Tag: pandemia

  • Lições da pandemia para a gestão pública: política local e governança do clima

    “Em um período preocupante também em relação às mudanças ambientais, a COVID-19 traz lições importantes para os governantes em nível local”

    O Brasil comprovou a força dos governos locais no combate à pandemia. É em nível local que os investimentos em projetos e programas estão sendo executados para recuperar a saúde e a economia das cidades. Isso traz indícios de soluções para uma outra crise, também de nível global, e que requer um esforço de igual amplitude: as mudanças climáticas.

    Em 2021 teremos a Cúpula do Clima da ONU (COP-26) em Glasgow, na Escócia, a COP da Biodiversidade na China (COP-15) e o Fórum Mundial da Bioeconomia, no Brasil. Todos esses eventos reforçam a emergência do envolvimento do poder local na tomada de decisão em medidas de adaptação e mitigação de impactos climáticos.

    Mas o que é possível adotar para garantir uma recuperação verde pós-COVID-19 agora mesmo,  pelo menos em nível local? O World Resources Institute (WRI) lançou no mês passado o relatório “Seizing the Urban Opportunity” sobre oportunidades que as cidades concentram, especialmente nas economias emergentes, já que são as que enfrentam desafios particularmente complexos agravados pela pandemia. Os seis países estudados – Brasil, México, Índia, China, Indonésia e África do Sul – representam 42% da população urbana mundial, produzem quase um terço do PIB global e 41% das emissões de CO²; a maior parte pelo uso de combustíveis fósseis.

    As seis cidades pesquisadas no relatório Seizing the Urban Opportunity e seus principais desafios urbanos. Fonte: WRI – World Resources Institute

    O coronavírus expôs nossas economias e comunidades a uma ampla gama de desafios, com particular impacto nas cidades e nas populações mais pobres. O desemprego disparou e a expectativa é de que até 150 milhões de pessoas caiam na pobreza extrema devido à pandemia. Os pobres urbanos vivem em condições de superlotação, sem acesso a serviços públicos de qualidade, segurança social ou transporte. Ao mesmo tempo, as cidades continuam sofrendo com ondas de calor, inundações e deslizamentos de terra à medida que os riscos climáticos aumentam de forma exponencial.

    A partir desse cenário, o estudo centrou-se em três desafios para os governos locais: recuperação pós-pandemia, desenvolvimento de longo prazo e mudanças climáticas. 

    O triplo desafio das cidades no pós-COVID-19. Fonte: WRI – World Resources Institute

    As cidades são espaços vitais para resolver esse triplo desafio, mas precisam de liderança nacional e apoio para colocar em prática seu potencial de ação local. Mais da metade da população global (56%) vive em cidades, o que corresponde a 70% das emissões globais de gases de efeito estufa. Ao mesmo tempo, a urbe é o motor econômico dos países, produzindo 80% do PIB global, gerando oportunidades de emprego, além de serem catalizadoras de cultura e inovação.

    Até 2030, trilhões de dólares serão investidos em infraestrutura urbana, em particular, nos setores de energia, transporte, construção civil, resíduos e materiais, que precisam ser direcionados a soluções carbono zero e socialmente inclusivas – o que é tecnicamente viável – para alcançarmos as NDCs do Acordo de Paris e manter o aumento da temperatura global abaixo dos 1,5°C.

    Metade da possível redução de emissões urbanas encontra-se em cidades de pequeno e médio porte, que muitas vezes carecem de recursos financeiros e técnicos das cidades maiores e, portanto, precisam de apoio do governo nacional. No Brasil e na Índia, 42% do potencial cumulativo vêm de cidades com menos de 300 mil habitantes. Além disso, os governos nacionais controlam os domínios políticos que controlam os mecanismos regulatórios e de financiamento, acelerando o processo de descarbonização das cidades.

    Assim, as escolhas dos governos locais durante a pandemia podem colocar seus países no caminho para um futuro mais próspero e resiliente ou acelerar a emergência climática. Investir em cidades compactas, conectadas e verdes podem gerar benefícios econômicos, sociais e ambientais. À medida que os governos nacionais aumentem seus compromissos climáticos rumo à COP-26, as cidades devem estar no foco de seus planos de desenvolvimento socioeconômico.

