Tag: necropolítica

  • Eugenia, Seleção Natural e um “tanto faz” de vidas e mortes por Covid-19

    No dia 24 de Maio, vários de nós vimos mais uma transmissão ao vivo do biólogo e divulgador científico Átila Iamarino. Dessa vez com o convidado Leandro Karnal, historiador brasileiro.

    Ao final da transmissão, Átila encaminha a discussão com Leandro Karnal, falando sobre como pessoas apresentam o desprezo que têm com outras pessoas e como minimizam a morte do outro. Átila inicia falando de AIDS e segue com a questão da idade, diabetes, gordos. “São só os gordos, quem mandou comer demais?”, sobre o que já leu na internet. Karnal responde apontando a eugenia do mundo como uma grande distopia – a busca por um ideal padrão tal qual no Admirável Mundo Novo do Huxley.
    Antes de mais nada, eu vou dizer que este livro deveria ser leitura obrigatória em cursos de formação de biologia, traçando debates éticos sobre ciência e seres humanos.

    Mas voltando à questão, Karnal fala que defende a vida até de políticos.

    “Toda a relativização de vida, fulano é marginal deve morrer, fulano é criminoso deve morrer, fulano é pobre não é tão dramático, fulano é velho (…) é o início de uma infecção. E essa infecção não é controlada só naquele grupo. A gente tem que reprimir inclusive a nossa vontade de que alguns líderes morram, temos que reprimir inclusive isso (…) Nem para eles. Nem para eles se pode desejar doença ou morte: todos são humanos” (Karnal, 2020, na #livedoatila).

    Eu vou hoje analisar algumas falas que circulam “por aí” na sociedade que falam da pandemia, banalizam mortes e como isto se relaciona com a eugenia. Eugenia, como assim? A eugenia é uma distopia da busca pelo ideal… É eugenia cada vez que legitimamos vida, morte, ou investimentos em seres humanos a partir de premissas que dividem seres humanos com características que se supõe puramente biológicas. 

    Como assim, puramente biológicas? Como assim “supõe?

    Apontamos uma característica humana, por exemplo, “sobrepeso” ou “obesidade”, classificando em grupos: “uns” e “outros”. O que estamos fazendo? Agrupando e segmentando, simplificando causalidades, naturalizando como algo único o que no fundo são características complexas que estão enredadas em múltiplos fatores biológicos, sociais, culturais.

    Junto a isso, há o cerne da ideia eugenista: a escolha por quem vive, quem morre e quem pode e merece atenção e investimento. E isto é crueldade por tomar como simples, puro e biológico algo que é um emaranhado de conceitos, ideias, sem linearidade causal fácil de ser traçada.

    A busca de políticas públicas deve se pautar, sim, por escolhas técnicas, lógicas e racionais. No entanto, mesmo o olhar técnico apresenta, sempre, relações com o seu tempo e o pensamento de grupos sociais. Não existe isenção e neutralidade, mesmo nas escolhas lógicas e racionais (para saber mais sobre a construção do conhecimento científico, temos este texto aqui).

    Assim, neste sentido específico, é fundamental demarcar: políticas pautadas em características humanas que são dispensáveis foram, são e serão execráveis e assassinas. Alia-se a isso uma população, de acordo ou não com o governo, que apoia este discurso em muitos sentidos. Reforça-se neste conjunto governo e população que há, sim, quem seja dispensável. A morte destes “outros”, neste sentido, só potencializa o quanto “uns” estão no lado do “ideal”. 

    Tá, mas e para quê este falatório todo? Onde é que viste tanta eugenia assim?

    O que temos visto em diversos espaços – seja jornalístico, seja na política pública, seja em conversas informais em redes sociais – são muitos cortes biologizantes, com ares de descuidado de si e, portanto, merecimento de morte – o obeso, o diabético, o idoso, o fura quarentena, o conspiracionista que não acredita na severidade da situação.

