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  • Mulheres em ciência e tecnologia: as origens históricas da inversão de gênero

    Julia Marcolan

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    Autora

    Julia Marcolan

    As disparidades de gênero em relação à representatividade, ao acesso a oportunidades de pesquisa e ao reconhecimento acadêmico representam obstáculos significativos enfrentados pelas mulheres na carreira científica. Na história da tecnologia, no entanto, diversas mulheres fizeram contribuições expressivas e revolucionárias que têm sido fundamentais para o progresso da ciência. Um exemplo notável é Ada Lovelace, filha de Anne Isabella Byron, uma matemática da nobreza, e do poeta romântico Lord Byron. Sua mãe a incentivou a estudar música e a se aprofundar na lógica matemática. 

    Além do estímulo materno, Ada também contou com a amizade e orientação da matemática inglesa Mary Somerville. Foi Mary quem apresentou Ada a Charles Babbage, o desenvolvedor da máquina diferencial, projetada para realizar cálculos de polinômios de forma mecânica. Em 1842, Ada escreveu o primeiro algoritmo a ser processado pela máquina analítica de Charles Babbage. Esse algoritmo tinha a capacidade de calcular a sequência de Bernoulli, e por esse feito, Ada é considerada a primeira programadora da história. As pesquisas de Ada estabeleceram as bases para a computação e programação, que moldaram o mundo da tecnologia décadas mais tarde. Ada Lovelace era uma verdadeira visionária, e sua contribuição pioneira foi essencial para o desenvolvimento da lógica de programação que usamos hoje. 

    Grace Hopper é outro nome notável na história da tecnologia. Entre as décadas de 1940 e 1950, ela foi responsável pelo desenvolvimento da linguagem de programação Flow-Matic. Esta linguagem serviu como base para a criação do Common Business-Oriented Language (COBOL), que ainda é usado atualmente para o processamento de bancos de dados comerciais. Em 1959, Grace Hopper desenvolveu seu próprio compilador, reconhecido como o primeiro da história. Um compilador é capaz de traduzir um programa escrito em linguagem textual, que se assemelha à linguagem do programador, para linguagem de máquina, que o computador pode entender. Também foi Hopper quem popularizou o termo bug — inseto em inglês —, hoje amplamente utilizado nas áreas de tecnologia e no dia a dia. Segundo a história, enquanto tentava solucionar uma falha em seu computador, ela descobriu um inseto morto dentro da máquina. Desde esse episódio, o termo bug associou-se a erros ou falhas de código.

    A origem da disparidade 

    Apesar dessa representatividade histórica, se mantivermos o ritmo atual, seriam necessários cerca de 100 anos para alcançar a paridade de gênero em publicações científicas na área de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (STEM). É o que revela um estudo publicado em 2019, pela uma pesquisa realizada pelo Allen Institute for Artificial Intelligence.

    Historicamente, a sociedade patriarcal atribuiu às mulheres atividades tidas como mais simples e de menor importância, como, por exemplo, os cuidados com a casa e a criação dos filhos, enquanto aos homens foram destinadas as atividades entendidas como de maior prestígio, como garantir o sustento da família por meio do trabalho, seja ele braçal ou intelectual. A sociedade, entretanto, está em constante transformação, impulsionada pelo avanço da ciência. Nesse contexto, uma atividade anteriormente considerada fácil, que demandava pouco conhecimento e especialização é vista como uma atividade feminina, pode ser completamente redefinida pelos avanços tecnológicos. Assim, ela pode ganhar notoriedade e importância, passando a ser considerada pela sociedade uma atividade desafiadora e masculina.

    O ato de programar passou por uma ressignificação ao longo do tempo. Houve um período em que programação era considerada uma atividade secundária e desimportante, sendo assim muitas vezes relegada às mulheres. Durante a Segunda Guerra Mundial, o ENIAC (Electronic Numerical Integrator and Computer) — primeiro computador digital e eletrônico programável do mundo — foi desenvolvido com o propósito de auxiliar em cálculos balísticos. A programação do ENIAC envolvia a utilização de fios e interruptores para definir as operações. Além disso, cartões perfurados eram usados para armazenar informações. Programar o ENIAC era um trabalho manual, árduo e sujeito a muitos erros. Como resultado, seis mulheres desempenharam um papel fundamental como suas principais programadoras: Frances Bilas, Jean Jennings, Ruth Lichterman, Kathleen McNulty, Betty Snyder e Marlyn Wescoff.

    Também podemos mencionar o caso das “mulheres computadoras” que contribuíram para o desenvolvimento do programa espacial da NASA na década de 1950. Essas “computadoras” eram responsáveis por calcular manualmente as equações de trajetórias necessárias para as viagens espaciais. A história dessas mulheres matemáticas, em particular das cientistas negras Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson, foi recentemente retratada no filme “Estrelas Além do Tempo”, de 2016. As funções exercidas por elas eram extremamente mal remuneradas, uma vez que se tratavam de atividades secundárias. 

    A computação passou a assumir um papel de destaque no mundo pós-guerra, em virtude de seu papel decisivo como uma ferramenta na máquina de guerra. Consequentemente, ela começou a ser percebida como uma atividade predominantemente masculina. Dessa maneira, a partir da década de 1970, houve uma grande inversão de gênero na área de tecnologia no mundo todo. Por exemplo, a primeira turma do curso de Bacharelado em Ciências da Computação do Instituto de Matemática e Estatística (IME), em São Paulo, no ano de 1974, era formada por 70% de mulheres. Essa porcentagem se reduziu drasticamente não só no IME, que chegou à marca de 15% de mulheres em 2016, mas em diversos outros institutos das áreas de ciências exatas. 

    O Instituto de Física de São Carlos, por exemplo, oferece três especializações dentro do curso de graduação em Física: Física Teórica e Experimental, Física Biomolecular e Física Computacional. Dados fornecidos pela comissão de graduação do instituto mostram que 36% dos ingressantes no IFSC no ano de 2023 eram mulheres. Esse número pode parecer alto à primeira vista. Mas, se analisarmos um recorte mais específico, podemos identificar que 51% dessas mulheres optaram pela especialização biomolecular, que apresenta uma interdisciplinaridade muito grande com a biologia, tornando o curso uma exceção nas áreas de exatas em geral. Analisando com mais cuidado, percebemos que apenas 25,6% do total de ingressantes na Física Teórica e Experimental são mulheres; na Física Computacional, o número se reduz para 22,5%.