    Ações de curto prazo no nível municipal

    Há diversos caminhos quando pensamos em nível municipal, no entanto, dado o atual cenário socioeconômico, a solução precisa vir acompanhada de empregos, saúde e bem-estar. Algumas possibilidades viáveis e eficazes e que não necessitam de vultosos investimentos em infraestrutura incluem:

    Mobilidade ativa, como andar de bicicleta e caminhar. A construção de ciclovias e áreas mais amigáveis para os pedestres podem contribuir para gerar fluxo e crescimento econômico local. A redução de congestionamento reduz a poluição do ar e sonora e motiva a retomada das cidades, que as tornam mais atraentes para se viver e trabalhar.

    Eficiência energética, para reduzir o uso de energia fóssil. A formulação de políticas públicas pode contemplar uma matriz de energia limpa para reduzir custos e melhorar a competitividade da indústria, com significativa redução dos índices de poluição. 

    Serviços ecossistêmicos urbanos. Isso inclui os parques e a qualidade ambiental que estimulam o lazer e o convívio social em áreas coletivas verdes. Essa natureza urbana engloba “serviços” como conforto térmico, absorção de dióxido de carbono, arborização para minimizar as ilhas de calor, e proteção de recursos hídricos.

    Referência:

    WRI, 2021. Seizing the Urban Opportunity: How can national governments recover from COVID-19, tackle the climate crisis and secure shared prosperity through cities? Disponível em: https://urbantransitions.global/urban-opportunity/seizing-the-urban-opportunity/

    Jaqueline Nichi é jornalista e cientista social com mestrado em Sustentabilidade pela EACH-USP. Atualmente, é doutoranda no Programa Ambiente e Sociedade do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM-UNICAMP). Sua área de pesquisa é centrada nas dimensões sociais e políticas das mudanças climáticas nas cidades e governança multinível e multiatores.

    Este texto foi escrito originalmente no blog Natureza Crítica


    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • E quando?

    21 de março de 2020

    Lançávamos o Especial COVID-19. Lá estavam alguns textos que buscavam compreender o que era o vírus e defendendo a noção de ficar em casa como grande salvadora de nossas vidas.

    Tínhamos uma nesga de esperança que seriam poucos dias ou meses trancafiados. Um ano depois e seguimos batendo recordes.

    Não sei vocês, mas nós seguidamente pensamos… “e se”. E nossos pensamentos se esvaem novamente, como tentativa de fugir disto.

    “E se” é um tempo da crueldade. Pois nos insere em possibilidades alternativas irreais que entristecem e nos assolam. Todavia, não parece que qualquer realidade alternativa distópica seja plausível de ser inserida em um contexto pior do que o que estamos vivendo neste exato momento.

    Nos últimos dias, buscamos pensar no “e quando?”.

    E quando escutarem a ciência?

    Assim, interrogamos, o que mudará quando dentro das lógicas das políticas públicas, ao invés de buscarem milagres, tivermos análises de dados que apontam para possibilidades? Possibilidades que, sim, têm margem de erro – mas têm acurácia, verificação, revisão para alinhar mais e mais ações que salvam vidas.

    Não o quê. Quando isto ocorrerá? E quantas vidas salvaremos diariamente a partir do momento em que pararmos? Além disso, até quando, na política pública brasileira – em todas as esferas – negaremos assistência imediata a pessoas que precisam? Bem como, quando investiremos em práticas que desde o início desta crise sanitária têm sido funcionais?

    Quais? Isolamento social, uso correto de EPIs, campanhas em massa para atingir a todos e políticas públicas. E quando faremos isso para garantir a efetividade das ações e contenção da doença?

    Quantas vidas, quantas famílias, podem ser salvas com distribuição no Sistema Único de Saúde, de máscaras PFF2? Falo desta máscara pois ela tem como garantir certificação do InMetro. Assim, teríamos efetividade de segurança, ao invés do que ocorre com a distribuição de máscaras de pano, sem qualquer cuidado técnico de produção, para trabalhadores. Quando levaremos a sério e faremos disto lei e política pública?

    E quando a política adotará medidas que garantam a saúde do trabalhador, ao invés de jogá-lo nas ruas “para colocar comida em casa”?

