Tag: Negacionismo

  • QUANDO O MÉDICO DESINFORMA: o caso das vacinas

    Existem médicos contra as vacinas desde o século XVIII

    Figura 1: Edward Jenner e dois colegas eliminando três oponentes antivacinação, as vítimas mortas da varíola estão espalhadas a seus pés. FONTE: Isaac Cruikshank, 1808 (Wellcome Collection). Creative Commons

    Há quem estranhe o silêncio dos conselhos de medicina ante a posicionamentos de alguns de seus membros contrários à imunização por vacinas contra a Covid-19 e favoráveis à utilização de medicamentos sem eficácia comprovada (até o momento). Embora hoje não haja dúvidas sobre a eficácia e segurança das vacinas, dados históricos mostram que, desde o século XVIII, sua utilização como tratamento profilático é combatida por alguns médicos.

    Século XVIII

    Nos Estados Unidos (EUA), entre 1721 e 1722, uma grande epidemia de Varíola atingiu a cidade de Boston, à época com 11 mil habitantes, registrando mais de 6 mil casos, levando 850 deles a óbito. O pesquisador Matthew Niederhuber, da Harvard Medical School, escreve que “o uso da inoculação durante essa epidemia e o acalorado debate que surgiu em torno da prática foi uma das primeiras aplicações importantes da inoculação na sociedade ocidental, abrindo caminho para que Edward Jenner (o descobridor da vacina contra a varíola em 1796) desenvolvesse a vacinação contra a varíola até o final do século” (1).

    INOCULAÇÃO
    É a exposição deliberada ao vírus da varíola usando material de uma crosta de varíola – por exemplo, esfregado em um pequeno corte na pele. Geralmente resulta em uma forma mais branda de doença, mas ainda apresenta risco de morte.

    No entanto, conseguir sua aprovação não foi uma tarefa simples, uma vez que a comunidade médica de Boston se posicionou contra essa autorização, tendo o Dr. William Douglass (1691-1752), um dos únicos médicos da cidade que realmente possuía um diploma de medicina, como liderança do movimento anti-inoculação. Seu principal argumento era o de que a inoculação não fora suficientemente testada e seria baseada em folclore.

    Contudo, no início de 1722, os líderes da campanha de inoculação, o médico Zabdiel Boylston e o reverendo Cotton Mather, apresentaram dados que atestaram a eficácia da inoculação: enquanto a taxa de mortalidade entre os não inoculados foi de 14,8%, entre os inoculados, foi de apenas 2%. (1)

    Século XIX

    Na Inglaterra, em meados do século XIX, os historiadores Dorothy Porter e Roy Porter (1988), escrevem que surgiu uma fonte de oposição científica à vacinação liderada por um grupo anticontagionista que defendia ser a remoção da “sujeira” o caminho para a prevenção de doenças e que negava teorias sobre a especificidade de doenças.

    O médico britânico Charles Creighton (1847-1927) expoente do grupo foi um exemplo de antivacinacionista que fundamentou sua rejeição ao método profilático em uma teoria anticontagionista de propagação de doenças. 

    • O médico afirmava que a vacina em si era uma causa de sífilis e dedicou um livro ao assunto, A História Natural da Varíola Bovina e da Sífilis Vacinal (2), no qual argumenta que a vacinação era um envenenamento do sangue com material contaminado, que não poderia fornecer proteção contra uma doença causada por eflúvios decorrentes de matéria orgânica em decomposição. 
    • No livro Jenner e Vacinação: um capítulo estranho da história médica (3) Creighton descreve Edward Jenner como pouco melhor do que um criminoso e ganancioso que enganou o Parlamento e os mundos científico e médico para que acreditassem em seu método mítico (4).

    Século XX

    Em 1998, o então médico britânico Andrew Wakefield, consultor honorário em gastroenterologia experimental no London’s Royal Free Hospital, publicou um artigo na conceituada revista The Lancet em que ilustrou um estudo de vinte pacientes e concluiu que a administração da vacina MMR causava autismo e algumas formas de colite (inflamação do intestino grosso). Segundo Tafuri (2011), quando o artigo foi revisado pelos pares, a conexão entre vacina e autismo não foi comprovada e a publicação foi desacreditada. No entanto, o estudo do britânico passou a ser utilizado por grupos antivacina como argumento para não vacinar os filhos. Em 2004, a revista reconheceu que não devia ter publicado o estudo de Wakefield e, em 2010, retirou-o de seus arquivos, sendo que, no mesmo ano, ele teve seu registro cassado pelo Conselho Geral de Medicina (GMC) do Reino Unido, acusado de agir de forma “desonesta”, “enganosa” e “irresponsável”.

