Tag: epidemia

  • Minhas impressões: “Contágio”, de David Quammen

    Divulgado como o livro que previu a pandemia da COVID-19, livro “Contágio: Infecções de origem animal e a evolução das pandemias”, escrito em 2012 David Quammen, chegou ao Brasil em setembro de 2020, pela editora Companhia das Letras. E sim, todo o hype em cima do livro é entendível.

    Disclaimer: A editora Companhia das Letras me enviou uma cópia do livro para resenhar aqui no blog. Não é uma publicidade paga.
    Para adquirir uma cópia, você pode utilizar o nosso link da Amazon, clicando na imagem do livro abaixo!

    (Assim, você ajuda o blog e não gasta nada a mais por isso).

    CONTÁGIOinfecções de origem animal e a evolução das pandemias

    David Quammen – Companhia das Letras

    544 páginas

    Em 2020 um balde de água fria caiu sobre a gente nos jogando no meio de uma pandemia desenfreada. No Brasil, mais de 1 ano e meio depois, ainda continuamos enfrentando a pandemia de forma muito ruim: corrupção, desinformação, kits de medicamentos sem eficácia sendo distribuídos e receitados, estabilidade em um patamar elevado de casos e mortes. Os divulgadores de ciência acho que nunca trabalharam tanto e de forma tão unida em favor de uma única causa. Uma causa que provavelmente não poderíamos fugir. E que provavelmente enfrentaremos novamente, com uma nova carinha (talvez mais fofa, talvez bem mais feia).

    E ainda pior, parece que essas novas doenças surgem do nada(!) para assolar a espécie humana. Coitados de nós, tão injustiçados nesse mundo tão grande então cheio de espécies diferentes. Mas é justamente mostrando que as coisas não acontecem bem assim (“do nada!”) que Quammen começa e termina seu livro.

    Epidemias sempre assolaram nossa população…. mas não só a nossa!. Só que, pra gente, claro, as pandemias que nos afetam trazem em si um interesse muito maior, afinal, não é estranho que tenhamos uma vigilância e preocupação maior com doenças que nos afetam diretamente.

    O título original de Contágio é “SPILLOVER”, termo em inglês utilizado “para denotar o momento em que um patógeno passa de uma espécie hospedeira para membros de outra espécie”. Em português o termo utilizado é “transbordamento zoonótico”. Convenhamos, um termo nada chamativo para um livro de jornalismo científico! Olhando no GoodReads, vi que geralmente o livro é traduzido com o título de “Zoonoses” ou “Contágio”, sendo este último o escolhido para a edição Brasileira. Apesar de não carregar em si o mesmo significado que Spillover, considero uma alternativa muito boa.

    No livro, Quammen faz uma descrição profunda de diversas zoonoses – que são infecções que afetam tanto a espécie humana quanto outras espécies de animais. Mas, mais do que falar como se dá o processo de contaminação (contágio) pelo microrganismo, o jornalista investiga e descreve como se deu o processo de spillover/transbordamento zoonótico – ou seja: como e quando o microrganismo “saltou” de uma espécie animal para a espécie humana.

    E faz isso de maneira fantástica! O autor narra seu percurso em busca de personagens que participaram de alguma forma dessas epidemias zoonóticas: cientistas, médicos, fazendeiros, veterinários, guias e moradores dos locais. E em meio a essa narrativa histórico-investigativa e científica, Quammen introduz conceitos que hoje estão ganhando espaço entre nós: reservatório, vetor, hospedeiro intermediário, R0, taxa de transmissão, supertransmissor, mutação, vírus de RNA e DNA. Em alguns momentos o texto é bem denso, mas em outros somos envolvidos como se estivéssemos lendo um livro de aventura e cheio de mistério… E, para isso, Quammen usa como pano de fundo algumas epidemias zoonóticas como: Hendra, Ebola, Malária, SARS, Febre Q, Psitacose, Influenza (gripe), Nipah e HIV/Aids.

    O que aprendemos com isso? Que geralmente esses saltos de patógenos que passam a infectar humanos (os transbordamentos) ocorrem de maneira acidental e nós mesmos criamos as condições para que isso aconteça, afinal: “Invadimos florestas tropicais e outras paisagens selvagens, que abrigam tantas espécies de animais e plantas — e dentro dessas criaturas, tantos vírus desconhecidos. Cortamos as árvores; matamos os animais ou os engaiolamos e os enviamos aos mercados. Destruímos os ecossistemas e liberamos os vírus de seus hospedeiros naturais. Quando isso acontece, eles precisam de um novo hospedeiro. Muitas vezes, somos nós.

    Quammen é autor de 15 livros (alguns lançados no Brasil também pela Cia. das Letras, como: “O canto do dodô”, “Monstro de Deus”, “As dúvidas do sr. Darwin”) e já escreveu para grandes publicações estadunidenses, como a National Geographic. Ele conseguiu, com um livro publicado inicialmente em 2012 – ou seja, que possui informações de quase 10 anos atrás –,  manter-se bem atual. A importância desse livro é inegável.

    Recomendo demais o livro Contágio, destrancando os capítulos 4- Jantar na fazenda de ratos (onde o autor traça as origens da epidemia de SARS em 2003, e conseguimos ver muitas semelhanças e diferenças com a pandemia atual da Covid-19, afinal ambas são causadas por coronavírus) e o 8- O chimpanzé e o rio (sobre a origem e a disseminação mundial do vírus do HIV/Aids)

    Finalizo com a citação de um trechinho do epílogo* do livro, “se você acha que financiar a preparação para uma pandemia é caro, espere até ver o custo final do nCoV-2019”.

    *O epílogo é um artigo publicado em 28/07/2020, no New York Times. A denominação nCoV-2019 para o coronavírus causador da Covid-19 justifica-se pois o artigo é anterior à atual denominação como SARS-CoV-2.

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    Este texto foi escrito originalmente para o blog Meio de Cultura

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Uma pandemia impulsionando outra – Parte 2: Resistência bacteriana a antimicrobianos: por que se preocupar?

    Esse texto é continuação do post: Uma pandemia impulsionando outra – Parte 1: O uso de antimicrobianos durante a pandemia da covid-19

    A resistência a antimicrobianos (RAM) é conhecida como um problema que não tem fronteiras e é um problema global. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a OMS, uma pandemia é caracterizada por sua disseminação e não necessariamente pela gravidade da doença. Indiscutivelmente, a RAM também pode ser considerada uma pandemia que embora seja mais insidiosa e com menos efeitos imediatos na vida cotidiana, possui impactos negativos potencialmente mais amplos. Vamos entender por que isso acontece nesse post. Vem com a gente!

    Como falamos anteriormente, o uso de antimicrobianos está aumentado pelo uso dessas drogas no tratamento e na “prevenção “ da covid-19 tanto no ambiente hospitalar quanto na comunidade. Curiosamente, a resistência das bactérias aos antimicrobianos, que é sempre uma preocupação no meio hospitalar, parece não estar recebendo a devida atenção nesse momento. É por isso que muitos cientistas da área estão tentando chamar a atenção para a importância de um potencial agravamento da pandemia global de RAM.

    As UTIs, locais onde concentram os pacientes mais graves da covid-19, são epicentros comuns para o desenvolvimento da RAM. O uso exacerbado de antimicrobianos pode, portanto ter grandes consequências em hospitais que já apresentam elevada prevalência de bactérias resistentes a múltiplas drogas, levando a um aumento de mortalidade devido ao reduzido arsenal de antibióticos para tratar as infecções ou coinfecções adquiridas. Portanto, há comprometimento também de pacientes pós-cirúrgicos, transplantados ou quimioterápicos, por exemplo. Como terminamos falando no post anterior, não estamos falando que não se deve usar antimicrobianos nem que as coinfecções devam ser subestimadas. Mas os profissionais de saúde devem considerá-las num plano integrado para limitar o fardo da morbimortalidade durante a pandemia da covid-19 e, ao mesmo tempo, evitar um possível agravamento da RAM.