    E quando as políticas públicas olhará dados epidemiológicos de mobilidade urbana, mobilidade de internações, tendências para estipular metas precisas, para além de “pedir” que pessoas fiquem em casa se possível?

    E quando as políticas públicas pararão de culpabilizar variantes pelas mortes, enquanto restringem horários de circulação na madrugada, mas os ônibus e metrôs seguem cheios?

    E quando perceberão que podemos abrir quantas vagas de UTIs quisermos, isso não acontecerá na velocidade em que a COVID-19 se espalha e não teremos leitos suficientes?

    E quando tomarão a decisão de colocar na ponta do lápis, ou na célula da planilha que pacientes em UTIs custam mais caro – e custam vidas – enquanto investir em auxílio emergencial, máscaras, vacinas e isolamento é mais barato e NÃO LEVA PESSOAS À ÓBITO?

    E quando vão parar de culpabilizar cada um de nós por termos que nos expor a um vírus que socialmente está nos esfacelando, enquanto permanecemos sem ministro da saúde?

    Por fim

    Em respeito a todos os que se despediram de nós neste 1 ano, nós gostaríamos de saber não mais “e se tivéssemos feito”, estamos agora lutando e COBRANDO pelo “e quando começarão a fazer?”

    E quando?

    21 de Março de 2021.

    Este texto é original e exclusivo do Especial Covid-19

    A arte de capa é de @clorofreela

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • O ensino remoto durante a pandemia pelos olhos da Profa. Natália De Nadai

    Entre as inúmeras mudanças ocasionadas pela pandemia da COVID-19, a situação do ensino talvez seja um dos assuntos mais urgentes a serem debatidos. O Ciência Pelos Olhos Delas adentrou tal problemática por meio de interessantes conversas com profissionais do ensino fundamental/médio e superior.

    Hoje trazemos mais um diálogo, agora com a educadora Natália De Nadai, que atua na criação de conteúdo de uma ferramenta de aprendizagem remota, a Khan Academy Brasil. A Khan Academy é uma organização estadunidense sem fins lucrativos, mas hoje possui representações em diversos países – dentre eles o Brasil. O objetivo da organização é criar um conjunto de ferramentas online (incluindo exercícios práticos e aulas curtas em vídeo) para ajudar na educação de estudantes de forma gratuita.

    A Natália foi uma das colaboradoras do Ciência pelos Olhos Delas no período de 2019/2020 e é uma honra para nós trazermos suas experiências e visões sobre o ensino remoto e o uso de novas tecnologias nesse momento. A seguir apresentamos o conteúdo na íntegra das respostas fornecidas por ela.

    Conte-nos um pouco sobre a sua formação e sobre a sua experiência com educação/ensino?

    Sou formada em Física, Matemática, Pedagogia e tenho especialização em Design Instrucional. Durante uns 10 anos dei aula de matemática em instituições de ensino privado, na maior parte desse tempo para alunos do Ensino Fundamental II. Atualmente trabalho com produção de conteúdos de matemática para a Khan Academy Brasil.

    Essa faixa etária é muito ativa e muitas vezes perdem o foco com facilidade, ainda mais com 6 aulas de matemática em uma semana, então sempre achei interessante usar diferentes estratégias para trabalhar conteúdos.

    Como você conheceu a Khan Academy?

    Foi nesse período, em que dava aulas, que um colega professor me apresentou a Khan e logo me encantei, pois era possível, na verdade ainda é, criar turmas e fazer recomendações específicas para cada um de seus alunos.

    A Khan me ajudou muito nessa época, pois eu tinha turma de reforço, e normalmente todos os alunos ficavam juntos (de 6º ao 9º anos) e isso impossibilitava que eu fizesse uma aula tradicional na lousa, mas com a Khan cada um dos meus alunos recebia a atividade que eles precisavam e eu podia fazer um acompanhamento mais individual.

    Como a pandemia da COVID-19 afetou as atividades da instituição de ensino em que você trabalha?

    Com a pandemia, o nosso número de usuários aumentou e, além disso, criamos cursos preparatórios de matemática (Prepare-se) para os alunos de 3º ao EM. A ideia desses cursos é trabalhar as habilidades da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que são consideradas habilidades essenciais, permitindo que o aluno estude o conteúdo do ano letivo de 2020 em que ele estava, juntamente com o conteúdo que ele aprenderá em 2021.

