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  • Entendendo O Novo Ensino Médio: Sua Lógica E Promulgação

    Dentro de um período em que vivenciamos uma pandemia global, em que a área educacional sofreu com a tentativa de adaptação para um ensino remoto, tivemos também outras estruturações no ensino básico brasileiro. Em 2017, foi promulgada a nova Base Nacional Comum Curricular, documento direcionador do currículo de toda a educação básica no país. Juntamente, também foi promulgada a reforma do ensino médio, que se popularizou como “novo ensino médio”, que está sendo implementado agora, no ano de 2022. Nesse sentido, vamos discutir sobre esse novo ensino médio, sua implementação e as problemáticas envolvidas nessa proposta.

    Como o novo ensino médio foi pensado?

    Antes de mais nada, vamos pensar um pouco em como ela foi pensada e promulgada, e o que está determinado em sua estrutura legal. Primeiramente, pensemos no momento histórico que o documento foi desenvolvido. No ano de 2016, o Brasil sofreu um duro golpe com a retirada da presidenta Dilma Rousseff de seu cargo, assumindo o vice Michel Temer. O governo de Temer baseou-se em uma agenda neoliberal, centralizando o debate em lógicas de mercado e de propostas individualizantes.

    Essa característica pode ser observada na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que estava sendo pensada e estruturada ainda no governo Dilma, mas foi rapidamente modificado para atender essa lógica neoliberal. A própria BNCC já tem a estrutura do novo ensino médio, promulgadas juntas na Lei 13.415 no dia 16 de fevereiro de 2017. Uma característica importante que deve ser analisada aqui é a velocidade da promulgação dessa nova lei, estratégia adotada para não existir um debate sério e crítico entre os professores, acadêmicos e sociedade sobre essa nova proposta.

    Esse debate em outros lugares…

    Sob o mesmo ponto de vista, Costa e Silva (2019) afirmam que a lógica de implementar uma nova estrutura para o ensino médio parte de uma tentativa de copiar o modelo norte-americano financiado por Bill Gates. Já aqui em terras tupiniquins, no governo de Temer, o financiamento e a própria reestruturação do currículo do ensino médio foi principalmente feita pela fundação Lemann. Por certo, a lógica neoliberal já pode ser analisada aqui mesmo: no lugar de procurar acadêmicos da área ou as estruturas curriculares já estabelecidas no Brasil – como as Diretrizes Nacionais Curriculares, o MEC decidiu abraçar a lógica mercadológica e empresarial.

    Por causa da lei que estabelece um prazo de cinco anos para o cumprimento da reestruturação do currículo escolar, estamos observando o início de sua implementação real apenas agora, em 2022, com previsão para durar até 2027. Considerando que são modificações muito expressivas, as escolas têm apresentado grandes dificuldades em se adaptar e conseguir cumprir com esse novo modelo. Mas o que exatamente é o novo ensino médio?

    O novo ensino médio: discurso de uma lógica neoliberal 

    Essa nova lei nos mostra duas grandes mudanças no ensino médio. Inicialmente, analisaremos a carga horária exigida. Inicialmente, a LDB propunha uma carga de 800 horas anuais para o ensino médio. A nova lei estabelece uma carga horária de 1400 horas. Isso implica que necessariamente que o curso de ensino médio será em período integral. Qual o apoio financeiro e estrutural que as escolas receberão para conseguir abraçar e manter uma quantidade maior de estudantes? Como esses estudantes irão se alimentar durante esse período? Estudantes que já precisem trabalhar por necessidade familiar, terão apoio financeiro? Essas questões ficam pouco claras quando analisado o documento legal.

    Porém, é na segunda parte em que percebe-se a grande diferença: os itinerários formativos. Basicamente, os estudantes podem escolher dentre 10 itinerários o que eles querem cumprir. Cada itinerário contém ou uma ou duas áreas do conhecimento. O estudante pode escolher um itinerário que seja apenas da área de Matemática, ou um que seja de Ciências da Natureza e Linguagens e suas tecnologias, por exemplo. Todos os itinerários estão disponíveis para analise no site do novo ensino médio de São Paulo.