    Pois bem, lembremos que basicamente para uma pessoa se contaminar, ela precisa entrar em contato com alguém contaminado (ou um objeto contaminado por uma pessoa). Podemos também simplificar o contágio como a prática do contato social “descontrolado” – em outras palavras o que era nossa vida social antes do mês de março.

    Para que a pessoa adoeça, no entanto, e entre em um modo crítico ou severo da doença, existem múltiplos fatores – e nenhum deles é possível prever individualmente… Isto é: quando apontamos uma possibilidade estatística de adoecimento, estamos falando de uma população. Existem características humanas que estatisticamente aparecem com maior probabilidade de acarretar em um agravamento da doença – o que geram os chamados grupos de risco. 

    Há três falas mais genéricas que eu gostaria de analisar, hoje: a Seleção Natural, a imunização de rebanho, e sobre as comorbidades (em especial a ideia de “ninguém mandou se comportar de maneira X”). Nessas três falas há uma série de itens ignorados (deliberada e cientemente ou não) que legitimam a morte de pessoas, tomando-os não apenas como menos importantes socialmente. É pior do que isso.

    Estas ideias apontam para a intencionalidade da morte como causa justa para desonerar quem vive e merece seguir vivo. Isto é, todas as falas são falas que usam ideias científicas em defesa de si mesmos como o ideal a ser seguido.

    Tão arrogante, quanto patético, tais discursos desconsideram inúmeras questões.

    A seleção natural quando apontada para aquele que fura a quarentena, no fundo aponta que este ato é deliberadamente colocar-se em risco e, portanto, merecidamente ser atingido. 

    A imunidade de rebanho insere uma lógica biologicista de recursos infinitos para atender todos os doentes em tempo hábil e morte só dos que “não teriam condições mesmo” e estão “dentro da estatística de letalidade da doença”. Naturaliza, também, o mais fraco como fatídico e sem solução.

    Por fim, a ideia do “ninguém mandou se comportar de maneira X”, relacionado às inúmeras doenças humanas simplifica fatores de adoecimentos, individualizando a culpa e a responsabilidade. Eximem, assim, necessidade de as políticas públicas terem qualquer ação real com os indivíduos.

    Neste último item, é importante apontar que existem múltiplos fatores (biológicos e sociais) para adoecimentos que, agora na COVID-19 que acabam agravando a situação. Incutir a culpa em obesos pois “era só não comer”, ou diabéticos pois era “só controlar a glicose”, é ignorar a multiplicidade de condições para sermos saudáveis (ou melhor: prescrições de uma vida saudável) que nenhum de nós segue. 

    Este discurso é sim biologicista, na medida em que torna a doença algo mecânico e simples de ser tratado, como simples rota metabólica a ser arrumada (só comer bem, só cuidar glicose, só fazer exercício regularmente…). É também um discurso moralista, que aponta – sempre no outro, claro – comportamentos condenatórios e não compatíveis ao que “nós” (o grupo de bem) consideramos correto.

    Estes são discursos cruéis, montados em uma biologização e naturalização da doença, usando (sim!) ideias científicas. No entanto, as usam a partir de distorções, carregadas de preconceitos a partir de contextos sociais, políticos, econômicos, culturais específicos. que são distorcidas às vezes, mas são preconceituosas sempre, pois apontam que há grupos que nós não precisaríamos nos preocupar. Há trechos de DNA, sequências específicas, fisiologias determinadas, anatomias escancaradas, faixas etárias declaradas que não precisam ser salvas, melhor seria deixar sucumbir de vez. Assim restariam os que são imunes às problemáticas atuais. Seleção Natural, imunização dos fortes, morte dos indisciplinados e enfermos: a sociedade, enfim, poderá voltar à normalidade (sem trocadilhos). A estatística populacional neutra e límpida mostrará a régua do que deve permanecer! (Será?).

