Tag: fármacos

  • Mais rápido, mais preciso e mais fármacos: Triagens de Alto Desempenho.

    Imagine que você esteja na véspera de uma prova e precise ler toda a bibliografia recomendada pelo seu professor da noite para o dia. Se você for um ótimo leitor, conseguirá ler no máximo um dos livros recomendados. Agora pense que você tenha a habilidade não só de ler vários livros de uma vez, mas ler todos os livros de diversas bibliotecas da sua cidade de uma vez só. 

    Essa leitura dinâmica te ajudará a entender os principais pontos dos livros e, às vezes você encontrará um livro que você nem sabia que poderia te ajudar na hora de fazer a prova. Apesar disso, sua leitura terá sido pouco específica ou aprofundada e se você precisasse saber algum detalhe na hora da prova, você provavelmente não se lembraria. Na área de descobrimento de fármacos temos uma metodologia parecida: a triagem de alto desempenho (High-Throughput-Screening, ou HTS).

    Desenvolver um remédio é algo muito caro e demorado. A triagem de alto desempenho é um processo automatizado capaz de testar milhares de “candidatos a remédios” (compostos químicos ou biológicos) em um único dia. Esse tipo de triagem, o HTS, é muito utilizado na indústria farmacêutica e é feita com a ajuda de robôs, o que minimiza os erros na hora de adicionar concentrações muito pequenas de remédios ao seu ensaio. Um cientista fazendo esse trabalho de modo manual demoraria uma semana para realizar a triagem de poucos compostos, e utiliza concentrações mais altas do que as do robô.

    O HTS é uma forma de separar fármacos promissores, também chamados de HITS, daqueles que não possuem efeito nenhum. Essa técnica é muito importante no cenário da pandemia de COVID-19, pois torna possível selecionar os compostos candidatos para tratamento de um modo bem mais rápido do que conseguiríamos sem a ajuda dos robôs. E como isto é feito?

    Para começar a triagem,  uma biblioteca de compostos é criada e funciona de modo bem parecido com uma biblioteca de livros. Essa biblioteca é um conjunto de compostos sintetizados quimicamente e de origem biológica. Podem ser, por exemplo, desde fármacos já aprovados para uso em humanos, até compostos extraídos de plantas. Essa biblioteca será testada com a ajuda destes “robôs pipetadores”, e os resultados serão analisados por cientistas que separarão os compostos HITS.

    Por ser um ensaio in vitro, ou seja, que não realiza observações em organismos vivos, e por nem sempre ser realizado com fármacos que já são aprovados para uso em humanos, esses testes são apenas indicadores de compostos promissores, que deverão ser validados em mais ensaios para confirmar se eles funcionam contra determinada doença ou não. 

    Caso sejam encontrados compostos promissores contra a infecção por SARS-CoV-2 (o vírus que causa a COVID-19), novos testes, que avaliam diferentes características dos remédios devem ser realizados antes, e depois validados pelos órgãos regulamentadores (como o FDA nos EUA e a ANVISA no Brasil). Existem 3 principais tipos de triagem de alto desempenho, e você pode conhecê-las a seguir:

    1. Triagem fenotípica, ou triagem celular

    As triagens fenotípicas, que são características observáveis, utilizam como base para o experimento uma cultura de células. Os pesquisadores, por meio de um sistema robotizado, adicionam uma quantidade específica de células em um poço de uma placa de ensaio, depois colocam o composto que será testado e o patógeno (agente causador da doença). No decorrer do experimento  as células, o composto e patógeno entram em contato e interagem entre si (isto pode durar alguns dias). O ensaio é finalizado com a adição de “corantes” no poço para realizar uma leitura no microscópio. Essa leitura pode mostrar estruturas celulares específicas e até mesmo o patógeno. Com essas imagens, são feitas análises para determinar se um composto teve efeito ou não.

    Caso o composto candidato apresente algum efeito, é necessário repetir o experimento, e depois estudos com outros tipos de testes/experimento , para que o resultado seja validado e se possa afirmar que um dado composto é eficiente de verdade. Por vezes, os testes indicam “falsos positivos”, compostos que parecem funcionar, mas na verdade não tiveram efeito. Além disso, uma desvantagem dos ensaios fenotípicos é que não é possível saber qual o mecanismo de ação do composto usado naquele contexto.