    Captura de tela do site do novo ensino médio de São Paulo, com o texto:
Áreas de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e Linguagens e suas Tecnologias – Cultura em movimento: diferentes formas de narrar a experiência humana;

Áreas de Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Matemática e suas Tecnologias – Meu papel no desenvolvimento sustentável;

Área de Linguagens e suas Tecnologias – #SeLigaNaMídia;

Áreas de Matemática e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas – Ciências Humanas, Arte, Matemática. #quem_divide_multiplica

Área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas – Superar desafios é de humanas;

Áreas de Linguagens e suas Tecnologias e Ciências da Natureza e suas Tecnologias – Corpo, saúde e linguagens.

Área de Ciências da Natureza e suas Tecnologias – Ciência em ação!;

Áreas de Linguagens e suas Tecnologias e Matemática e suas Tecnologias – Start! Hora do desafio!

Área de Matemática e suas Tecnologias – Matemática conectada;

Área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas – Liderança e Cidadania.
    Itinerários formativos ofertados no novo ensino médio. Fonte: Secretaria de Educação do Estado de São Paulo

    Pensemos pelos estudantes…

    Em outras palavras, os estudantes fazem a escolha no primeiro ano do ensino médio e gradualmente a carga horária do itinerário vai aumentando.

    Vamos apenas relembrar aqui que estamos falando de pessoas, menores de idade, com cerca de 13 a 17 anos, supostamente escolhendo sua trajetória de ensino.

    No primeiro ano, o estudante ainda tem uma grade curricular com todas as áreas do conhecimento. Todavia, no último ano, o currículo padrão para todos os estudantes conta apenas com as disciplinas de matemática e língua portuguesa, e o restante da carga horária sendo atribuída às disciplinas do itinerário escolhido. Resumidamente, um estudante que “optar” pelo itinerário de matemática não terá nenhuma disciplina de ciências humanas e suas tecnologias no último ano do ensino médio.

    Mais do que isso, a noção de opção não é tão “livre” e tranquila assim, para os estudantes. Segundo as próprias orientações da secretaria do Estado de São Paulo, as escolas não têm a obrigação de oferecer todos os itinerários formativos, apenas os itinerários que o corpo docente tiver a possibilidade de ofertar.

    Portanto, pode-se colocar muitas questões sobre essa reestruturação do novo ensino médio

    Os estudantes conseguirão se formar cidadãos críticos com um currículo que excluiu áreas do conhecimento? Como esses professores nas escolas conseguirão adaptar a rotina para esse novo currículo? Qual o apoio estatal que as escolas estão recebendo para a adaptação do ambiente escolar? Quais as vantagens de uma mudança tão brusca na formação no ensino médio? Se os estudantes quiserem um itinerário formativo não ofertado por sua escola atual, poderão mudar de escola? Quais as condições de uma vasta oferta de itinerários em cidades interioranas com apenas uma escola de ensino médio, por exemplo?

    Essas questões, que deveriam ser respondidas e organizadas desde o início do debate e da promulgação do novo ensino médio, será desenvolvida pelos professores e estudantes no cotidiano escolar. Assim, a transferência da responsabilidade das respostas dos anseios dos estudantes estará unicamente voltada para quem vivencia a realidade das escolas: os professores.

    Retornando para as questões do novo ensino médio como currículo, podemos entrar posteriormente em um outro debate sobre organização de indivíduos e como governá-los.

    A individualização como base: conhecer para governar

    A análise que focaremos, a seguir, será principalmente sobre a estrutura do currículo e as suas relações múltiplas. No caso, o currículo do novo ensino médio é um exemplo extremamente parelho ao que Silva (2013) discute sobre autogoverno dos indivíduos.

    A princípio, o currículo é uma forma de organizar o saber para ser calculável, mensurável e apoiar a administração de pessoas. A lógica de “conhecer para governar” também se propõe a ser pensada sobre o autogoverno. Assim, as formas de estruturar o conhecimento dizem sobre as estruturas que os estudantes conseguem se auto-repreender, de organizar o próprio corpo, seu tempo e ritmo de aprendizagem. Mais do que isso: os conhecimentos necessários para seguir em sua vida adulta.

