Tag: ensino aprendizagem

  • E a escola, como vai?

    O ensino remoto nos faz retornar a décadas passadas, onde o acesso à educação era para poucos, num formato totalmente tecnicista, com um currículo imutável e por meio da aplicação de uma mesma “técnica pedagógica”.

    É provável que muitos dos que irão ler este texto tenham filhos em idade escolar ou conheçam pessoas que os tem. É provável também que se perguntem como têm sido as atividades desenvolvidas pelas escolas e se há sentido a educação remota imposta pelo confinamento social. Um fato é, dentre pais, professores, gestores e estudantes, provavelmente encontraremos grande insatisfação com esse formato. Mas enfim, o que fazer em relação a esta situação? E se tivermos um segundo semestre também a distância?
    Sabemos que no Brasil há muitos formatos de educação dentro de um mesmo sistema. Estados, municípios, redes militares, redes federais e privadas compõem um espectro de modelos educacionais e, nesse período de isolamento, toda essa variedade migrou para o caráter remoto. Nessa migração, à outrora importantíssima diversidade do sistema educacional brasileiro tem se colocado como um desafio por vezes insuperável para as instituições e os resultados a se esperar de todo esse processo não tem sido tão promissores.

    Olhando para as propostas
    Ao percorrer os modelos de ensino remoto implementados vemos semelhanças e diferenças. O estado de São Paulo, por exemplo, adotou a proposta remota pela implementação de um aplicativo de celular para disponibilização de conteúdos por meio de arquivos e aulas, com preparo de um material específico para o momento da pandemia além das salas virtuais por meio da plataforma google classroom. Nesse formato, os estudantes da rede entram TODOS ao mesmo tempo no aplicativo para assistir as aulas (que tem horário definido por série) ou o fazem por meio do canal digital da tv cultura, minando qualquer possibilidade de interação). O material produzido não carrega conteúdos síncronos com aqueles estabelecidos em cada série(1).
    Numa linha totalmente diferente, o Instituto Federal de São Paulo (IFSP), por sua vez, optou pela suspensão das atividades, mantendo ações de vínculo com os estudantes enquanto planeja ações futuras. Nesta estratégia são desenvolvidas ações como clubes de leituras, debates sobre filmes, temas atuais, etc., mas sem a cobrança de uma formalização do ensino ou cumprimento de conteúdos curriculares.
    Já as redes privadas, para desespero dos pais, têm adotado cada qual a sua estratégia de sobrevivência. Aulas síncronas ou gravadas, plantões online, disponibilização de materiais e tarefas que devem ser elaboradas e entregues para o acompanhamento pelo professor, dentre outras. O objetivo, na maior parte dos casos, é manter o conteúdo em dia, preocupação que pode girar em torno da manutenção do número de matrículas (e pagamentos) como também em relação aos exames vestibulares.
    A linha comum de todas as propostas no entanto, se mantêm: os estudantes, juntamente com seus responsáveis (no caso da Educação Fundamental), devem acessar o conteúdo em casa, realizar ações e de algum modo apresentar uma devolutiva. Tudo remotamente. É diante deste cenário que estamos e que podemos pensar um pouco a respeito. Me proponho a colocar três questões das inúmeras que são possíveis para o debate.
    Primeiramente, como já apresentado por Natália Flores e Ana Arnt, para além do acesso aos recursos, nem todos os estudantes têm condições adequadas de aprendizado no ambiente domiciliar. Podemos considerar que a escola é um espaço pensado para prover condições mínimas de estudo (ainda que consideremos as condições problemáticas de algumas instituições). Independente de uma proposta tradicional, construtivista, sócio-interacionista, etc., o ambiente escolar possibilita um espaço-tempo onde é possível ler, escrever, dialogar, além, é claro, de obter orientações do e com o profissional professor. Nas casas, o conteúdo produzido (neste momento de forma pouco planejada) é transmitido para um aluno que muitas vezes não possui condições físicas para estudar nem orientação adequada para tal. Na na escola reconhecemos os ritmos e nos adequamos a eles enquanto que no ensino remoto isso não tem sido possível.
    O segundo ponto que toco é a forma como a implementação das ações foi pensada e quais aspectos foram considerados. Todos que trabalham com educação conhecem bem os termos avaliação diagnóstica e planejamento. A ideia de avaliação diagnóstica vai além de conhecer conhecimentos prévios de física, química, matemática ou qualquer outra área. Soma-se a isso, conhecer quem são os estudantes e suas realidades para que o planejamento educacional seja feito e refeito quantas vezes for necessário.
    E então nos questionamos: que dados diagnósticos foram considerados na proposição de uma plataforma única de acesso a conteúdos? Distribuem-se aplicativos a quem não tem acesso, propõe-se um material diferente do currículo e que nem ao menos tem-se a certeza de estarem chegando aos domicílios. Propõem-se que os pais realizem as tarefas com os filhos quando estes também têm trabalho remoto a fazer (na melhor das hipóteses).
    Para além dos dados gerais como os da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAD 2017, que mostra que o acesso dos municípios à banda larga temos os dados específicos, das escolas, as quais conhecem os estudantes matriculados. Quando se propõe a implementação de um único projeto a populações totalmente distintas, incorre-se no erro crasso de acreditar que todos são perfeitamente iguais em temos de condições e de aprendizagem. Ou seja, nessa proposta, esquecemos o fundamental: quem são os alunos!
    Soma-se a este fato, como terceiro aspecto, a supervalorização da técnica frente ao objeto do aprendizado. Nunca antes se falou tanto em tecnologias educacionais como antes. Nós, professores, buscamos aprender a lidar com ferramentas novas de um dia para o outro (literalmente), empurramos aos alunos e pais que também aprendessem. E produzimos conteúdos digitais de maneiras como nunca faríamos, não fosse a pandemia, com uma falsa impressão momentânea de que com isso venceríamos toda a problemática imposta. Triste fim.
    Ainda que todos tivessem acesso, esquecemos que o formato digital imposto é, sim, limitador a uma proposta tecnicista de ensino uma vez que vem tolhe a interação e o diálogo, impondo um mesmo conteúdo apresentado da mesma forma à todos. A diversidade, outrora aspecto de possibilidades para o ensino, é nesse momento desprezada pois a técnica, por mais atualizada que seja, não considera a realidade. O ensino remoto nos faz retornar à décadas passadas, onde o acesso a educação era para poucos, num formato tradicional, com um currículo imutável e por meio da aplicação de uma mesma “técnica pedagógica”.
    O que podemos fazer diante deste cenário? Manter ou cancelar o ano? Trabalhar conteúdos ou não trabalhar? E o vestibular?
    Obviamente não há saída mágica para a situação. Mas é fato que dados nos auxiliam em ações. Estamos a completar quase dois meses de isolamento e, dependendo do sistema, de duas a oito semanas de ensino remoto. Temos, além dos dados que foram desconsiderados inicialmente, de quem são nossos estudantes, temos ainda o número de acessos, materiais recebidos, respostas ao sistema e podemos ainda acessar outros, se assim for desejável. Então, consideremos estes e nos perguntemos “O que aprendemos com isso e como podemos nos utilizar desses dados para repensar e replanejar as ações?” Na iminência de um segundo semestre também a distância, o mais coerente a se fazer é planejar com bases e não com achismos. Observar que as escolas, mesmo fazendo parte de um mesmo sistema educacional tem especificidades e buscar agir de acordo com estas características é crucial. E se tivermos um segundo semestre a distância? Muitos erros estão aí. Cabe a nós planejarmos as ações, para não cometê-los novamente.

