidir nossos destinos e a usamos para escolher a democracia”.

    Nesta narrativa, já sabemos que quem teve a liberdade para fazer a independência e manter a ordem posteriormente foi o patriarca branco, intolerante e eugenista, oposto à imagem benevolente da miscigenação apresentada por Bolsonaro. Sabemos também que a democracia de que se fala, é a dita “democracia racial”.

    *Ulisses Rubio. Economista, Professor Universitário, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da UNICAMP.

    *Gustavo Zullo. Economista, Professor Universitário, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da UNICAMP.

    Referências:

    FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da familia brasileira sob o regime da economia patriarcal. 17. ed. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio, 1975.

    VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: historia – organização – psicologia. Belo Horizonte, MG; Niterói, RJ: Itatiaia: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1987.

    Pronunciamento do Presidente Jair Bolsonaro, 7 de Setembro de 2020. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=2iomceoXjOY. Acessado em 7 de setembro de 2020.

  • A ameaça invisível assombra a economia

    Texto escrito por Jamile de Campos Coleti

    Com 86% da população do Estado de São Paulo na faixa amarela do Plano São Paulo de retomada das atividades comerciais. A abertura de shopping centers, a retomada parcial na oferta de alguns serviços como bares, restaurantes, salões de beleza, e academias dão, nos próximos dias, seu start inicial.

    Passados quase 5 meses da pandemia de Covid-19, havia uma certa ansiedade por parte da população por consumir grande parte desses serviços. Também pela maioria dos comerciantes e empresários em retomar suas vendas. Já que enfrentam uma crise econômica desde 2014, agravada ainda mais pela recente situação de isolamento forçado.

    De acordo com estimativas da fundação Getúlio Vargas, haverá um impacto negativo de cerca de 68% nas finanças da indústria. Além de 59% no setor de comércio e de 49% no setor de serviços. Esses serão os setores que mais serão afetados negativamente em suas finanças.

    O FMI (Fundo Monetário Internacional) prevê uma crise econômica global de grande proporção devido à pandemia. A recessão estimada pelo FMI, de 4,9% para o mundo, deve se confirmar. E, para o Brasil, o quadro é ainda mais alarmante, uma vez que estamos classificados na categoria de países em desenvolvimento. Ou seja, existe uma série de barreiras estruturais que ainda não foram superadas.

    As medidas de fechamento e isolamento social afetam toda a economia, mas principalmente o consumo. Quando estávamos na fase vermelha, apenas itens essenciais eram possíveis de serem comprados presencialmente. Além disso, as pessoas ainda ficavam receosas de receber em suas casas entregas delivery – mesmo que os empresários fizessem as adequações necessárias e entrassem de cabeça na era digital.

    Em um ambiente de extrema incerteza futura, como é o caso desta pandemia, o primeiro impacto sobre os agentes econômicos (famílias e empresas) é a retração na sua renda. A causa disso é o fato de que as próprias famílias ficaram mais cautelosas em relação ao consumo. Os empresários, por seu turno, interromperam os investimentos bruscamente. Uma indicação desse fenômeno é o aumento recente nas quantias depositadas em cadernetas de poupança, ou seja, o brasileiro está poupando e se preparando para o que há por vir.

    A questão da reabertura parcial do comércio

    Quanto ao plano de flexibilização e abertura parcial do comércio, temos, por um lado, lojas fechadas e com poucos clientes. Por outro lado, ruas lotadas com consumidores lutando pelo seu espaço – como observado no último sábado dia 7 de agosto, véspera do Dia dos Pais. Em relação à abertura do comércio, há algumas considerações que devem ser levadas em conta:

