Texto escrito por Gian Carlo Guadagnin e Gildo Girotto Junior
Já discutimos nos primeiros textos da série questões importantes relacionadas a possível abertura das escolas. Buscamos falas de especialistas e discutimos falácias irresponsáveis. Temos clareza que, ainda que pudéssemos pensar na abertura, uma série de protocolos deveriam ser seguidos e uma infraestrutura mínima deve estar à espera dos alunos, alunas, professores e professoras. Pois bem, podemos então pensar um pouco sobre essa estrutura que (não) temos e para termos clareza do quão longe (ou perto) essa história vai.
Reconhecendo que as desigualdades se acentuam com a ausência de um projeto educacional e reconhecendo também que as condições sanitárias não são ideais para o retorno (e traremos dados sobre isso), nos cabe a pergunta: é possível planejar o ensino nestes meses finais que nos restam para o fim do ano? É mais inteligente e mais sensato quando nos atentamos aos exemplos da nossa realidade e pesamos as possibilidades que nos são factíveis, do que sair por aí comprando exemplos internacionais que não se encaixam nas nossas salas.
A(s) escola(s) no Brasil
Dois dos fatores mais importantes no controle da pandemia do novo Coronavírus, já assinalados nos diferentes protocolos, são o distanciamento social e as condições sanitárias, os quais atingem como uma bomba o espaço escolar brasileiro.
Segundo dados do Censo Escolar de 2019(1), divulgados pelo INEP, a média nacional de alunos por turma varia entre (mínimo) 14,3, na creche, e 31,1 (máximo) no Primeiro ano do Ensino Médio, todavia esse valor chega a 36,5 em algumas regiões do nordeste, por exemplo(2). Esses números são muito superiores aos cerca de 20 alunos/turma da média dos países da União europeia(3), da qual fazem parte os que afirmam (de forma enganosa) que o contágio da doença não foi agravado pela volta às aulas presenciais.
Sobre a realidade aqui, ainda tem mais…
Ainda, a qualidade sanitária das instituições escolares também é muito diferente. Muitas escolas do Brasil não dispõem de papel higiênico, por exemplo, para todos os estudantes, ou então obtém sua água de cisternas e essa é a única forma possível de alguma tentativa de higienização. Em casos piores não há nem mesmo unidades de saúde próximas e, assim, quem faria a checagem do estado de saúde desses estudantes e professores?
Há que se considerar também que em muitos casos, como na educação básica, boa parte das relações são construídas pelo toque, pelo contato direto, e então não faz sentido levar a criança à escola para que ela tenha uma educação psicossocial, se estaremos limitando ou proibindo essa ação. Ou seja, o argumento acaba em si mesmo e, portanto, não se justificaria.
Mas tem mais ainda? Sim…
Voltando aos dados de infraestrutura, temos um grande número de escolas que funcionam em dois ou até três turnos. Ou seja, um conjunto de estudantes que frequentam as aulas no período da manhã, um novo conjunto de estudantes à tarde e outro à noite o que implica que para cumprir as condições sanitárias, a escola deveria ser sanitizada(4) totalmente entre os turnos.
Como será o controle das condições de entrada? Como está sendo planejado a sanitização dos ambientes? Quais as estratégias de acompanhamento da disseminação do vírus? As perguntas de quem está diretamente envolvido com o retorno, ou seja, alunos e professores, são muitas.
Quem defende a volta com base na experiência internacional de países desenvolvidos, por outro lado, não parece se perguntar. Um terceiro lado sequer se importa porque não é a sua realidade. Todavia, no meio de tudo isso, poucos se preocupam com as recomendações de caráter internacional, ou com a necessidade de um plano de retomada pensado para o país. Incluímos nesse grupo os ministros e ex-ministros e demais coordenadores do ministério da educação do atual governo.
O que podemos fazer?