    1. Portal de notícias do Estado de São Paulo: https://www.saopaulo.sp.gov.br/ultimas-noticias/educacao-retoma-ano-letivo-com-ensino-remoto-e-distribuicao-de-material-pedagogico/

    2. Nota da Reitoria do Instituto Federal de São Paulo. Disponível em: https://www.ifsp.edu.br/images/pdf/Noticias/Comunicado_01_2018_PRE.pdf
    3. Natália Flores. Ensino Remoto Emergencial: não é só sobre acesso e equipamentos… disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/covid-19/ensino-remoto-emergencial-nao-e-so-sobre-acesso-e-equipamentos/.
    4. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2017 – disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101631_informativo.pdf


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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Ensino Remoto Emergencial: não é só sobre acesso e equipamentos…

    Se a disponibilidade de tecnologias já limita quem pode ter acesso ao ensino remoto, o problema se torna ainda mais complexo quando analisamos as condições deste novo contexto de aprendizagem. É fundamental, neste momento, compreendermos que o ensino proposto está longe de ser o que se preconiza como educação, tanto quanto Educação à Distância. Vivemos um momento em que as escolas foram fechadas por uma situação de saúde pública. As escolas (e todos os serviços) foram fechados enquanto tentávamos (e ainda tentamos) entender tudo o que acontece e buscamos nos adequar da melhor maneira possível – individual e coletivamente.

    Helder Gusso é professor e pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e tem refletido sobre a aprendizagem do ensino remoto emergencial. O pesquisador concedeu uma entrevista à Natália Flores (que assina esta postagem), e demonstrou preocupação com o ensino remoto emergencial, uma vez que a realidade das famílias brasileiras é muito heterogênea. Isto pode acarretar na falta de condições em proporcionar um ambiente favorável para o estudo de crianças e adolescentes. Inúmeros fatores entram em jogo, como a mudança na rotina, o aumento de demandas da casa, a preocupação excessiva com a contaminação, entre outros.

    Gusso aponta que mesmo que consiga acompanhar as atividades remotas, um estudante cuja família tem que lidar com problemas financeiros por conta da pandemia, parentes doentes ou o risco eminente de contaminação, caso familiares estejam trabalhando durante o período de quarentena, pode ter seu rendimento escolar comprometido. Entra na lista dos possíveis problemas, o fato de que muitos estudantes que não têm um lugar calmo e isolado para estudar, caso comum nas periferias urbanas.