    Século XXI

    Mais recentemente, em 2003, o artigo “Timerosal em vacinas infantis, distúrbios do neurodesenvolvimento e doenças cardíacas nos Estados Unidos” (GEIER e GEIER, 2003) publicado por Mark Geier, doutor em genética, e David Geier, bacharel em biologia, alegam que o conservante timerosal, usado em certas vacinas, causa autismo. Segundo a premiada jornalista científica, Megan Scudellari (2010), Mark Geier testemunhou em apoio ao vínculo timerosal-autismo como testemunha especialista em testes de vacinas nos EUA, porém, numerosos estudos rigorosos descartaram esse vínculo. 

    Atualidade

    Como se percebe, não é de hoje que esse lugar de fala vem sendo disputado por atores que, em teoria, têm notório saber específico ou são detentores de conhecimento reconhecido e que usavam, cada um a seu modo, a mídia disponível em seu contexto para divulgar suas ideias, nem sempre apoiados no devido rigor científico. Por isso, não chega a ser surpresa o atual silêncio dos conselhos de medicina, visto que, em sua maioria, são compostos por profissionais que têm interesses políticos, conforme mostra recente reportagem do site The Intercept Brasil.

    Em outro aspecto, o jornalismo profissional – em nome da imparcialidade, da necessidade de ouvir “o outro lado” e, evidentemente, em busca de mais audiência (isto é, retorno financeiro) – tem dado destaque a vozes dissonantes que, muitas vezes, contradizem as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), da ciência e/ou da própria medicina. o que tem causado na sociedade uma sensação de que a eficácia e a segurança das vacinas ainda é um debate aberto, quando na verdade não é. O quadro se agrava num contexto em que as mídias sociais replicam essas vozes, elevando exponencialmente o seu alcance.

    Nesse sentido, vale atentar para a ponderação do biólogo Atila Iamarino, para quem “numa questão científica onde centenas de especialistas chegaram num consenso, dar o mesmo peso para o questionamento, não faz sentido” (5). Agora, mais do que nunca, o papel da Divulgação Científica se faz necessário para que se possa mitigar a maré de desinformação que contribuiu para que o Brasil atingisse a lamentável marca de mais de 200 mil mortes. 

    Referências

    (1) NIEDERHUBER, Matthew. The fight over inoculation during the 1721 Boston smallpox epidemic. Science in the News, 2014. Disponível em: http://sitn.hms.harvard.edu/flash/special-edition-on-infectious-disease/2014/the-fight-over-inoculation-during-the-1721-boston-smallpox-epidemic/ Acesso em 31 jan. 2021

    (2) CREIGHTON, Charles. The Natural History of Cowpox and Vaccinal Syphilis. London: Cassell, 1887.

    (3) CREIGHTON, Charles. Jenner and Vaccination: A strange chapter of medical history. London, 1889.

    (4) PORTER, Dorothy; PORTER, Roy. The politics of prevention: anti-vaccinationism and public health in nineteenth-century England. Medical history, v. 32, n. 3, p. 231-252, 1988. (p. 237) Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/medical-history/article/politics-of-prevention-antivaccinationism-and-public-health-in-nineteenthcentury-england/160A0FE00C0D60AC0AF87DCC3D444523 Acesso em 31 jan. 2021.

    (5) IAMARINO, Atila, Aquecimento Global. Canal Nerdologia. (05m 35s a 05m 46s) 01 jun. 2017. Disponível em: https://youtu.be/8sovsUzYZFM. Acesso em 31 jan. 2021.

    Para Saber Mais:

    CRUIKSHANK, Isaac. Edward Jenner e dois colegas eliminando três oponentes antivacinação, as vítimas mortas da varíola estão espalhadas a seus pés. British Museum, Catalogue of political and personal satires, vol. VIII, London, 1947, n°. 11093. Wellcome Collection. 20 Jun. 1808. Disponível em: https://wellcomecollection.org/works/x7kbxaef Acesso em 01 fev. 2021.