    [Por outro lado]

    Em governos que agem à revelia, fazendo feriado ao invés de propor fechamento das cidades/estados, promovendo abertura de comércio “com protocolo de segurança anti-covid-19”, retirando do auxílio emergencial categorias profissionais inteiras por considerá-las essenciais (sem protocolo de segurança, sem EPI indicado, sem essencialidade comprovada), que indicam medicamentos para tratamento com evidências científicas apontando riscos severos no seu uso, que trocam de cargos máximos de instâncias de saúde (nos deixando sem representante) em um período de crise como este, que reduzem transporte público “pois há menos pessoas na rua” – tornando-os lotados pela quantidade reduzida, ao invés de proporcionar aos trabalhadores que precisam circular, espaço com segurança… Em governos que se eximem das responsabilidades de gerenciamento da crise, riem da morte de sua população – por COVID-19 ou por miséria…

    [pausa para respirar]

    (ufa) Em governos que agem como estamos vendo agir, com populações que poderiam reforçar a segurança e contenção da doença, mas não o fazem por ignorância ou impossibilidade: não se faz piada biologizando a doença, usando a seleção natural como fato simples. Especialmente nestes tempos, não se reforça ideais eugênicos como política pública válida e socialmente aceita. Não se retira a responsabilidade pública, coletiva e social por individualizar situações e culpabilizar pessoas, especialmente sem analisar a complexidade do que vivemos.

    Quando falamos que nem todos que se arriscam merecem adoecer, logo se pensa em profissionais da medicina e enfermagem, inclusive os tomando como heróis. Pois em um país como o nosso, cada indivíduo que caiu nas malhas dos trabalhos informais e “microempreededorismos individuais”, autônomos e aquele conjunto de pessoas que foi empobrecendo e colocando sua vida como negociata para pouco mais que nada de dinheiro, e que têm sido sistematicamente descartado como parte do que importa de vida aos gestores deste imenso território chamado Brasil – que tenta salvar grandes CNPJs e descarta CPFs… – biologizar as causas de mortes evitáveis é aceitar o genocídio “dos outros” como fato inconteste e natural.

    É naturalizar, literalmente, que ações políticas não têm efeito sob o atual cenário. É rir de todos aqueles que não têm condições de se resguardar de tudo isso.

    Não se ironiza Seleção Natural como se nossa sociedade estivesse isenta de políticas e ações que mudam a nossa vida e suas condições. Não se desfaz, ou dá de ombros quando há grupos de pessoas historicamente determinando quem pode ou não viver. Tampouco se ironiza o adoecimento, usando ciência para criar cortes de vida e morte, enquanto homens sentam-se em volta de uma mesa, com toalhas brancas, sãos e salvos, determinando quais dinheiros podem ser gastos sem problema amparando-se em intelectuais nazistas, que definem que investimento na sociedade e em humanos é quebrar o país, que leis devem ser aprovadas para se passar a boiada, que os membros de um dos pilares da democracia devem estar presos, enquanto discursos dispersos para desviar a atenção se fazem e seres humanos cotidianamente morrem por falta de ação real.

    Não se faz piada, enquanto subsistência se faz a céu aberto em vala comum. Nunca. Jamais.

    Para saber mais

    ARNT, Ana de Medeiros (2013) Genomas, sexualidade, seleção de parceiros, anomalias, defeitos, aborto, seleção de embriões: educando e governando vidas e sujeitos pelo determinismo biológico enunciado genes na revista ciência hoje

    IAMARINO, Atila; KARNAL, Leandro (2020) Live 24/05 – O pior lado da Pandemia, com Leandro Karnal #FiqueEmCasa.

    KECK, Frédéric e RABINOW, Paul (2008) Invenção e representação do corpo genético. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques e VIGARELLO, George História do corpo: as mutações do Olhar, O século XX. Petrópolis: Vozes, p.83-105.

    LEWONTIN, Richard (2002) O Sonho do Genoma Humano, Revista Adusp.