    Por mais que as formas de saber atuam na forma de como governar, elas agem também no autogovernar. Por exemplo, esse caso no novo ensino médio está na escolha do itinerário formativo e nas disciplinas de projeto de vida e de formação profissionalizante. Dessa forma, conforme a escolha de um itinerário formativo, o currículo coloca como parte fundamental do estudante a responsabilização da própria criação do mensurável e organização do saber governável.

    Além disso, esse processo é individualizante. Primordialmente, entende-se o processo de socialização e de diálogo como essenciais para o desenvolvimento completo do estudante em período escolar. Agora, o estudante tem como momento de formação a escolha de uma trajetória própria, de disciplinas que lhe ensinam a projetar a própria vida, a excluir certos debates de áreas de conhecimento de seu arcabouço formativo. Inegavelmente, a correlação entre o processo individualizante e a base neoliberal estabelecida neste documento fica clara. Responsabilizar a problemática do cotidiano e da vida social apenas no indivíduo é um dos pressupostos dessa doutrina política.

    Como um labirinto, o novo ensino médio apresenta uma diversidade de possibilidades e caminhos. Mas o objetivo traçado e promulgado é chegar no mesmo ponto de solidão, individualização e pensamento neoliberal que ele foi estruturado.

    Outros problemas, difíceis soluções

    Por fim, nos parece óbvio que esse novo ensino médio, apesar do discurso de favorecer o estudante e combater a evasão escolar, não foi pensado em uma realidade brasileira. Com a finalidade de criar uma nova lógica, essa estruturação serve apenas para colocar no debate escolar a individualização, a promoção de uma lógica excludente e que silencia diversos saberes e pessoas. Isto é, a sociedade, de forma geral, vai em breve notar que os estudantes vão viver na contradição discursiva em que, apesar de se afastar das propostas escolares, vão perpetuar os discursos individualizantes e de autogoverno. Por isso, temos hoje a responsabilidade de corrigir muitos erros que esses últimos governos propositalmente fizeram, e o novo ensino médio é nitidamente um deles.

    Para saber mais:

    BRASIL (1996) Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9394/1996 BRASIL.

    BRASIL (2017) Novo Ensino Médio, Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. BRASIL.

    COSTA, MO; SILVA, L A (2019) Educação e democracia: Base Nacional Comum Curricular e novo ensino médio sob a ótica de entidades acadêmicas da área educacional, Revista Brasileira de Educação [online].

    SILVA, T T (2013) Alienígenas na sala de aula: Uma introdução aos estudos culturais em educação. Editora vozes.

    O autor:

    Matheus Naville Gutierrez é Mestre e doutorando em ensino de Ciências e Matemática pela UNICAMP e licenciado em Ciências Biológicas pela UNESP. Sempre dialogando sobre educação, tecnologia, ensino superior, cultura e algumas aleatoriedades que podem pintar por ai.

    Este texto foi publicado originalmente no Blog PEmCie

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos são produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foram revisados por pares. Por fim, reitera-se o compromisso Editorial com a qualidade das informações publicadas neste projeto, podendo acontecer revisão do aceite de submissão sempre que observarmos irregularidades e desinformações sendo veiculadas. Os textos publicados são de responsabilidade dos autores e não necessariamente representam a visão do Blogs de Ciência da Unicamp e da Universidade Estadual de Campinas.

  • O ensino remoto durante a pandemia pelos olhos da Profa. Rogéria Veronezi

    Profa. Rogéria Veronezi (à esq.) e a colaboradora Giovana Veronezi (à dir.), mãe e filha. Arquivo pessoal. Todos os direitos reservados.

    Muitos têm sido os desafios que a pandemia da COVID-19 e as políticas de isolamento e distanciamento social vêm provocando no setor educacional. Devido a esse contexto, nós do Ciência Pelos Olhos Delas preparamos uma série especial com relatos e reflexões de profissionais da área sobre suas experiências. 

    O primeiro post da série contou com a participação da Profa. Dra. Michelle Rocha Parise, farmacêutica e professora do curso de Medicina da Universidade Federal de Jataí (UFJ). Em entrevista à colaboradora Carolina Francelin, a Dra. Michele compartilhou sua visão de como esta nova realidade tem afetado o ensino superior.