    • Muitas cidades que estavam na fase 4 regrediram para a fase 1 após medidas de flexibilização entrarem em vigor;
    • O índice de Intenção de Consumo das Famílias (ICF) atingiu o menor patamar desde o ano de 2010, segundo informações da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo;
    • Há uma melhora identificada na qualidade dos serviços e atendimentos, uma vez que cada cliente que entra no estabelecimento comercial é extremamente importante para a geração de receitas;
    • A queda do nível de renda tem empurrado compradores para o comércio popular, gerando aglomerações em áreas que possuem essa característica;
    • Vendedores relatam medo em se deslocar para o trabalho, pois os meios de transporte coletivo apresentam grande possibilidade de contaminação. Muitos estão mudando as suas rotas e realizando mais baldeações para evitar linhas que possam estar congestionadas – isso normalmente aumenta o tempo de trânsito até o trabalho;
    • Existe também o acúmulo de funções dentro dos estabelecimentos, já que houve demissões e poucos funcionários ficaram para desempenhar a atividade de atendimento, venda, faturamento, estoque, etc.;

    Posto isso, o desafio é fazer com que parte importante do consumo seja retomada. Pois muitas famílias tiveram sua renda comprometida de alguma forma e as que foram menos afetadas estão bastante receosas em gastar.

    Para muitas pessoas, a ajuda oferecida pelo governo federal foi insuficiente, sendo obrigadas a buscar outras alternativas para sobreviver, afinal as despesas não cessaram. Empresários e comerciantes, por sua vez, tentam recuperar as vendas mesmo com a insegurança de estar exposto a uma grande circulação de pessoas que movimentam os centros comerciais e shoppings.

    Por fim, é importante ressaltar que o isolamento social, da maneira como foi praticado no país teve como resultado até o momento mais de 100.000 mortes. Além de um impacto psicológico sobre a população – seja pelo medo, seja pelo luto. Na economia, o isolamento afetou a renda de milhares de famílias e a sobrevivência de muitas empresas. Com este afrouxamento, o novo normal está por vir. Mas o problema da contaminação pelo Covid-19 não está ainda resolvido, nem com remédios nem com vacina. Para isso, é ainda necessário que toda a população tenha cuidado, tome medidas de segurança e tenha consciência sobre o uso correto de máscara. E sobretudo, se puder, que continue em casa.

    A autora

    Jamile de Campos Coleti é Administradora, Professora na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG/FRUTAL) e Doutora em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp.

    ** Texto publicado originalmente no blog Sobre economia


    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Como a Economia Social e Solidária pode ser a solução para esses novos tempos pós pandemia!

    Com mais de 8 milhões de casos confirmados de Covid-19 no planeta [1], passar por essa pandemia acelerou discussões que não giram em torno apenas da saúde e a busca pela cura do vírus, mas promoveu também discussões que, até então, circulavam apenas em bolhas sociais [2]

    A pandemia deixou claro os problemas da falta de investimento nos sistemas de saúde e ciência, além da avalanche de informações duvidosas recebidas diariamente (a chamada infodemia).

    A pandemia também evidenciou as deficiências sociais e econômicas vigente que insiste em seguir o raciocínio da Revolução Industrial (1760 – 1840) – com suas devidas atualizações – mas, mantendo seu principal compromisso com o maior lucro em decorrência da menor despesa possível. 

    Vimos explodir nas mídias sociais e na imprensa demonstrações, protestos e cobranças de uma situação que não era igual para todos, principalmente, advindas  dessa nova geração [3] que veio a público mostrar como a Covid-19 e seus efeitos foram sentidos de forma muito diferente (e a custo de vidas) nas minorias, como: mulheres, povos indígenas, pessoas com deficiência, comunidades marginalizadas, jovens e pessoas com contratos de trabalho precários ou da economia informal, por exemplo.

    E ao identificar essas problemáticas evidenciadas pela pandemia, às Nações Unidas [4] montou uma Força-Tarefa Interinstitucional sobre Economia Social e Solidária (TFSSE) promovendo assim a discussão e a garantia da coordenação dos esforços internacionais, aumentando sua visibilidade (da Economia Social e Solidária – SSE) como solução na recuperação pós-crise do COVID-19.

