Tag: literatura

  • As não intermitências dos leitos de UTI

    Desde janeiro deste ano, estou participando de um clube de leitura com alguns amigos. Escolhido há meses, o livro da vez é As intermitências da morte”, de José Saramago.

    Nesse livro, num belo dia, a morte simplesmente resolve tirar um período sabático e ali, naquele país, ninguém mais morre. Maravilha né? Na verdade, nem tanto. Um caos é instalado naquele lugar, com direito a crise religiosa, crise funerária… E, claro, crise no sistema hospitalar…

    E era sobre isso que eu queria falar com vocês. Mas antes, leia abaixo um trecho que fala da crise que se instaura nos hospitais. Se você não conhece o livro, não se preocupe, não é spoiler e é um trecho pequeno e do início do livro – ah, e o texto é em português de Portugal!

    Também os directores e administradores dos hospitais, tanto do estado como privados, não tardaram muito a ir bater à porta do ministério da tutela, o da saúde, para expressar junto dos serviços competentes as suas inquietações e os seus anseios, os quais, por estranho que pareça, quase sempre relevavam mais de questões logísticas que propriamente sanitárias. Afirmavam eles que o corrente processo rotativo de enfermos entrados, enfermos curados e enfermos mortos havia sofrido, por assim dizer, um curto-circuito ou, se quisermos falar em termos menos técnicos, um engarrafamento como os dos automóveis, o qual tinha a sua causa na permanência indefinida de um número cada vez maior de internados que, pela gravidade das doenças ou dos acidentes de que haviam sido vítimas, já teriam, em situação normal, passado à outra vida. A situação é difícil, argumentavam, já começámos a pôr doentes nos corredores, isto é, mais do que era costume fazê-lo, e tudo indica que em menos de uma semana nos iremos encontrar a braços não só com a escassez das camas, mas também, estando repletos os corredores e as enfermarias, sem saber, por falta de espaço e dificuldade de manobra, onde colocar as que ainda estejam disponíveis. – As intermitências da morte. José Saramago, Companhia das Letras.

    Quando li esse trechinho não tive como não comparar com a situação que observamos em vários hospitais do país… Situação agravada pela COVID. Quando pensamos em leitos de enfermaria e UTI, pensamos em rotatividade: um fluxo contínuo de entrada e saída de pacientes. No caso dessa história contada por Saramago, as pessoas chegam doentes, às vezes em estado grave. Alguns provavelmente se curam e deixam os hospitais, mas outros com certeza chegam em estado muito grave, tão grave, que esses pacientes deveriam morrer – mas não morrem (afinal, a morte deu uma trégua). Assim, os leitos passam a ser ocupados por esses pacientes e acabam não são liberados… A consequência é que a ocupação, por esse motivo, atinge seu máximo em pouco tempo e pronto: está instaurado o caos descrito no trecho.

    Voltando a nossa realidade, o que observamos na Itália (em março) e estamos vendo agora em alguns estados do Brasil é que, além de um grande influxo de pacientes ao mesmo tempo (pacientes estes que não estavam sendo esperados, afinal pacientes com COVID não estavam no fluxo dos pacientes hospitalares até três meses atrás) nos hospitais, o período de internação, inclusive nas UTIs é bem maior. De acordo com a AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira) um paciente na UTI permanece internado, em média, por cerca de 6 dias, enquanto para um paciente com COVID a duração da internação na UTI é de aproximadamente 14-21 dias. Soma-se a isso os profissionais da saúde que acabam se contaminando e devem ser afastados e os leitos ocupados pelos pacientes do fluxo normal (afinal derrames, acidentes, câncer e outras emergências continuam acontecendo mesmo com a pandemia!).

    Em reportagem do dia 19/06/2020, a BBC Brasil apresentou a figura abaixo com as taxas de ocupação de leitos de UTI nos Estados Brasileiros, com dados das secretarias de saúde dos estados até o dia 17/06. Alguns estados (n=14) apresentaram sinais de queda devido às medidas de distanciamento social adotadas (AM, AP, CE, ES, MG, PA, PB, PE, PI, RJ, RN, SC, SP e TO), seis estados estão com as taxas de internação estabilizadas ou com sinais de estabilização (AC, AL, BA, GO, MA, RR) e 6 estados (MS, MG, PR, RS, RO, SE) + o Distrito Federal (DF) estão com taxas em ascensão ou com sinais de alta.