    GEIER, Mark R.; GEIER, David A. Thimerosal in childhood vaccines, neurodevelopment disorders, and heart disease in the United States. J Am Phys Surg, v. 8, n. 1, p. 6-11, 2003.

    SCUDELLARI, Megan. State of denial. Nature Medicine 16, 248. 2010. Disponível em https://doi.org/10.1038/nm0310-248a. Acesso em 31 jan. 2021.

    TAFURI, Silvio. et al. From the struggle for freedom to the denial of evidence: history of the anti-vaccination movements in Europe. Annali di igiene: medicina preventiva e di comunita, v. 23, n. 2, p. 93-99, 2011. Disponível em https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21770225/ Acesso em 31 jan. 2021.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Por que você não deveria argumentar com radicais – o efeito “Backfire”

    Sabe aquela vez que você topou, nas redes sociais ou fora delas, com uma pessoa muito convicta defendendo algo que você tinha certeza de que estava errado?

    Pode ter sido um antivacina, um terraplanista, um negacionista da pandemia ou um apoiador ferrenho de algum político, daqueles dispostos a defender qualquer bobagem ou mentira que seu ídolo tenha dito.

    Identificou o diálogo aí nas lembranças, né?

    Então, você têm os fatos e a ciência a seu favor. Você argumentou contra o que essa pessoa convictamente defendia e ela obviamente mudou de opinião diante das evidências que você apontou, não foi? Pois é, comigo também nunca aconteceu. A verdade é que, diante de pessoas inflexíveis sobre algo, muitas vezes não as convencemos nem mesmo de fatos elementares.

    Efeito backfire: quando a tentativa de argumentar sai pela culatra.
    (fonte: https://web.northeastern.edu/nulab/backfire-effects-misinformation)

    Seria essa tentativa de argumentar com os muito convictos, então, puro desperdício de tempo e energia? A realidade dura nos mostra que pode ser ainda pior do que isso. Sua tentativa de convencer o fanático pode ter um efeito totalmente negativo e torná-lo ainda mais convicto de sua crença. Esse é o chamado “efeito backfire” e é bem provável que você já o tenha produzido em alguém ou nele incorrido em discussões por aí.

    Entendendo o conceito

    “Nenhuma opinião deve ser defendida com fervor (…) O fervor apenas se faz necessário quando se trata de manter uma opinião que é duvidosa ou demonstravelmente falsa.” — Bertrand Russell

    O efeito backfire foi verificado pela primeira vez em um estudo publicado em 2010 [1], conduzido pelos cientistas políticos Brendan Nyhan e Jason Reifler das universidades de Michigan e da Georgia, EUA. Nesse estudo, eles criaram artigos fictícios de jornal que reproduziam informações falsas amplamente difundidas nos EUA à época. Por exemplo, como a ideia de que as forças armadas estadunidenses teriam encontrado armas de destruição em massa no Iraque do ditador Sadam Husseim. Os voluntários da pesquisa liam esses artigos e, na sequência, recebiam outro texto com a informação correta. Isto é as supostas armas de destruição em massa jamais foram encontradas.

    Um curioso resultado encontrado pela pesquisa foi o de que os voluntários mais conservadores e favoráveis à guerra contra o Iraque relataram, após a leitura do artigo com a informação verdadeira, que tinham ainda mais certeza de que as tais armas de destruição em massa realmente existiam. Em outras palavras, a tentativa de correção da crença incorreta desses voluntários “saiu pela culatra” (o efeito backfire) e eles ficaram ainda mais convictos sobre algo que nunca aconteceu de fato. Por acaso isso te soa familiar e te faz lembrar de alguma discussão que já teve com alguém?

    Mas, podemos chamar de ignorância?

    Não! Esse efeito não é fruto de ignorância ou burrice, como se poderia imaginar a princípio. Ele ocorre, na verdade, como um desdobramento do raciocínio motivado. Ou seja, é uma forma de pensar na qual selecionamos somente as evidências que nos agradam para embasar uma conclusão à qual já tínhamos chegado de antemão. Assim, ao receber uma informação que se choca com sua crença, a pessoa tende a revisar mentalmente as “evidências” (não importa muito que possam ser falsas) que a induziram a ter essa concepção equivocada e, nesse processo de revisão de suas memórias, pode acabar reforçando sua crença inicial.