    Uma medida muito disseminada de proteção contra o novo coronavírus (SARS-CoV-2) é a higienização das mãos… medida excelente, funcional e simples! Porém, muitas vezes realizada com o uso de sanitizantes ou sabões antibacterianos, que contém agentes químicos que, apesar de não adicionar muita coisa em termos de proteção, podem dar gatilho para a resistência antimicrobiana. E isso acontece porque um dos mecanismos de resistência das bactérias são bombas de efluxo que literalmente jogam os antimicrobianos para fora da célula. Muitas vezes, as bombas que conferem resistência a esses sanitizantes são as mesmas daquelas necessárias para conferir a RAM.

    Esses agentes biocidas caem na rede de esgoto e chegam ao ambiente, onde acabam elevando as concentrações dessas drogas. Claro que no caminho essas drogas são diluídas, mas temos que considerar a concentração final desses agentes… Se muito elevadas, muitas bactérias vão morrer, isso pode impactar negativamente os ecossistemas e, ao mesmo tempo, evitar o desenvolvimento da RAM. Porém concentrações baixas (sub-inibitórias) podem aumentar a pressão seletiva e promover oportunidades para o surgimento e a seleção da RAM. De forma muito simplificada, concentrações sub-inibitórias dessas drogas ativam vias de respostas ao estresse que, por sua vez, aumentam a ocorrência de mutação nas bactérias. Isso está relacionado a uma maior taxa de variabilidade entre entre as células bacterianas e, portanto,  a maiores possibilidades do surgimento e seleção de indivíduos resistentes daquela população. O fenômeno da seleção sub-inibitória é muito bem estudado para antibióticos, mas pouco para biocidas. Não podemos, portanto, desconsiderar os efeitos ambientais, uma vez que níveis aumentados de antimicrobianos são liberados no ambiente aumentando os níveis de resistência em animais (selvagens e de corte), na agricultura e nos ambientes naturais.

    [atualização 27/07]: É importante ressaltar que resíduos dos antimicrobianos que tomamos são eliminados pelas fezes e pela urina, caindo na rede de esgoto e, consequentemente, no ambiente. É tudo um ciclo, uma grande bola de neve! É algo que, realmente, deve nos preocupar!

    Falamos brevemente da ocorrência da RAM em hospitais e no meio ambiente. Mas por que devemos nos preocupar tanto!?

    Nos últimos anos a RAM já é citada com a maior ameaça global à saúde pública e à economia global, mas agora está não só eclipsada pela covid-19, como também corre risco de ser agravada por essa nova pandemia. Ou seja: muitos especialistas agora temem que o esforço global para manter a RAM sob controle possa enfrentar um revés durante a pandemia

    Vamos falar com números:

    A RAM já mata cerca de 700.000 pessoas por ano. Numa estimativa grosseira, e considerando-se que a covid-19 mantenha as taxas de mortalidade pelo restante do ano, estima-se que a RAM resultará em 130.000 morte a mais neste ano. As mortes por COVID podem superar as mortes por RAM neste ano de 2020 e o uso de antimicrobianos em pacientes com COVID também pode até reduzir o aumento na mortalidade por COVID em curto prazo mas, por outro lado, a consequência é um provável aumento na mortalidade por RAM a longo prazo. Estima-se que até 2050, a mortalidade associada a RAM será aumentada para 10 milhões de mortes por ano!  Tudo indica que que a covid-19 será controlada em um tempo consideravelmente menor.

    A movimentação dos pesquisadores é para que os princípios da administração de antibióticos não sejam relaxados mesmo nesses tempos de pandemia. A necessidade do tratamento com antibiótico deve ser avaliada rapidamente e interrompida se não for necessária. Observe que não estamos advogando em favor do uso profilático (preventivo) desses medicamentos! Além disso, quem deveria informar o antibiótico de escolha é o laboratório de microbiologia e baseado no micro-organismo e no padrão de resistência observado.

    Falamos anteriormente que a OMS já se manifestou contra o uso de antibióticos durante o tratamento inicial de covid-19. Essa cautela deve-se principalmente em relação a dois pontos: 1) o uso inapropriado e exacerbado de antimicrobianos pode contribuir para a emergência da RAM, daí a necessidade de se reduzir o uso inapropriado e exacerbado de antimicrobianos (sim, a repetição aqui foi intencional!) e; 2) o uso de antimicrobianos no tratamento da covid-19 pode levar à população a assumir que todos os antibióticos são elegíveis para o tratamento de infecções virais.

    A ocorrência de infecções por patógenos resistentes pode ser significantemente mitigada pela administração de antimicrobianos baseada em evidência em todos os setores (agricultura e medicina veterinária e humana). Embora tenhamos tempo, a RAM não será contida sem o desenvolvimento de novas vacinas, medicamentos e testes rápidos (assim como na COVID!).

    Curiosamente, as estratégias de utilizadas para reduzir a transmissão da covid-19 (distanciamento social, lock-down, fechamento de fronteiras, lavar as mãos com água e sabão) podem, também, reduzir o espalhamento da RAM! Detalhe que a redução das viagens (fechamento de fronteiras) diminui a movimentação de genes de RAM entre países!  Seria muito interessante ver estudos que comparem dados de prevalência de infecções causadas por bactérias RAM antes e depois da pandemia de covid-19, bem como dos perfis de resistência que estão surgindo…

    Essa tabela aqui (modificada de Nieuwlaat et al., 2020) ajuda a comparar as duas pandemias:

    Finalizando:

    • A resistência a antimicrobianos é uma pandemia que já preocupa cientistas e profissionais da saúde há um tempo, tem impactos relevantes e estima-se que nos próximos anos será ainda mais preocupante.
    • Ainda não sabemos o real impacto da pandemia da covid na pandemia da RAM, mas estamos preocupados e alerta para seu provável agravamento e suas possíveis consequências.
    • É importante uma estratégia multifacetada contra os organismos RAM que envolva: a) estudos prospectivos sobre coinfecções na covid-19 para orientar o tratamento com antimicrobianos; b) monitoramento e relato transparente dos padrões de RAM nas UTIS para guiar o uso adequado de antimicrobianos; c) esforço global coordenado para estabelecer uma estrutura de governança, vigilância e relatos de RAM, tanto agora como depois da pandemia da covid-19.
    • É comum pessoas acreditarem que antibióticos podem ser utilizados para infecções virais (gripe). Usar termos como antivirais pode ajudar a entender que existem diferentes tipos de medicamentos para diferentes tipos de infecção.

    Referências:

    • Antimicrobial resistance in the age of COVID-19. Nat Microbiol. 2020;5(6):779. doi:10.1038/s41564-020-0739-4
    • Bengoechea JA, Bamford CG. SARS-CoV-2, bacterial co-infections, and AMR: the deadly trio in COVID-19?. EMBO Mol Med. 2020;12(7):e12560. doi:10.15252/emmm.202012560
    • Hsu J. How covid-19 is accelerating the threat of antimicrobial resistance. BMJ. 2020;369:m1983. Published 2020 May 18. doi:10.1136/bmj.m1983
    • Murray AK. The Novel Coronavirus COVID-19 Outbreak: Global Implications for Antimicrobial Resistance. Front Microbiol. 2020;11:1020. Published 2020 May 13. doi:10.3389/fmicb.2020.01020
    • Nieuwlaat R, Mbuagbaw L, Mertz D, et al. COVID-19 and Antimicrobial Resistance: Parallel and Interacting Health Emergencies [published online ahead of print, 2020 Jun 16]. Clin Infect Dis. 2020;ciaa773. doi:10.1093/cid/ciaa773
    • Rawson TM, Ming D, Ahmad R, Moore LSP, Holmes AH. Antimicrobial use, drug-resistant infections and COVID-19 [published online ahead of print, 2020 Jun 2]. Nat Rev Microbiol. 2020;1-2. doi:10.1038/s41579-020-0395-y
    • Rawson TM, Moore LSP, Castro-Sanchez E, et al. COVID-19 and the potential long-term impact on antimicrobial resistance. J Antimicrob Chemother. 2020;75(7):1681-1684. doi:10.1093/jac/dkaa194
    • Rossato L, Negrão FJ, Simionatto S. Could the COVID-19 pandemic aggravate antimicrobial resistance? [published online ahead of print, 2020 Jun 27]. Am J Infect Control. 2020;S0196-6553(20)30573-3. doi:10.1016/j.ajic.2020.06.192
    • Yam ELY. COVID-19 will further exacerbate global antimicrobial resistance [published online ahead of print, 2020 Jun 13]. J Travel Med. 2020;taaa098. doi:10.1093/jtm/taaa098

