Vamos falar sobre vacinas? Para reduzir a circulação de um vírus na população e obter a verdadeira imunidade de rebanho, é necessária uma estratégia coletiva e rápida de vacinação. Foi o que mostrou um estudo clínico realizado na cidade de Serrana, no interior paulista. No Projeto S, toda a população adulta de Serrana foi vacinada com a CoronaVac (A vacina do Butantan). Após a segunda dose de vacinação do último grupo, os casos sintomáticos de Covid-19 caíram 80%, e as mortes diminuíram 95%. Por fim, o estudo também mostrou que até mesmo as crianças e jovens menores de 18 anos, que ão vacinaram-se também ficaram protegidos.
No quadrinho de hoje, Draco explicará melhor ao Dragonino sobre a imunidade de rebanho que pode ser alcançada por meio da vacinação!
Esclarecimentos sobre a transmissão do coronavírus por pessoas vacinadas
As diferentes vacinas têm diferentes taxas de eficácia e de redução da transmissão do vírus, se consideradas individualmente. Como vimos no quadrinho anterior (Como funcionam as vacinas), demora algumas semanas para uma pessoa adquirir memória imunológica contra um patógeno.
Dessa forma, quem só recebeu a primeira dose da vacina, ou tomou a segunda dose muito recentemente, ainda tem maior risco tanto de se contaminar, como de transmitir a doença. Por isso, mesmo com a vacinação, é essencial que todos os cuidados continuem sendo tomados (como uso de máscaras, distanciamento social e higienização das mãos) até grande parte da população ser vacinada. Só então será possível reduzir, de fato, a circulação do vírus e obter a imunidade de rebanho.
Imunidade de rebanho sem as vacinas? Será que é uma boa ideia?
As tentativas de atingir a imunidade de rebanho sem as vacinas não são recomendadas pelos cientistas. Ou seja, não é uma boa ideia deixar as pessoas ficarem doentes naturalmente, esperando que seu sistema imunológico combata a doença e gere imunidade.
Isso porque em muitas pessoas o vírus pode causar formas graves da doença. Com isso, os hospitais ficarão lotados, e muitas pessoas podem não conseguir vagas para internarem-se e tratarem-se. Assim, muitas pessoas podem acabar adoecendo gravemente e morrendo. Portanto, a imunidade gerada pelas vacinas é a única forma ética e aceitável de gerar a imunidade de rebanho em nossa população.
Em resumo: de um lado, o contágio natural espalha vírus para todos os lados e causa um alto número de mortes. Do outro, a vacinação ajuda a diminuir a circulação dos vírus e a salvar muitas vidas.
O perigo das variantes do coronavírus
Para piorar a situação, deixar muitas pessoas se infectarem naturalmente pelo coronavírus aumenta as chances do vírus sofrer mutações. Essas mutações nada mais são do que pequenos erros no processo de cópia do material genético do vírus. É assim que aparecem as chamadas variantes dos vírus, que podem muitas vezes ser mais contagiosas e até mais perigosas.
Quanto mais pessoas o vírus infectar, há mais chances de acontecerem esses erros, então mais variantes podem surgir e se espalhar. Com mais variantes do vírus se espalhando, até quem já se contaminou com o coronavírus uma vez, ou já foi vacinado, pode acabar ficando doente. Isso porque no caso de algumas variantes, a mudança que acontece no vírus faz com que o sistema de defesa não consiga mais reconhecer o vírus para combatê-lo rapidamente. Assim, nesse caso, as células de defesa vão ter que trabalhar de novo desde o começo para aprender a combater o invasor diferente.
Por isso, os cientistas recomendam que todos vacinem-se o mais rápido possível. Uma vacinação rápida e bem planejada pode ajudar a população a atingir a imunidade de rebanho de forma mais eficiente. Por fim, apenas com menos vírus circulando é possível reduzir o aparecimento de variantes e aumentar as chances de vencermos essa doença!