Mas se não retornarmos, o ano estará perdido? Sem dúvidas, a qualidade de qualquer intervenção educacional remota e, nesse momento, adaptada, é inferior ao ensino que foi planejado presencialmente. Não questionamos esse fato. Os primeiros meses de pandemia deixaram claro que a adaptação ao ensino remoto escancarou as desigualdades e tolheu a possibilidade de estudo de muitos estudantes. No entanto, para garantirmos as condições de saúde, defendemos que o retorno presencial não ocorra e que seja possível, com a compreensão da situação, e o desenvolvimento de ações estruturadas em estratégias de acesso no intuito de “devolver” a educação àqueles de quem ela foi tirada.
Desse modo, a pergunta que deveríamos ter feito não é “devemos retornar?”, porque as recomendações são claras(5), mas, sim, deveríamos questionar “como planejar e executar o trabalho com a situação remota?”. E ainda, “como planejar e executar ações que suportem os aprendizados perdidos nesse ano?”. Essas são questões que, antes de tudo, devem levar em consideração a especificidade dos municípios e, sem dúvida nenhuma envolver os diferentes atores da comunidade escolar.
Dessa forma, a esfera online, mais segura no momento, deve funcionar se governos e indivíduos articularem ações. Algumas recomendações já têm sido feitas nesse sentido, como as destacadas na sequência, indicadas pela UNESCO(6). Deve-se ressaltar que o acesso à educação é direito constitucional universal de todo cidadão e, assim, dever do poder público de fazer todo o necessário para que mesmo o indivíduo mais afastado e vulnerável não fique em desvantagem.
1 – Analisar a resposta e escolher as melhores ferramentas
Escolher as tecnologias mais adequadas de acordo com os serviços de energia elétrica e comunicações disponíveis, bem como as capacidades dos alunos e professores. Isso pode incluir plataformas na internet, lições de vídeo e até transmissão através da televisão ou rádio.
2 – Assegurar-se de que os programas são inclusivos
Implementar medidas que garantam o acesso de estudantes de baixa renda ou com deficiências. Considerar instalar computadores dos laboratórios da escola na casa dos alunos e ajudar com a ligação à internet.
3 – Estar atento para a segurança e a proteção de dados
Avaliar a segurança das comunicações online quando baixar informação sobre a escola e os alunos na internet. Ter o mesmo cuidado quando partilhar esses dados com outras organizações e indivíduos. Garantir que o uso destas plataformas e aplicações não violam a privacidade dos alunos.
4 – Dar prioridade a desafios psicossociais, antes de problemas educacionais
Mobilizar ferramentas que conectem escolas, pais, professores e alunos. Criar comunidades que assegurem interações humanas regulares, facilitando medidas de cuidados sociais e resolvendo desafios que podem surgir quando os estudantes estão isolados.
5 – Organização do calendário
Organizar discussões com os vários parceiros para compreender a duração da suspensão das aulas e para decidir se o programa deve centrar em novos conhecimentos ou consolidação de currículo antigo. Para organizar o calendário é preciso considerar as áreas afetadas, o nível de estudos, as necessidades dos alunos e a disponibilidade dos pais. Escolher metodologias de ensino de acordo com as exigências da quarentena evitando métodos de comunicação presencial.
6 – Apoiar pais e professores no uso de tecnologias digitais
Organizar formações e orientações de curta duração para alunos e professores. Ajudar os docentes com as condições básicas de trabalho, como rede de internet para aulas por videoconferência e assegurar os pagamentos salariais, principalmente daqueles que apresentam maior vulnerabilidade..
7 – Mesclar diferentes abordagens e limitar o número de aplicações
Misturar as várias ferramentas disponíveis e evitar pedir aos alunos e pais que baixem ou testem múltiplas plataformas.
8 – Criar regras e avaliar a aprendizagem dos alunos
Definir regras com pais e alunos. Criar testes e exercícios para avaliar de perto a aprendizagem. Facilitar o envio da avaliação para os alunos, evitando sobrecarregar os pais.
9 – Definir a duração das unidades com base na capacidade dos alunos
Manter um calendário de acordo com a capacidade dos alunos se concentrarem sozinhos, sobretudo para aulas por videoconferência (assegurando para isso as condições mínimas de vida na alimentação, saúde e habitação). De preferência, cada unidade não deve exceder os 20 minutos para o ensino fundamental e 40 minutos para o ensino médio.