    Como a Khan Academy pode ajudar no ensino remoto?

    Atualmente temos conteúdos do Ensino Fundamental I e II alinhados à BNCC de matemática, ciências e português; essas atividades podem ajudar alunos e professores de diversas formas, desde a revisar conteúdos de anos anteriores até o uso completo de lições para o ensino a distância.

    O fato do professor criar suas turmas e poder fazer recomendações individuais ou para a turma e acompanhar os relatórios de progresso dos alunos (por exemplo, ver quais itens de um exercício o aluno errou) é o que faz com que a Khan Academy seja tão completa.

    Um fato super importante é que todo o conteúdo disponível na Khan é gratuito, a única coisa necessária é que o professor e os alunos tenham uma conta de e-mail e criem uma conta na plataforma.

    Como os professores podem utilizar as ferramentas da Khan Academy para avaliar seus alunos?

    Pelo relatório de progresso, o professor tem acesso a todas as tentativas e todos os erros e acertos dos seus alunos para cada exercício que ele recomendou, logo ele pode utilizar isso como forma de avaliação.

    Como você acha que essa experiência coletiva de ensino remoto/híbrido vivida durante a pandemia vai impactar o futuro da educação no pós-pandemia?

    Atualmente minha maior preocupação é que nem todos têm acesso a internet; muitas crianças e adolescentes não estudaram em 2020 e isso é muito complexo, pois gera uma evasão nas escolas, então um exercício que deverá ser feito é o de manter esses alunos nas escolas. Lógico que o modelo de 2020 provavelmente trará outras dificuldades para alunos e professores, e acredito que esse déficit todo será sentido nos próximos anos.

    Agradecemos novamente a Natália por disponibilizar seu tempo para compartilhar um pouco mais sobre seu trabalho na Khan Academy e suas percepções sobre o ensino remoto na atual conjuntura.

    Este foi escrito originalmente no blog Ciência Pelos Olhos Delas

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Conheça a Dra. Katalin Karikó, a cientista que desenvolveu a técnica da vacina de RNAm para a COVID-19

    Katalin Karikó durante o doutorado em 1980 no Laboratório de RNA do Centro de Pesquisa Biológica na Academia de Ciências Húngara. Imagem retirada de https://www.telegraph.co.uk/global-health/science-and-disease/redemption-one-scientists-unwavering-belief-mrna-gave-world/

    Texto escrito em colaboração por Carolina Francelin e Gabriela Mendes, com contribuições de Juliana Lobo.

    No final do ano passado, em meio às notícias de que as primeiras vacinas para a COVID-19 haviam sido aprovadas ao redor do mundo, começamos a pesquisar sobre a Dra. Katalin Karikó, pioneira no uso da tecnologia de RNAm, que prontamente foi escolhida para ser o tema do primeiro texto da categoria “Colírios Científicos” no Ciência Pelos Olhos Delas em 2021.

    Diante da pandemia causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), a ciência provou sua magnitude no século XXI e vários laboratórios pelo planeta lançaram, em tempo recorde, diferentes tipos de vacina com eficácia comprovada. Em meio a uma verdadeira corrida contra o relógio para frear o avanço pandêmico, não há como não destacar o trabalho inovador da Dra. Katalin Karikó na criação da vacina de RNA mensageiro (RNAm), a molécula responsável por produzir as proteínas codificadas pelo DNA dentro das células.

    A tecnologia desenvolvida pela Dra. Karikó está nas vacinas aplicadas pelas empresas de biotecnologia Moderna (EUA) e BioNTech (Alemanha), sendo que essa última atua em acordo de produção e distribuição da vacina com a farmacêutica Pfizer. Por causa da extensa pesquisa feita por Katalin e por seus colegas nas últimas décadas, e também devido à tecnologia disponível atualmente, a produção da vacina de RNAm específica para o novo coronavírus foi feita num curtíssimo espaço de tempo (de dezembro de 2020 a janeiro de 2021) e doses dela já foram distribuídas e aplicadas em vários países, como Estados Unidos e Inglaterra. 