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, pares da mesma área técnica-científica da Unicamp revisaram o texto. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Recentemente temos ouvido falar muito sobre todas as pesquisas que têm sido realizadas para se descobrir uma vacina contra a Covid-19: Inglaterra, China, Rússia, todos estão correndo para ser o primeiro país a ter uma vacina aprovada para uso humano e que seja realmente eficiente em gerar uma imunidade em nós. Mas como que realmente funciona uma vacina e porque – em geral – demora-se tanto para desenvolver uma?
Imunidade ativa e passiva
Antes de falarmos sobre vacina, precisamos ter dois conceitos muito bem claros em nossa cabeça: Imunidade Ativa e Passiva. A Imunidade Ativa é aquela em que o nosso próprio corpo desenvolve a resposta imune contra o patógeno, um processo demorado, mas que nos garante uma proteção que pode durar décadas, a chamada memória imunológica (explicada no texto sobre anticorpos). Já a Imunidade Passiva, ocorre quando adquirimos anticorpos já prontos a partir de um outro organismo que os produziu. Esse processo garante uma imunidade rápida e eficiente, porém ela é temporária. A Imunização Passiva acontece, por exemplo, quando a mãe está amamentando o filho ou quando utilizamos de soros antiofídicos e antiaracnídicos, após picadas de cobras e aranhas.
O processo de imunidade ativa pode ser desencadeado tanto de forma natural quanto de forma artificial. O primeiro acontece quando entramos em contato com o patógeno no próprio ambiente, como quando pegamos uma gripe. Já o segundo processo acontece quando somos expostos de forma intencional ao patógeno – que muitas vezes está enfraquecido ou destruído – ou a partes dele, como ocorre no processo de vacinação.
Histórico da vacina e o que é vacina
O conceito de vacina foi descoberto no século XVIII por Edward Jenner, considerado o pai da imunologia, que observou que fazendeiros que contraiam a varíola da vaca, ficavam protegidos contra a varíola humana. A partir dessas observações, Jenner infectou pessoas com a varíola da vaca e após algum tempo, infectou essas mesmas pessoas com a varíola humana, observando que estas não ficavam doentes como as pessoas que não eram infectadas pela varíola da vaca anteriormente. Com isso, ele comprovou sua hipótese e criou a primeira vacina. Décadas mais tarde, no ano de 1980, a OMS declarou oficialmente a erradicação da varíola no mundo 1.
Mas afinal, o que é a vacina?
Vacinas nada mais são do que os patógenos – causadores de doenças que conhecemos – enfraquecidos, mortos ou fragmentos deles, que são injetados nos organismos para simular uma infecção natural (no processo dito acima de Imunização Ativa Artificial). Foi a partir desse processo que muitas doenças desapareceram de vários países, como a varíola, poliomielite, tuberculose e outras. Mas também é por causa da negligência e do crescente movimento Anti-vax que muitas doenças estão voltando a circular em países que anteriormente não a tinham mais, como é o caso do sarampo aqui nas Américas.
Leva-se anos para desenvolver uma vacina (a média de tempo é de 10 anos 2), e durante todos esses anos ela é testadas de inúmeras formas para ser segura para podermos tomarmos. Muito se fala sobre febre e a dor local após tomar uma vacina, mas isso nada mais é do que uma reação do corpo comum para qualquer infecção. A febre é até uma forma do nosso sistema imune combater alguns patógenos e, desde que não seja alta, está tudo bem.
A única contra-indicação de vacinas são para pessoas alérgicas à algum componente dela. Contudo, essas pessoas são minorias na população e para elas estarem seguras contra o patógeno todos a sua volta precisam estar vacinados. Neste ponto é importante lembrar que a vacina é um pacto social. Isto é, quando a maioria da população toma a vacina, protege também quem não pode tomar, pois diminui a circulação dos vírus patógenos. Assim, todos nós precisamos nos vacinar para gerar a chamada Imunidade de Rebanho.