    O apagamento das mulheres na Física

    Enquanto na área da tecnologia as mulheres eram direcionadas para funções secundárias e mal remuneradas, nas demais áreas acadêmicas elas enfrentavam um processo cruel de invisibilidade. O fenômeno de atribuir a homens o reconhecimento por trabalhos científicos que na verdade haviam sido realizados por mulheres foi identificado como um padrão persistente na comunidade científica, pela historiadora Margaret W. Rossiter, que cunhou o termo “Efeito Matilda”. Esse termo é uma homenagem a Matilda Joslyn Gage, que já percebia essa tendência de apagamento ainda no século XIX. Existem centenas de casos conhecidos de mulheres que foram afetadas pelo Efeito Matilda, e talvez mais uma centena de casos de mulheres das quais nunca ouviremos falar.  

    Em 1883, Matilda Joslyn Gage escreveu o artigo “Woman as an Inventor,” publicado na The North American Review. Nesse artigo, Matilda refutou a ideia de que as mulheres não possuíam genialidade inventiva, citando exemplos práticos de invenções realizadas por mulheres em diversos campos criativos, que iam desde inovações na química até técnicas de parto. Ela destacou a contribuição significativa das mulheres para o mundo das inovações e desafiou os estereótipos de gênero que desvalorizavam suas realizações.

    No início do século XX, a geneticista Nettie Stevens, responsável pela descoberta do sistema de cromossomos XY, viu seu orientador de doutorado, Thomas Hunt Morgan, receber todo o crédito pelo trabalho que ela havia realizado. Nettie faleceu em 1912, antes de conseguir uma posição como professora. Em 1933, seu orientador recebeu um Prêmio Nobel pela descoberta. Outra pioneira, a matemática Emmy Noether, contribuiu significativamente para a álgebra abstrata e formulou um dos teoremas mais fundamentais da física, conhecido como o “Teorema de Noether,” que estabelece uma relação entre simetrias físicas e leis de conservação. Embora seja agora reconhecida como uma das maiores matemáticas de sua época, Emmy Noether trabalhou por anos como assistente de um colega na Universidade de Göttingen, sem nem ao menos receber salário.

    Marie Curie é considerada uma das maiores cientistas que já existiu. Ela foi a primeira mulher a ganhar o Prêmio Nobel. Também a primeira pessoa a ganhá-lo duas vezes em áreas distintas, na química e física, ambos chamados de ciências duras. Marie Curie foi pioneira nas pesquisas sobre radioatividade, o que lhe rendeu o primeiro Nobel, o de Física, em 1903. Ela dividiu o Prêmio Nobel com seu marido, Pierre Curie, e com Henri Becquerel, que trabalharam junto a ela nas pesquisas. 

    Ademais, Marie também descobriu dois elementos químicos, o polônio e o rádio, que lhe conferiram o Prêmio Nobel de Química em 1911. A vida acadêmica de Marie não foi fácil: logo após concluir o ensino médio, ela não conseguiu prosseguir com seus estudos em sua cidade natal, pois a Universidade de Varsóvia não admitia mulheres. Além disso, devido ao fato de ser mulher, Marie frequentemente teve que publicar artigos sob pseudônimos para que tivessem peso para a comunidade científica da época.

    Dados mais recentes 

    Voltando para os dias atuais, segundo dados da Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), entre 2014 e 2017, o Brasil publicou aproximadamente 53,3 mil artigos, sendo que 72% deles têm autoras mulheres. No entanto, apesar desse impacto na pesquisa, as mulheres ainda enfrentam desafios significativos para alcançar cargos de liderança em grupos de pesquisa. De acordo com dados recentes apresentados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), apenas um terço dos bolsistas de pós-graduação nas áreas de exatas são mulheres. Dados públicos do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Física de São Carlos mostram que as mulheres representam apenas 37,83% dos ingressantes na pós-graduação em 2023. Fazendo uma análise mais precisa, 59% ingressaram no programa de pós-graduação em Física Biomolecular, 25% na Física Teórica e Experimental, e apenas 23% na Física Computacional.

    Uma outra pesquisa revelou, por meio da  análise de dados da Digital Science, usando seu banco de dados de publicações, que as mulheres foram massivamente afetadas pelos lockdowns impostos durante a pandemia de COVID-19. De acordo com esses dados, a taxa de publicação de mulheres como autoras principais de artigos caiu sete pontos percentuais entre janeiro e maio de 2020, em comparação com o ano de 2015. Segundo as conclusões da pesquisa, uma das possíveis justificativas para essa queda é que os lockdowns obrigaram o confinamento em casa, resultando em um aumento da carga de trabalho relacionada ao cuidado, tanto nas tarefas domésticas quanto na educação das crianças, que recaiu majoritariamente sobre as mulheres acadêmicas neste ambiente.

    Apesar da participação expressiva das mulheres na ciência, ainda persistem desafios consideráveis. Continuamos ocupando posições de menor destaque e enfrentando o apagamento de nossas vozes em muitos contextos acadêmicos. Além disso, existe a persistente ideia patriarcal de que as atividades de cuidado são predominantemente atribuídas às mulheres, sendo consideradas simples e de pouca necessidade de carga intelectual ou grande importância perante à sociedade capitalista, enquanto as tarefas de “maior prestígio” — trabalhos intelectuais em quaisquer campo, ou mesmo trabalhos braçais de pouco prestígio, mas que garantam o sustento do lar — são reservadas aos homens. Essas desigualdades de gênero no ambiente de trabalho e na sociedade como um todo são importantes e precisam ser abordadas para promover uma verdadeira equidade de oportunidades.

    Incentivo e representatividade

    Uma característica comum entre a maioria das mulheres que alcançaram notoriedade por seus grandes feitos na história da ciência e tecnologia é o incentivo que receberam. Ada Lovelace, por exemplo, contou com o apoio de sua mãe e de sua mentora, Mary Somerville. Marie Curie teve o respaldo de seu marido, Pierre, ao longo de toda a sua jornada acadêmica. Uma pesquisa realizada pela Microsoft revelou que, em geral, as meninas costumam manifestar interesse por ciência e tecnologia até os 11 anos, mas esse interesse tende a diminuir, e aos 15 anos, muitas delas começam a desistir. De acordo com o estudo, a ausência de modelos femininos nessas áreas é uma das razões para esse fenômeno. Desta maneira, é de extrema importância que continuemos a reescrever a  história das mulheres na ciência exaltando e compartilhando seu pioneirismo. 