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    Este post foi publicado originalmente no blog Meio de Cultura

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Uma pandemia impulsionando outra – Parte 1: O uso de antimicrobianos durante a pandemia da covid-19

    Em cerca de 8 meses a covid-19 surgiu, espalhou por todo o mundo e se tornou uma pandemia de efeitos devastadores… O que talvez você não saiba é que, paralelamente à covid-19, uma outra pandemia vem ganhando cada vez mais importância trazendo muita preocupação dos cientistas da área. A relação entre as duas é importante, sendo um caso de uma pandemia impulsionando outra. E quando falamos de pandemia impulsionada não estamos falando da covid-19, mas sim da pandemia que já estava em andamento, a das bactérias multidroga resistentes (também chamadas de superbactérias).

    Ainda não temos uma terapia licenciada ou uma vacina para o tratamento da covid-19 e cujo alvo seja o SARS-CoV-2 (o novo coronavírus). Essa situação tem levado diversos médicos a considerarem e testarem drogas baseadas na modulação da resposta imunológica (reduzindo a inflamação) observada em testes in vitro (como falamos no post anterior “Antibiótico contra vírus?”). Muitas vezes, esse hype prematuro em torno de possíveis terapias para a covid-19 é associado a relatos da mídia e de líderes políticos que amplificam o possível uso dessas drogas — apesar da falta de evidências clínicas de sua eficácia. Isso pode contribuir, ainda, para a escassez dessas drogas para quem efetivamente precisa; como, por exemplo, aconteceu com a cloroquina aqui no Brasil.

    Sabemos que infecções respiratórias causadas por vírus podem fazer com que pacientes tenham mais chances de serem acometidos por coinfecções causadas por fungos e/ou bactérias. Da mesma forma, infecções prévias podem atuar agravando o quadro da infecção respiratória. Apesar de ainda estarmos aprendendo sobre a progressão da covid-19, acredita-se que esses cenários que envolvem coinfecção piorem o quadro da doença. Por exemplo, sabe-se que a infecção pelo vírus SARS-CoV-2 pode aumentar a colonização e a adesão bacterianas ao tecido, e que as infecções combinadas podem resultar no aumento da destruição tecidual que, por sua vez, pode facilitar a disseminação sistêmica dos patógenos, aumentando o risco de infecções da corrente sanguínea e sepse.

    É relevante considerarmos essas questões, pois, além dos riscos relacionados aos vários efeitos colaterais, ao reduzirem a resposta imunológica, essas intervenções podem acabar aumentando o risco de infecções bacterianas secundárias e potencialmente fatais. Por isso, é sempre importante ressaltar a necessidade de se realizar análises cuidadosas acerca das dosagens e da forma de administração das drogas, além da importância de os pacientes estarem sendo acompanhados de perto pele uma equipe médica.

    E aonde queremos chegar com isso tudo?

    Apesar dos poucos dados disponíveis sobre o assunto, o que está sendo observado é que há um aumento considerável na prescrição de antimicrobianos, ainda que não seja observado um aumento proporcional no número de coinfecções durante as internações por covid-19. Só para você ter uma ideia, as estimativas sugerem que cerca 60-70% dos pacientes são tratados com antimicrobianos, ainda que de 1% a 10% tenham apresentado coinfecção fúngica ou bacteriana.  Esses pacientes podem, portanto, estar recebendo desnecessariamente antibióticos com eficácia questionável ou ainda não comprovada. Sem contar que, inclusive, em alguns lugares, as terapias com antimicrobianos fazem parte do protocolo de tratamento clínico inicial ou até “preventivo”

    Orienta-se que a administração de antimicrobianos seja feita, sempre que possível, com um antibiótico de espectro curto e direcionado ao patógeno primário, ou seja, aquele a que se quer combater. No caso da covid-19, os principais sintomas observados são tosse e febre – que já estão associados a um maior uso de antibióticos nos hospitais e na comunidade. E, além disso, quando os médicos não possuem todas as informações necessárias para entender realmente o que está acontecendo ao paciente, eles tendem a utilizar mais antibióticos —situação que parece ter se agravado ainda mais com os atendimentos remotos, que ocorrem a distância, via chamada pelo celular ou computador (telessaúde).

    Claro que temos que lembrar que os hospitais estão lotados e que pacientes em estado crítico são, geralmente, intubados e ficam hospitalizados por semanas em UTIs. Essa situação cumpre praticamente todos os requisitos necessários para a ocorrência de infecções relacionadas à assistência à saúde (IRAS – esse é o nome chique do que chamávamos simplesmente de infecção hospitalar). E, ainda por cima, dados hospitalares mostram um aumento lento e constante da resistência a múltiplas drogas pelas bactérias Gram-negativas, que podem ser potencialmente mortais quando associadas  à covid-19. Mais preocupantemente, existem evidências clínicas que sugerem que o uso empírico e inadequado de antibióticos de amplo espectro pode estar associado a maior mortalidade, pelo menos em casos de sepse.

    Além de tudo isso que falamos, preocupa o fato de que é frequentemente observado o uso de antibiótico de amplo espectro (que são desenvolvidos para matar uma grade variedade de bactérias) nesses tratamentos. Isso é preocupante uma vez que o uso excessivo e inapropriado dessas drogas (uma vez que as terapias não são focadas para a eliminação de um único patógeno primário) podem acabar agravando os quadros de resistência a antimicrobianos.

    Para terminar, é importante ressaltarmos que a Organização Mundial da Saúde, a OMS, desencoraja o uso de antibióticos para casos leves de covid-19, ainda que recomende o uso em casos graves com risco aumentado de infecções bacterianas secundárias e morte.

    Vamos falar sobre resistência e porque pensar sobre ela é tão importante. Veja na continuação desse post!

    Clique para ler: Uma pandemia impulsionando outra – Parte 2: Resistência bacteriana a antimicrobianos: por que se preocupar?

    Resumindo o que falamos até agora:

    • Antimicrobianos estão sendo comumente prescritos para prevenção ou tratamento da COVID-19, mesmo sem a ocorrência de coinfecção bacteriana presumida ou confirmada diretamente relacionada ao covid-19, ou que coocorrem no momento da infecção, ou que seja associada aos cuidados de saúde (internação prolongada em UTI)
    • Evidências atuais sugerem que a coinfecção não-viral (bacteriana ou fúngica) em pacientes com covid-19 é baixa (1 a 10%). Contudo, as taxas de prescrição e uso de antimicrobianos de amplo espectro são altas (60 a 70%).
    • A utilização de antibióticos, principalmente de amplo espectro, pode contribuir para o agravamento da pandemia já em curso das superbactérias, que são resistentes a vários antibióticos e, portanto, difíceis de serem mortas.