10 – Criar comunidades e aumentar a conexão
Criar comunidades de professores, pais e diretores de escolas para combater o sentimento de solidão e desespero, facilitando a troca de experiências e discussão de estratégias para enfrentar as dificuldades.
Isto quer dizer que vai funcionar?
O processo está longe de ser considerado fácil. Desse modo, as recomendações são densas e envolvem parcerias importantes, articulação do Ministério da Educação (praticamente ausente durante toda a pandemia). Além disso, requerem conhecimento técnico, preparo, diálogo, respeito e segurança para os profissionais, estudantes e suas comunidades, além de noção das realidades locais. Mas ainda assim, é mais coerente do que colocar vidas em risco e lidar com a dor.
Finalizando
Por fim, devemos reiterar que o espaço virtual nunca substitui a experiência de sala de aula na formação do indivíduo. Além disso, uma educação digitalizada não pode ser pensada como terminal. Assim, devemos exigir as adaptações necessárias ao momento e simultaneamente cobrarmos a construção de uma educação universal, válida, eficiente, pública e presente para todos os sujeitos.
O que estamos vivendo agora é atípico e não pode ser entendido como o novo normal. A educação, quando segura, deve ser presencial. Do contrário, podemos privar indivíduos do acesso, criar novas defasagens e aumentar a desigualdade social, que já nos é tão crassa, ou acabar por fomentar uma educação como negócio, que deve ser considerada um perigo no longo prazo e, portanto, desestimulada.
Gildo Girotto Junior é Licenciado em Química (UNESP), Doutor em Ensino de Química (USP) e atualmente é professor e pesquisador no Instituto de Química da Unicamp
Gian Carlo Guadagnin é estudante de graduação em Licenciatura em História (UNICAMP)
Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Texto escrito por Gian Carlo Guadagnin e Gildo Girotto Junior
E agora, José? E agora, Você?
Porque planejar um novo semestre escolar corretamente não significa precisar voltar ao sistema presencial? É hora de ouvir educadores, professores e alunos, e não só empresários e economistas. O problema, ou o caroço, não é a escola não ser presencial, é ela não ser nada. E, tristemente, em muitos lugares ela já é pouca.
Com a naturalização irracional da pandemia do novo coronavírus, por boa parte da população e endossada por políticos e figuras públicas, a vida volta a uma normalidade inexistente e perigosa. Da irresponsabilidade de quem é legalmente dono de si, surgem os que querem colocar jovens e crianças em risco, com justificativas superficiais que se suportam no desconhecimento da realidade da escola no país.
As ruas…
Não bastassem as aglomerações em ruas, bancos, restaurantes e lojas, há quem defenda que é hora dos estudantes voltarem às suas atividades escolares presenciais. Defendem ainda que planejar um novo semestre/bimestre à distância não se justifica, uma vez ser possível organizar as escolas em condições para alocar estudantes, professores e funcionários em sala.
Procuramos nesse texto iniciar uma discussão trazendo, primeiramente, uma visão geral e algumas recomendações de especialistas sobre o retorno às aulas. A intenção dessa série é, a partir de argumentos factuais, entender caminhos para a educação nesse momento, ainda que ocorra a distância. E, deixamos claro nossa opinião que o contexto de um planejamento do ensino à distância EM CONTEXTO PANDÊMICO não significa defender um projeto de educação a distância permanente.
O caroço no angu
Matérias recentemente publicadas em jornais de grande circulação apresentam uma visão problemática, em alguns pontos, sobre a volta às aulas. Limitações de abordagem, falácias e uma diminuição da situação escolar nacional que é, na verdade, típica de quem nunca, ou muito pouco, entrou numa sala de aula da rede estadual de qualquer unidade da federação. Assim, a falsa simetria entre escolas e comércio, sob a égide de um populismo que se pauta em frases como “pagaremos caro por abrir bares antes de escolas” sustenta uma ideia de que o lucro do empresariado educacional está padecendo e necessitando de discursos baratos na tentativa de convencer população e governo. Em contraponto, pesquisas com a população mostram que uma de cada três pessoas não se sente segura no retorno à escola, o que acirra ainda mais o debate.