Tipos de Vacina
Mas voltando às vacinas propriamente ditas, não existe somente um tipo delas, mas sim vários. Aqui vamos explicar somente os principais 3, 4:
– Vacinas de Patógenos Vivos:
calma, não entremos em pânico por causa do nome! Apesar desse tipo de vacina ter sim o patógeno causador da doença vivo ele está sempre atenuado, ou em outras palavras, enfraquecido. Nesse tipo de vacina, o patógeno (seja um vírus, bactéria ou outro microorganismo), passa por um processo que compromete sua habilidade de causar a doença em nós, apesar dele ainda conseguir infectar nossas células. Em casos de vírus, muitas vezes o vírus que infecta humanos é cultivado em células de macacos ou outros animais por várias gerações, até que ele adquira mutações que fazem com que ele infecte muito bem células de macaco, ao mesmo tempo que perde a capacidade de infectar muito bem as nossas células, e então ele está atenuado.
Normalmente, esse tipo de vacina é o melhor, pois em geral é necessário somente uma dose, a resposta e memória imunológica é de longa duração, gerando uma resposta imune celular e humoral (também comentada no texto de anticorpos). Contudo, há uma pequena chance de reversão do vírus, em que ele readquire a capacidade de infectar nossas células com força total e causar a doença que estamos tentando prevenir. É por esse fato que tal vacina é tão difícil de produzir, pois os pesquisadores muitas vezes não conseguem diminuir esse risco e o projeto da vacina não segue em frente.
– Vacinas de Patógenos Inativado (morto)
como o próprio nome diz, esse tipo de vacina nos dá o patógeno inteiro também, mas ele está morto. E com isso já temos uma vantagem logo de cara: não há o risco de reversão, como nos casos de patógenos atenuados. Contudo, também há alguns problemas. Pelo patógeno estar morto, ele não consegue se replicar dentro de nossas células, o que prejudica a formação de uma resposta imune celular. Assim, o tipo de resposta imune que vamos desenvolver é principalmente do tipo Humoral (focando nos anticorpos). Além disso, esse tipo de vacina, em geral, requer diversas doses de reforço e muitas vezes o uso de Adjuvantes: substâncias capazes de aumentar a eficiência da resposta imune contra o patógeno que estamos injetando junto.
– Vacinas de Subunidades:
Graças a biotecnologia que temos hoje em dia, caso um patógeno seja muito perigoso e não possamos usar ele inteiro, podemos trabalhar com partes dele, como com alguma proteína dele ou outro fragmento. Dessa forma nós tiramos todo o risco de patogenicidade da vacina, além de ser facilmente produzido em larga escala. Contudo, novamente temos problemas: o uso de adjuvantes, o maior número de doses de reforço e somente a resposta imune humoral participando. Além disso, ainda há um segundo fator problemático: algumas pessoas podem não responder a esse fragmento que está sendo utilizado na vacina.
O caso mais emblemático é o da vacina de Hepatite B. É relativamente comum encontrarmos pessoas que tomaram diversas doses da vacina para Hepatite B e constaram como “não-reagentes”, isto é, não desenvolveram anticorpos contra o vírus. Por questões genéticas da própria pessoa, mesmo que ela tome 1000 doses dessa vacina, ela jamais vai responder a esse fragmento. Isso quer dizer que ela é mais suscetível ao vírus da Hepatite B do que eu (que hipoteticamente sou reagente) e vai morrer caso contraia a doença? Não, de forma alguma! Isso só quer dizer que para esse pedaço específico do vírus, usado para fazer a vacina, ela não é capaz de responder, contudo, caso ela entre em contato com o vírus inteiro, ela responderá normalmente à ele, como qualquer outra pessoa.