    Referências:

    • Antimicrobial resistance in the age of COVID-19. Nat Microbiol. 2020;5(6):779. doi:10.1038/s41564-020-0739-4
    • Bengoechea JA, Bamford CG. SARS-CoV-2, bacterial co-infections, and AMR: the deadly trio in COVID-19?. EMBO Mol Med. 2020;12(7):e12560. doi:10.15252/emmm.202012560
    • Hsu J. How covid-19 is accelerating the threat of antimicrobial resistance. BMJ. 2020;369:m1983. Published 2020 May 18. doi:10.1136/bmj.m1983
    • Murray AK. The Novel Coronavirus COVID-19 Outbreak: Global Implications for Antimicrobial Resistance. Front Microbiol. 2020;11:1020. Published 2020 May 13. doi:10.3389/fmicb.2020.01020
    • Nieuwlaat R, Mbuagbaw L, Mertz D, et al. COVID-19 and Antimicrobial Resistance: Parallel and Interacting Health Emergencies [published online ahead of print, 2020 Jun 16]. Clin Infect Dis. 2020;ciaa773. doi:10.1093/cid/ciaa773
    • Rawson TM, Ming D, Ahmad R, Moore LSP, Holmes AH. Antimicrobial use, drug-resistant infections and COVID-19 [published online ahead of print, 2020 Jun 2]. Nat Rev Microbiol. 2020;1-2. doi:10.1038/s41579-020-0395-y
    • Rawson TM, Moore LSP, Castro-Sanchez E, et al. COVID-19 and the potential long-term impact on antimicrobial resistance. J Antimicrob Chemother. 2020;75(7):1681-1684. doi:10.1093/jac/dkaa194
    • Rossato L, Negrão FJ, Simionatto S. Could the COVID-19 pandemic aggravate antimicrobial resistance? [published online ahead of print, 2020 Jun 27]. Am J Infect Control. 2020;S0196-6553(20)30573-3. doi:10.1016/j.ajic.2020.06.192
    • Yam ELY. COVID-19 will further exacerbate global antimicrobial resistance [published online ahead of print, 2020 Jun 13]. J Travel Med. 2020;taaa098. doi:10.1093/jtm/taaa098

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  • Antibiótico contra vírus? O curioso caso da azitromicina contra a COVID-19

    Diversas combinações de medicamentos estão compondo o chamado “Kit COVID-19”. Presença quase constante neles, um antimicrobiano utilizado para infeções bacterianas chama atenção: a azitromicina… o que ela está fazendo ali? Existe alguma base científica para essa indicação? Quais seriam possíveis consequências dessa medicação?

    A azitromicina é um antimicrobiano bacteriostático, da classe dos macrolídeos, que atua impedindo a síntese de proteínas nas bactérias. Possui amplo uso na prática clínica, sendo escolhida para o tratamento de infecções do trato respiratório, da pele e de tecidos moles causadas por diversas bactérias Gram-positivas e espécies bacterianas atípicas.

    A gravidade e a mortalidade de infecções virais do sistema respiratório (e aqui a gente também está falando da COVID-19) são associadas a uma resposta inflamatória excessiva caracterizada por uma produção excessiva de citocinas (você pode ter ouvido por aí sobre a tal “tempestade de citocinas).[1]

    E onde esses dois pontos (azitromicina e COVID-19) se encontram?

    De onde surgiu a ideia de usar um antibacteriano no tratamento de uma infecção viral causada pelo SARS-CoV-2?

    Primeiro de tudo, já tínhamos evidências in vitro[2] (que fique bem claro!) de que a azitromicina pode prevenir a replicação de vírus como o influenzavírus humano H1N1 e o zikavírus. Agora, novos estudos também in vitro demonstraram que a azitromicina aumenta o pH das células hospedeiras, o que pode dificultar os processos de entrada, replicação e dispersão do SARS-CoV-2. Além disso, esse antimicrobiano poderia reduzir os níveis da enzima furina das células hospedeiras, o que poderia dificultar o processo de entrada do vírus na célula.

    Ok… mas e em relação à imunologia… será que temos alguma hipótese para sustentar o uso da azitromicina?

    Os macrolídeos (a azitromicinaé dessa classe, falei ali em cima, lembra?) têm demonstrado efeitos imunomodulatórios e anti-inflamatórios, ao atenuarem a produção de citocinas anti-inflamatórias e promoverem a produção de anticorpos (imunoglobulinas). E isso poderia ajudar na redução das complicações decorrentes do estado pró-inflamatório induzido pela infecção pelo SARS-Cov-2.

    Muitas evidências… in vitro… mas elas são o bastante para que a azitromicina seja liberada para ser fornecida como profilaxia ou como tratamento para indivíduos contaminados? Se você tem acompanhado a evolução do uso da cloroquina/hidroxicloroquina deve saber que não é bem assim… É muito importante avaliarmos a eficácia do medicamento in vivo e de forma controlada no contexto da pandemia

    E, nesse contexto, é de grande relevância consideramos, também, os efeitos colaterais do seu uso: distúrbios gastrintestinais, aumento do intervalo QT (observado em eletrocardiograma, indicando alterações cardíacas), problemas para pacientes com problemas hepáticos e renais.

    Ainda carecemos de estudos in vivo para avaliarmos adequadamente a droga. Os estudos que estão disponíveis ainda têm muitos problemas (grupos pequenos, seleção enviesada de pacientes e tratamentos, dentre outros…).

    A ciência é feita a partir do acúmulo de evidências e estudos são validados pelos pesquisadores pela acurácia dos métodos utilizados no estudo. A validação pelos pares acontece pois metodologias adequadas (e aqui incluímos: uso de placebo, testes duplo cego, estudos multicêntricos, quantidade de amostras/pacientes, análise de resultados, dentre outros vários pontos) geram resultados confiáveis!

    Concluindo…

    Ainda não temos tratamentos comprovadamente eficazes para a COVID-19, e há uma busca mundial para o reposicionamento de fármacos já utilizados. Azitromicina está sendo utilizada em todo mundo de forma off-label[3], mas ainda não temos evidências que suportem o uso desse antimicrobiano num contexto de COVID-19 sem coinfecção bacteriana associada. Para a azitromicina, o caminho a ser seguido é, ou pelo menos deveria ser, o mesmo do que aconteceu com a cloroquina: antes de confiar em relatos milagrosos e anedóticos, é necessária a realização de estudos clínicos controlados antes de sair declarando que a droga é mais uma maravilha do mundo. As evidências são limitadas e enviesadas e estudos sistemáticos e controlados poderão mostrar se a droga tem efeito quando utilizada sozinha, se tem efeito sinérgico quando associado a outro medicamento, ou se não tem efeito. Além dos efeitos colaterais que também podem ser aumentado quando em associação com outras drogas.

    Todos queremos um medicamento eficaz contra o SARS-Cov-2, mas que seja identificado pela medicina baseada em evidências!

    No próximo post vamos falar um pouquinho sobre resistência bacteriana no contexto da COVID-19. Vamos falar um pouquinho dos mecanismos e dos riscos envolvidos no uso indiscriminado de antibióticos.

    NOTAS:

    [1]Citocinas e tempestade de citocinas. Citocinas são moléculas reguladoras produzidas por diversas células do sistema imune. Elas atuam modulando nossa resposta imunológica, podendo ser citocinas inflamatórias (p.ex.: TNF, IL-1, IL-2, IL-6, IL-7) ou antiinflamatórias (p.ex.: IL-4, IL-10, IL-13, TGFβ). Na tempestade de citocinas, há uma liberação excessiva das citocinas pró-inflamatórias que resultam no recrutamento de muitas células inflamatórias. O resultado disso são danos ao tecido local. Para mais, consulte o Blog Microbiologando da UFRGS.

    [2] Experimentos in vitro e in vivo: Os experimentos in vitro são aqueles realizados nas primeiras etapas de um estudo. Eles são realizados sem a participação de seres vivos. Geralmente são utilizadas células cultivadas em laboratório ou mesmo órgãos de animais abatidos (p.ex.: córneas de bovinos obtidas de abatedouros). Em etapas mais avançadas, quando se tem evidências da segurança da substância, os experimentos são realizados com seres vivos. Num primeiro momento geralmente utiliza-se invertebrados, peixes ou roedores, para, num momento posterior, utiliza-se humanos. Os ensaios in vitro e in vivo com animais não-humanos são chamados de estudos pré-clinicos. Os ensaios com seres humanos são os ensaios clínicos. Antes de serem iniciados, os ensaios com animais vertebrados devem ser aprovados pela CEUA (Comissão de Ética no Uso de Animais) e os ensaios clínicos  devem ser aprovados pelo CEP (Comitê de Ética em Pesquisa).