    Efeito backfire e política em contexto de pandemia

    Até o uso das máscaras tem sido objeto de disputa na polarização política (fonte: Pixabay)

    No âmbito da política, que tem como motor as ideologias e paixões humanas, não faltam exemplos de racionalização de “evidências” que levam ao efeito backfire de forma coletiva. Em um cenário de intensa polarização política, quase tudo é politizado e não seria diferente com os aspectos que envolvem a pandemia de coronavírus. Nesse contexto, um exemplo do efeito backfire coletivo pôde ser observado nos que passaram a minimizar a pandemia, buscando equivaler a Covid-19 a uma gripe comum.

    As políticas negacionistas

    Nos EUA e no Brasil, foram os presidentes os principais líderes políticos a sistematicamente minimizar a gravidade do coronavírus [2, 3]. Tanto lá como cá, os seguidores de ambos, ao receberem o sinal de seus ídolos, passaram a reproduzir sua concepção. Diante do crescente número de casos comprovados e das complicações, sequelas e mortes causadas pelo vírus, parte expressiva dos defensores da ideia de que se tratava de uma “gripezinha”, ao invés de mudarem de posição perante evidências contrárias, passaram a intensificar seu negacionismo por meio de teorias conspiratórias, ou seja, acionaram o raciocínio motivado resultando no efeito backfire.

    Da afirmação — jamais comprovada — de que governadores estariam inflando os números de óbitos [4], passando pelo questionamento sobre a lotação de hospitais (com sugestão do presidente para que populares os invadissem e filmassem os leitos) [5], até o enfoque no número de casos recuperados [6], foram muitos os esforços dos negacionistas convictos para minimizar o terrível impacto da pandemia no segundo país em número de óbitos causados pela Covid-19 no mundo.

    Minimizando a pandemia

    Quanto àquele esforço de se minimizar a pandemia por meio do enfoque nos milhões de recuperados, é quase cômico observar que, na verdade, isso pesa contra o negacionismo dos fanáticos: a constatação de que há milhões de recuperados pressupõe a existência de um número ainda maior de infectados, o que por si só já expõe a extensão e a gravidade da pandemia.

    Animados pelo mesmo impulso negacionista, surgiram também inúmeros apoiadores do presidente cujos parentes ou conhecidos supostamente tiveram diagnóstico positivo para Covid-19, mas que morreram, juram eles, de câncer ou outra doença grave. Por suposto, trata-se aqui do que chamamos, em ciência, de evidência anedótica; é razoável a probabilidade, porém, de que a leitora tenha visto alguma história do tipo em suas redes sociais durante a pandemia.

    A “vacina chinesa” e o efeito backfire

    Nem mesmo a vacina contra o coronavírus escapou à lógica da polarização política. Bastou o Ministério da Saúde anunciar a intenção de adquirir a CoronaVac [7]– vacina que está sendo produzida em associação entre o Butantã e a Sinovac, uma empresa chinesa — que o presidente, pressionado por apoiadores contrários à vacina [8], cancelou o acordo de compra [9]. Após esse imbróglio, várias fake news sobre a CoronaVac inundaram as redes sociais [10], como a de que a vacina usaria células de bebês abortados [11]. Isso tudo nos faz levantar a questão: existe a possibilidade de ocorrer o efeito backfire ao argumentarmos com um antivacina? Considerando-se a ciência sobre o tema, a resposta infelizmente é “sim”.

    [Fonte: Renato Machado — cartunista]

    Os mesmos pesquisadores citados, Reifler e Nyhan, conduziram, em 2015, um estudo sobre mitos relativos a vacinas [12]. À época, 43% dos estadunidenses acreditavam que a vacina da gripe poderia fazê-los ter gripe. Assim, nesse estudo, eles buscaram verificar a eficácia de se oferecer as informações corretivas dessa crença infundada. Como resultado, o estudo apontou que informações corretas — que a vacina não causava a gripe — foram suficientes para reduzir bastante essa crença específica.