    Hoje a colaboradora Giovana Veronezi traz a segunda e última parte deste especial com o relato da Profa. Rogéria Veronezi sobre sua atuação no ensino fundamental e médio. O resultado você pode conferir na íntegra abaixo.


    Todas as experiências escrevendo para o Ciência Pelos Olhos Delas são especiais à sua maneira, mas não há como comparar a oportunidade de realizar uma entrevista com a nossa própria mãe. Após compartilharmos nossos relatos pessoais em relação à pandemia aqui no blog, surgiu a ideia de trazermos também uma abordagem do ponto de vista educacional, e eu imediatamente já sabia quem gostaria de entrevistar.

    Ao longo dos anos eu pude acompanhar a trajetória da Profa. Rogéria não só no papel de filha mas também como sua aluna ao longo de todo o meu ensino fundamental. Quando a pandemia da COVID-19 resultou na interrupção das aulas presenciais e no estabelecimento do ensino remoto, acompanhei de perto também como as incertezas e adaptações afetaram sua rotina profissional.

     Atualmente Professora de Língua Portuguesa e Literatura no SESI e Coordenadora Pedagógica na EMEB Prof. José Barreto Coelho, em Mococa (SP), a Profa. Rogéria conta em detalhes quais foram tais adaptações e como estas afetaram as relações aluno-professor, professor-professor e o planejamento escolar como um todo.

    1. Conte-nos um pouco sobre a sua formação e sobre a sua experiência como docente/professora.

    Minha formação inicial é em Letras. Minha primeira Pós Graduação foi na área de Psicopedagogia Institucional. Depois senti necessidade de cursar Pedagogia e, atualmente, estou cursando uma Pós em Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. 

    Minha experiência com a docência permeia desde a Educação Infantil ao Ensino Médio. Na Educação Infantil, fui professora de Língua Inglesa para crianças a partir de 4 anos de idade, experiência também compartilhada no Ensino Fundamental I. Nos segmentos do Ensino Fundamental II e Ensino Médio minha experiência maior é na área de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. 

    Além de trabalhar como docente, atuo na área de formação de professores como Coordenadora Pedagógica, função que acumulo à de professora há, aproximadamente, dezoito anos.

    2. Como a pandemia da COVID-19 afetou as atividades da instituição de ensino em que você trabalha?

    Atualmente trabalho em duas instituições de ensino: uma da rede particular e outra da rede municipal. Na primeira, sou professora; na segunda, Coordenadora Pedagógica, o que me oportunizou experienciar a situação sob as duas vertentes. 

    A pandemia afetou fortemente o modelo de educação que conhecemos, o que exigiu que as pessoas envolvidas – gestores, professores, estudantes – ressignificassem suas concepções sobre função social da escola. O problema é que tudo aconteceu de uma forma muito inesperada, e a mudança precisou ser feita num ritmo muito acelerado e num contexto de muitas incertezas. 

    O fato de estar na sala de aula muito colaborou com o meu trabalho de Coordenação Pedagógica, pois conseguia enxergar na prática as dificuldades apresentadas pelos professores que coordeno. As incertezas e as muitas novidades ocorridas no início do trabalho com o Ensino Remoto foram, aos poucos, dando lugar ao sentimento de ser necessário encarar os desafios um a um, o que significava controlar a ansiedade e reestruturar a forma como o trabalho vinha sendo desenvolvido até então.  

    A meu ver, o que mais impactou nas atividades, em ambas escolas, foi a necessidade de o professor distanciar-se de seus estudantes, uma vez que o nosso trabalho se apoia no vínculo criado diariamente na sala de aula. Além disso, a maioria dos professores e dos estudantes não estavam preparados para lidar com esse novo formato, em que a tecnologia passou a ser uma das protagonistas do sistema educacional. Interessante foi ter notado que os adolescentes, tidos como “digitais”, também tiveram dificuldades para se adaptar à tecnologia como ferramenta no seu processo de ensino-aprendizagem.

    3. Você já tinha experiência com ensino remoto anteriormente?

    Embora tenha 26 anos de experiência docente, ainda não tinha tido a oportunidade de trabalhar integralmente em um sistema de Ensino Remoto. De alguma forma, a tecnologia já fazia parte da minha rotina de trabalho, mas num sistema híbrido.