     

    2. Triagem Bioquímica

    As triagens bioquímicas são um pouco mais específicas do que as triagens celulares Antes de começar o experimento de triagem, são selecionadas  moléculas importantes do patógeno, como proteínas e enzimas.Tanto as proteínas, quanto as enzimas são pequenos pedaços que ajudam a dar uma forma para esse organismo, ou realizar uma função dentro dele. Essas moléculas são sintetizadas e colocadas nos poços das placas de ensaio juntamente com um ligante no caso das proteínas ou um substrato para as enzimas, ou seja, um composto específico com a sua molécula de interesse interage. Os compostos candidatos são adicionados, e é analisado se eles são capazes de interferir com a ação da proteína, ou seja, é avaliada a interação entre a proteína e o substrato ou ligante. Desta forma é possível saberse existe alguma interação específica entre essa proteína testada e o composto avaliado. A ideia é selecionar compostos capazes de fazer com que a proteína não funcione adequadamente. Essa análise pode ser feita por meio de indicadores de que houve uma transformação química, como uma mudança na coloração do poço que pode indicar, a quebra de alguma molécula do substrato, ou até mesmo alguma mudança na estrutura da proteína-alvo do experimento. Essa técnica foi efetiva para encontrar um remédio que atuasse na inibição da proteína NS5A do vírus da Hepatite C.

    Apesar de mais específico, esse tipo de teste está restrito a apenas uma região específica do patógeno (a proteína isolada). Proteínas diferentes têm estrutura diferentes e podem ter interação diferente diante de um determinado composto. No caso de um vírus como o SARS-CoV-2, existem diversos alvos possíveis para a ação de medicamentos, como a proteína spike, ou a enzima que quebra proteínas (protease). Caso o teste seja feito utilizando apenas a spike, nunca saberemos se os compostos testados funcionarão para a protease, por exemplo. 

    Figura 02. Esquema de um ensaio de triagem bioquímica.

    Triagem Virtual (vHTS)

    O ensaio virtual, ou triagem virtual, utiliza técnicas em bioinformática como base. Com o uso de programas de computador, são criados modelos em 3D da estrutura do composto e do alvo de interesse. Ao invés de usarmos um laboratório para sintetizar os compostos, cultivar as células e fazer o teste, realizamos o Docking molecular, ou uma simulação, em computadores. O Docking baseia-se na ligação das moléculas de compostos candidatos a sítios específicos da proteína alvo. Esta técnica funciona como um sistema de chaves e fechaduras, no qual testamos várias chaves e vemos qual se encaixa. O resultado disso é uma lista que ordena quais foram os compostos que se encaixam melhor naquele sítio de ligação. Dessa forma, podemos sintetizar apenas os compostos que mostraram uma boa ligação na molécula-alvo, economizando materiais do laboratório químico/farmacológico.

    Uma desvantagem desse ensaio é que para realizá-lo é necessário que você já conheça a estrutura molecular dos seus candidatos, e conheça a estrutura de onde você quer que ele encaixe, o que ainda não é possível para muitas moléculas. Essa estratégia só pôde a ser utilizada para encontrar candidatos contra a COVID-19 depois da publicação da estrutura das proteínas do vírus.

    Figura 03. Esquema de um ensaio de triagem virtual. Na imagem podemos observar uma das drogas que já foram selecionadas como possíveis tratamentos, se encaixando em uma das proteínas do vírus. 

    Mas qual o melhor HTS?   

    Cada um dos testes apresenta vantagens e desvantagens. A triagem por docking pode não representar de forma fidedigna o que acontecerá numa reação real, a triagem bioquímica exclui reações paralelas, como as que podem acontecer devido ao metabolismo celular, e a triagem por célula não nos permite conhecer o mecanismo de ação do fármaco. A melhor estratégia é sempre realizar a combinação dos 3 tipos diferentes de HTS e, caso um candidato passe por todas essas provas, o próximo passo é realizar os experimentos em modelos animais e testes clínicos que validem o composto como um remédio.

    Quer saber mais? 