O fato é que a ingerência que se faz em tantas áreas econômicas e sociais não pode, nem deve de forma alguma, ser estendida para as escolas por uma justificativa, usada de forma rasa, de que a educação e as crianças devem ser prioridade. Se as crianças, os jovens, todos aqueles que trabalham neste setor e a educação devem (e devem mesmo!) ser prioridade, então porque não pensar na saúde e segurança desses sujeitos primeiro?!
Pois é…
Sabemos, e reafirmamos, a necessidade do compartilhamento de experiências com outros indivíduos na formação cognitiva, social e emocional dos estudantes(1) . Se nós, adultos, já sofremos com a ausência do contato humano, imaginemos as crianças. Além disso, é verdade que muitos jovens e crianças não estão tendo nenhum tipo de educação formal nesse período de pandemia (a ONU estima cerca de 1,6 bilhão de pessoas no mundo todo)(2). Mas, é exatamente por isso que precisamos pensar formas eficientes e acolhedoras de educação, ainda que à distância (e não necessariamente virtual), em um momento que essa parece ser a opção mais segura, principalmente em países com a estrutura educacional como a brasileira.
Dizemos isso em virtude de nossa situação social e econômica ser muito particular, o que se desdobra e implica em grande medida na nossa educação quanto à acesso, eficiência, métodos, espaços, limitações e proficiências. Claro que discutir o lugar da escola nesse momento sem falar de seguridade e desigualdade social, distribuição de renda e condições mínimas de vida é bastante complicado.
E o comércio, não abriu?
Boa parte dos negócios reabriu porque seus donos não conseguem manter funcionários e a si mesmos, sem clientes. Isso mostra que, nas massas, até mesmo aqueles que se entendem parte do processo produtivo não têm estabilidade social. O que dizer então das famílias, e de seus estudantes, em situação de vulnerabilidade, ou que perderam o emprego ou tiveram diminuição de renda? Bom, a escola não é fonte de renda, de modo geral, para os estudantes, mas é a única fonte de alimentação balanceada que muitos deles têm. Estar desassistido pela escola sujeita um aumento das chances de abuso sexual, gravidez na adolescência e exploração do trabalho para auxiliar as despesas da casa. Além disso, significa não aprender na “idade ideal”, o que leva a defasagens na vida toda(3).
Entretanto, observa-se que, mesmo que o comércio tenha aberto, a vida não voltou ao espírito de normalidade. Segundo a pesquisa(4), a sensação de segurança sanitária é baixa. Dados recentes mostram que 31% das pessoas não se sentem nada seguras para ir ao trabalho, e esse número aumenta em situações de lazer, atingindo 59% em ‘ir à restaurantes” e 63% para “ir ao cinema”.
E a escola?
Quanto à escola, entre as famílias que ganham até 2 salários mínimos ao mês o percentual de pessoas contrárias à abertura das instituições é de 77%, e atinge 56% das famílias com renda superior a dez mil reais ao mês. Nas famílias em que os estudantes frequentam a rede privada, 75% se mostraram contrários à abertura, enquanto nas com estudantes da rede pública o índice chega a 79%.
Compreendendo toda a complexidade do impacto da ausência da escola como espaço físico. Todavia, compreendemos também que a escola é muito diferente do comércio e, nessa situação que vivemos, ela não precisa estar aberta para funcionar. Mesmo as escolas particulares continuaram funcionando e, inclusive, cobrando mensalidades, o Estado não cortou a pequena e mal-distribuída verba da educação. O trabalho de professores e funcionários não parou. Na verdade surgiram novos desafios, mas a maioria dos estudantes continuaram sendo, de alguma maneira, atendidos à distância, online ou por meios físicos.
O que defendemos portanto, é que, não havendo a garantia de preservação da saúde de estudantes e não sendo possível estimar como a disseminação do vírus seria afetada pela volta presencial as aulas, todo esse atendimento seja pensado, planejado e organizado para que continue remoto e, possa, nesse caminho aprimorar ações para garantir o acesso aqueles que ainda estão à margem do processo. No terceiro texto desta série apresentaremos dados das escolas e ações possíveis nesse sentido.