    “A pandemia expôs muitas fragilidades em nossas economias e aprofundou as desigualdades existentes, destacando a necessidade de resiliência, inovação e cooperação. Os problemas pré-crise, incluindo a quantidade e qualidade insuficientes de emprego, as crescentes desigualdades, o aquecimento global e a migração, a insustentabilidade do atual sistema industrial de alimentos, vão piorar significativamente como conseqüência das medidas tomadas para combater a emergência sanitária”.

    Documento emitido pela TFSSE em 11/06/2020.

    Nós tivemos o privilégio de conversar com o Leandro Pereira Morais que é economista, Representante do Brasil no OIBESCOOP, Consultor Sênior da OIT, Membro Suplente da Força Tarefa das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária (E mais um tantão de coisas [5]) sobre como essa iniciativa funciona e como podemos contribuir para que o futuro pós – COVID-19 ofereça condições melhores a nossa sociedade.

    Objetivos de Desenvolvimento Sustentável [6]

    Como a Força Tarefa das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária contribui para a recuperação pós-crise do COVID-19?

    R: Esse trabalho ganhou muitas conexões com outras agências das Nações Unidas e foi se transversalizando os temas relacionados a Economia Social e Solidária com outras áreas como a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), nos assuntos relacionados a segurança alimentar, orgânicos, na geração de trabalho e renda para famílias vulneráveis, promovendo, por exemplo, o acesso a alimentação mínima diária, repercutindo, inclusive em melhores condições de saúde.

    Essa transversalização se formou no que chamamos de Força Tarefa das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária.

    É importante dizer, que essas discussões já eram desenvolvidas antes da pandemia, como: os objetivos do desenvolvimento sustentável – a agenda 20/30 e às ODS.

    A economia social e solidária é uma ferramenta importante para a formação e implementação das ODS e sua relação com seu ambiente/território onde essas ações são desenvolvidas. Do ponto de vista da conexão do econômico (gerar renda e trabalho), com o social (emancipação de vulneráveis, governança democrática participativa  nas políticas públicas) e com o ambiental (com práticas sustentáveis, agricultura familiar). Essa, então, se transforma na tríade do desenvolvimento econômico, sócio-político e ambiental.

    Assim, a partir desse momento de pandemia, voltamos os trabalhos e a articulação governamental internacional para a questão de enfrentamento da pandemia e suas consequências econômicas, sociais e ambientais.

    Muitas das experiências da economia solidária podem ser utilizadas para situações emergenciais, como a disponibilização de alimento, associações de costureiras para a confecção de máscaras, por exemplo. Assim, como às de médio e longo prazo, propondo revisões e reflexões do atual modelo de desenvolvimento que vivemos. Esse modelo bastante potente do ponto de vista material e da produção, de padrões tecnológicos avançados, a chamada 4ª revolução, mas que cobra um preço alto das relações de trabalho, de espaço, produção, de consumo, sociais e ambientais.

    Portanto, todo um mundo de discussões que já perfilava antes da pandemia e que agora intensifica essas tendências e exige soluções, coloca urgência na discussão.

    E como esse padrão econômico citado reflete na sociedade nesse momento de pandemia?

    R: Pois é, como estávamos conversando esse padrão econômico, produtivo e altamente potente do ponto de vista material e de produção, que nos permite conforto, enfrentamento de momentos adversos e de acesso, por exemplo, relógios que medem sua saúde, controle de temperatura do ambiente, viagens através do continente, comunicação em tempo real e com pessoas do outro lado do mundo, enfim… não podemos negar que é fantástica essas evoluções. Por outro lado, os frutos dessa produção material não são para todos. Nem todos são convidados nesta festa!

    Ainda há pouca facilidade de acesso a essas produções materiais e inovações tecnológicas, é para quem pode pagar.

    Essa facilidade é elitista e exclusiva! Ao mesmo tempo, percebemos nesse cenário de produção material e tecnológica o aumento na concentração de renda, exclusão, desigualdade e miséria.