    1. Integração das técnicas de triagem virtual e triagem biológica automatizada em alta escala: oportunidades e desafios em P&D de fármacos  https://core.ac.uk/download/pdf/37522641.pdf
    2. Acervo da Nature sobre HTS (textos em inglês):  https://www.nature.com/subjects/high-throughput-screening
    3. Impact of high-throughput screening in biomedical research: https://www.nature.com/articles/nrd3368.pdf
    4. A decade of fragment-based drug design: strategic advances and lessons learned: https://www.nature.com/articles/nrd2220.pdf
    5. Image based chemical screening: https://www.nature.com/articles/nchembio.2007.15
    6. Contemporary screening approaches to reaction discovery and development: https://www.nature.com/articles/nchem.2062.pdf
    7. An open-source drug discovery platform enables ultra-large virtual screens:  https://www.nature.com/articles/s41586-020-2117-z


    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Descobrindo e Redescobrindo medicamentos: Como podemos tratar a COVID-19?

    Como resposta à pandemia do coronavírus, diversos grupos de pesquisa têm procurado uma vacina ou um tratamento contra a COVID-19. Com isso, sempre aparecem novas notícias no jornal sobre medicamentos que são “a aposta” para curar essa doença. Você já se perguntou qual caminho um medicamento deve percorrer para sair do laboratório e ir até a prateleira da farmácia? Vamos explicar aqui como funciona o descobrimento (e o redescobrimento) de medicamentos para doenças ocasionadas por vírus!

    Mais rápido e mais barato, o que é o reposicionamento de fármacos?

    Criar um medicamento do zero demanda muito tempo  e é caro. O tempo médio para um princípio ativo ser sintetizado em laboratório, virar medicamento e ir parar nas prateleiras da farmácia é de 12 anos e custa milhões de dólares! 

    Em tempos de pandemia, não possuímos tanto tempo assim para achar uma solução, e uma alternativa é o que chamamos de reposicionamento de fármacos.

    O reposicionamento é uma forma de pesquisa que investiga se um medicamento que já é bem conhecido possui alguma atividade contra uma doença que ainda não tem tratamento.  Essa estratégia tem sido utilizada principalmente para identificar tratamentos para doenças que não possuem tanto investimento, como malária, leishmaniose, e doenças virais transmitidas por mosquitos. 

    O reposicionamento começa com uma pesquisa in vitro, normalmente em uma cultura de células, com objetivo de  verificar se o medicamento conseguiu atuar naquela infecção. Caso o resultado seja positivo, mais alguns testes são necessários para entender como esse medicamento atua na doença, determinar a dose e a periodicidade que ele deve ser administrado aos futuros pacientes. Após a validação dos testes, o remédio será seguro para realizar os testes clínicos. Esses testes possuem um número controlado de pacientes, e depois que os testes são finalizados, é possível dizer se o reposicionamento deu certo ou não. Reposicionar fármacos é tomar um atalho para encontrar uma resposta para uma doença.

    No caso do tratamento da COVID-19 temos muitos candidatos para reposicionamento.  O remdesivir, medicamento desenvolvido para o tratamento de casos de Ebola, o lopinavir e o ritonavir, utilizados em coquetéis anti-HIV, e claro, a cloroquina e a hidroxicloroquina,  utilizadas no tratamento de malária e lúpus. Possivelmente nas próximas semanas outros candidatos possam surgir e ganhar destaque na mídia.

    Todo medicamento de reposicionamento é seguro e é efetivo? Não!

    Mesmo sendo uma alternativa mais rápida do que o descobrimento de um novo medicamento, o reposicionamento precisa ser validado em diferentes experimentos e grupos de pessoas, e os efeitos a longo prazo também devem ser estudados! 

    Depois que foi divulgado um estudo experimental que utilizava cloroquina, houve um aumento substancial na venda deste composto, ocasionando problemas como a falta do medicamento para pacientes que fazem uso regular, diversos casos de intoxicação por má administração e até mortes! 

    Quer saber mais sobre a cloroquina? Se liga nestes links que selecionamos para vocês 🙂

    Desmistificando a Cloroquina:
    Nigéria registra intoxicações por cloroquina


    Estudo associa hidroxicloroquina a maior risco de morte por Covid-19

    Homem morre após automedicação com cloroquina nos EUA

    Maior estudo sobre cloroquina e hidroxicloroquina demonstra que aumentam risco de arritmias e morte

    Mesmo com as notícias de possíveis tratamentos, é preciso ter calma.  Ainda estamos na etapa de testes clínicos e apenas um grupo de pessoas realizou esse tratamento. Em um primeiro estudo com poucas pessoas, a própria cloroquina demonstrou ser um candidato ao tratamento, mas agora um estudo com mais de 96 mil pacientes indica que ela é ineficiente. Assim como qualquer medicamento, os tratamentos contra COVID-19 devem ser realizados apenas por meio de orientação médica e seguindo sempre as orientações dos órgãos regulamentadores e científicos.