    Aprender a lidar com as aulas síncronas talvez tenha sido o meu maior desafio, pois é como se você fosse abduzido da sua zona de conforto – a sala de aula – e teletransportado para a frente de uma tela de computador, com quem passa a conversar. O diálogo passa a ser, então, um monólogo, pois geralmente os adolescentes têm resistência em abrir as câmeras e interagir com o professor.

    É diferente de um curso on-line em que você se matricula por vontade própria, como estudante, e sabe que seu contato presencial com o professor será limitado ou, dependendo do curso, inexistente. No Ensino Remoto, ninguém teve a chance de optar.  

    4. Quais foram as adaptações necessárias para passar do ensino presencial para o remoto?

    As incertezas trazidas pela pandemia da COVID-19 fizeram com que as adaptações fossem acontecendo de forma gradual, pois no início não havia como mensurar o tempo em que ficaríamos afastados do ensino presencial. Nas escolas em que trabalho, por exemplo, uma das primeiras adaptações foi com relação ao Calendário, com a antecipação das férias de julho para abril. 

    Depois vieram as adaptações referentes à organização dos estudantes para trabalharem em um novo modelo, distantes dos seus colegas e professores;

    à disponibilização de plataformas educacionais para acesso a aulas síncronas, se possível;

    à postagem e ao acesso das atividades;

    ao investimento na formação de professores quanto a novas tecnologias;

    à reorganização do planejamento;

    à garantia de feedbacks, tanto do professor para o aluno quanto o contrário;

    ao como garantir o cumprimento das atividades pelos alunos;

    ao como auxiliar o estudante que sentisse dificuldades com as atividades propostas.

    Digo que as adaptações foram, e estão sendo feitas, de forma gradual porque muitas questões novas aparecem cotidianamente. O que fazer, por exemplo, com um estudante que, de repente, deixa de cumprir as atividades propostas mesmo tendo condições favoráveis ao acesso? Nesse momento é necessário um processo de adaptação, no sentido de se pensar em uma estratégia que possa ser transformada em uma ação eficiente, principalmente para o aluno.  

    5. Como foi a reciprocidade dos alunos no início? E a assiduidade? Todos os alunos conseguiram aderir ao ensino à distância?

    É preciso ser realista com a situação que estamos vivendo: os estudantes não têm experiência com esse sistema de ensino e, mesmo após seis meses de trabalho, podemos dizer que muitos ainda estão em fase de adaptação. Analisar a reciprocidade dos alunos implica analisar outros fatores que interferem nesse processo, como o fato de o Ensino Remoto não ser adequado para todos os tipos de estudantes, principalmente para aqueles que apresentam algum tipo de dificuldade. 

    Penso que a idade também interfere nesse processo: quanto mais novo o estudante, mais difícil lidar com o ensino remoto. Como já disse anteriormente, Ensino Remoto não é sinônimo de Ensino à Distância, embora em ambos o contato entre professor e aluno não aconteça como no ensino presencial. No Ensino à Distância o estudante, geralmente já na fase adulta, está consciente de sua escolha quando opta por um pós-graduação, por exemplo. 

    Em ambos os modelos, estudar exige uma disciplina muito maior que estudar em uma sala de aula, principalmente porque o aluno tem que aprender a gerir o seu próprio tempo. Imagine quão complicado isso pode ser para adolescentes cujos pais precisam sair para trabalhar de manhã e deixá-los sozinhos em casa…  No ensino presencial, os estudantes encontram um espaço pensado e organizado para o propósito da aprendizagem. No Ensino Remoto, o estudante perdeu essa referência e precisou se reorganizar. Obviamente, a reciprocidade e participação não têm sido 100%, e muitos são os fatores que podem justificar esse resultado, desde a dificuldade de acesso à falta de autonomia dos estudantes.  

    6. Você alterou a forma de avaliar o desenvolvimento/aquisição de conteúdo, a forma de aplicar provas e trabalhos?

    Nesse modelo, tudo mudou, inclusive a forma de avaliar o desenvolvimento e aquisição de conhecimentos. Sou consciente de que muitos alunos, durante a prova, resolvem as questões a partir de consultas na internet, conversas com colegas pelo WhatsApp… Não há como evitar isso. Então é preciso mudar o olhar sobre como avaliar, assim como o paradigma de que o aluno deve fazer essa ou aquela atividade para “ganhar nota”. Quando meus alunos me fazem a fatídica pergunta “Vale nota, professora?”, eu respondo “Vale conhecimento!”. 