    A pandemia veio para desnudar de forma intensa essa realidade e não é um problema do Brasil mas no mundo todo. O sistema atual é incoerente, nós temos uma produção mundial de alimentos de 10 bilhões e um planeta com 7 bilhões, como mais de 1 bilhão e meio de pessoas passa fome diariamente? 

    Então, do ponto de vista de médio e longo prazo, talvez essa pandemia nos dê a oportunidade de rever esse padrão econômico vigente, do lucro pelo lucro. E esse não é papo de esquerda ou direita mas de reflexão e discussão para aqueles que têm o mínimo de sensatez.

    Mas, isso seria uma mudança profunda, não só de padrões mas de consciência, certo?

    Sim, essa é uma mudança estrutural, de conceitos, de sentimentos. Não é simples, mas é preciso que às pessoas pensem sobre e essa discussão tem várias facetas, das relações de consumo, trabalho, etc.

    Nas relações de consumo, já vemos mudanças. As pessoas estão repensando e tomando atitudes de mudança.

    Primeiro que vivemos em um momento que as pessoas não tem como sair de casa frequentemente, devido a possibilidade de contaminação da Covid-19 e a incerteza de ter condições financeiras e de emprego, que já era um problema antes da pandemia. 

    Hoje às pessoas repensam sua necessidade de consumo. E isso gera um olhar crítico para a compra.

    A economia, na verdade, foi se distanciando da realidade da sociedade e isso aparece nesse momento de adversidade que estamos passando. Esse diálogo que tem aparecido sobre termos que escolher entre a vida e o trabalho não é justa, é uma equação obscena, é uma guerra de narrativas e isso é muito sério!

    A base originária da estrutura da ciência econômica precisa ser revista!

    Essa ciência é organizada pelos nexos de mercado, é essa ideia do “homem econômico”, ou seja, uma caricatura tosca que se move por ideais maximizantes, portanto, o produtor maximiza o lucro, em decorrência do prejuízo ao meio ambiente, precarização o trabalho e até a aceitação do trabalho escravo.

    Já pelo ponto de vista do consumidor é a maximização do conforto, bem estar, ou seja, quando sua renda, que é limitada, maximiza o seu consumo em demandas ilimitadas. 

    Dessa forma, a economia vem se afastando da realidade e essa pandemia só desnudou essa questão. Se por um lado, se tem pessoas que podem pagar pelo acesso a saúde, alimentação e ficar em casa, por outro, temos pessoas que não tem acesso a água, o que dirá álcool em gel e no meio pessoas que lutam pendendo de um lado e do outro. 

    Então, já vivíamos uma crise estruturante e o “corona” pega carona nessa crise e foi sendo escancarado pelas minorias nas mídias sociais ao mostrar o empregado que pegou o vírus da patrão e morreu e a patrão que teve acesso a condições de saúde e alimentação digna e sobreviveu.

    E quais são os direcionamentos práticos que a economia social e solidária recomenda para que essa ideia de produção e consumo maximizante mude? 

    É importante deixar bem claro que é um processo, não é uma receita de bolo ou mágica! Mas ações individuais, apesar de serem de menor alcance, já ajudam muito a promover mudanças:

    1- Fazer a comunicação e sugestões de assunto na imprensa, sites de comunicação, compartilhar conteúdo em suas redes sociais, por exemplo, sempre de forma não agressiva mas que sensibilize e informe às pessoas sobre a economia solidária, seus princípios e discussões. 

    2- Discutir e pensar sobre o assunto – como nós fazemos aqui no curso de Economia na Unesp, colocando em discussão os conceitos da economia solidária e pensar em um mundo diferente desses padrões que estamos vivendo, como mudanças na relação do trabalho, o não haver emprego para todos e seus efeitos.

    3- Participar, financiar e divulgar ações coletivas (trabalho, social e ambiental) – Dar visibilidade para grupos de minorias e suas reivindicações, dar preferência para atividades de pequenos comerciantes, empresários, artesãos, trabalhadores informais. Não consumir produtos que vem de empresas que degradam o meio ambiente ou funcionam em situações degradantes de trabalho.