    Ficou curioso para entender como funciona o descobrimento de um  novo medicamento? Aqui embaixo a gente te explica:

    O processo começa com o estudo do agente causador da doença e de etapas que são importantes para a evolução do quadro clínico. Algumas etapas importantes em doenças causadas por vírus são o momento de infecção, de replicação do vírus dentro da célula e de liberação das novas partículas. Com esse entendimento, é possível definir quais moléculas (naturais ou sintetizadas) serão capazes de realizar uma interferência e impedir, ou amenizar, a doença. O mecanismo de ação dos compostos pode ocorrer protegendo o corpo daquilo que está fazendo mal, atuando diretamente na morte do patógeno, ou em alguma outra etapa importante da infecção. Após esses estudos, é realizada a síntese em laboratório e a caracterização dos compostos de modo a verificar qual a composição exata deles. 

    Depois de sintetizados, esses princípios ativos são testados em ensaios in vitro. Um ensaio in vitro é como uma horta: As células cultivadas são como as plantas; a terra e os nutrientes são o que chamamos de meio de cultura, e todo esse cultivo ocorre geralmente em placas de vidro ou plástico. Os ensaios in vitro são muito importantes pois conseguimos controlar diversos fatores que não conseguiríamos em outros ensaios, definir uma quantidade exata de células, fazer observações ao microscópio e o mais importante, reduzir a quantidade de experimentos em animais. 

    No ensaio in vitro são realizados testes para verificar se o princípio sintetizado tem efeito ou não. Em uma doença ocasionada por vírus, verificamos se aquele composto foi capaz de proteger a célula, ou se aquele composto conseguiu diminuir a quantidade do vírus naquele experimento. Além disso, também verificamos se aquele composto está sendo tóxico para a cultura de células afinal, não adianta reduzir a quantidade do vírus, mas ao mesmo tempo matar as células.

    Depois de finalizados os experimentos in vitro, devemos partir para os modelos in vivo,ou seja, em modelos animais, pois a dinâmica do composto em um sistema vivo é diferente de um sistema fechado de cultura de células. Num corpo possuímos diversos tipos de células, que podem interagir de formas diferentes com esse possível princípio ativo. São nos testes in vivo que também verificamos as doses de segurança dos medicamentos, evitando uma possível overdose e também onde se reconhecem em parte os efeitos colaterais relacionados a substância administrada..

    Estabelecidos todos os parâmetros de segurança, passamos finalmente para os testes clínicos. Os testes clínicos são realizados depois da aprovação de um conselho de ética, e sempre com a autorização do paciente ou de um responsável. São testes realizados com escolha aleatória de pessoas, e sempre contando com um grupo controle, que não receberá o tratamento. Nesses testes é que realizamos a validação final dos medicamentos, e, aí sim ele pode ser considerado efetivo no tratamento de uma doença.

    Ainda não temos nenhum medicamento, novo ou de reposicionamento, que seja a cura para a COVID-19. A previsão é de que os resultados dos testes clínicos já iniciados sejam divulgados nos próximos meses, incluindo a iniciativa coordenada pela Organização Mundial da Saúde chamada “Solidariedade”. Por hora, os únicos métodos realmente efetivos de combate a pandemia são o distanciamento social e medidas básicas de higiene!

    Quer saber mais sobre o tema? Aqui embaixo temos algumas sugestões para você continuar a aprender:
    Novos Remédios para velhas doenças
    Como surge um novo medicamento?
    OMS lança estudo global para testar 4 medicamentos contra Covid-19

    Referências em inglês:

    MCCAUSLAND, Phil. CDC warns against using form of chloroquine that killed man, sickened his wife. 2020. Acesso em: 03 mai. 2020.

    WOUTERS OJ, McKee M, LUYTEN, J. Estimated Research and Development Investment Needed to Bring a New Medicine to Market, 2009-2018JAMA. 2020;323(9):844–853. doi:10.1001/jama.2020.1166


    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

plugins premium WordPress