    Atividades pedagógicas remotas e questões legais

    É importante pontuar que quando se fala em acesso há um grande abismo entre ter equipamentos, ter serviço de internet (com um sinal adequado para ver os materiais escolares sem restrição de dados já discutido em postagem anterior) e ter condições de acompanhar as atividades propostas pelas escolas e professores.

    E tudo isto ainda envolve um empenho público que não apenas legitime as ações, mas dê suporte técnico, legal e didático pedagógico para não aprofundarmos ainda mais as desigualdades sociais que virão em função da pandemia causada pela COVID-19.

    No dia 29 de Abril, o Conselho Nacional de Educação (CNE)* lançou o Parecer Com Diretrizes Para Reorganização dos Calendários Escolares e Realização de Atividades não presenciais pós retorno. Há vários pontos que são pauta para outras postagens. Ressaltaremos apenas que o citado Parecer aponta que atividades “não presenciais” podem ou não ser mediadas por tecnologias digitais, citando outras alternativas.

    No entanto, mais do que isso, o parecer enfatiza a necessidade de comunicação entre escola e comunidade escolar (pais e alunos) e produção de guias que orientem não apenas os estudantes, mas seus responsáveis legais, sobre o planejamento e rotina de estudos, enquanto este período durar.

    Embora o texto traga avanços e legalidade para ações necessárias, indique a comunicação como imperativa e que as atividades não presenciais não precisam ser mediadas por tecnologias digitais, não indica saídas para isto, apontando, inclusive, uso de redes sociais como whatsapp e outros comunicadores instantâneos. Além disso, no Parecer a ênfase em conteúdos e atividades que supram conteúdos regulares se faz presente, especialmente na orientação para as séries Finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio.

    Novamente, as preocupações do pesquisador Gusso se fazem relevantes, pois existe a necessidade de nos atentarmos que este não é um momento de suprirmos “todos os conteúdos” que seriam trabalhados normalmente em sala de aula presencial. Não há condições de os docentes acompanharem os estudantes com a qualidade e a efetividade necessária.

    Além disso, ignora-se a possibilidade de excessos de atividades e falta de interatividade que, especialmente para as crianças mais novas, pode ser até mais importante do que toda a centralidade no conteúdo que comumente acaba sendo o foco nestes debates.

    Segundo Luiz Carlos de Freitas, professor e pesquisador aposentado da Faculdade de Educação da Unicamp, é preciso ter cuidado com a sobrecarga de responsabilidade atribuída aos pais (que têm sido chamados de tutores em alguns casos, neste processo). A sobrecarga diz respeito às condições dos pais em atuarem de forma didática e pedagógica em relação às atribuições que comumente são não somente de docentes e escolas, mas de órgãos públicos governamentais. Freitas cita, especificamente, a situação das provas padronizadas que cobram conteúdos formais (aqui em São Paulo temos a SARESP, por exemplo). 

    Como o ensino emergencial deve ser encarado, então?

    Diante dos limites das tecnologias, muitos professores e pesquisadores da área da educação acentuam o fato do ensino remoto emergencial ser uma solução momentânea para a situação que estamos vivendo. Estamos em situação de emergência e é deste modo que temos que encarar, também, a situação no ensino. O Ensino Remoto Emergencial funciona como ferramenta para distrair e ocupar os estudantes com atividades complementares e não obrigatórias nas agendas escolares. 

    Essa é a posição defendida por vários especialistas da educação, entre eles, o próprio Helder, que estuda as razões do fracasso escolar. “Achar que os estudantes estão aprendendo o que estava previsto para eles aprenderem neste mês de março/abril e voltar, depois da pandemia, ao ensino presencial com essa suposição talvez nos coloque numa posição bastante complicada”.

    Segundo o pesquisador, alunos que não conseguem acompanhar as primeiras aulas de um semestre letivo têm grandes chances de fracassar, pois não conseguem aprender a base necessária para temas mais complexos que vêm na sequência.

    O que vai fazer a diferença é a forma como as escolas vão atuar, assim que as atividades presenciais forem restabelecidas. Formular estratégias para recuperar o que o que não foi aprendido durante esses meses, atuar de forma coletiva e compreensiva – fornecendo suporte emocional aos estudantes, que voltarão abalados pela situação – podem ser algumas soluções.

    Também neste blog:

    Desigualdade social e tecnologia: o ensino remoto serve para quem?

    Para saber mais

    BRASIL. CNE. (2020). Parecer Com Diretrizes Para Reorganização dos Calendários Escolares e Realização de Atividades não presenciais pós retorno.

    FREITAS, Luiz Carlos. (2020) Pais Defendam Seus FilhosAvaliação Educacional, publicado em 04 de Abril de 2020.

    GUSSO, Helder. Entrevista concedida à Natália Flores no dia 03 de abril de 2020 .

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

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