    4- Escolher governante e exigir deles após às eleições que implementem políticas públicas para que o pequeno negócio tenha melhores chances de sobrevivência, acessos a créditos e impostos justos, a relação que vivemos hoje é completamente desigual para aquele que concorre com grandes indústrias. No Brasil, a micro e pequena empresa gera 80% da capacidade de renda do país, isso sem condições mínimas, é preciso que haja políticas mais favoráveis.

    Entende-se que o Consumo Consciente não é só um ato econômico mas político também, quando eu consumo de uma marca que sabidamente precariza o trabalho, não paga impostos ou degrada o meio ambiente, eu estou sendo conivente com o processo. Claro que o consumo dos pequenos ainda é mais caro, produtos orgânicos, por exemplo, mas ao investir comprando desse pequeno produtor geramos impactos macro na sociedade.

    A ideia que vimos aumentando durante a pandemia como “compre do pequeno” ou “compre no seu bairro” sempre foi uma bandeira da economia social e solidária. E essa é uma consciência que começou aumentar não só com as pessoas comuns, mas vemos empresários e empresas também começando a mudar sua atitude.

    E como a divulgação científica pode contribuir com essa mudança estrutural?

    A ciência em si tem um papel fundamental nisso, fazendo ciência em prol da maioria. 

    O cientista precisa colocar seu esforço em, além de desenvolver aquela área e realizar descobertas, para que sua pesquisa tenha uma ação social e não fique apenas no seu meio, que tenha uma utilidade pública, social e que não privilegie o sistema econômico e de mercado vigente. 

    Um exemplo, é essa busca pela vacina para o Covid-19. Será que essa vacina terá um direcionamento de bem de mercado e o acesso será restrito a quem possa pagar por ela? Ou terá um direcionamento social que independentemente da condição financeira, cor, credo, opção sexual, por exemplo, possa ter acesso a ela?

    Acho que todo cientista tem esse papel de rever a ciência de forma crítica, porque ela não está desconectada desse padrão que discutimos aqui, a disponibilização das informações sobre ciência, inclusive.

    A ciência, sua evolução e suas descobertas também foram disponibilizadas pela lógica de mercado, ou seja, para quem podia pagar. É claro, que existe o problema de financiamento, mas o que é possível se fazer, como cientista, é pensar na ciência como coletivo e disponibilizar seus frutos para que todos tenham acesso, para o bem comum.

    Por fim, nossa ação aqui na Força tarefa é feita, por sua maioria de professores/pesquisadores, de todo os lugares do mundo, dedicando nosso tempo em orientar, construir e reunir uma literatura e arsenal conceitual, teórico e empírico para contribuir para a implementação da Economia Social e Solidária nos governos mundiais, essa é uma das atividades em prol do bem comum que viemos explanando aqui.

    Dica de evento:

    O Fórum Político de Alto Nível, plataforma central das Nações Unidas para o acompanhamento e a revisão da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, prevê a participação plena e efetiva de todos os Estados Membros das Nações Unidas e Estados membros de organizações especializadas.

    A reunião do fórum político de alto nível sobre desenvolvimento sustentável em 2020 será realizada de terça – feira, 7 de julho a quinta-feira, 16 de julho de 2020 , sob o apoio do Conselho Econômico e Social. Isso incluirá a reunião ministerial de três dias do fórum, de 14 de julho a 16 de julho de 2020.

    Acompanhar o evento: ttps://sustainabledevelopment.un.org/hlpf/2020

    Para saber mais:

    [1] Para conferir os dados atualizados da Covid – https://covid19.who.int/ e https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51718755

    [2] “O fenômeno de Bolhas Sociais é conhecido em diversas áreas e pesquisas estão sendo feitas para analisar seu impacto na sociedade. Se caracteriza pela limitação dos indivíduos ao acesso a informações que tem afinidade e a falta de acesso a informações divergentes ou diferentes das de seu interesse.”