    Com o objetivo de promover a diversidade no campo de STEM, ao longo dos anos, surgiram várias iniciativas independentes destinadas a incentivar as meninas a seguir carreiras científicas. Uma dessas iniciativas é o projeto “Meninas Programadoras” do ICMC/USP, coordenado pela professora Maria da Graça Campos Pimentel. A principal meta desse programa é proporcionar às alunas do ensino médio e concluintes a oportunidade de desenvolver habilidades de programação e solução de problemas por meio de aulas que combinam teoria e prática.

    Outro projeto de destaque é o “Laboratório de Talentos”, promovido pelo Instituto Angelim. Esse projeto tem como propósito sensibilizar jovens alunas do Ensino Médio da rede pública acerca das oportunidades de carreira nas áreas de ciência, tecnologia, artes e economia criativa, por meio de atividades práticas e do contato direto com mulheres que atuam ou estudam nos diversos campos do conhecimento.

    Na Unicamp existe o projeto Meninas Supercientistas, que tem como objetivo apresentar a meninas do Ensino Fundamental II a carreira na área científica, incentivando-as a percorrer essa trajetória. O projeto é totalmente organizado por mulheres (docentes, funcionárias e alunas) e recebe cientistas para palestrar e debater ciência com as meninas em fase escolar.

    A grande maioria das meninas que responderam à pesquisa da Microsoft acreditam que não estão tendo experiência prática suficiente com matérias STEM. Além disso, 60% delas admitiram que se sentiriam mais confiantes em seguir uma carreira nas áreas STEM se homens e mulheres fossem igualmente empregados nessas profissões, recebendo salários equivalentes. É imprescindível que políticas públicas sejam implementadas visando a equidade nos cargos de trabalho e salários para as mulheres nas carreiras de STEM. A revolução digital está transformando o mercado, e, atualmente, as mulheres representam apenas 25% da força de trabalho na indústria de tecnologia. Incluir as mulheres nesse mercado é fundamental para garantir sua autonomia e independência financeira.

    Para saber mais 

    Agência Brasil (2019) Mulheres assinam 72% dos artigos científicos publicados pelo Brasil, Agência Brasil

    Câmara dos Deputados (2023) Mulheres são apenas 1/3 de pós-graduandos em ciências exatas e tecnológicas e têm financiamento menor, Câmara dos Deputados.

    Gage, Matilda Joslyn (1883) Woman as an Inventor, The North American Review 136, n 318, p 478–89.

    Pereira, LG, Da Silva, M N;Souza, VP de; Rezende, YC (2018) Hostilidade em jogos online: perspectiva feminina, Múltiplos Olhares em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v7, n2. 

    USP (2018) Por que as mulheres desapareceram dos cursos de computação, Jornal da Universidade de São Paulo.

    USP (2020) Produção científica feminina cai devido à pandemia, ABCD USP – Agência de Bibliotecas e Coleções Digitais da USP.

    PIMENTEL, MGC; EUSEBIO, JML; GOULARTE, R; LEITE, UV; PICOLI, H (2023) Meninas Programadoras: Promovendo o Engajamento Feminino em Computação via Cursos Curtos Online de Programação, In: ANAIS DO WORKSHOP DE FERRAMENTAS E APLICAÇÕES – SIMPÓSIO BRASILEIRO DE SISTEMAS MULTIMÍDIA E WEB (WEBMEDIA), Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação, p107-110.  

    ANDREW, T (2017) Why don’t European girls like science or technology? Microsoft news.

    WANG, LL et al (2021) Gender trends in computer science authorship, Communications of the ACM, v64, n3, p78-84.

    Sobre a autora

    Julia Marcolan é graduada em Física com ênfase em Física Computacional pela UFF/2019 e Mestre em Ciências pelo IFSC/USP. Atualmente, é doutoranda em Física Computacional também no IFSC/USP onde pesquisa Imagens por Ressonância Magnética (MRI) de tempos de relaxação ultra curtos, aplicadas a  avaliação de sementes. Além da pesquisa acadêmica, tem interesse em divulgação de ciência e tecnologia e neste sentido atua principalmente na divulgação e projetos de inclusão de mulheres nas áreas de STEM.

    Nota da editora

    Julia Marcolan é a autora convidada do vol.9, n.2, da Revista Blogs Unicamp.

    Como citar: 

    Marcolan, Julia. (2023). Mulheres em ciência e tecnologia: as origens históricas da inversão de gênero. Revista Blogs Unicamp, V.9, N.2. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/11/27/mulheres-em-ciencia-e-tecnologia-as-origens-historicas-da-inversao-de-genero/ Acesso em dd/mm/aaaa

    Sobre a imagem destacada:

    Imagem gerada geradas em outubro de 2023 via Dall.e 3 (modelo de linguagem generativa multimodal). Edição por Carolina Frandsen.

  • A Guerra e a Peste: A Epidemia de Tifo no Gueto de Varsóvia

    Texto escrito por Amanda Tognoli da Silva

    Guerra, Peste e Fome andam sempre juntas. O Tifo, uma doença infecciosa com altas taxas de transmissão, sendo facilmente contraída pela população por meio de pulgas e piolhos infectados, também gosta desta companhia. Não por acaso, o Gueto de Varsóvia, local precário onde milhares de judeus foram presos pelo governo alemão durante a Segunda Guerra Mundial, sofreu uma grande epidemia de tifo. Porém, com a ajuda de toda a comunidade, a epidemia foi debelada. Conhecendo um pouco mais sobre esse triste episódio da história e das medidas sanitárias e políticas que os moradores do Gueto de Varsóvia tomaram, o que podemos aprender?

    Tifo: uma doença fatal

    O Tifo é o nome genérico de várias doenças causadas pelas bactérias do gênero Rickettsias. Grande parte dessas bactérias se desenvolve num reservatório animal, e é transmitida ao homem pela picada ou contaminação com fezes de insetos infectados, como piolhos e pulgas. Desta forma, a contaminação com as fezes infectadas ocorre através de cortes na pele ou membranas mucosas dos olhos ou da boca.

    Rickettsias vista em microscópio

    Imagem de Rickettsias ao microscópio. As Rickettsias, bactérias microscópicas que causam o tifo epidêmico. Em geral, estas bactérias são carregadas em pulgas, carrapatos e piolhos.

    As bactérias se proliferam nas células endoteliais dos vasos sanguíneos e podem provocar lesões graves. Os sintomas começam cerca de 7 a 14 dias após a bactéria entrar no organismo. Dentre os sintomas identificados estão febre, dor de cabeça intensa, cansaço e erupções cutâneas que geralmente começam no peito e se espalham para os braços e pernas. Se a infecção for grave, a pressão arterial pode baixar, os rins podem apresentar mau funcionamento e pode haver o desenvolvimento de gangrena e pneumonia.