Mas e a Europa, não tá abrindo?
Enquanto isso, onde a desigualdade social é menor, e as condições de acesso básico à educação são levadas a sério, meio mundo resolveu voltar ao ambiente presencial, e com motivos. Além de ter um programa eficiente e planejado de retorno, esses (poucos) países tiveram um controle inteligente e efetivo da pandemia, desde muito cedo, coisa que, salvo exceções por forças estaduais ou municipais, não tivemos, não em nível nacional. Nossas taxas de contágio não diminuíram satisfatoriamente (apenas se estabilizaram) e nossa condição física escolar impede que o argumento de que “dá pra voltar, mas com cuidado” se produza como verdadeiro.
Mesmo nesses países não há plenas garantias de que a volta será definitiva; é um processo gradual e sob observação, com possibilidade de declinação à qualquer momento. Assim, há que se destacar ainda, que mesmo em países considerados seguros, o número de casos aumentou. Na frança, por exemplo, os novos casos associados ao ambiente escolar representaram na última semana um terço do total.(5)(6)
Recomendações
Se buscarmos as recomendações para entender o processo, acharemos as recomendações do corpo de especialistas em educação da UNESCO, em abril. Neste documento, consta que da reabertura das escolas os governos deveriam:
“Preparar-se com políticas, procedimentos e planos de financiamento estratégicos necessários para melhorar a escolaridade, com foco em operações seguras, incluindo o fortalecimento de práticas de ensino a distância.”(7)
Nós fizemos isso? Temos um Plano? Não, não fizemos isso. Mas queremos reabrir tudo a toque de caixa.
A OMS desencoraja a abertura de escolas em locais onde a contaminação ainda seja alta (como no caso do Brasil) (7). Além disso, pesquisadores do Massachusetts General Hospital (MGH), afiliado à Harvard, e do Mass General Hospital for Children (MGHfC) afirmam que as crianças desempenham um papel maior do que o imaginado na difusão do coronavírus na comunidade. Isso porque as crianças infectadas mostraram ter um nível significativamente mais alto de vírus em suas vias aéreas do que adultos hospitalizados em UTIs para tratamento da doença. Ademais, são assintomáticas em boa parte dos casos(8;9).
Finalizando
Deste modo, o que precisamos (antes de reabrir irresponsavelmente as escolas) é planejar, cobrar ações das esferas públicas (lembrando que não é o professor que resolve os problemas da escola). Isto para a manutenção e incremento do acesso e da qualidade da educação, em prol de programas que garantam que todos tenham uma vida digna, com saúde, educação e estabilidade econômica, fatores que poucas vezes antes estiveram tão interligados, ou tão na nossa cara. Tampouco podemos também transferir as responsabilidades da educação familiar para a escola.
Nos próximos textos, discutiremos mais sobre todo esse contexto. O problema, ou o caroço, não é a escola não ser presencial, é ela não ser nada. E, tristemente, em muitos lugares ela tem sido pouca.
Gildo Girotto Junior é Licenciado em Química (UNESP), Doutor em Ensino de Química (USP) e atualmente é professor e pesquisador no Instituto de Química da Unicamp
Gian Carlo Guadagnin é estudante de graduação em Licenciatura em História (UNICAMP)
Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
O ensino remoto nos faz retornar a décadas passadas, onde o acesso à educação era para poucos, num formato totalmente tecnicista, com um currículo imutável e por meio da aplicação de uma mesma “técnica pedagógica”.
É provável que muitos dos que irão ler este texto tenham filhos em idade escolar ou conheçam pessoas que os tem. É provável também que se perguntem como têm sido as atividades desenvolvidas pelas escolas e se há sentido a educação remota imposta pelo confinamento social. Um fato é, dentre pais, professores, gestores e estudantes, provavelmente encontraremos grande insatisfação com esse formato. Mas enfim, o que fazer em relação a esta situação? E se tivermos um segundo semestre também a distância?