    [3] Uso off-label de medicamentos: Todos os medicamentos registrados no Brasil recebem aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para uma ou mais indicações que passam a constar na sua bula. Acontece, porém, que essas podem não ser as únicas indicações possíveis, ou seja: o medicamento pode continuar sendo estudado para outros usos. Quando sua eficácia é comprovada para essas novas indicações, a Anvisa as inclui na bula. A opção de um médico em tratar seus pacientes com um medicamento em uma situação não prescrita na bula (seja por analogia de mecanismo de ação, base fisiopatológica das doenças) é chamada de “uso off-label”. O uso off label de um medicamento é feito por conta e risco do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico, mas em grande parte das vezes trata-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado. Para mais informações, consulte o site da Anvisa.

    Para esse post foram consultadas as seguintes referências:

    • Choudhary, R; Sharma, AK. “Potential use of hydroxychloroquine, ivermectin and azithromycin drugs in fighting COVID-19: trends, scope and relevance.” New microbes and new infections, vol. 35 100684. 22 Apr. 2020, doi:10.1016/j.nmni.2020.100684
    • Gbinigie, K; Frie, K. “Should azithromycin be used to treat COVID-19? A rapid review.” BJGP open vol. 4,2 bjgpopen20X101094. 23 Jun. 2020, doi:10.3399/bjgpopen20X101094
    • Pani, A et al. “Macrolides and viral infections: focus on azithromycin in COVID-19 pathology.” International journal of antimicrobial agents, 106053. 10 Jun. 2020, doi:10.1016/j.ijantimicag.2020.106053

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    Esse post foi originalmente escrito pelo blog Meio de Cultura

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • As não intermitências dos leitos de UTI

    Desde janeiro deste ano, estou participando de um clube de leitura com alguns amigos. Escolhido há meses, o livro da vez é As intermitências da morte”, de José Saramago.

    Nesse livro, num belo dia, a morte simplesmente resolve tirar um período sabático e ali, naquele país, ninguém mais morre. Maravilha né? Na verdade, nem tanto. Um caos é instalado naquele lugar, com direito a crise religiosa, crise funerária… E, claro, crise no sistema hospitalar…

    E era sobre isso que eu queria falar com vocês. Mas antes, leia abaixo um trecho que fala da crise que se instaura nos hospitais. Se você não conhece o livro, não se preocupe, não é spoiler e é um trecho pequeno e do início do livro – ah, e o texto é em português de Portugal!

    Também os directores e administradores dos hospitais, tanto do estado como privados, não tardaram muito a ir bater à porta do ministério da tutela, o da saúde, para expressar junto dos serviços competentes as suas inquietações e os seus anseios, os quais, por estranho que pareça, quase sempre relevavam mais de questões logísticas que propriamente sanitárias. Afirmavam eles que o corrente processo rotativo de enfermos entrados, enfermos curados e enfermos mortos havia sofrido, por assim dizer, um curto-circuito ou, se quisermos falar em termos menos técnicos, um engarrafamento como os dos automóveis, o qual tinha a sua causa na permanência indefinida de um número cada vez maior de internados que, pela gravidade das doenças ou dos acidentes de que haviam sido vítimas, já teriam, em situação normal, passado à outra vida. A situação é difícil, argumentavam, já começámos a pôr doentes nos corredores, isto é, mais do que era costume fazê-lo, e tudo indica que em menos de uma semana nos iremos encontrar a braços não só com a escassez das camas, mas também, estando repletos os corredores e as enfermarias, sem saber, por falta de espaço e dificuldade de manobra, onde colocar as que ainda estejam disponíveis. – As intermitências da morte. José Saramago, Companhia das Letras.

    Quando li esse trechinho não tive como não comparar com a situação que observamos em vários hospitais do país… Situação agravada pela COVID. Quando pensamos em leitos de enfermaria e UTI, pensamos em rotatividade: um fluxo contínuo de entrada e saída de pacientes. No caso dessa história contada por Saramago, as pessoas chegam doentes, às vezes em estado grave. Alguns provavelmente se curam e deixam os hospitais, mas outros com certeza chegam em estado muito grave, tão grave, que esses pacientes deveriam morrer – mas não morrem (afinal, a morte deu uma trégua). Assim, os leitos passam a ser ocupados por esses pacientes e acabam não são liberados… A consequência é que a ocupação, por esse motivo, atinge seu máximo em pouco tempo e pronto: está instaurado o caos descrito no trecho.

    Voltando a nossa realidade, o que observamos na Itália (em março) e estamos vendo agora em alguns estados do Brasil é que, além de um grande influxo de pacientes ao mesmo tempo (pacientes estes que não estavam sendo esperados, afinal pacientes com COVID não estavam no fluxo dos pacientes hospitalares até três meses atrás) nos hospitais, o período de internação, inclusive nas UTIs é bem maior. De acordo com a AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira) um paciente na UTI permanece internado, em média, por cerca de 6 dias, enquanto para um paciente com COVID a duração da internação na UTI é de aproximadamente 14-21 dias. Soma-se a isso os profissionais da saúde que acabam se contaminando e devem ser afastados e os leitos ocupados pelos pacientes do fluxo normal (afinal derrames, acidentes, câncer e outras emergências continuam acontecendo mesmo com a pandemia!).

    Em reportagem do dia 19/06/2020, a BBC Brasil apresentou a figura abaixo com as taxas de ocupação de leitos de UTI nos Estados Brasileiros, com dados das secretarias de saúde dos estados até o dia 17/06. Alguns estados (n=14) apresentaram sinais de queda devido às medidas de distanciamento social adotadas (AM, AP, CE, ES, MG, PA, PB, PE, PI, RJ, RN, SC, SP e TO), seis estados estão com as taxas de internação estabilizadas ou com sinais de estabilização (AC, AL, BA, GO, MA, RR) e 6 estados (MS, MG, PR, RS, RO, SE) + o Distrito Federal (DF) estão com taxas em ascensão ou com sinais de alta.

    Apenas como exemplo, de acordo com a reportagem, o principal hospital de Roraima (HGR) em uma semana teve um pulo de 71% para 110% da capacidade. Aqui, em Belo Horizonte (onde moro), estamos vendo um aumento relativamente rápido das ocupações de leitos após a abertura de quase todo o comércio; a Santa Casa BH, por exemplo, está se preparando para, nos próximos dias, dobrar de 50 para 100 os leitos de UTI. Isso nos leva a inferir que alguns locais ainda não entraram em colapso por estarem conseguindo abrir novos leitos em tempo de atender à população.

    Essas taxas de ocupação de leitos são um dos principais indicadores para os dirigentes tomarem as decisões sobre abrir ou não os comércios locais. Mas pela dinâmica da infecção, geralmente esses dados refletem as taxas de infecção com 2 semas de atraso. Assim, as decisões devem ser tomadas com cautela e previsão estimada da situação da contaminação em cada cidade individualmente. Comparar dados de cidades diferentes, em momentos diferentes da curva, e de países diferentes talvez não seja uma boa ideia. A Ana Arnt faz uma reflexão sobre isso nesse post: “Podemos comparar estas duas cidades? Exercícios complexos para uma pergunta simples” (parte 1) e (parte 2).

    DICA DE LIVRO!

    Para terminar, queria voltar na indicação do livro As intermitências da morte”, de José Saramago. Neste livro, Saramago, laureado com o prêmio Nobel de Literatura em 1998, parte de uma premissa simples para escrever um livro fantástico: e se as pessoas parassem de morrer?

    Uma pergunta que parece irrelevante, mas que quando analisada mais a fundo traz consigo grandes questões… Economia, saúde e até mesmo a religião são afetadas. O que parece ser um grande acontecimento feliz, a vida eterna se transforma, em pouco tempo, numa situação de difícil resolução.

    Apesar de estar esgotado na editora em sua versão física, o livro pode ser comprado em ebook. Clicando e comprando por este link você é direcionado para a Amazon e pode ajudar o blog: As intermitências da morte”, de José Saramago.

    REFERÊNCIAS:

    Reportagem da BBC Brasil: Coronavírus: 14 Estados têm queda de internações após isolamento social; DF e outros 6 Estados enfrentam alta.