    Charles Nicolle encontra as Ricketsias

    Se não tratado, o tifo pode ser fatal. Atualmente, o tratamento do tifo se faz por meio da administração do antibiótico doxiciclina por via oral. O paciente toma o antibiótico até melhorar e não apresentar febre por 24 a 48 horas. Entretanto, é necessário tomar o antibiótico por pelo menos 7 dias.

    Em 1928, Charles Nicolle recebeu o Prêmio Nobel por ter descoberto o papel do piolho na transmissão do tifo em 1909. Nicolle fez observações e concluiu que os pacientes não eram mais contagiosos após receber tratamento hospitalar, tomar banho e trocar de roupas. Desta forma, ele colocou piolhos sem a bactéria em macacos infectados e depois transferiu os piolhos, agora infectados, para macacos saudáveis, que acabaram desenvolvendo tifo.

    Charles Nicolle

    Charles Nicole, infectologista francês (1866-1936), em seu ambiente de trabalho. ele descobriu o papel do piolho na transmissão do tifo, o que lhe rendeu o Nobel em 1928.

    Os diferentes tipos de Tifo

    Os tipos mais comuns de tifo são o epidêmico e o endêmico. O tifo epidêmico é causado pela bactéria Rickettsia prowazekii e transmitida pelas fezes do piolho do corpo humano, Pediculus humanus. Por outro lado, o tifo endêmico tem como vetores Rickettsia typhi ou Rickettsia mooseri, transmitidas pelas pulgas do rato, Xenopsylla cheopis. Os sintomas do tifo endêmico são menos intensos que os do epidêmico.

    A infecção ocorre principalmente em áreas com más condições sanitárias e de higiene e com grande aglomeração de pessoas. Desta forma, campos de refugiados, prisões, áreas de guerras civis e de extrema pobreza são áreas preferenciais para os surtos de tifo. como se pode ver, há focos dessa doença espalhados pelo mundo todo.

    Epidemias de Tifo na história

    O registro mais antigo de uma epidemia de tifo é a praga de Atenas, do século 15 a.C. Este surto supostamente começou na Etiópia e passou pelo Egito, chegando ao porto de Piraeus. Foi observado tosse, vômitos, diarréia e erupções cutâneas. Contudo, tal descrição do surto está aberta a interpretações e muitas doenças podem ser responsáveis por ele como tifo, catapora e peste bubônica.

    Apesar deste registro, muitos autores acreditam que a primeira epidemia autêntica de tifo ocorreu durante a conquista de Granada, na Espanha, em 1492. A doença que abateu a população foi descrita como uma febre maculosa e se parece muito com a descrição moderna de tifo.

    O tifo reapareceu como epidemia durante a Primeira Guerra Mundial. Nesta época, a doença começou na Sérvia e se espalhou para o Centro e Leste Europeu. Da mesma forma, a Rússia teve surtos recorrentes durante a revolução Bolchevique. por fim, segundo as estimativas, 25 milhões de pessoas contraíram tifo entre 1917 e 1925. O saldo da doença foi de 3 milhões de mortes.

    Posteriormente, já durante a Segunda Guerra Mundial, pesquisadores nazistas infectaram 600 prisioneiros de campos de concentração com sangue de pacientes infectados por tifo para testar a eficácia do fenol como tratamento ou vacinação.

    Bactérias e Piolhos

    No século XX, o tifo está relacionado às guerras, aos movimento populacional em massa, na má higiene e na fome. As epidemias de tifo que ocorreram após a Segunda Guerra Mundial intensificaram as pesquisas biomédicas. Algumas dessas pesquisas incluíam o uso de pesticidas como o DDT para controlar os piolhos em Nápoles entre 1943 e 1944, e também o uso de antibióticos recém descobertos, como o cloranfenicol. Após muito estudo da vida intracelular da Rickettsia prowazekii e seus efeitos na célula hospedeira, seu genoma foi sequenciado por Andersson et al em 1998.

    O Tifo no Gueto de Varsóvia

    O discurso alemão sobre higiene influenciou a ideia de que os judeus carregavam doenças. Assim, na ideologia nazista, isso reforçou o discurso de que os judeus seriam a própria doença. Portanto, seria esperado lidar com epidemias, o que no final das contas significou aniquilá-los.

    Na Alemanha, havia um grande medo do tifo se espalhar para a população e para o exército por causa de seu impacto depois da Primeira Guerra Mundial, matando 5 milhões de pessoas. Com essa desculpa, os alemães realocaram muitos judeus para os guetos e campos de concentração. Posteriormente, os nazistas criaram uma área chamada Seuchensperrgebiet que era, literalmente, uma área restrita para doenças. Esta área se tornaria o Gueto de Varsóvia, na Polônia.

    Crianças famintas e com frio no gueto de Varsóvia

    A crianças foram as que mais sofreram durante a ocupação do Gueto de Varsóvia; 

    Em 5 de Outubro de 1940, os nazistas proibiram os judeus de deixar o território do Gueto. Em 15 de novembro deste mesmo ano, uma parede com arame farpado foi construída em volta desta área. Alguns ainda conseguiram escapar por pequenos buracos ou pelo esgoto.

    O tifo se alastra no Gueto

    O Gueto possuía uma área de 3,4 km², onde foram presos mais de 450 mil judeus.  Um inverno rigoroso e num ambiente de guerra e privações de todo o tipo facilitaram a propagação do tifo epidêmico. No entanto, cerca de 120 mil prisioneiros do gueto infectaram-se pela bactéria, com 30 mil morrendo diretamente por causa da doença e muitos morrendo pela associação da doença com a fome. Assim, a fome no gueto aumentou a epidemia, o que provou aos alemães que os judeus eram portadores de doenças. Para eles, judeus famintos significavam mais comida para o povo alemão. Desse modo, os judeus deveriam ser eliminados, o que pouparia ainda mais comida.

    Contudo , até abril de 1941, o foco dos administradores nazistas do gueto era deixar morrer de fome todo residente que não conseguisse comprar comida. a partir de maio deste ano, os novos administradores planejaram construir uma economia auto sustentável no gueto, para não desperdiçar a força de trabalho. Para estes administradores, alguns residentes deveriam receber o mínimo de alimento e nutrição para que pudessem trabalhar. Assim, até setembro, o gueto começou a trabalhar economicamente aos olhos dos alemães. um programa de cozinhas comunitárias, administradas por voluntários, foram responsáveis por prover nutrição básica para ¼  da população.