Sabemos que no Brasil há muitos formatos de educação dentro de um mesmo sistema. Estados, municípios, redes militares, redes federais e privadas compõem um espectro de modelos educacionais e, nesse período de isolamento, toda essa variedade migrou para o caráter remoto. Nessa migração, à outrora importantíssima diversidade do sistema educacional brasileiro tem se colocado como um desafio por vezes insuperável para as instituições e os resultados a se esperar de todo esse processo não tem sido tão promissores.
Olhando para as propostas
Ao percorrer os modelos de ensino remoto implementados vemos semelhanças e diferenças. O estado de São Paulo, por exemplo, adotou a proposta remota pela implementação de um aplicativo de celular para disponibilização de conteúdos por meio de arquivos e aulas, com preparo de um material específico para o momento da pandemia além das salas virtuais por meio da plataforma google classroom. Nesse formato, os estudantes da rede entram TODOS ao mesmo tempo no aplicativo para assistir as aulas (que tem horário definido por série) ou o fazem por meio do canal digital da tv cultura, minando qualquer possibilidade de interação). O material produzido não carrega conteúdos síncronos com aqueles estabelecidos em cada série(1).
Numa linha totalmente diferente, o Instituto Federal de São Paulo (IFSP), por sua vez, optou pela suspensão das atividades, mantendo ações de vínculo com os estudantes enquanto planeja ações futuras. Nesta estratégia são desenvolvidas ações como clubes de leituras, debates sobre filmes, temas atuais, etc., mas sem a cobrança de uma formalização do ensino ou cumprimento de conteúdos curriculares.
Já as redes privadas, para desespero dos pais, têm adotado cada qual a sua estratégia de sobrevivência. Aulas síncronas ou gravadas, plantões online, disponibilização de materiais e tarefas que devem ser elaboradas e entregues para o acompanhamento pelo professor, dentre outras. O objetivo, na maior parte dos casos, é manter o conteúdo em dia, preocupação que pode girar em torno da manutenção do número de matrículas (e pagamentos) como também em relação aos exames vestibulares.
A linha comum de todas as propostas no entanto, se mantêm: os estudantes, juntamente com seus responsáveis (no caso da Educação Fundamental), devem acessar o conteúdo em casa, realizar ações e de algum modo apresentar uma devolutiva. Tudo remotamente. É diante deste cenário que estamos e que podemos pensar um pouco a respeito. Me proponho a colocar três questões das inúmeras que são possíveis para o debate.
Primeiramente, como já apresentado por Natália Flores e Ana Arnt, para além do acesso aos recursos, nem todos os estudantes têm condições adequadas de aprendizado no ambiente domiciliar. Podemos considerar que a escola é um espaço pensado para prover condições mínimas de estudo (ainda que consideremos as condições problemáticas de algumas instituições). Independente de uma proposta tradicional, construtivista, sócio-interacionista, etc., o ambiente escolar possibilita um espaço-tempo onde é possível ler, escrever, dialogar, além, é claro, de obter orientações do e com o profissional professor. Nas casas, o conteúdo produzido (neste momento de forma pouco planejada) é transmitido para um aluno que muitas vezes não possui condições físicas para estudar nem orientação adequada para tal. Na na escola reconhecemos os ritmos e nos adequamos a eles enquanto que no ensino remoto isso não tem sido possível.
O segundo ponto que toco é a forma como a implementação das ações foi pensada e quais aspectos foram considerados. Todos que trabalham com educação conhecem bem os termos avaliação diagnóstica e planejamento. A ideia de avaliação diagnóstica vai além de conhecer conhecimentos prévios de física, química, matemática ou qualquer outra área. Soma-se a isso, conhecer quem são os estudantes e suas realidades para que o planejamento educacional seja feito e refeito quantas vezes for necessário.
E então nos questionamos: que dados diagnósticos foram considerados na proposição de uma plataforma única de acesso a conteúdos? Distribuem-se aplicativos a quem não tem acesso, propõe-se um material diferente do currículo e que nem ao menos tem-se a certeza de estarem chegando aos domicílios. Propõem-se que os pais realizem as tarefas com os filhos quando estes também têm trabalho remoto a fazer (na melhor das hipóteses).