Vacinas contra Covid-19
Atualmente as duas principais concorrentes para ser a primeira vacina contra Covid-19 são as vacinas da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e a vacina da Sinovac Biotech, uma empresa chinesa com base em Pequim. Enquanto a vacina da Sinovac Biotech se baseia no modelo de vacina com o vírus morto 4, 5, a vacina da universidade de Oxford, se baseia em um novo modelo nunca utilizado antes em vacinas, em que se usa um vetor viral 4, 6, 7. Mas o que é isso? Um vetor viral nada é do que um vírus, criado geneticamente para carregar e produzir o material genético de outro organismo. No caso da vacina, esse vírus “caminhão” é responsável por causar um resfriado em macacos, mas foi inativado e engenhado geneticamente para ter as informações e ser capaz de produzir a proteína Spike, a principal proteína do SARS-CoV-2.
Atualmente, ambas as vacinas já estão na fase 3 de testes onde milhares de seres humanos estão sendo testados com elas para se descobrir se a resposta imune que elas causam em nós é realmente protetora. Até agora, as informações que temos é que ambas as vacinas não são perigosas para nós e conseguem desenvolver anticorpos, mas a dúvida que fica é: será que essa proteção é realmente eficiente em nos proteger? E principalmente: quanto tempo essa proteção durará?
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
No dia 24 de Maio, vários de nós vimos mais uma transmissão ao vivo do biólogo e divulgador científico Átila Iamarino. Dessa vez com o convidado Leandro Karnal, historiador brasileiro.
Ao final da transmissão, Átila encaminha a discussão com Leandro Karnal, falando sobre como pessoas apresentam o desprezo que têm com outras pessoas e como minimizam a morte do outro. Átila inicia falando de AIDS e segue com a questão da idade, diabetes, gordos. “São só os gordos, quem mandou comer demais?”, sobre o que já leu na internet. Karnal responde apontando a eugenia do mundo como uma grande distopia – a busca por um ideal padrão tal qual no Admirável Mundo Novo do Huxley. Antes de mais nada, eu vou dizer que este livro deveria ser leitura obrigatória em cursos de formação de biologia, traçando debates éticos sobre ciência e seres humanos.
Mas voltando à questão, Karnal fala que defende a vida até de políticos.
“Toda a relativização de vida, fulano é marginal deve morrer, fulano é criminoso deve morrer, fulano é pobre não é tão dramático, fulano é velho (…) é o início de uma infecção. E essa infecção não é controlada só naquele grupo. A gente tem que reprimir inclusive a nossa vontade de que alguns líderes morram, temos que reprimir inclusive isso (…) Nem para eles. Nem para eles se pode desejar doença ou morte: todos são humanos” (Karnal, 2020, na #livedoatila).
Eu vou hoje analisar algumas falas que circulam “por aí” na sociedade que falam da pandemia, banalizam mortes e como isto se relaciona com a eugenia. Eugenia, como assim? A eugenia é uma distopia da busca pelo ideal… É eugenia cada vez que legitimamos vida, morte, ou investimentos em seres humanos a partir de premissas que dividem seres humanos com características que se supõe puramente biológicas.
Como assim, puramente biológicas? Como assim “supõe?
Apontamos uma característica humana, por exemplo, “sobrepeso” ou “obesidade”, classificando em grupos: “uns” e “outros”. O que estamos fazendo? Agrupando e segmentando, simplificando causalidades, naturalizando como algo único o que no fundo são características complexas que estão enredadas em múltiplos fatores biológicos, sociais, culturais.
Junto a isso, há o cerne da ideia eugenista: a escolha por quem vive, quem morre e quem pode e merece atenção e investimento. E isto é crueldade por tomar como simples, puro e biológico algo que é um emaranhado de conceitos, ideias, sem linearidade causal fácil de ser traçada.
A busca de políticas públicas deve se pautar, sim, por escolhas técnicas, lógicas e racionais. No entanto, mesmo o olhar técnico apresenta, sempre, relações com o seu tempo e o pensamento de grupos sociais. Não existe isenção e neutralidade, mesmo nas escolhas lógicas e racionais (para saber mais sobre a construção do conhecimento científico, temos este texto aqui).