    No entanto, em outubro de 1941, Jost Walbaum, o Diretor de Saúde do Governo Geral, disse que  “Os Judeus são, em sua maioria, os portadores e disseminadores do tifo. Há apenas duas maneiras de resolver isso. Nós sentenciamos os Judeus dos guetos à morte ou atiramos neles…Nós temos uma e apenas uma responsabilidade, que o povo alemão não seja infectado e ameaçado por esses parasitas. Para isso, qualquer meio deve ser correto.”

    A epidemia é contida…por quem?

    Neste mesmo mês, contudo, começou um rigoroso inverno e era esperado que as taxas da doença aumentassem. Ao contrário, a curva epidêmica caiu inesperadamente.

    Desta forma, Emanuel Ringelblum, o cronista do gueto, escreveu em Novembro de 1941: “A epidemia de tifo diminuiu apenas no inverno, quando geralmente piora. A taxa epidêmica caiu cerca de 40%. Ouvi isso dos boticários, médicos e do hospital.

    Inicialmente, por meio de análises de documentos históricos e modelos matemáticos, um grupo de pesquisadores descobriu que a comunidade agiu ativamente para erradicar a doença, poupando cerca de 100 mil vidas. Nesta analise, constatou-se que programas de saúde e práticas de distanciamento social por parte da comunidade foram responsáveis pelo colapso da doença. Por outro lado, verificou-se que o gueto possuía muitos médicos e especialistas que ministraram cursos muito bem organizados sobre higiene pública e doenças infecciosas, assim como centenas de palestras sobre o combate ao tifo.

    Fila da refeição no gueto de Varsovia

    Fila para comida no Gueto de Varsóvia

    Da mesma forma, houve também relatos de universidades secretas, onde jovens estudantes de medicina receberam treinamento sobre como lidar com doenças epidêmicas. Além disso, encorajou-se a higiene geral e limpeza das casas, às vezes usando a força. Ademais, o distanciamento social era considerado um senso comum básico e as quarentenas eram comuns. O Departamento de Saúde, do Conselho Judeu, criou neste período vários e complexos programas de Saúde Publica.

    Em síntese, o Gueto de Varsóvia teve inúmeras instituições internas civis, médicas e sociais trabalhando intensamente durante meses para parar a epidemia de tifo. Não obstante o constante esforço da comunidade e de organizações para acabar com a epidemia contribuiu para diminuir a transmissibilidade abaixo do limite crítico, levando a epidemia a uma parada repentina e precoce.

    A “Solução Final” e o fim do Gueto

    Entretanto, em 1942, os nazistas enviaram muitos moradores do gueto para os campos de concentração que estavam construindo.  Posteriormente, em 1943, o Governador Geral Hans Frank alegou que “razões de saúde publica” eram a causa do “inevitável” assassinato de 3 milhões de judeus na Polônia “. Este foi somente um mais caso óbvio de uma doença usada como arma de guerra e pretexto para um genocídio.

    De acordo com Ludwik Hirszfeld, um bacteriologista indicado ao Prêmio Nobel e que viveu no gueto, não tem dúvidas: “No caso da Segunda Guerra Mundial, o tifo foi criado pelos alemães. Iniciado pela falta de comida, sabonete e água, então alguém concentra 400.000 pessoas em um distrito, tira tudo deles e não dá nada, é assim que se cria o tifo. Nessa guerra, o tifo foi trabalho dos alemães.”

    O que a epidemia de tifo no Gueto de Varsóvia pode nos ensinar

    Um povo que não conhece a sua História está fadado a repeti-la”, já dizia o filósofo irlandês Edmund Burke. Uma frase dita há mais de 200 anos nunca foi tão atual.

    Visto dessa forma, a epidemia de tifo no Gueto de Varsóvia e a pandemia mundial de covid-19 possuem muitas similaridades. Contudo, ambas doenças relacionam-se a microrganismos invisíveis, que se espalham rapidamente e podem matar milhões. Além disso, ainda não há remédio efetivo para nenhum deles. Portanto, é possível dizer que estudar a epidemia no Gueto seria um ótimo modo de ver como uma doença altamente transmissível pode ser erradicada se toda a população se comprometer para tal. Ao estudá-la, notaríamos que políticas públicas de contenção, uma boa comunicação com a comunidade e a cooperação geral foram, e são, essenciais para o fim da epidemia. Além disso, perceberíamos que a contenção é possível até mesmo nas piores condições sanitárias e no pior cenário político possível, um regime desumano e assassino.

    Contudo, o que nos impede de nos unirmos para vencer este vírus que já tirou tantas vidas? Uma doença que é propagada pelas pessoas, só pode ser detida pelas pessoas. A contenção de uma doença como o tifo depende, sobretudo, do comportamento humano.

    SOBRE A AUTORA

    Amanda Tognoli da Silva, 24 anos, nascida e criada em Conchal-SP. Estudante de Ciências Biológicas na UNICAMP, apaixonada por astrobiologia e livros de investigação. Grande objetivo como bióloga: a divulgação da ciência.

    Para saber mais:

    New study explains 'miracle' of how the Warsaw Ghetto beat Typhus. in:https://www.eurekalert.org/pub_releases/2020-07/ru-nse072020.php
    (este texto foi elaborado durante a disciplina Historia das Ciências Naturais, no Instituto de Geociências da Unicamp, no 2º semestre/2020.  Os trabalhos elaborados tinham como tema "As Epidemias e a História da Ciência")

    Este texto foi elaborado originalmente no Blog PaleoMundo

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

    Editorial

  • Como a Economia Social e Solidária pode ser a solução para esses novos tempos pós pandemia!

    Com mais de 8 milhões de casos confirmados de Covid-19 no planeta [1], passar por essa pandemia acelerou discussões que não giram em torno apenas da saúde e a busca pela cura do vírus, mas promoveu também discussões que, até então, circulavam apenas em bolhas sociais [2]

    A pandemia deixou claro os problemas da falta de investimento nos sistemas de saúde e ciência, além da avalanche de informações duvidosas recebidas diariamente (a chamada infodemia).

    A pandemia também evidenciou as deficiências sociais e econômicas vigente que insiste em seguir o raciocínio da Revolução Industrial (1760 – 1840) – com suas devidas atualizações – mas, mantendo seu principal compromisso com o maior lucro em decorrência da menor despesa possível. 