Para além dos dados gerais como os da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAD 2017, que mostra que o acesso dos municípios à banda larga temos os dados específicos, das escolas, as quais conhecem os estudantes matriculados. Quando se propõe a implementação de um único projeto a populações totalmente distintas, incorre-se no erro crasso de acreditar que todos são perfeitamente iguais em temos de condições e de aprendizagem. Ou seja, nessa proposta, esquecemos o fundamental: quem são os alunos!
Soma-se a este fato, como terceiro aspecto, a supervalorização da técnica frente ao objeto do aprendizado. Nunca antes se falou tanto em tecnologias educacionais como antes. Nós, professores, buscamos aprender a lidar com ferramentas novas de um dia para o outro (literalmente), empurramos aos alunos e pais que também aprendessem. E produzimos conteúdos digitais de maneiras como nunca faríamos, não fosse a pandemia, com uma falsa impressão momentânea de que com isso venceríamos toda a problemática imposta. Triste fim.
Ainda que todos tivessem acesso, esquecemos que o formato digital imposto é, sim, limitador a uma proposta tecnicista de ensino uma vez que vem tolhe a interação e o diálogo, impondo um mesmo conteúdo apresentado da mesma forma à todos. A diversidade, outrora aspecto de possibilidades para o ensino, é nesse momento desprezada pois a técnica, por mais atualizada que seja, não considera a realidade. O ensino remoto nos faz retornar à décadas passadas, onde o acesso a educação era para poucos, num formato tradicional, com um currículo imutável e por meio da aplicação de uma mesma “técnica pedagógica”.
O que podemos fazer diante deste cenário? Manter ou cancelar o ano? Trabalhar conteúdos ou não trabalhar? E o vestibular?
Obviamente não há saída mágica para a situação. Mas é fato que dados nos auxiliam em ações. Estamos a completar quase dois meses de isolamento e, dependendo do sistema, de duas a oito semanas de ensino remoto. Temos, além dos dados que foram desconsiderados inicialmente, de quem são nossos estudantes, temos ainda o número de acessos, materiais recebidos, respostas ao sistema e podemos ainda acessar outros, se assim for desejável. Então, consideremos estes e nos perguntemos “O que aprendemos com isso e como podemos nos utilizar desses dados para repensar e replanejar as ações?” Na iminência de um segundo semestre também a distância, o mais coerente a se fazer é planejar com bases e não com achismos. Observar que as escolas, mesmo fazendo parte de um mesmo sistema educacional tem especificidades e buscar agir de acordo com estas características é crucial. E se tivermos um segundo semestre a distância? Muitos erros estão aí. Cabe a nós planejarmos as ações, para não cometê-los novamente.
1. Portal de notícias do Estado de São Paulo: https://www.saopaulo.sp.gov.br/ultimas-noticias/educacao-retoma-ano-letivo-com-ensino-remoto-e-distribuicao-de-material-pedagogico/
2. Nota da Reitoria do Instituto Federal de São Paulo. Disponível em: https://www.ifsp.edu.br/images/pdf/Noticias/Comunicado_01_2018_PRE.pdf
3. Natália Flores. Ensino Remoto Emergencial: não é só sobre acesso e equipamentos… disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/covid-19/ensino-remoto-emergencial-nao-e-so-sobre-acesso-e-equipamentos/.
4. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2017 – disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101631_informativo.pdf
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp.Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Tão em pauta nos dias de hoje, a ideia de se trabalhar gênero e sexualidade nas escolas tem gerado polêmica e muita confusão em diferentes espaços sociais. Por um lado, há quem defenda que abordar gênero e sexualidade na escola é incentivar práticas “imorais”. Isto se contraporia ao que deveria ser obrigação somente das famílias destas crianças e adolescentes. Por outro lado, há um longo debate que aponta a necessidade de isto ser uma política pública escolar. Isto se daria em função das questões de saúde, violência e intolerância em relação aos diferentes modos de viver e existir em nossa sociedade. Será que existe mesmo a necessidade de falarmos disso em nossa sociedade e, em especial, na escola?