Assim, neste sentido específico, é fundamental demarcar: políticas pautadas em características humanas que são dispensáveis foram, são e serão execráveis e assassinas. Alia-se a isso uma população, de acordo ou não com o governo, que apoia este discurso em muitos sentidos. Reforça-se neste conjunto governo e população que há, sim, quem seja dispensável. A morte destes “outros”, neste sentido, só potencializa o quanto “uns” estão no lado do “ideal”.
Tá, mas e para quê este falatório todo? Onde é que viste tanta eugenia assim?
O que temos visto em diversos espaços – seja jornalístico, seja na política pública, seja em conversas informais em redes sociais – são muitos cortes biologizantes, com ares de descuidado de si e, portanto, merecimento de morte – o obeso, o diabético, o idoso, o fura quarentena, o conspiracionista que não acredita na severidade da situação.
Pois bem, lembremos que basicamente para uma pessoa se contaminar, ela precisa entrar em contato com alguém contaminado (ou um objeto contaminado por uma pessoa). Podemos também simplificar o contágio como a prática do contato social “descontrolado” – em outras palavras o que era nossa vida social antes do mês de março.
Para que a pessoa adoeça, no entanto, e entre em um modo crítico ou severo da doença, existem múltiplos fatores – e nenhum deles é possível prever individualmente… Isto é: quando apontamos uma possibilidade estatística de adoecimento, estamos falando de uma população. Existem características humanas que estatisticamente aparecem com maior probabilidade de acarretar em um agravamento da doença – o que geram os chamados grupos de risco.
Há três falas mais genéricas que eu gostaria de analisar, hoje: a Seleção Natural, a imunização de rebanho, e sobre as comorbidades (em especial a ideia de “ninguém mandou se comportar de maneira X”). Nessas três falas há uma série de itens ignorados (deliberada e cientemente ou não) que legitimam a morte de pessoas, tomando-os não apenas como menos importantes socialmente. É pior do que isso.
Estas ideias apontam para a intencionalidade da morte como causa justa para desonerar quem vive e merece seguir vivo. Isto é, todas as falas são falas que usam ideias científicas em defesa de si mesmos como o ideal a ser seguido.
Tão arrogante, quanto patético, tais discursos desconsideram inúmeras questões.
A seleção natural quando apontada para aquele que fura a quarentena, no fundo aponta que este ato é deliberadamente colocar-se em risco e, portanto, merecidamente ser atingido.
A imunidade de rebanho insere uma lógica biologicista de recursos infinitos para atender todos os doentes em tempo hábil e morte só dos que “não teriam condições mesmo” e estão “dentro da estatística de letalidade da doença”. Naturaliza, também, o mais fraco como fatídico e sem solução.
Por fim, a ideia do “ninguém mandou se comportar de maneira X”, relacionado às inúmeras doenças humanas simplifica fatores de adoecimentos, individualizando a culpa e a responsabilidade. Eximem, assim, necessidade de as políticas públicas terem qualquer ação real com os indivíduos.
Neste último item, é importante apontar que existem múltiplos fatores (biológicos e sociais) para adoecimentos que, agora na COVID-19 que acabam agravando a situação. Incutir a culpa em obesos pois “era só não comer”, ou diabéticos pois era “só controlar a glicose”, é ignorar a multiplicidade de condições para sermos saudáveis (ou melhor: prescrições de uma vida saudável) que nenhum de nós segue.
Este discurso é sim biologicista, na medida em que torna a doença algo mecânico e simples de ser tratado, como simples rota metabólica a ser arrumada (só comer bem, só cuidar glicose, só fazer exercício regularmente…). É também um discurso moralista, que aponta – sempre no outro, claro – comportamentos condenatórios e não compatíveis ao que “nós” (o grupo de bem) consideramos correto.