    Vimos explodir nas mídias sociais e na imprensa demonstrações, protestos e cobranças de uma situação que não era igual para todos, principalmente, advindas  dessa nova geração [3] que veio a público mostrar como a Covid-19 e seus efeitos foram sentidos de forma muito diferente (e a custo de vidas) nas minorias, como: mulheres, povos indígenas, pessoas com deficiência, comunidades marginalizadas, jovens e pessoas com contratos de trabalho precários ou da economia informal, por exemplo.

    E ao identificar essas problemáticas evidenciadas pela pandemia, às Nações Unidas [4] montou uma Força-Tarefa Interinstitucional sobre Economia Social e Solidária (TFSSE) promovendo assim a discussão e a garantia da coordenação dos esforços internacionais, aumentando sua visibilidade (da Economia Social e Solidária – SSE) como solução na recuperação pós-crise do COVID-19.

    “A pandemia expôs muitas fragilidades em nossas economias e aprofundou as desigualdades existentes, destacando a necessidade de resiliência, inovação e cooperação. Os problemas pré-crise, incluindo a quantidade e qualidade insuficientes de emprego, as crescentes desigualdades, o aquecimento global e a migração, a insustentabilidade do atual sistema industrial de alimentos, vão piorar significativamente como conseqüência das medidas tomadas para combater a emergência sanitária”.

    Documento emitido pela TFSSE em 11/06/2020.

    Nós tivemos o privilégio de conversar com o Leandro Pereira Morais que é economista, Representante do Brasil no OIBESCOOP, Consultor Sênior da OIT, Membro Suplente da Força Tarefa das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária (E mais um tantão de coisas [5]) sobre como essa iniciativa funciona e como podemos contribuir para que o futuro pós – COVID-19 ofereça condições melhores a nossa sociedade.

    Objetivos de Desenvolvimento Sustentável [6]

    Como a Força Tarefa das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária contribui para a recuperação pós-crise do COVID-19?

    R: Esse trabalho ganhou muitas conexões com outras agências das Nações Unidas e foi se transversalizando os temas relacionados a Economia Social e Solidária com outras áreas como a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), nos assuntos relacionados a segurança alimentar, orgânicos, na geração de trabalho e renda para famílias vulneráveis, promovendo, por exemplo, o acesso a alimentação mínima diária, repercutindo, inclusive em melhores condições de saúde.

    Essa transversalização se formou no que chamamos de Força Tarefa das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária.

    É importante dizer, que essas discussões já eram desenvolvidas antes da pandemia, como: os objetivos do desenvolvimento sustentável – a agenda 20/30 e às ODS.

    A economia social e solidária é uma ferramenta importante para a formação e implementação das ODS e sua relação com seu ambiente/território onde essas ações são desenvolvidas. Do ponto de vista da conexão do econômico (gerar renda e trabalho), com o social (emancipação de vulneráveis, governança democrática participativa  nas políticas públicas) e com o ambiental (com práticas sustentáveis, agricultura familiar). Essa, então, se transforma na tríade do desenvolvimento econômico, sócio-político e ambiental.

    Assim, a partir desse momento de pandemia, voltamos os trabalhos e a articulação governamental internacional para a questão de enfrentamento da pandemia e suas consequências econômicas, sociais e ambientais.

    Muitas das experiências da economia solidária podem ser utilizadas para situações emergenciais, como a disponibilização de alimento, associações de costureiras para a confecção de máscaras, por exemplo. Assim, como às de médio e longo prazo, propondo revisões e reflexões do atual modelo de desenvolvimento que vivemos. Esse modelo bastante potente do ponto de vista material e da produção, de padrões tecnológicos avançados, a chamada 4ª revolução, mas que cobra um preço alto das relações de trabalho, de espaço, produção, de consumo, sociais e ambientais.

    Portanto, todo um mundo de discussões que já perfilava antes da pandemia e que agora intensifica essas tendências e exige soluções, coloca urgência na discussão.

    E como esse padrão econômico citado reflete na sociedade nesse momento de pandemia?

    R: Pois é, como estávamos conversando esse padrão econômico, produtivo e altamente potente do ponto de vista material e de produção, que nos permite conforto, enfrentamento de momentos adversos e de acesso, por exemplo, relógios que medem sua saúde, controle de temperatura do ambiente, viagens através do continente, comunicação em tempo real e com pessoas do outro lado do mundo, enfim… não podemos negar que é fantástica essas evoluções. Por outro lado, os frutos dessa produção material não são para todos. Nem todos são convidados nesta festa!

    Ainda há pouca facilidade de acesso a essas produções materiais e inovações tecnológicas, é para quem pode pagar.

    Essa facilidade é elitista e exclusiva! Ao mesmo tempo, percebemos nesse cenário de produção material e tecnológica o aumento na concentração de renda, exclusão, desigualdade e miséria.

    A pandemia veio para desnudar de forma intensa essa realidade e não é um problema do Brasil mas no mundo todo. O sistema atual é incoerente, nós temos uma produção mundial de alimentos de 10 bilhões e um planeta com 7 bilhões, como mais de 1 bilhão e meio de pessoas passa fome diariamente? 

    Então, do ponto de vista de médio e longo prazo, talvez essa pandemia nos dê a oportunidade de rever esse padrão econômico vigente, do lucro pelo lucro. E esse não é papo de esquerda ou direita mas de reflexão e discussão para aqueles que têm o mínimo de sensatez.

    Mas, isso seria uma mudança profunda, não só de padrões mas de consciência, certo?

    Sim, essa é uma mudança estrutural, de conceitos, de sentimentos. Não é simples, mas é preciso que às pessoas pensem sobre e essa discussão tem várias facetas, das relações de consumo, trabalho, etc.

    Nas relações de consumo, já vemos mudanças. As pessoas estão repensando e tomando atitudes de mudança.

    Primeiro que vivemos em um momento que as pessoas não tem como sair de casa frequentemente, devido a possibilidade de contaminação da Covid-19 e a incerteza de ter condições financeiras e de emprego, que já era um problema antes da pandemia. 

    Hoje às pessoas repensam sua necessidade de consumo. E isso gera um olhar crítico para a compra.

    A economia, na verdade, foi se distanciando da realidade da sociedade e isso aparece nesse momento de adversidade que estamos passando. Esse diálogo que tem aparecido sobre termos que escolher entre a vida e o trabalho não é justa, é uma equação obscena, é uma guerra de narrativas e isso é muito sério!

    A base originária da estrutura da ciência econômica precisa ser revista!