    MBEMBE, Achille (2018) Necropolítica, 3ed, São Paulo, 2018.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
  • Da fatalidade epidemiológica à ferramenta de extermínio: a gestão necropolítica da pandemia

    Texto escrito por Leonardo Oliveira*

    O crescente número de infectados e mortos pelo novo Coronavírus (Sars-Cov-2) ao redor do mundo tem gerado preocupação e exigido a tomada de atitudes inéditas entre governos e cidadãos para frear a pandemia. As medidas de distanciamento social e isolamento recomendadas pela Organização Mundial da Saúde, até então o meio mais eficaz de diminuir o ritmo de disseminação da doença e amenizar o iminente colapso dos sistemas de saúde, têm causado mudanças drásticas nos hábitos e comportamentos da população. O esforço dos agentes públicos e da mídia para efetivar o isolamento não tem surtido o efeito desejado (SÃO PAULO, 2020). Cultivando o desejo de retorno a uma normalidade cotidiana potencialmente mortal, ainda é possível verificar aglomerações e ruas com intensa circulação de pessoas, mesmo com a suspensão de todos os eventos e reuniões públicas e interrupção dos serviços não essenciais. Uma realidade alarmante diante da célere escalada da curva de infecções no Brasil.

    A campanha “#FicaEmCasa” tem buscado conscientizar a população sobre a importância de sair às ruas apenas para as atividades estritamente necessárias e o respeito ao isolamento como uma atitude cidadã. Entretanto, como irão aderir à campanha aqueles que não possuem uma casa?

    Somente em São Paulo, epicentro da epidemia no Brasil, são mais de 24 mil pessoas vivendo nas ruas em situação insalubre e vulnerável, segundo dados da própria prefeitura (SÃO PAULO, 2020). Como poderão evitar aglomerações pessoas que vivem em uma favela como Paraisópolis, que ostenta a maior densidade populacional do país? (EBC, 2016). Isso, claro, sem contar a carência de tratamento do esgoto e fornecimento de água, numa situação onde o vírus pode ser transmissível pelas fezes (TORMENTE, 2020) e a lavagem das mãos em água corrente é a forma mais eficaz de evitar o contágio. E o que dizer dos mais de 770 mil presos que compõem população prisional nas penitenciárias brasileiras superlotadas? (BRASIL, 2020). Um prato cheio para o vírus e uma bomba relógio para a sociedade. A situação de rua, a favelização e o encarceramento constituem ‘mundos de morte’ (MBEMBE, 2018), espaços de concentração de um determinadas parcelas populacionais sujeitas à uma situação de sobrevida, ao estatuto de mortos-vivos. Lugares submetidos ao império da necropolítica (MOREIRA, 2019). 

    Enquanto o vírus se alastra pelo território nacional, o atual mandatário da Presidência da República tem cultivado crises institucionais entre os poderes e dentro do próprio governo. Em entrevistas, ao comentar sobre a mortandade causada pela pandemia, Bolsonaro declarou: “Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, é a vida”; “Brasileiro precisa ser estudado, pula no esgoto e nada acontece” e “E daí? Lamento. Quer que eu faça o que? Sou Messias mas não faço milagre”. Estas e tantas outras falas de flagrante descaso com a saúde e com a vida da da população se alinham sob a ordem necropolítica.

    O termo necropolítica, cunhado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe (2018), visa elucidar como a regimentalização do poder de matar nas sociedades modernas funciona como uma política de controle social. A distribuição desigual das oportunidade de vida e de morte que são base do modelo capitalista de produção impõe uma hierarquia em que uns valem mais que outros e aqueles que não têm valor são simplesmente descartados. Trata-se de uma radicalização e reinterpretação da biopolítica de Foucault, em que a administração da vida divide espaço com a dministração da morte (ESTÉVEZ, 2018).