    Efeito colateral

    No entanto, os voluntários da pesquisa que demonstraram níveis mais altos de preocupação com supostos efeitos colaterais de vacinas (como acreditar que elas causam autismo) passaram a manifestar menor disposição a vacinarem seus filhos. Nesse estudo, o efeito backfire ocorreu não na crença específica, alvo da informação corretiva, mas na postura dos voluntários que já tinham uma perspectiva antivacina, os quais ficaram ainda mais convictos sobre isso.

    A esta altura, a leitora pode estar se perguntando se, por causa da possibilidade do efeito backfire, não devemos jamais argumentar com as pessoas muito convictas que estejam defendendo algum absurdo. Todavia, na realidade, há uma situação bastante frequente na qual convém, sim, debater com dogmáticos.

    Argumentar ou não argumentar, eis a questão

    Não é possível convencer um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em evidências; baseiam-se numa profunda necessidade de acreditar.” — Carl Sagan

    Em uma conversa privada, no tête-à-tête mesmo, com alguém defendendo radicalmente alguma inverdade, talvez seja melhor não insistir. O risco de você contribuir para que a pessoa fique ainda mais convicta é real. Por isso, vale muito mais a pena argumentar com as pessoas que podem ter caído em alguma desinformação, mas que têm maior abertura ao debate. E elas são muitas. Dessa forma, como sustenta o cientista político David Redlawsk, isolam-se os fanáticos de todo tipo, reduzindo sua influência.

    Estudos mais recentes, como o dos cientistas políticos Thomas Wood e Ethan Porter, da George Washington University, não encontraram o efeito backfire em relação a fatos específicos [13]. Os pesquisadores argumentam que é possível, sim, mudar a opinião equivocada das pessoas com a exposição de fatos.

    Mas…

    É preciso lembrar, no entanto, que existe sempre a possibilidade de que elas reforcem sua postura — como ocorreu no estudo mencionado sobre a vacina — apesar de se dobrarem a um fato específico. Como um exemplo, imagine que você vai argumentar com uma pessoa que defende um remédio comprovadamente ineficaz contra a Covid-19 porque o político que ela apoia insiste se tratar de um medicamento salvador. A depender de sua abordagem e do nível de convicção dessa pessoa, talvez até a convença do fato de que o remédio é ineficaz. Não espere, porém, que diminua o apoio dela ao político, pois o mais provável é que o contrário aconteça.

    No entanto, como parte significativa de nossas vidas atualmente acontece em rede, quando o debate for em público, como no Facebook ou em grupos de Whatsapp, convém demonstrar que os radicais estão equivocados. Nas redes, terceiros quase sempre estão observando as conversas alheias. Eis aí a situação na qual vale a pena travar o bom combate contra a desinformação, a mentira e as concepções falsas. Se seu interlocutor direto ficar ainda mais convicto na defesa de alguma desinformação qualquer, paciência. Quase sempre há vários outros que podem se beneficiar do seu esforço de argumentação em prol do restabelecimento da verdade.

    Por fim

    Vivemos em tempos nos quais vicejam posturas anticientíficas e esforços de relativização da verdade, quando não de sua negação completa. Como é bastante conhecido, isso é impulsionado por líderes políticos cujo comportamento é replicado por milhões de seguidores. Por isso, é importante que continuemos disputando, se não os corações, ao menos as mentes das pessoas e ter consciência da possibilidade de que o efeito backfire ocorra é um passo fundamental nessa jornada.

    Referências:

    [1] Nyhan, B, Reifler, J (2010) When Corrections Fail: The Persistence of Political Misperceptions; Political Behavior, Vol 32, No 2, pp 303-330.

    [2] (2020) Timeline: How Trump Has Downplayed The Coronavirus Pandemic. National Public Radio (NPR), 02 de outubro de 2020.

    [3] “Gripezinha” e “histeria”: cinco vezes em que Bolsonaro minimizou o coronavírus (2020)

    [4] Bolsonaro endossa notícia falsa para dizer que Estados inflam mortes por coronavírus, Valor Econômico, 31 de outubro de 2020.

    [5] Bolsonaro recomenda invadir hospitais, Correio Braziliense, 11 de junho de 2020.