    Apenas como exemplo, de acordo com a reportagem, o principal hospital de Roraima (HGR) em uma semana teve um pulo de 71% para 110% da capacidade. Aqui, em Belo Horizonte (onde moro), estamos vendo um aumento relativamente rápido das ocupações de leitos após a abertura de quase todo o comércio; a Santa Casa BH, por exemplo, está se preparando para, nos próximos dias, dobrar de 50 para 100 os leitos de UTI. Isso nos leva a inferir que alguns locais ainda não entraram em colapso por estarem conseguindo abrir novos leitos em tempo de atender à população.

    Essas taxas de ocupação de leitos são um dos principais indicadores para os dirigentes tomarem as decisões sobre abrir ou não os comércios locais. Mas pela dinâmica da infecção, geralmente esses dados refletem as taxas de infecção com 2 semas de atraso. Assim, as decisões devem ser tomadas com cautela e previsão estimada da situação da contaminação em cada cidade individualmente. Comparar dados de cidades diferentes, em momentos diferentes da curva, e de países diferentes talvez não seja uma boa ideia. A Ana Arnt faz uma reflexão sobre isso nesse post: “Podemos comparar estas duas cidades? Exercícios complexos para uma pergunta simples” (parte 1) e (parte 2).

    DICA DE LIVRO!

    Para terminar, queria voltar na indicação do livro As intermitências da morte”, de José Saramago. Neste livro, Saramago, laureado com o prêmio Nobel de Literatura em 1998, parte de uma premissa simples para escrever um livro fantástico: e se as pessoas parassem de morrer?

    Uma pergunta que parece irrelevante, mas que quando analisada mais a fundo traz consigo grandes questões… Economia, saúde e até mesmo a religião são afetadas. O que parece ser um grande acontecimento feliz, a vida eterna se transforma, em pouco tempo, numa situação de difícil resolução.

    Apesar de estar esgotado na editora em sua versão física, o livro pode ser comprado em ebook. Clicando e comprando por este link você é direcionado para a Amazon e pode ajudar o blog: As intermitências da morte”, de José Saramago.

    REFERÊNCIAS:

    Reportagem da BBC Brasil: Coronavírus: 14 Estados têm queda de internações após isolamento social; DF e outros 6 Estados enfrentam alta.

    Comunicado da AMIB, disponibilizado no site da SOMITI: COMUNICADO DA AMIB SOBRE O AVANÇO DO COVID-19 E A NECESSIDADE DE LEITOS EM UTIS NO FUTURO

    Aproveite e nos siga no Twitter, no Instagram e no Facebook!

    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Livros que ajudam a pensar a pandemia da COVID-19…

    Oi! Nos últimos dias consegui ler alguns livros de divulgação científica e vou indicá-los abaixo. Todos eles tratam de temas que estão sendo muito falados ultimamente e, portanto, podem nos ajudar a pensar sobre a pandemia da COVID-19! Eles possuem diferentes abordagens (focadas por exemplo, mais na biologia, na historiografia, ou na filosofia e em relatos pessoais), para falar sobre temas como: pandemias, vírus, imunidade, vacinação, doenças, economia, ecologia, evolução… Temos livros para todos os gostos! Vem comigo!

    Ah! Este não é um post patrocinado. Clique nos nomes dos livros para serem direcionados ao site da Amazon!

    O primeiro livro é o recém lançado "Ciência no cotidiano“, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi (Contexto). Natália é microbiologista e Carlos Orsi é jornalista com experiência em jornalismo científico. Am0bos fazem parte do Instituo Questão de Ciência! Nesse livro, a dupla mostra a aplicação do conhecimento científico em diversos contextos das nossas vidas: energia, transgênicos, higiene, astronomia, estatística… Tudo isso numa leitura interessante, curiosa e muito fluida. O capítulo 3 (sobre vacinas) é de utilidade pública! Leia a introdução do livro, clicando AQUI.