    Segundo Valencia (2010) quando a morte, mais do que a vida, se encontra no centro da biopolítica ela se converte em necropolítica. Através de estratégias de exploração e destruição de corpos como a execução, o feminicídio, a escravidão, o sequestro, o tráfico de pessoas, o encarceramento; práticas legitimadas por dispositivos jurídico-administrativos, são ordenados e sistematizados os efeitos, as causas e as justificativas das políticas de morte. O poder atua para a manutenção do sujeito vivo, mas em estado de marginalização aguda, injúria e intensa crueldade, implementando uma forma de morte em vida até que se alcance a morte de fato.

    Mbembe parte do pressuposto de que a expressão máxima do poder soberano consiste em deixar viver, matar ou expor à morte. A partir do momento em que a soberania escolhe quem vive e quem morre, o próprio viver se torna uma manifestação do poder soberano (MBEMBE, 2003).

    E no Brasil?

    No Brasil a necropolítica não é algo inusitado, nem recém inaugurado. Na verdade não existe história do Brasil apartada das políticas de morte. Estamos falando do país com a polícia que mais mata e mais morre no mundo (CÂMARA, 2019). Estamos falando do país que lidera o ranking mundial de homicídios em números absolutos (UNODC, 2019). Estamos falando do país que registra o maior número de linchamentos no mundo (MARTINS, 2015). Estamos falando do país que mais mata LGBTs no mundo (GGB, 2018). Estamos falando de um país em que a legislação contra a violência doméstica, uma conquista histórica, faz diminuir os casos de morte entre mulheres brancas e disparar os casos de feminicídios das mulheres negras (IPEA, 2018). Este cenário não surgiu de forma mágica ou repentina.

    Estamos falando de uma nação inaugurada pelo genocídio dos povos originários, sustentada por séculos à base da mão de obra escravizada. Um território colonizado e arquitetado por um patriarcado conservador latifundiário e aristocrata (SADER, 2011). Não houve, nem haverá no curto prazo, um dia em que, neste país, não esteja em curso um plano de genocídio, extermínio, marginalização, encarceramento, subjugação de algum ou de vários segmentos da sociedade. Sejam índios, negros, mulheres, travestis ou comunistas. O discurso do inimigo interno é parte estruturante da necropolítica de “segurança” nacional (MENDONÇA, 2015). 

    Quando, em um país com estas características, chegam ao poder políticos que em meio a manifestações, negam a ciência e a importância dos setores públicos na promoção da equidade social, a partir de dados técnicos, científicos e sociais, torna-se notória a iminência da catástrofe. Um exemplo do caráter funesto que revestiu a política nacional, coadunando com vários setores e grupos sociais, pode ser observado na popularidade do fetiche punitivista: bandido bom é bandido morto (PRADO, 2020).

    Ao traçar como objetivo político a aniquilação daqueles classificados como inimigos, a imposição da soberania se dá pelo exercício do poder de matar, como ocorre em um contexto de guerra.  Está em andamento uma investida deliberada de necroempoderamento visando a institucionalização da necropolítica como estratégia de poder consolidada no senso comum. Trata-se de um esforço de deformação da moralidade para a difusão, naturalização, aperfeiçoamento e perpetuação da necrofilia como pressuposto de um projeto nacional.

    No escopo deste projeto, o Estado não monopoliza a soberania, mas disputa o poder com entidades privadas necroempoderadas, como as milícias e as facções que funcionam como um estado paralelo, controlando a população, o território, a segurança e a política; se apropriando criminalmente dos elementos fundamentais da governamentalidade, administrando a vida e a morte para exploração de recursos e obtenção de lucro nas lacunas e nos limites do poder Estatal (VALENCIA, 2010; ESTÉVEZ, 2018).

    A Necropolítica e a COVID-19: algumas considerações

    Embora os aspectos sanitários e econômicos tenham tomado a centralidade na pauta da pandemia, outras questões de cunho político, social e cultural estão imbricadas nesta crise sem precedentes. Certamente sequelas e traumas próprios da nossa realidade nacional irão impor singularidades sobre a manifestação da Covid-19. Considerando a capacidade de atendimento hospitalar do país, o pico agudo de infectados e o colapso dos sistemas de saúde, questionamos: quem morrerá com falta de ar e quem continuará respirando? Quantos milhares de pessoas irão morrer? Quem serão estes mortos, suas classes, cores, idades e identidades? Como estes corpos adoecidos estão sendo inscritos na ordem do poder?