    Comunicado da AMIB, disponibilizado no site da SOMITI: COMUNICADO DA AMIB SOBRE O AVANÇO DO COVID-19 E A NECESSIDADE DE LEITOS EM UTIS NO FUTURO

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Meu teste deu positivo. E agora? Entendendo a sensibilidade e a especificidade dos testes diagnósticos

    Os testes para diagnóstico de doenças são bons? São ruins? Funcionam? Vamos destrinchar um pouco sobre a teoria dos testes diagnósticos de uma forma mais intuitiva sem precisar de fórmulas. Vamos ver que os testes não são livres de erros. Vamos entender o que significa dizer que um teste tem 95% de sensibilidade… E, principalmente, por que isso não te conta a história toda!

    Esse post foi elaborado a partir da série de tweets escrita pelo Felipe Campelo*, com algumas pequenas alterações para se adequar melhor aqui no formato do blog!

    Antes de mais nada: o que explicamos aqui não tem nada a ver com a marca ou o tipo do teste (ao longo do texto você vai entender o porquê), mas sim com a matemática que está por trás do diagnóstico. Isso, porque os testes diagnósticos compreendem uma importante aplicação da teoria da probabilidade. Mas não precisa fugir – como falei antes, prometo que não vamos te pedir para decorar nenhuma fórmula! Vamos lá?

    Para começar a entender o que acontece quando você faz um teste para qualquer doença, vamos pensar que você só tem duas possibilidades: ou está doente, ou está saudável. O teste também só tem 2 possibilidades: ou é positivo, ou é negativo.

    Vamos desenhar para ficar mais fácil!

    Essas duas variáveis resultam em 4 possibilidades:

    – Você está doente e o teste é positivo: verdadeiro positivo (VP).

    – Você está saudável e o teste é negativo: verdadeiro negativo (VN).

    – Você está saudável e o teste é positivo: falso positivo (FP).

    – Você está doente e o teste é negativo: falso negativo (FN).

    Se olharmos para os totais de cada linha e cada coluna, vemos que:

    – as colunas nos dizem quanta gente está doente (ND) ou saudável (NS).

    – as linhas dizem quanta gente testa positivo (N+) ou testa negativo (N-).

    – o último quadro da diagonal nos indica o número total de pessoas na população (N).

    A sensibilidade e a especificidade de um teste dizem respeito às colunas:

    A Sensibilidade do teste é a proporção entre o número de doentes que o teste consegue detectar (VP) e o número total de doentes (ND). Em outras palavras, é a probabilidade de o teste ser positivo para uma pessoa doente: P(Teste+|doente).

    A Especificidade informa qual a proporção entre o número de pessoas saudáveis que o teste detecta como “negativas” (VN) e o número total de pessoas saudável (NS). Em outras palavras, é a probabilidade de o teste ser negativo para uma pessoa saudável: P(Teste-|saudável).

    Até aqui tudo bem, mas tem um probleminha: o que eu quero saber não é a chance do teste dar positivo caso eu esteja doente – o que eu quero saber de verdade é: Se o meu teste deu positivo (N+), qual a chance de eu estar realmente doente (VP)? [é inclusive o nome desse post!] E essas duas coisas normalmente são diferentes. Essa outra coisa que eu normalmente quero saber também tem um nome bonitinho: precisão, que a gente descobre olhando para as linhas do nosso quadro.

    A Precisão (ou valor preditivo positivo) é a relação entre a quantidade de pessoas doentes que testaram positivo (VP) e o número total de testes positivos (N+). Em outras palavras, é a probabilidade de você estar doente, dado que o teste deu positivo: P(Doente|Teste+)

    E é aqui que entra o probleminha que eu mencionei acima. O quadro faz parecer que é muito simples calcular a precisão. E até que é, desde que você tenha uma ideia do quão prevalente a doença é na população. A Prevalência nos indica qual é o porcentual de pessoas que realmente estão doentes (ND) na população (N).

    Vamos imaginar, por exemplo, que a tenhamos um teste de 95% de sensibilidade (95% de chance de dar positivo se você estiver doente) e 95% de especificidade (95% de chance de dar negativo se você estiver saudável). Como podemos fazer para calcular qual a precisão do teste?

    Como falamos ali em cima, precisamos saber da prevalência da doença. Aqui, neste exemplo, vamos estipular que a taxa-base doença seja de 1%, ou seja, a doença afeta 1% da população (100 em cada 10.000). Agora fica bem fácil usar a sensibilidade e especificidade do teste para calcular os testes positivos e negativos em cada coluna. Vamos lá!?

    Repara direitinho nos valores da tabela… É aí que vem a coisa curiosa!

    Embora esse teste de faz-de-conta tenha 95% de sensibilidade e de especificidade, a maioria das pessoas que testa positivo seria de falsos positivos (495), simplesmente porque teria muito mais gente saudável do que doente.

    Além disso, a precisão, nesse caso hipotético, seria de só 16,1% – em outras palavras: você teria chance de 16,1% de estar doente caso seu teste dê positivo!

    Assim, se o teste dá positivo, a sua chance de estar realmente doente ainda seria relativamente baixa, embora seja 16 vezes maior do que a taxa-base da população (que é de 1%).

    É um pouco, confuso… mas é assim mesmo quando vemos isso pela primeira vez. Se precisar, dê mais uma olhadinha antes de prosseguir para olhar a próxima tabelinha!

    Aqui, vamos usar dados mais realistas (ainda que antigos)! Vamos considerar um teste para COVID com especificidade de 99% (mais comum) e para a prevalência da doença, vamos utilizar 10,6% (a estimativa de COVID em Manaus no relatório do Imperial College do dia 08/05). Considerando esses dados, a fazendo as contas igual fizemos ali em cima, temos a precisão do teste seria de 91,8%.

    Agora, para efeitos de comparação, se considerássemos esse mesmo teste, mas com a prevalência estimativa para São Paulo na mesma data teríamos: Prevalência de 3,3%, Sensibilidade de 95% e Especificidade de 99%. Fazendo os cálculos, a Precisão seria de 76,6%.

    Bom… Isso quer dizer que se a prevalência for baixa e você testar positivo pode sair por aí felizão? NÃO!

    Quando fizemos esses cálculos, dessa forma, estamos considerando que uma pessoa aleatória fazendo o teste. Porém, geralmente quando você é testado, você provavelmente tem ou teve sintomas (ou morreu de causa suspeita), ou entrou em contato com alguém que teve COVID. Isso tudo impacta no cálculo e deve ser levado em consideração. Por exemplo, a prevalência entre pessoas com sintomas é MUITO maior do que na população em geral.

    OUTROS PONTOS RELEVANTES !
    – A interpretação do resultado de um teste diagnóstico depende de qual parcela da população está sendo avaliada (é um indivíduo qualquer ou de um grupo de risco?).
    – Situações prévias (sejam subjetivas ou objetivas) influenciam o cálculo. Esse tipo de estatística que fizemos aqui, recebe o nome de cálculos bayesianos ou lógica bayesiana.
    – Os cálculos apresentados aqui servem para qualquer tipo de teste. Usamos exemplo da COVID por ser o que estamos passando no momento. Mas pode ser um teste de gravidez, um teste para detecção de HIV, etc.
    – Em Estatística chamamos os falsos positivos de erro tipo I, e os falsos negativo de erro tipo II.

    *Felipe Campelo é professor da Escola de Engenharia da UFMG (Departamento de Engenharia Elétrica) e trabalha com a integração entre modelagem estatística e otimização, e com aplicações de aprendizado de máquina para (entre outras coisas) priorização de alvos na investigação de exames e vacinas. Além disso, faz divulgação científica no Twitter.

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    BIBLIOGRAFIA

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Como conter um apocalipse zumbi?