    Com esse texto sobre a Dra. Katalin Karikó, queremos ressaltar o quão importante foram a perseverança e a resiliência dessa cientista que, durante décadas, trabalhou incansavelmente em um tema de pesquisa que ela acreditava ter um grande potencial terapêutico. Além disso, compartilhamos também um pouco da sua vida pessoal e trajetória como imigrante nos Estados Unidos.

    A vida e o início da carreira da Dra. Katalin Karikó

    Katalin Karikó nasceu na Hungria em 1955, logo após a reinstalação do regime comunista no país. Assim que concluiu seu doutorado pela University of Szeged, ela se viu limitada a continuar a pesquisa em seu país por dois motivos: a Hungria passava por uma recessão financeira que restringia o incentivo à pesquisa, e seu tema de estudo, já então sobre o RNA¹, era menosprezado e até mal visto frente às novidades acerca do DNA². Dessa forma, em 1985 ela migrou com seu esposo e sua filha de dois anos para os Estados Unidos para assumir um cargo de pós-doutorado na Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia. 

    Mesmo enquanto cientista nos EUA, a insistência e o interesse de Katalin na pesquisa envolvendo terapias com base no RNAm fizeram com que ela fosse desprezada muitas vezes durante a sua carreira. Na vida científica – e principalmente no meio acadêmico – isso significa ter pedidos de financiamento para desenvolver a pesquisa negados diversas vezes, tanto por agências federais quanto privadas. 

    Essas negativas prejudicaram a produção de artigos da Dra. Karikó, e também resultaram em  descrédito pelos colegas da área. Durante o seu trajeto para alcançar uma posição como professora da Universidade da Pensilvânia, a pilha de pedidos de financiamento negados aumentava e a instituição recusou a promoção de Katalin. Mas ela foi persistente e o sonho de salvar vidas por meio da terapia com RNAm sintético a fez insistir e seguir adiante a cada crítica negativa recebida.

    Katalin trabalhando em um laboratório. Image retirada de https://nypost.com/2020/12/05/this-scientists-decades-of-mrna-research-led-to-covid-vaccines/

    Os 40 anos de pesquisa sobre RNAm 

    Em uma época em que o DNA tinha acabado de ser sequenciado, por volta de 1962, a descoberta do RNAm abriu novas oportunidades para terapias pontuais. Naquele tempo, Katalin já acreditava que para tratar algumas doenças não era necessário mudar os genes, no DNA,  e sim somente produzir, ou deixar de produzir, a proteína de interesse por um determinado momento, durante um tratamento terapêutico, por exemplo. 

    Para isso, ela desenvolveu a terapia de RNAm, que consiste em injetar uma sequência de RNAm no paciente através de uma injeção intramuscular. O RNAm consegue entrar nas células e, uma vez dentro delas, induzirá a produção da proteína de interesse. Contudo, os experimentos de Katalin não traziam resultados satisfatórios, principalmente porque após o RNAm ser injetado, as células do sistema imune do paciente reconheciam a molécula como estranha, e tentavam combatê-la e eliminá-la antes mesmo dela conseguir desempenhar sua função de produzir a proteína específica dentro de uma célula. 

    A mudança de trajetória e o sucesso da vacina de RNAm para a COVID-19

    Durante esses anos difíceis, sem resultados concretos e sem financiamento, a Dra. Karikó foi rebaixada de cargo na Universidade da Pensilvânia e somente ao se encontrar com o Dr. Drew Weissman, em 1997, que ela ganhou novos ânimos. O trabalho de 7 anos da dupla culminou na descoberta do método para prevenir a resposta do sistema imune do organismo ao RNAm sintético. Eles descobriram que ao mudar apenas uma letra do código genético do RNA, as células do sistema imune do paciente não reconheciam mais a molécula como estranha, permitindo sua ação dentro da célula. 