    Essa ciência é organizada pelos nexos de mercado, é essa ideia do “homem econômico”, ou seja, uma caricatura tosca que se move por ideais maximizantes, portanto, o produtor maximiza o lucro, em decorrência do prejuízo ao meio ambiente, precarização o trabalho e até a aceitação do trabalho escravo.

    Já pelo ponto de vista do consumidor é a maximização do conforto, bem estar, ou seja, quando sua renda, que é limitada, maximiza o seu consumo em demandas ilimitadas. 

    Dessa forma, a economia vem se afastando da realidade e essa pandemia só desnudou essa questão. Se por um lado, se tem pessoas que podem pagar pelo acesso a saúde, alimentação e ficar em casa, por outro, temos pessoas que não tem acesso a água, o que dirá álcool em gel e no meio pessoas que lutam pendendo de um lado e do outro. 

    Então, já vivíamos uma crise estruturante e o “corona” pega carona nessa crise e foi sendo escancarado pelas minorias nas mídias sociais ao mostrar o empregado que pegou o vírus da patrão e morreu e a patrão que teve acesso a condições de saúde e alimentação digna e sobreviveu.

    E quais são os direcionamentos práticos que a economia social e solidária recomenda para que essa ideia de produção e consumo maximizante mude? 

    É importante deixar bem claro que é um processo, não é uma receita de bolo ou mágica! Mas ações individuais, apesar de serem de menor alcance, já ajudam muito a promover mudanças:

    1- Fazer a comunicação e sugestões de assunto na imprensa, sites de comunicação, compartilhar conteúdo em suas redes sociais, por exemplo, sempre de forma não agressiva mas que sensibilize e informe às pessoas sobre a economia solidária, seus princípios e discussões. 

    2- Discutir e pensar sobre o assunto – como nós fazemos aqui no curso de Economia na Unesp, colocando em discussão os conceitos da economia solidária e pensar em um mundo diferente desses padrões que estamos vivendo, como mudanças na relação do trabalho, o não haver emprego para todos e seus efeitos.

    3- Participar, financiar e divulgar ações coletivas (trabalho, social e ambiental) – Dar visibilidade para grupos de minorias e suas reivindicações, dar preferência para atividades de pequenos comerciantes, empresários, artesãos, trabalhadores informais. Não consumir produtos que vem de empresas que degradam o meio ambiente ou funcionam em situações degradantes de trabalho.

    4- Escolher governante e exigir deles após às eleições que implementem políticas públicas para que o pequeno negócio tenha melhores chances de sobrevivência, acessos a créditos e impostos justos, a relação que vivemos hoje é completamente desigual para aquele que concorre com grandes indústrias. No Brasil, a micro e pequena empresa gera 80% da capacidade de renda do país, isso sem condições mínimas, é preciso que haja políticas mais favoráveis.

    Entende-se que o Consumo Consciente não é só um ato econômico mas político também, quando eu consumo de uma marca que sabidamente precariza o trabalho, não paga impostos ou degrada o meio ambiente, eu estou sendo conivente com o processo. Claro que o consumo dos pequenos ainda é mais caro, produtos orgânicos, por exemplo, mas ao investir comprando desse pequeno produtor geramos impactos macro na sociedade.

    A ideia que vimos aumentando durante a pandemia como “compre do pequeno” ou “compre no seu bairro” sempre foi uma bandeira da economia social e solidária. E essa é uma consciência que começou aumentar não só com as pessoas comuns, mas vemos empresários e empresas também começando a mudar sua atitude.

    E como a divulgação científica pode contribuir com essa mudança estrutural?

    A ciência em si tem um papel fundamental nisso, fazendo ciência em prol da maioria. 

    O cientista precisa colocar seu esforço em, além de desenvolver aquela área e realizar descobertas, para que sua pesquisa tenha uma ação social e não fique apenas no seu meio, que tenha uma utilidade pública, social e que não privilegie o sistema econômico e de mercado vigente. 

    Um exemplo, é essa busca pela vacina para o Covid-19. Será que essa vacina terá um direcionamento de bem de mercado e o acesso será restrito a quem possa pagar por ela? Ou terá um direcionamento social que independentemente da condição financeira, cor, credo, opção sexual, por exemplo, possa ter acesso a ela?

    Acho que todo cientista tem esse papel de rever a ciência de forma crítica, porque ela não está desconectada desse padrão que discutimos aqui, a disponibilização das informações sobre ciência, inclusive.

    A ciência, sua evolução e suas descobertas também foram disponibilizadas pela lógica de mercado, ou seja, para quem podia pagar. É claro, que existe o problema de financiamento, mas o que é possível se fazer, como cientista, é pensar na ciência como coletivo e disponibilizar seus frutos para que todos tenham acesso, para o bem comum.

    Por fim, nossa ação aqui na Força tarefa é feita, por sua maioria de professores/pesquisadores, de todo os lugares do mundo, dedicando nosso tempo em orientar, construir e reunir uma literatura e arsenal conceitual, teórico e empírico para contribuir para a implementação da Economia Social e Solidária nos governos mundiais, essa é uma das atividades em prol do bem comum que viemos explanando aqui.

    Dica de evento:

    O Fórum Político de Alto Nível, plataforma central das Nações Unidas para o acompanhamento e a revisão da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, prevê a participação plena e efetiva de todos os Estados Membros das Nações Unidas e Estados membros de organizações especializadas.

    A reunião do fórum político de alto nível sobre desenvolvimento sustentável em 2020 será realizada de terça – feira, 7 de julho a quinta-feira, 16 de julho de 2020 , sob o apoio do Conselho Econômico e Social. Isso incluirá a reunião ministerial de três dias do fórum, de 14 de julho a 16 de julho de 2020.

    Acompanhar o evento: ttps://sustainabledevelopment.un.org/hlpf/2020

    Para saber mais:

    [1] Para conferir os dados atualizados da Covid – https://covid19.who.int/ e https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51718755

    [2] “O fenômeno de Bolhas Sociais é conhecido em diversas áreas e pesquisas estão sendo feitas para analisar seu impacto na sociedade. Se caracteriza pela limitação dos indivíduos ao acesso a informações que tem afinidade e a falta de acesso a informações divergentes ou diferentes das de seu interesse.”

    EVANGELISTA, Bruno; BATISTA, Gabriela; DE OLIVEIRA, Jaqueline Faria. Detecção Automática de Bolhas Sociais no Twitter em uma Rede de Usuários de Tecnologia. In: Anais do VII Brazilian Workshop on Social Network Analysis and Mining. SBC, 2018.