    Apocalipses zumbis são temas muito comuns em filmes, séries, animes e jogos. Vários podem ser os motivos que levam a um apocalipse zumbi, desde um macaco-rato-da-sumatra, exposição à radiação, materiais extraterrestres, misticismo/feitiçaria, nanorrobôs, até o favorito da mídia e dos fãs de Resident Evil, um fator biológico (como um vírus ou a cura de um vírus). Outras produções simplesmente não mencionam (ou não percebi se mencionam) uma origem, por exemplo, Madrugada dos Mortos 1, 2, 3, … nestes filmes os zumbis aparecem do nada e a história segue.

    Porém vamos estragar um pouco da “diversão” que seria viver em um apocalipse zumbi do tipo biológico. Sim, este é um tema divertido e esperançoso para várias pessoas que sonham sair por ai com armas em mãos, lutando contra hordas zumbis e vivendo as aventuras estilo “Walking Dead” (e é claro, sobreviver).

    Para facilitar nossa análise e dar uma chance pros nossos zumbis, vamos supor de forma super otimista, que a mesma energia do corpo seja aproveitada na forma de alimento por quem consome (sabemos que isso não é verdade, mas mostraremos que mesmo se fosse, a coisa não ficaria boa para os zumbis).

    Consideraremos também que eles comam apenas a carne de humanos… pois se eles comessem a carne de outros animais, seu “controle de natalidade” seria simplificado, e se eles comerem vegetais ou fungos, bom, ai já começaria a virar piada (por favor, sirva um prato de brócolis com alcaparras ao vinho para este zumbi).

    Sabemos que o recorde mundial de tempo sem comer, é do ilusionista carioca Ericson Leif, que ficou 51 dias a base de água. Assim, podemos dizer que uma pessoa em condições ideais e com metabolismo suficientemente lento, possa sobreviver este período com uma carga energética inicial de X calorias (sendo X o número de calorias que Ericson Leif tinha acumulado antes de ficar este período em jejum).

    De forma ultra otimista, diremos que todos os seres humanos antes de virarem zumbis, tenham a disposição estas X calorias. E que após virarem zumbis, seu metabolismo funcione de forma suficientemente lenta para manterem em atividade sem ingerirem nenhum alimento por até 51 dias (Ericson Leif ficou em repouso, mas estamos dando uma chance aos zumbis, por isso assumimos que eles podem se mover livremente neste mesmo período).

    Assim chegamos a nossos zumbis e dois comportamentos representativos.

    1. O zumbi apenas “mordisca” outro ser humano para que ele vire um zumbi com reserva energética muito próxima de X;
    2. O zumbi come a carne de outro ser humano até que sua reserva energética retorne a X.

    ANÁLISE DO COMPORTAMENTO 1

    Neste contexto, um zumbi não come para repor seu estoque energético e sim para proliferar o fator biológico. Assim, cada zumbi começará sua jornada com X de energia, e o zumbi que mordeu a pessoa, manterá seu Y de energia restante, sem reposição.

    A vantagem para os sobreviventes diante este comportamento, é que podemos determinar quanto tempo resta para os zumbis conhecendo as datas e quantidades de vítimas em cada ataque. Por exemplo:

    Dia 0 – Existiam 10 zumbis;
    Dia 14 – 3 pessoas foram atacadas; (total 13 zumbis)
    Dia 26 – 1 pessoa foi atacada; (total 14 zumbis)
    Dia 38 – 2 pessoas foram atacadas; (total 16 zumbis)
    Dia 42 – 15 pessoas foram atacadas; (total 31 zumbis)
    Dia 51 – os 10 zumbis do dia 0 pararam de funcionar; (total 21 zumbis)
    Dia 53 – 4 pessoas foram atacadas; (total 25 zumbis)
    Dia 65 – os 3 zumbis do dia 14 pararam de funcionar; (total 22 zumbis)

    Nessa perspectiva, diante um volume intratável de zumbis localizado em uma mesma região, vamos supor que toda a população da cidade de São Paulo virou zumbi, ou seja aproximadamente 12.195.000 de zumbis, o que fazer?

    Uma pessoa em caminhada leve movimenta-se a 4 km/h. Um zumbi caminhando nesta velocidade por rodovias e sem interrupções, percorreria 96 km ao dia, dando-lhes um pouco mais de vantagem vamos arredondar esta distância para 100 km ao dia. Em seus 51 dias de energia, ele poderia percorrer até 5.100 km. Como zumbis não usam GPS, não se orientam com mapas e nem tem um propósito muito claro, estamos lidando com uma cadeia de Markov, ou seja, eles podem mover-se em qualquer direção (para simplificar, digamos norte, sul, leste e oeste apenas). Assim, digamos que a cada dia um zumbi tomaria uma decisão sobre para qual direção seguir.

    Simulando este comportamento para um número menor de zumbis, 243.900 (apenas 2% do total), chegamos que em seus 51 dias de caminhada, apenas 4.619 zumbis (1,8% dos 243.900 analisados) afastaram-se da origem a uma distância de pelo menos 1.500 km.

    Aplicando o resultado desta simulação para o contexto de São Paulo capital, podemos estimar que 219.510 zumbis percorrerão a uma distância de pelo menos 1.500 km.

    Distribuindo estes zumbis pelo perímetro de um círculo com 1.500 km de raio, temos 219.510 zumbis a serem distribuídos por 9.424 km. Isso nos dá cerca de 23 zumbis a cada 1 km.

    Assim, em cidades localizadas a 1.500 km de São Paulo, como por exemplo Cuiabá (MT), que tem aproximadamente 26 km na sua maior dimensão, poderíamos esperar a aparição de aproximadamente 600 zumbis (pode parecer muito, mas lembre-se que estamos falando de um surto inicial na faixa de 12 milhões).

    ANÁLISE DO COMPORTAMENTO 2

    Neste contexto, o zumbi ao encontrar um ser humano, repõe sua energia para X, fazendo com que o novo zumbi comece sua “jornada” com uma reserva energética inferior a 51 dias. Não há uma diferença entre este comportamento e o anterior, pois se considerarmos que os zumbis são fisicamente iguais, quando o zumbi com Y de energia restante, encontra uma pessoa, no momento seguinte passamos a ter um zumbi com X de energia e um zumbi com Y de energia. A situação é igual aquela apresentada no comportamento 1 a menos de uma comutação entre zumbis.

    CONCLUSÃO

    Assim, a melhor estratégia para sobreviver no caso de um conglomerado de zumbis de natureza biológica, é nos afastarmos do epicentro, mantermos uma vigilância rígida nas fronteiras e termos paciência até que a quantidade de zumbis seja mais fácil de controlar.

    PÓS-CONCLUSÃO

    A ideia de viver uma pandemia zumbi não é incomum em conversas banais entre amigos, bem como as estratégias de sobrevivência… mas será que seguiríamos mesmo as estratégias de sobrevivência em uma pandemia zumbi, em que contatos precisam ser evitados ao máximo e qualquer saída na rua para buscar suprimentos básicos já pode ser considerado um risco potencial?
    Ou será que faríamos como os filmes e não acreditaríamos no que está acontecendo e tentaríamos fingir normalidade promovendo saídas de casa para encontrar pessoas sem saber se elas foram infectadas ou não?

    Uma pandemia biológica requer afastamento dos epicentros, vigilância rígida de fronteiras, contenção e tratamento de doentes, no mínimo isolando-os e muita, muita paciência para nos mantermos bem e saudáveis até que a quantidade de infectados por Coronavírus, digo, zumbivírus seja possível de ser controlada (com vacinas, por exemplo!).

    Agradeço a meu amigo Mago do Código, por insistir veemente que um apocalipse zumbi do tipo biológico como acontecem em filmes/séries/jogos seria insustentável, tais discussões renderam a elaboração deste post 🙂

    Também agradeço à professora Ana Arnt, pela pós-conclusão, que conecta o cenário hipotético de um apocalipse zumbi às medidas de contenção para pandemias biológicas gerais, tais como aquela em que estamos vivendo pelo Coronavírus.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Celebrando a Dra. June Almeida – a mulher que descobriu o primeiro coronavírus humano

    Estamos passando por um período bem delicado, em que a pandemia do coronavírus mudou a rotina de muitos de nós, e com isso procuramos aprender e nos adaptar aos novos modelos de trabalho e relações.