    Quando governantes explicitam que não é preocupação política central garantir que cada cidadão tenha condições de continuar respirando, estão assumindo a responsabilidade de escolher quem vai ter a chance de lutar pela vida entubado num leito de UTI e quem vai ser lançado à própria sorte até o último suspiro. Esta gestão da morte deixa cristalino o funcionamento da necropolítica, pois nem todos são afetados da mesma forma.

    Se o último grau de expressão do poder político soberano consiste em determinar quem pode viver e quem deve morrer, porquê e como, no Brasil desde sua fundação, à luz de sua história, fica nítido quem são os corpos selecionados para viver e quem são os corpos selecionados para sobreviver antes de morrer. Esta noção continua válida e certamente será acentuada nesta situação de crise, convertendo o que seria tão somente uma fatalidade epidemiológica em uma ferramenta de extermínio. 

    Se até então a escolha sobre quem vive ou quem morre era exclusividade do poder soberano, a pandemia transformou este cenário. Segundo Mbembe, a Covid-19 democratizou o poder de matar (BERCITO, 2020). Qualquer pessoa que tenha contraído o vírus, potencialmente mortal, tem condições de transmiti-lo inconsciente ou deliberadamente. Todos temos, neste contexto, o poder de matar. O isolamento e distanciamento social seriam, portanto, uma forma de regular este poder. Analisando através deste prisma, as manifestações Brasil afora que reivindicam o fim do isolamento pretendem justamente a revogação da regulação deste poder de matar.

    Enquanto é amplamente reconhecia a possibilidade de diminuição da letalidade da doença através do isolamento e do distanciamento, estes grupos reacionários querem justamente o oposto: usufruir do direito de usar o próprio corpo como arma biológica, fazem questão de assumir o papel de vetores genocidas. Agentes voluntários da perversa administração necropolítica da pandemia.

    Ainda não é possível estimar a dimensão dos impactos que esta pandemia irá causar no mundo moderno capitalista globalizado e financeirizado. Mas é certo que este lúgubre evento abre uma janela de possibilidades para a introdução de pautas que contribuam para a redução da desigualdade, proteção e seguridade social. A emergência de uma doença que afeta mais severamente os pobres e os idosos evidencia que o envelhecimento e a pauperização da população não se resolvem com reforma da previdência, mas com fortalecimento dos sistemas públicos de saúde, assistência e seguridade.

    Mais do que nunca o SUS demonstra sua importância e reivindica a urgência de financiamento massivo. O subfinanciamento e sucateamento para o desmonte da saúde pública que estava a todo vapor encontra um enorme obstáculo e o fortalecimento do SUS deve assumir a centralidade na pauta progressista e no senso comum.

    Além disso, ideias como a renda básica universal, a taxação de grandes fortunas, auditoria cidadã ou moratória da dívida pública, reforma tributária progressiva, que anteriormente eram tidas como pautas da esquerda, passam a ser consideradas medidas necessárias até por setores liberais. Dinheiro não é problema para a oitava economia mundial, mas as prioridades precisam ser revistas. Nunca foi razoável e agora é ainda mais absurdo escoar uma fatia gigantesca do orçamento da união na amortização de uma dívida nada transparente enquanto o povo perece.

    Certamente iremos resistir e superar este doloroso teste de resiliência. Até lá nos resta cultivar a biofilia (FROMM, 1996): nos cuidar, cuidar de quem a gente ama e nos fortalecermos enquanto sociedade, para que a normalidade inaugurada pós pandemia seja melhor que normalidade por ela encerrada.