Estes são discursos cruéis, montados em uma biologização e naturalização da doença, usando (sim!) ideias científicas. No entanto, as usam a partir de distorções, carregadas de preconceitos a partir de contextos sociais, políticos, econômicos, culturais específicos. que são distorcidas às vezes, mas são preconceituosas sempre, pois apontam que há grupos que nós não precisaríamos nos preocupar. Há trechos de DNA, sequências específicas, fisiologias determinadas, anatomias escancaradas, faixas etárias declaradas que não precisam ser salvas, melhor seria deixar sucumbir de vez. Assim restariam os que são imunes às problemáticas atuais. Seleção Natural, imunização dos fortes, morte dos indisciplinados e enfermos: a sociedade, enfim, poderá voltar à normalidade (sem trocadilhos). A estatística populacional neutra e límpida mostrará a régua do que deve permanecer! (Será?).
[Por outro lado]
Em governos que agem à revelia, fazendo feriado ao invés de propor fechamento das cidades/estados, promovendo abertura de comércio “com protocolo de segurança anti-covid-19”, retirando do auxílio emergencial categorias profissionais inteiras por considerá-las essenciais (sem protocolo de segurança, sem EPI indicado, sem essencialidade comprovada), que indicam medicamentos para tratamento com evidências científicas apontando riscos severos no seu uso, que trocam de cargos máximos de instâncias de saúde (nos deixando sem representante) em um período de crise como este, que reduzem transporte público “pois há menos pessoas na rua” – tornando-os lotados pela quantidade reduzida, ao invés de proporcionar aos trabalhadores que precisam circular, espaço com segurança… Em governos que se eximem das responsabilidades de gerenciamento da crise, riem da morte de sua população – por COVID-19 ou por miséria…
[pausa para respirar]
(ufa) Em governos que agem como estamos vendo agir, com populações que poderiam reforçar a segurança e contenção da doença, mas não o fazem por ignorância ou impossibilidade: não se faz piada biologizando a doença, usando a seleção natural como fato simples. Especialmente nestes tempos, não se reforça ideais eugênicos como política pública válida e socialmente aceita. Não se retira a responsabilidade pública, coletiva e social por individualizar situações e culpabilizar pessoas, especialmente sem analisar a complexidade do que vivemos.
Quando falamos que nem todos que se arriscam merecem adoecer, logo se pensa em profissionais da medicina e enfermagem, inclusive os tomando como heróis. Pois em um país como o nosso, cada indivíduo que caiu nas malhas dos trabalhos informais e “microempreededorismos individuais”, autônomos e aquele conjunto de pessoas que foi empobrecendo e colocando sua vida como negociata para pouco mais que nada de dinheiro, e que têm sido sistematicamente descartado como parte do que importa de vida aos gestores deste imenso território chamado Brasil – que tenta salvar grandes CNPJs e descarta CPFs… – biologizar as causas de mortes evitáveis é aceitar o genocídio “dos outros” como fato inconteste e natural.
É naturalizar, literalmente, que ações políticas não têm efeito sob o atual cenário. É rir de todos aqueles que não têm condições de se resguardar de tudo isso.
Não se ironiza Seleção Natural como se nossa sociedade estivesse isenta de políticas e ações que mudam a nossa vida e suas condições. Não se desfaz, ou dá de ombros quando há grupos de pessoas historicamente determinando quem pode ou não viver. Tampouco se ironiza o adoecimento, usando ciência para criar cortes de vida e morte, enquanto homens sentam-se em volta de uma mesa, com toalhas brancas, sãos e salvos, determinando quais dinheiros podem ser gastos sem problema amparando-se em intelectuais nazistas, que definem que investimento na sociedade e em humanos é quebrar o país, que leis devem ser aprovadas para se passar a boiada, que os membros de um dos pilares da democracia devem estar presos, enquanto discursos dispersos para desviar a atenção se fazem e seres humanos cotidianamente morrem por falta de ação real.
Não se faz piada, enquanto subsistência se faz a céu aberto em vala comum. Nunca. Jamais.
KECK, Frédéric e RABINOW, Paul (2008) Invenção e representação do corpo genético. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques e VIGARELLO, George História do corpo: as mutações do Olhar, O século XX. Petrópolis: Vozes, p.83-105.
MBEMBE, Achille (2018) Necropolítica, 3ed, São Paulo, 2018.
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.