    Essa descoberta ocorreu em 2004 e gerou para a Universidade da Pensilvânia a venda de patentes da metodologia para criar o RNAm modificado e, com isso, a reputação da Dra. Katalin se transformou. Com a venda das patentes, um grupo de cientistas estadunidenses fundou a Moderna, em 2010, e comprou os direitos sobre as patentes de Karikó e Weissman. O rumo da carreira de Katalin mudou de direção e além do cargo de professora e pesquisadora da Universidade da Pensilvânia, em 2013 ela começou a trabalhar na empresa BioNTech, que também adquiriu as patentes da biotecnologia de RNAm sintético, e onde atualmente é vice-presidente

     A inovação da vacina de RNAm é que não há partícula viral ativando o sistema imunológico para produzir anticorpos e células de memória para combater uma possível infecção. Essa partícula de RNAm sintética é o código para a produção de proteína viral, que sozinha não é capaz de causar doença, mas que ativa células do sistema imune a ficarem de prontidão para a eventual contaminação com agente infeccioso. Ou seja, o RNAm induz nosso sistema imune a produzir anticorpos contra o patógeno em questão – nesse caso, o novo coronavírus. 

    O primeiro RNAm sintético foi criado em 1961 e o objetivo dos cientistas era utilizar as células tratadas com ele para produzirem substâncias de interesse terapêutico. Somente em 2020, quase sessenta anos depois, essa tecnologia foi efetivamente aplicada como a vacina para combater a COVID-19.

    Foto recente de Katalin trabalhando em home office durante a atual pandemia. Imagem retirada de https://www.statnews.com/2020/11/10/the-story-of-mrna-how-a-once-dismissed-idea-became-a-leading-technology-in-the-covid-vaccine-race/

    Sem dúvidas, a história da Dra. Karikó é um verdadeiro exemplo de resiliência de uma cientista que, em meio a tantas dificuldades, persistiu com a pesquisa do RNA mensageiro, cuja importância ela sempre acreditou. Em entrevista recente para o The New York Post, ela afirmou que “ninguém deveria ter medo de tomar a vacina”, frase que pode soar simples, mas que é extremamente simbólica ao considerarmos não só o trajeto de Katalin, como também a necessidade de ressaltar o valor da ciência e de combater desinformações a respeito da vacinação. Tanto ela quanto o Dr. Weissman foram as primeiras pessoas a receber a vacina produzida pela BioNTech. 

    Começamos 2021 com mais esperança de que a pandemia chegará ao fim com a imunização das pessoas ao redor do mundo, conquista possibilitada pela pesquisa fundamental da Dra. Katalin Karikó. Depois de uma trajetória com altos e baixos, hoje vários cientistas, incluindo os fundadores da Moderna, opinam que a Katalin deve receber o Prêmio Nobel de Química por sua contribuição à ciência. 

    Notas:

    ¹ RNA: Molécula complementar ao DNA que, ao ser decodificada, produz as proteínas necessárias para o funcionamento do nosso organismo.

    ² DNA: Conhecido também como código genético, a molécula de ácido desoxirribonucléico fica dentro do núcleo da célula e é responsável por codificar todas as informações sobre as células do nosso corpo. 

    Referências:

    https://nypost.com/2020/12/05/this-scientists-decades-of-mrna-research-led-to-covid-vaccines/

    https://www.telegraph.co.uk/global-health/science-and-disease/redemption-one-scientists-unwavering-belief-mrna-gave-world/

    https://edition.cnn.com/2020/12/16/us/katalin-kariko-covid-19-vaccine-scientist-trnd/index.html

    https://www.theguardian.com/science/2020/nov/21/covid-vaccine-technology-pioneer-i-never-doubted-it-would-work

    https://www.timesofisrael.com/the-hungarian-immigrant-behind-messenger-rna-key-to-covid-19-vaccines/

    Este texto foi escrito originalmente no blog Ciência Pelos Olhos Delas

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Fazer Divulgação Científica sobre pandemia em uma sociedade do espetáculo

    Em dias como os que temos vivido temos sempre uma enxurrada de informações, decorrentes da imensa expectativa que temos sobre os números de eficácia, segurança, incidência e vários e outros termos que nos chegam sem que consigamos parar para pensar e elaborar os dados com cautela.

    Claro que vocês todos – nós todos… – temos cobrado publicação de dados. Também é verdade que, diferente de qualquer outro momento experienciado por quem está vivo hoje, nunca tivemos tanto interesse em uma vacina. Simultaneamente a isso, nunca uma pandemia em um mundo em que as informações nos chegam em tamanha velocidade e quantidade.