    EVANGELISTA, Bruno; BATISTA, Gabriela; DE OLIVEIRA, Jaqueline Faria. Detecção Automática de Bolhas Sociais no Twitter em uma Rede de Usuários de Tecnologia. In: Anais do VII Brazilian Workshop on Social Network Analysis and Mining. SBC, 2018.

    [3] Falamos aqui das gerações Y e Z: A geração, conhecida como Y – nascidos entre 1980 a 1995 – presenciou a plena expansão das inovações tecnológicas, o nascimento da internet e o início da mudança na comunicação e na era da informação, estes foram criados com a preocupação pela segurança e pelo excesso de estímulos, suas ambições estão na prosperidade econômica, ou seja, é movida por resultados, desafios e interesses de ascensão rápida.

    Já a geração Z – nascidos entre 1996 a 2000 – nasce em plena era da informação e da tecnologia na palma da mão, essa é uma geração conectada e informatizada 100% do seu tempo, prefere o consumo rápido e facilitado porém com pouca interação social presencial, uma vez que a conectividade supri suas necessidades emocionais. Essa geração não procura o acúmulo de bens, mas valoriza o dinheiro para que este sustente seu padrão e qualidade de vida, buscando, muitas vezes um perfil empreendedor. 

    Baby Boomer: https://pt.wikipedia.org/wiki/Baby_boomer

    Geração X: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gera%C3%A7%C3%A3o_X

    Geração Y: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gera%C3%A7%C3%A3o_Y

    Geração Z: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gera%C3%A7%C3%A3o_Z

    [4] Para a lista completa de membros e observadores do UNTFSSE, visite: http://unsse.org/ – Para mais informações, entre em contato com: Presidente: Vic Van Vuuren (OIT), vanvuuren@ilo.org; Secretaria Técnica: Valentina Verze (OIT), verze@ilo.org

    Ainda mais informações sobre o assunto:

    Sobre a Divisão de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

    Textos originais sobre a conscientização e contribuição para o corpo de conhecimentos sobre SSE como um meio de implementação dos ODS

    ESS Collective Brain é um espaço interativo virtual que visa enriquecer as atividades da OIT em  Economia Social e Solidária (ESS) – http://ssecollectivebrain.net/?lang=es

    Observatório Ibero-Americano de Emprego e Economia Social e Cooperativa

    [5] Leandro Pereira Morais. Professor Doutor e Pesquisador do Departamento de Economia e Coordenador do Núcleo de Extensão e Pesquisa em Economia Solidária, Criativo e Cidadania (NEPESC) da UNESP – ARARAQUARA, Membro Titular do Conselho Científico Internacional do CIRIEC, Representante do Brasil no OIBESCOOP, Consultor Sênior da OIT nas áreas de Economia Social e Solidária e Cooperação Sul-Sul, Membro Suplente da Força Tarefa das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária. Áreas de Interesse em Pesquisa: Políticas Públicas de Economia Social e Solidária, ODS, Cooperação Sul-Sul e Ecossistema Empreendedor para Economia Social e Solidária

    Ainda mais um pouco sobre o Leandro Morais: https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/38780/leandro-pereira-morais/ e http://lattes.cnpq.br/8472617785156618

    [6] Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) (ou Objetivos Globais para o Desenvolvimento Sustentável) são uma coleção de 17 metas globais, estabelecidas pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Os ODS são parte da Resolução 70/1 da Assembleia Geral das Nações Unidas: “Transformando o nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, que depois foi encurtado para Agenda 2030. As metas são amplas e interdependentes, mas cada uma tem uma lista separada de metas a serem alcançadas. Atingir todos os 169 alvos indicaria a realização de todos os 17 objetivos. Os ODS abrangem questões de desenvolvimento social e econômico, incluindo pobreza, fome, saúde, educação, aquecimento global, igualdade de gênero, água, saneamento, energia, urbanização, meio ambiente e justiça social. https://pt.wikipedia.org/wiki/Objetivos_de_Desenvolvimento_Sustent%C3%A1vel

    Este post foi publicado originalmente no blog Mindflow

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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