    [6] Na data em que Brasil ultrapassa 100 mil mortos, Bolsonaro destaca pacientes recuperados, Agência Brasil (EBC), 20 de outubro de 2020.

    [7] Brasil anuncia que vai comprar 46 milhões de doses da CoronaVac, Agência Brasil, 20 de outubro de 2020.

    [8] Bolsonaro sabia da intenção de compra da CoronaVac, mas recuou, Estado de Minas, Edição de 21 de outubro de 2020.

    [9] Bolsonaro diz que Governo Federal não comprará vacina CoronaVac Agência Brasil (EBC), 21 de outubro de 2020.

    [10] Aos Fatos (agência de fact-checking) – resultados de busca do verbete “coronavac”

    [11] (2020) É falso que CoronaVac usa células de bebês abortados, Aos Fatos, 28 de julho de 2020.

    [12] Nyhan, B, Reifler, J (2015) Does correcting myths about the flu vaccine work? An experimental evaluation of the effects of corrective information. Vaccine 33 (3): 459–464.

    [13] Wood, T., Porter, E. (2018). The elusive backfire effect: Mass attitudes’ steadfast factual adherence. Political Behavior, Vol41, pp135-163.

    OBS:

    Esse texto contou com a revisão primorosa de Caroline Frere Martiniuc e Eduardo Jesus Veríssimo, aos quais agradeço enormemente.

    Este texto originalmente foi escrito e postado no blog Política na Cabeça

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Todavia, não necessariamente representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • A Covid-19 e o negacionismo

    Enquanto a Covid-19 faz milhares de vítimas fatais pelo mundo e as autoridades em saúde pública orientam o isolamento social como método mais eficaz de contenção de sua disseminação, parte da sociedade assiste, estarrecida, ao discurso de políticos que seguem negando os fatos com foco na recuperação da economia, mesmo ao custo de “algumas” vidas. Veiculados como gesto em prol do trabalhador, conceitos formulados por Noam Chomsky e Antonio Gramsci mostram que o discurso negacionista tem outros beneficiários.

    O fenômeno do negacionismo não é novo, remonta aos anos 1940, em que se tentou provar a ausência de culpa da Alemanha pela Segunda Guerra Mundial. Isso se fez a partir da  banalização, justificativa ou mesmo negação da existência dos campos de extermínio e do holocausto. Em síntese, da defesa e da reabilitação de Adolf Hitler (MORAES, 2004:757). Apesar de se autodenominarem “revisionistas históricos”, os negacionistas nada têm de revisores, uma vez que a revisão histórica se dá diante de novas evidências ou de novas questões que se colocam. Já os negacionistas estão preocupados em negar as evidências, sem apresentar algum fato que o permita fazê-lo.

    Sob uma perspectiva psicológica, o jornalista Michael Specter, explica que, para todos nós que já estivemos diante de verdades dolorosas, a negação parece ser a única forma de lidar com elas. Specter afirma também que nessas circunstâncias os fatos, por mais detalhados ou irrefutáveis, raramente fazem diferença. Assim, para o escritor americano, o Negacionismo “é negação em larga escala – quando um segmento inteiro da sociedade, muitas vezes lutando com o trauma da mudança, se afasta da realidade em favor de uma mentira mais confortável” (SPECTER, 2009).

    Dessa forma, temos duas vertentes de negacionistas: os históricos, que negam o Holocausto, e os científicos, dentre os quais estão os climáticos (que negam o Aquecimento Global), os terraplanistas (que negam as evidências de um planeta aproximadamente esférico) e até os da AIDS (que negam, acreditem, o vírus HIV ser o causador da síndrome). Sem falar nos movimentos de design inteligente, antivacinas, e outros tantos que ganharam força com o advento da internet e das redes sociais. 

    Para estabelecer a relação deles com a Economia vamos relembrar um filósofo (por coincidência) italiano chamado Antonio Gramsci (1891-1937) que elaborou os conceitos de Bloco Histórico, Hegemonia, e Bloco Ideológico. Para ele, o Bloco Histórico de um sistema é composto por uma Estrutura socioeconômica, relacionada às forças produtivas, e por uma Superestrutura de natureza político-ideológica. Deduz-se que as grandes corporações do setor privado atuam na estrutura do bloco, formando a classe dirigente fundamental e os políticos e os intelectuais atuam na superestrutura. Para que uma classe dirigente em minoria consiga subordinar uma maioria é necessário que estes tenham um comportamento social adequado à necessidade produtiva daqueles. 