    Toda essa expectativa, frente a este cenário, é perfeitamente compreensível. Há uma ansiedade imensa em termos os dados em mãos para dizermos:

    – temos a solução!
    – assim vai funcionar!
    – eis aqui a resposta final!

    Todavia, a ciência não funciona com respostas finais. Nem com resultados estanques. Para fazer ciência, para termos respostas, para analisarmos nossos dados: precisamos de tempo.

    Penso no que diria Guy Debord, escritor da obra Sociedade do Espetáculo (1967) e Comentários do Espetáculo (1988) ao ver como não apenas a mídia tradicional torna a realidade imagética – mas a partir das redes e mídias sociais, todos nós participamos disso de diferentes modos. Como assim? Ora, como atualmente vemos o tempo inteiro imagens de nós mesmos, dentro de aplicativos em que “produzimos conteúdos” para sermos consumidos, como produtos.

    Mas o que isto tem a ver com a pandemia e as vacinas?

    O processo de midiatização de nós mesmos já era crescente nas redes sociais. Ao iniciarmos uma vivência de isolamento social, para aqueles que têm acesso a esses recursos digitais, o uso das redes tornou-se muitas vezes não somente um momento de fuga para lazer, compartilhamento de memes e notícias, mas trabalho cotidiano e, também, único meio de comunicação constante.

    Neste cenário, temos um aumento de divulgadores científicos e jornalistas cada vez mais aparecendo em todas as mídias e redes, buscando produzir conteúdos diversificados para públicos diferentes. Estas ações em tempos de pandemia funcionam como uma forma de se comunicar com um público cada vez maior, numa tentativa de “furar bolhas” como costumamos falar.

    Em alguns momentos desta pandemia, a ideia dos excessos de informação se fez mais presente. A OMS, por exemplo, tem trabalhado com o termo de “infodemia”, que seria essa “pandemia de informações”. No sentido que vem sendo debatida, a infodemia não se vincula apenas a informações falsas. Ou seja, se relaciona a qualquer tipo de informação sobre a COVID-19 e sua enorme quantidade sendo publicada cotidianamente no mundo, sem que consigamos acompanhar, filtrar, ler/ver/ouvir, aprender, pensar…

    A questão, portanto, é o excesso. Mas também à dificuldade que temos de peneirar tudo isso, com a calma e acurácia necessária.

    Sociedade da Informação

    Não é recente também o debate sobre a sociedade da informação – esta que nos impossibilitaria a vivência de experiências. Por quê? Exatamente por estarmos sempre atrasados em relação à última notícia, leitura, livro, vídeo, live, stories, do momento. Larrosa diz que na sociedade da informação estamos sempre muito bem informados – mas não no sentido de termos sabedoria, mas de termos muitas informações sobre tudo. Mais do que isso, ao termos informações, temos também que expressar muitas opiniões o tempo inteiro. 

    (Que o diga quem tem Twitter e segue os “assuntos do momento”…)

    E por ter informação e, consequentemente, opinião, que o sujeito informado não consegue que nada lhe aconteça. Nada acontece ao sujeito informado e opinativo pois não há tempo para viver. É preciso consumir a próxima notificação, com mais informação, para novamente falarmos nossa próxima opinião.

    Parece uma grande obviedade, não é mesmo?

    Juntemos as ideias da sociedade da informação e da sociedade do espetáculo. Isto é, nossa sociedade precisa não só produzir constantemente informações, mas conteúdos e imagens (que serão consumidos por pessoas).

    E é assim que temos lidado diariamente com nossa comunicação – falamos de engajamento, seguidores, alcance de cada palavra, cada tag, cada foto, imagem e vídeo que obtivemos a cada publicação. Acompanhamos métricas, nos aprisionamos nos gráficos e consumimos a nós mesmos nesse processo.

    Na pandemia, portanto, não só nossa vida tornou-se isso tudo (ou só isso?). Mas tudo acaba sendo de alguma maneira disponibilizado ao vivo. Enquanto produzimos e reproduzimos em plataformas simultaneamente, escrevendo freneticamente.

    Comentamos, escutamos livres, conversamos, baixamos os últimos artigos, tentamos entender os cálculos, os modelos, os protocolos, as métricas, as imagens…

    Terça-feira, mais uma vez, a coletiva de imprensa para divulgar os dados da Coronavac, vacina que será produzida pelo Instituto Butantã, em convênio com a Sinovac, virou um grande espetáculo de dispersão e tensão.