    Darwin sem frescura + Como os Vírus e as Pandemias Evoluem” (ebook – capítulo extra e gratuito), de Pirula e Reinaldo José Lopes (Harper Collins). Pirula é biólogo, tem experiência na área de zoologia e evolução e divulga ciência em seu canal no YouTube. Enquanto isso, Reinaldo é jornalista experiente e respeitado quando o assunto é ciência, evolução, evolução humana, história e autor de vários livros. Ao se unirem o resultado foi um livro sobre evolução que aborda temas complexos, tabus e com exemplos muito curiosos. Nesses últimos dias, liberaram um capítulo extra e gratuito sobre evolução dos vírus e das pandemias, que é muito bom!

     “Corpo – um guia para usuários, de Bill Bryson (Cia. das Letras). Bryson é famoso por um de seus livros anteriores que tinha o objetivo de contar a “Breve História de Quase Tudo” (Cia. das Letras) – que também recomendo. E agora ele procura fazer o mesmo, mas falando curiosidade sobre o nosso corpo. Bill começa falando sobre a pele, o sistema nervoso, o coração e a circulação, o equilíbrio, como ações simples envolvem arranjos complexos, nosso intestino e digestão, o sono, sistema urinário e reprodutor, a concepção e o parto… O capítulo 20 (“Quando as coisas dão errado: doenças”) está espetacular e é muito importante para ajudar a entender como e porque doenças se espalham e podem virar uma pandemia!

    Imunidade”, de Eula Biss (Todavia). A autora é uma jornalista que durante sua primeira gravidez foi em busca de respostas que assolam mães e pais… Essa empreitada resultou neste livro, escrito de uma maneira muito didática! Em seu relato, Biss fala sobre dúvidas que, na verdade são de todos nós e não apenas de quem vai receber um novo membro na família! Vacinas, micro-organismos, álcool em gel! O debate sobre vacinação tem um destaque grande no livro – e a autora comenta sobre o histórico caso do estudo fraudulento que relacionou vacinação e autismo, e sore o movimento antivax que, preocupantemente, tem ganhado palco no mundo todo. Fica a recomendação!

    Na batalha contra o coronavírus, faltam líderes à humanidade” (ebook gratuito), de Yuval Noah Harari (Cia. Das Letras ). Best seller mundial com os livros “Sapiens” e “Homo Deus”, o historiador israelense Yuval Harari analisa aqui a situação global da pandemia da COVID-19 e defende a importância da cooperação entre povos para o enfrentamento de situações como essa pandemia, mesmo em tempos de isolamento. Esse ebook, que é a tradução do artigo publicado originalmente na revista Time, é um texto curtinho, gratuito – dá pra ler de uma sentada.

    O amanhã não está à venda” (ebook gratuito), de Ailton Krenak (Cia das Letras). Um dos principais líderes do movimento indígena brasileiro, Ailton Krenak, faz um relato emotivo sobre sua percepção da relação do ser humano com a natureza em meio à pandemia da COVID-19. “Tem muita gente que suspendeu projetos e atividades. As pessoas acham que basta mudar o calendário. Quem está apenas adiando compromisso, como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado […]. Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã.” 


    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Carolina Maria de Jesus e a polêmica sobre o que é literatura

     Em abril desse ano, a Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp (Comvest) divulgou a lista de livros para o vestibular de 2019. Entre os já canonizados Luís de Camões, Antônio Vieira e Camilo Castelo Branco, a grande novidade foi encontrar o nome da escritora Carolina Maria de Jesus e seu livro Quarto de Despejo: diário de uma favelada (1960) entre as leituras obrigatórias. Entre tantos livros escritos por homens e já conhecidos pelos vestibulandos, essa foi a primeira vez que a obra de uma mulher negra apareceu na lista da Unicamp. Há muito o que comemorar quando uma mudança como essa acontece em um dos maiores vestibulares do país: aos poucos, mais vozes começam a contar histórias que já conhecemos, mas que nos foram sempre contadas pelas mesmas perspectivas.

plugins premium WordPress