    Para saber mais

    BRASIL. Governo do. Dados sobre população carcerária do Brasil são atualizados. Segurança, 2020. Disponível em: <https://www.gov.br/pt-br/noticias/justica-e-seguranca/2020/02/dados-sobre-populacao-carceraria-do-brasil-sao-atualizados>

    BERCITO, Diogo. Pandemia democratizou o poder de matar, diz autor da teoria da ‘necropolítica’. Folha de São Paulo, 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica.shtml>

    CÂMARA, Olga. Polícia brasileira: a que mais mata e a que mais morre. Jus, 2019.

    EBC, Agência Brasil. IBGE divulga Grade Estatística e Atlas Digital do Brasil. Economia, 2016. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2016-03/ibge-divulga-grade-estatistica-e-atlas-digital-do-brasil>

    ESTÉVEZ, Ariadna. Biopolítica y necropolítica:¿ constitutivos u opuestos?. Espiral (Guadalajara), v. 25, n. 73, p. 9-43, 2018.

    FROMM, Erich. Ética e psicanálise. Minotauro, 1996.

    GGB. Grupo Gay da Bahia. Mortes violentas de LGBT+ no Brasil: Relatório 2018. Bahia, 2018. Disponível em: <https://grupogaydabahia.files.wordpress.com/2019/01/relatório-de-crimes-contra-lgbt-brasil-2018-grupo-gay-da-bahia.pdf>

    IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da Violência 2018. Disponível em: <www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf>

    MARTINS, José de Souza. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. Editora Contexto, 2015.

    MBEMBE, Achille. Necropolítica.. 3. ed., São Paulo, 2018.

    MBEMBE, Achille; MEINTJES, Libby. Necropolitics. Public culture, v. 15, n. 1, p. 11-40, 2003.

    MENDONÇA, Thaiane. Política de segurança nacional e a construção do conceito de “inimigo interno” no Brasil. UFRGS, Porto Alegre, 2015. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/sicp/wp-content/uploads/2015/09/Thailane-Mendonça_Política-de-segurança-e-a-construção-do-conceito-de-inimigo-interno-no-Brasil-Thaiane-Mendonça.pdf>

    MOREIRA, Rômulo Andrade. A Necropolítica e o Brasil de ontem e de hoje. Justificando, 2019. Disponível em: <https://www.justificando.com/2019/01/08/a-necropolitica-e-o-brasil-de-ontem-e-de-hoje/>

    PRADO, Monique Rodrigues do. O fetiche punitivista: bandido bom é bandido morto? Âmbito Jurídico, 2020. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/noticias/o-fetiche-punitivista-bandido-bom-e-bandido-morto/>

    SADER, Emir. O Maior massacre da história da humanidade. Disponível em: <https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/emir-sader-o-maior-massacre-da-historia-da-humanidade.html>

    SÃO PAULO, Governo do Estado de. Isolamento social em SP é de 49%, aponta Sistema de Monitoramento Inteligente. Portal do Governo, 2020. Disponível em <https://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/isolamento-social-em-sp-e-de-49-aponta-sistema-de-monitoramento-inteligente/>

    SÃO PAULO, Prefeitura de. Prefeitura de São Paulo divulga Censo da População em Situação de Rua 2019. Secretaria Especial de Comunicação, 2020. Disponível em: <http://www.capital.sp.gov.br/noticia/prefeitura-de-sao-paulo-divulga-censo-da-populacao-em-situacao-de-rua-2019>

    TORMENTE, Fabiana Vieira. O vírus da Covid-19 pode ser transmitido através das fezes? Microbiologando. UFRGS, 2020. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/microbiologando/o-virus-da-covid-19-pode-ser-transmitido-atraves-das-fezes/>

    UNODC. Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Estudo Global sobre Homicídios, 2019. disponível em: <https://dataunodc.un.org/GSH_app>VALENCIA, Sayak. Capitalismo Gore. 2010.

    Sobre o autor

    Leonardo Oliveira é Biólogo, professor de Biologia e mestrando em Ensino de Ciências e Matemática (UNICAMP).


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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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