    Esse comportamento pode ser conseguido por meio da força (a coerção é sempre latente, mas não desejável) e do consentimento. Na maioria das vezes, a hegemonia é suficiente para assegurar o comportamento social esperado (Cox, 1993:52). Por isso, a atuação do o Bloco Ideológico é tão importante, pois, formado pelos intelectuais orgânicos e atuando na superestrutura, ele vai impregnar na sociedade os valores culturais necessários para que os dominados sigam consentindo essa dominação. Ou como explicou o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) no texto Se Os Tubarões Fossem Homens: “Se os tubarões fossem homens (…) Se cismaria nos peixes pequenos que esse futuro / Só estaria garantido se aprendessem a obediência”. (BRECHT, 2018)

    E qual a relação disso com a atual negação da letalidade da Covid-19 por políticos?

    O Bloco Histórico vigente é o sistema capitalista neoliberal. Segundo Noam Chomsky (2017), o triunfo ideológico das “doutrinas de livre mercado” possibilita que decisões políticas se traduzam em polpudos lucros pagos a altos executivos e suas empresas. Na prática, as grandes empresas que têm grande poderio econômico, financiam campanhas eleitorais de atores políticos, de diferentes espectros ideológicos (diga-se). Isso, para que eles, uma vez eleitos e legitimados pelo voto popular (embora tenham prometido trabalhar em favor deste), possam ser representantes dos interesses dessas empresas, passando a legislar a seu favor, aqueles a que Chomsky vai chamar de “servos do capital privado”. Dessa forma, elas vão acumular ainda mais lucros e concentrar ainda mais renda, fechando o círculo.

    Assim, à medida em que a Covid-19 afeta a Economia, informações para minimizar esse impacto passam a ser produzidas e disseminadas pelo Bloco Ideológico (Blogs, sites, perfis de redes sociais, influenciadores) e pelos simpatizantes do sistema vigente. Então, não é difícil encontrar nos meios de comunicação dos apoiadores do atual governo mais e mais teorias da conspiração negando a letalidade do vírus e, mais recentemente, ao se depararem com a realidade das mortes, passaram a negar sua causa

    Entendidos esses aspectos, a frase do atual Presidente da República do Brasil “Vão morrer alguns, do vírus? Sim, vão morrer (…) Lamento. Tá? Agora não podemos criar esse clima todo que está aí. Prejudica a economia!” suscita uma interpretação diversa daquela que inicialmente seu emissor pretendeu transmitir.

    O Brasil não pode parar, sobretudo quando o interesse do grande capital está em jogo. Se todos vão morrer um dia, que seja indo alegres “para as goelas dos tubarões”.

    Bibliografia

    • BRECHT, Bertolt. Se os tubarões fossem homens. Olho de Vidro, 2018.
    • CHOMSKY, Noam. Quem manda no mundo?, São Paulo, Planeta. 2017.
    • COX, Robert W. Gramsci, hegemony and international relations: an essay in method. Cambridge Studies in International Relations, Cambridge, Cambridge University Press, v. 26, p. 49-66, 1993. Disponívelç em <encurtador.com.br/lFX78> Acesso em 28 mar. 2020 
    • GASTALDI, Fernanda C. Gramsci e o negacionismo climático estadunidense: a construção do discurso hegemônico no Antropoceno. Revista Neiba, Cadernos Argentina Brasil, v. 7, n. 1, 2018. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/neiba/article/view/39247 Acesso em 28 mar. 202
    • GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, v. 2 — Antonio Gramsci: os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Ed. e trad. de Carlos N, Coutinho. Coed. de Luiz S. Henriques e Marco A. Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000
    • MORAES, Luís E. S. “O Revisionismo Negacionista” In: SANTOS, Ricardo Pinto dos (org.) Enciclopédias de Guerras e Revoluções do século XX. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
    • SPECTER, Michael. Denialism: How irrational thinking harms the Planet and threatens our lives. Penguin, 2009. 

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

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