    Vocês estão acompanhando nosso Especial Epidemias, e quero apresentá-los à Dra. June Almeida, a mulher que descobriu o primeiro coronavírus. Há cerca de um mês, June vem sendo destaque em alguns meios de comunicação e páginas de divulgação científica –  quando seu trabalho foi retirado do esquecimento. 

    Hoje, vamos explicar por que sua técnica de microscopia eletrônica foi revolucionária para a época e merece destaque nos dias atuais. Também convidamos vocês a refletirem sobre a razão pela qual uma pandemia foi necessária para que a Dra. June Almeida fosse, enfim, celebrada.   

    O começo

    A Dra. June Almeida nasceu em Glasgow em 1930 e foi uma virologista escocesa, doutora em ciências e pioneira no método de imagens para vírus. 
    Filha de Jane Dalziel e Harry Leonard Hart, sempre foi considerada uma aluna brilhante, mas aos 16 anos ela precisou deixar a escola pois não conseguiu uma bolsa de estudos . Por não ter recursos para ir à universidade, pois seu pai trabalhava como motorista de ônibus, June começou a trabalhar como técnica de laboratório em histopatologia na Royal Glasgow Infirmary. Posteriormente, mudou-se para o Hospital St. Bartholomew, em Londres, para continuar sua carreira em função similar.

    O reconhecimento

    Ao mudar-se para Londres, June conheceu  o artista venezuelano Enrique Almeida,com quem casou-se em 1954 e teve uma filha.  Um tempo depois, o casal mudou-se para o Canadá, onde June passou a trabalhar como técnica em microscopia eletrônica no Ontario Cancer Institute. Mesmo sem qualificações universitárias ela teve um grande destaque e escreveu diversos artigos científicos, sendo a maioria relacionada a estruturas de vírus.

    A metodologia desenvolvida por June, que possibilitava  uma melhor visualização de vírus por meio do uso de anticorpos, permitiu utilizar microscópios eletrônicos no diagnóstico de infecções virais, sendo uma delas a rubéola. 

    Seu trabalho começou a ser aceito e, alguns anos depois, em 1964, ela foi convencida pelo professor de microbiologia na St. Thomas Hospital Medical School a voltar à Inglaterra para trabalhar no hospital.

    June Almeida. Foto: Getty Images

    A técnica revolucionária

    Os vírus são partículas microscópicas e a visualização de suas estruturas só é possível através de um microscópio eletrônico, que evidencia partículas menores que 1mm. Quando um microscópio eletrônico emite um feixe de elétron sob uma amostra, essa emite elétrons secundários que são capturados por detectores. As interações das partículas com a superfície da amostra são então registradas, criando uma imagem 3D na tela do computador. Como os elétrons têm comprimentos de onda muito mais curtos que a luz, a imagem revelada apresenta detalhes pequenos e finos.

    Na época em que June trabalhou, as imagens de microscopia eletrônica eram muito duvidáveis devido à falta de nitidez do contraste, sugerindo resultados falsos-positivos. Contudo, June era conhecida por ter desenvolvido uma metodologia de sucesso, através da mistura de reagentes em determinado pH, que melhorava o contraste do material gerando imagens mais definidas. Essa metodologia é conhecida como marcação negativa

    June ainda realizou importantes avanços na técnica conhecida como microscopia eletrônica imune que utiliza anticorpos para marcar a molécula de interesse. Com essa técnica, June conseguiu demonstrar a morfologia do Rinovírus, o que era muito difícil na época. No geral, seus trabalhos em microscopia eletrônica promoveram importantes avanços em virologia nas décadas de 1960 e 1970.

    A validação

    Quando a Dra. June Almeida voltou para o Reino Unido suas publicações já eram reconhecidas, e com o seu retorno sua carreira efetivamente decolou e ela obteve o grau de doutora honorária. 

    A cientista começou, então, a colaborar com Dr. David Tyrrell, que analisava pacientes da unidade de gripe comum do hospital. Algumas amostras de lavagens nasais de voluntários foram enviadas a June, que pôde identificar em seu microscópio os vírus do resfriado comum e um outro vírus, que era uma nova causa de infecção respiratória: o coronavírus. A princípio, esse novo patógeno foi chamado de vírus “tipo influenza”, mas esse nome não soava tão especial. June batizou então o novo vírus com o seu nome, agora tão famoso, por observar nas imagens uma espécie de halo em volta do vírus,  que remete a uma coroa

    Embora a identificação de um novo vírus que causa uma patologia respiratória em humanos pareça algo muito relevante, seus achados foram imediatamente rechaçados pela primeira revista científica em que June tentou a publicação dos dados. Eles duvidaram se tratar de um novo vírus, argumentando que seria apenas imagens mal feitas do vírus influenza. 

    Somente em 1967, June publicou as imagens captadas pela brilhante técnica de microscopia eletrônica no Journal of General Virology. Esse artigo pode ser lido na íntegra aqui.

    June também produziu a primeira imagem do vírus da rubéola e descobriu a existência de dois componentes distintos do vírus da hepatite B.

    Primeiro tipo de coronavírus identificado por June Almeida em 1964. Foto: Reprodução/BBC.

    Ela encerrou sua carreira no Wellcome Research Laboratory, onde trabalhou desenvolvendo vacinas. Em 1985, ela se aposentou e tornou-se professora de ioga, mas manteve-se como consultora no Hospital St. Thomas desde 1980, onde ajudou a registrar a imagem do vírus HIV

    Ela morreu em 1 de dezembro de 2007, aos 77 anos, em sua casa em Bexhill, após um ataque cardíaco, deixando a filha Joyce e as netas.

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    Se pararmos para refletir, a história de June Almeida infelizmente não se difere muito da história de outras tantas mulheres cientistas que já abordamos aqui. Assim como ela, Rosalind Franklin e sua fotografia que ajudou a desvendar a estrutura do DNA ou Nettie Stevens e seu trabalho com cromossomos sexuais não tiveram a merecida valorização na época em que foram realizados. 

    O que sua história também tem em comum com a de outras cientistas é que anos mais tarde, de uma forma ou de outra, esses achados são resgatados e trazidos à luz e seus feitos são enfim merecidamente destacados. Nos orgulhamos em cumprir esse papel de resgatar e celebrar essas mulheres cientistas e seus feitos fundamentais para a construção do conhecimento. 

    Convidamos a todos vocês a celebrar a Dra. June Almeida e a descobrir aqui outras tantas mulheres incríveis. 


    Esse texto teve a colaboração de Marina Barreto Felisbino e Carolina Francelin.

    Referências

    https://oglobo.globo.com/celina/june-almeida-mulher-que-descobriu-primeiro-coronavirus-humano-24376400

    https://www.publico.pt/2020/04/17/ciencia/noticia/historia-primeira-pessoa-coronavirus-humanos-1912722

    https://pt.wikipedia.org/wiki/June_Almeida

    https://brasil.elpais.com/smoda/2020-05-08/a-verdadeira-historia-da-cientista-sem-estudos-que-descobriu-os-coronavirus.html

    https://www.microbiologyresearch.org/content/journal/jgv/10.1099/0022-1317-1-2-175;jsessionid=bDf_z0c7jWH2XFbtjM92rvp-.mbslive-10-240-10-103

    http://coronavirus.butantan.gov.br/ultimas-noticias/june-almeida-a-doutora-que-nao-terminou-o-ensino-medio-e-identificou-o-primeiro-coronavirus

    https://www.bbc.com/news/uk-scotland-52278716

    https://jvi.asm.org/content/jvi/10/1/142.full.pdf

    https://www.oxforddnb.com/view/10.1093/ref:odnb/9780198614128.001.0001/odnb-9780198614128-e-99332;jsessionid=C76D00BE1623ACAFA790C8992369D53D

    https://www.microbiologyresearch.org/content/journal/jgv/10.1099/0022-1317-1-2-175;jsessionid=BzeMOhElGboAUSiTKaCfW0HP.mbslive-10-240-10-183


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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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