    [3] Falamos aqui das gerações Y e Z: A geração, conhecida como Y – nascidos entre 1980 a 1995 – presenciou a plena expansão das inovações tecnológicas, o nascimento da internet e o início da mudança na comunicação e na era da informação, estes foram criados com a preocupação pela segurança e pelo excesso de estímulos, suas ambições estão na prosperidade econômica, ou seja, é movida por resultados, desafios e interesses de ascensão rápida.

    Já a geração Z – nascidos entre 1996 a 2000 – nasce em plena era da informação e da tecnologia na palma da mão, essa é uma geração conectada e informatizada 100% do seu tempo, prefere o consumo rápido e facilitado porém com pouca interação social presencial, uma vez que a conectividade supri suas necessidades emocionais. Essa geração não procura o acúmulo de bens, mas valoriza o dinheiro para que este sustente seu padrão e qualidade de vida, buscando, muitas vezes um perfil empreendedor. 

    Baby Boomer: https://pt.wikipedia.org/wiki/Baby_boomer

    Geração X: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gera%C3%A7%C3%A3o_X

    Geração Y: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gera%C3%A7%C3%A3o_Y

    Geração Z: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gera%C3%A7%C3%A3o_Z

    [4] Para a lista completa de membros e observadores do UNTFSSE, visite: http://unsse.org/ – Para mais informações, entre em contato com: Presidente: Vic Van Vuuren (OIT), vanvuuren@ilo.org; Secretaria Técnica: Valentina Verze (OIT), verze@ilo.org

    Ainda mais informações sobre o assunto:

    Sobre a Divisão de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

    Textos originais sobre a conscientização e contribuição para o corpo de conhecimentos sobre SSE como um meio de implementação dos ODS

    ESS Collective Brain é um espaço interativo virtual que visa enriquecer as atividades da OIT em  Economia Social e Solidária (ESS) – http://ssecollectivebrain.net/?lang=es

    Observatório Ibero-Americano de Emprego e Economia Social e Cooperativa

    [5] Leandro Pereira Morais. Professor Doutor e Pesquisador do Departamento de Economia e Coordenador do Núcleo de Extensão e Pesquisa em Economia Solidária, Criativo e Cidadania (NEPESC) da UNESP – ARARAQUARA, Membro Titular do Conselho Científico Internacional do CIRIEC, Representante do Brasil no OIBESCOOP, Consultor Sênior da OIT nas áreas de Economia Social e Solidária e Cooperação Sul-Sul, Membro Suplente da Força Tarefa das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária. Áreas de Interesse em Pesquisa: Políticas Públicas de Economia Social e Solidária, ODS, Cooperação Sul-Sul e Ecossistema Empreendedor para Economia Social e Solidária

    Ainda mais um pouco sobre o Leandro Morais: https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/38780/leandro-pereira-morais/ e http://lattes.cnpq.br/8472617785156618

    [6] Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) (ou Objetivos Globais para o Desenvolvimento Sustentável) são uma coleção de 17 metas globais, estabelecidas pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Os ODS são parte da Resolução 70/1 da Assembleia Geral das Nações Unidas: “Transformando o nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, que depois foi encurtado para Agenda 2030. As metas são amplas e interdependentes, mas cada uma tem uma lista separada de metas a serem alcançadas. Atingir todos os 169 alvos indicaria a realização de todos os 17 objetivos. Os ODS abrangem questões de desenvolvimento social e econômico, incluindo pobreza, fome, saúde, educação, aquecimento global, igualdade de gênero, água, saneamento, energia, urbanização, meio ambiente e justiça social. https://pt.wikipedia.org/wiki/Objetivos_de_Desenvolvimento_Sustent%C3%A1vel

    Este post foi publicado originalmente no blog Mindflow

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Giovana Veronezi

    Giovana Veronezi
    Blog Ciência Pelos Olhos Delas

    Um elemento não exclusivo, mas muito presente na ciência – a famosa distinção entre o mundo ideal da teoria e a imperfeição da prática, também se aplica à vida como cientista. E como mulher, essa dualidade é ainda mais acentuada, pois não estamos imune à todos os desafios inerentes a ser mulher no mercado de trabalho. Se na teoria a base da ciência, que são as ideias, não tem gênero, na prática as mulheres precisam levantar a voz para fazerem as suas serem ouvidas e nem sempre são. Se na teoria, as relações entre pesquisadores, alunos e demais profissionais devem ser pautadas pelo respeito, na prática ainda temos os assédios e insultos ao intelecto feminino. Se na minha experiência pessoal não passei por todos estes percalços, ter colegas de profissão que já os enfrentaram e ainda passam por isso não me deixa comemorar. Por outro lado, ver mulheres cientistas chegando cada vez mais longe e poder divulgar essas conquistas em um blog de mulheres na ciência é muito gratificante, para celebrar aquelas que movem a ciência e trazem novas descobertas, e inspirar as que queiram seguir esse caminho.

  • A morte no gelo (V.3, N.12, 2017)

    A morte no gelo (V.3, N.12, 2017)

    A brancura do ambiente era total. Alguns pontos escuros na paisagem eram a exceção. Trenós mecanizados e também os puxados com cachorros cortando o gelo eram pontos atravessando a meseta central da Groenlândia. Dois riscos pretos bem pequenos apareceram ao fundo no horizonte. Ao chegar mais perto, os homens dos trenós viram que eram dois esquis num montículo de neve. Ao escavar o montículo, surgiu o cadáver que eles tanto procuravam e não queriam encontrar. As buscas acabaram. Alfred Wegener, o chefe daquela expedição e um dos maiores cientistas do século, estava oficialmente morto.

  • Imagens do Brasil: populações indígenas

    Image result Nas imagens do Brasil, um dos ângulos menos visados é o das populações indígenas. Os autores de livros “clássicos” do pensamento social, como “Casa-Grande & Senzala” (1933),”Raízes do Brasil”(1936) e “Formação do Brasil Contemporâneo: colônia” (1942), pouco interpretaram os lugares ocupados pelos “aborígenes” (termo recorrente na obra de Caio Prado Junior) na organização social e na formação da sociedade brasileira. Em termos de políticas do Estado, ao lado de órgãos como o (extinto) SPI e a Funai, as instâncias do IBGE possuem certa autonomia na construção de tipos classificatórios que demarcam os grupos mediante critérios étnicorraciais, o que certamente é motivo de polêmicas e disputas políticas nos recenseamentos.

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