    Acredito ser importante eles se convencerem de que a prova que fazem na escola é equivalente a qualquer outro processo avaliativo: a habilitação para dirigir, por exemplo. No momento da prova, o “candidato a motorista” não deve mostrar ao avaliador o resultado de tudo aquilo que aprendeu durante as aulas com o instrutor da autoescola? Tento convencer meus alunos de que na escola o processo deve ser o mesmo. 

    Outra problemática presente é o fato de o distanciamento entre professor e aluno impossibilitar a mediação do professor, tão necessária ao processo de ensino-aprendizagem. Quando estamos em sala de aula, há como percebermos a evolução do estudante através da observação durante a realização dos exercícios, a participação nas aulas, o envolvimento com as atividades propostas… No presencial, é possível fazer, como nós costumamos dizer, um trabalho “corpo a corpo”: se o aluno tem dificuldade, o professor senta com ele e o ajuda a resolver o exercício, por exemplo. No formato remoto isso inexiste, por mais que se tenha contato com o aluno nas aulas síncronas, em que, vale lembrar, há ainda um grande dificultador: o fato do aluno não interagir com o professor.

    7. Quais você acredita que são os maiores desafios neste sistema? 

    São muitos os desafios neste momento, mas um dos maiores, na minha visão, é garantir que todos os estudantes tenham acesso às atividades propostas, consigam organizar-se, tornar-se autônomos e, consequentemente, desenvolver as competências e habilidades necessárias à sua aprendizagem. Outro grande desafio é o professor conseguir lidar com as mudanças inerentes ao contexto atual e reconhecer a urgência de a necessidade de rever o seu papel como profissional do conhecimento.

    8. Você pretende continuar com alguma atividade online após o retorno às aulas presenciais?

    Não há como nos desvencilhar das novas estratégias que passaram a fazer parte do nosso planejamento. O ensino híbrido, que já não era novidade em educação, ganhou seu espaço e, efetivamente, permanecerá nos planejamentos pós-pandemia, como a “aula invertida”, que dá aos alunos a oportunidade vir à aula presencial repertoriados sobre o assunto que será discutido. 

    Não se trata de descartar todas as estratégias utilizadas antes da pandemia, mas, sim, de renová-las. Acredito que nós, professores, descobrimos novas formas de ensinar, de tornar nossas propostas muito mais significativas para os estudantes e não podemos abrir mão disso. Coordeno professores que foram meus professores e que, apesar da vasta experiência como docentes, estão se redescobrindo, aprendendo a ensinar através de meios tecnológicos. Não foi fácil no começo, mas já comemoram suas conquistas.

    9. Como você acha que essa experiência coletiva vai impactar o futuro da educação no pós-pandemia?

    Espero que essa experiência coletiva mude a nossa forma de pensar a educação. Que os alunos entendam que a escola é um lugar onde vão para compartilhar experiências, aprender, se divertir, criar vínculos, descobrir suas competências e habilidades. Que os professores se assumam como professores, como profissionais do conhecimento, que se preocupem em estar sempre se preparando para formar esses jovens que, diariamente, estão sob nossa responsabilidade. Talvez alguns, ao ler essa resposta, pensem que eu esteja sendo utópica, mas se não idealizarmos uma mudança ela nunca será realidade.


    Obrigada, mãe, por aceitar o convite e pelas valiosas reflexões. Acredito que muitas instituições de ensino compartilham desta realidade de ainda vivenciarem uma fase de adaptação em adequar este novo modelo de ensino às necessidades dos alunos e preparação dos professores, mesmo após meses de ensino remoto. Adicione diferenças socioeconômicas que limitam o acesso de muitos à esse formato digital e o desafio se torna ainda maior. Neste caminho, que cada vez mais as vozes de professores e profissionais da educação sejam reconhecidas e amplificadas.

    Este texto originalmente foi escrito e postado no blog Ciência pelos olhos delas

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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