    Expectativa? Imagine…

    Estamos super tranquilos. Sim! Estamos ansiosos e, óbvio, queremos muito ter dados que nos indiquem que a solução está logo ali, na etapa que virá.

    De modo algum este texto nega a urgência de minimizar os impactos da pandemia na sociedade.

    Todavia, o frenesi que novamente caímos (e nos incluímos nisso), causa também desencontro de informação, confusão e ajuda (SIM) no processo de desinformação.

    O conhecimento científico tem seu tempo para ser construído. Temos falado sobre isso desde o início da pandemia. O tempo da divulgação também precisa ser retomado. 

    Estava no texto manuscrito que “é preciso que respiremos”… Tendo em vista a situação noticiada hoje, sobre Manaus, eu diria que É PRECISO QUE TODOS NÓS CONSIGAMOS NOS UNIR PARA QUE TODOS RESPIREM!

    O conhecimento não se faz com furor e pelos excessos. Tampouco se faz de maneira solitária e com um ou outro ato de grande nome que salvará – ou condenará – a todos. Não estamos em uma ficção em que um herói (branco, hétero, pai de família) explode um avião, percorre o mundo, estanca um apocalipse zumbi e consegue retornar para os braços da família que o aguarda.

    A sociedade do espetáculo – que transforma nossa vida em uma narrativa ficcional, não se trata do consumo de informações e imagens dos outros, mas de nós mesmos. Nosso tempo de vida, nossa condição de diálogo, nosso tempo com nossos pensamentos e com uma análise mais calma e menos superficial de tudo o que tem acontecido.

    A vacina

    Sim. Ela foi anunciada. A vacina que temos e teremos em breve é a que, neste momento, é possível. Se a ciência tem seu tempo, fez – até o momento – a que teve condições de produzir.

    Nossa, então ela não é boa, nem confiável? Sério?

    Vamos lá: as vacinas que estão sendo produzidas e serão aplicadas em nosso país são eficazes, são seguras e diminuirão MUITO os efeitos que temos vivido nesta pandemia.

    Isso inclui lotação em UTIs e capitais SEM OXIGÊNIO nas alas hospitalares. Isso inclui diminuir pessoas morrendo em casa por falta de espaços em hospitais. Também se relaciona a uma quantidade menor de pessoas adoecendo. Isso, por fim, significa um tempo para retomar nosso país.

    É verdade que nunca se perguntou a eficácia e à segurança de vacinas antes, do modo como temos visto agora. Também é preciso admitir que nunca tínhamos vivido uma pandemia, cujo isolamento tornou a informação em tempo real tão acessível (na quantidade, na qualidade, na linguagem), mas tão inacessível (na quantidade, na qualidade, na linguagem).

    Aligeiramentos

    Se o jornalismo precisa de novidade, é importante lembrar que não em detrimento da análise embasada e da promoção do burburinho caótico. No entanto, se a divulgação ainda tem dúvidas, antes de dar respostas aos seguidores, precisa atentar-se ao tempo da análise dos dados.

    E, acima de tudo, embora humanos e todos erremos (muitas e muitas vezes – e façamos o mea culpa, sincero e fundamental), o diálogo ainda é a nossa ferramenta mais basal para construção coletiva e colaborativa, que vale a pena investir. 

    Assim, não é atropelando processos que conseguiremos estancar notícias falsas. Não é escrevendo sem fôlego que frearemos as ansiedades exacerbadas.

    Furor

    Após todo o espetáculo e comentários do espetáculo de terça-feira, as notícias de quarta, e o caos sem fôlego desta quinta – dias, cálculos e notícias nada triviais – precisamos sim de cobranças severas e direcionadas. Bem como precisamos nos atentar à ética das palavras, da divulgação, das notícias. Além disso, seguimos buscando a empatia das ideias, das defesas científicas, em cada cobrança de políticas públicas de nossos governantes.

    A espetacularização ocupa as telas e nos impõe estados de urgência. Urgência que já está sendo vivida por todos aqueles que estão expondo-se sem auxílios financeiros, aguardando testes diagnósticos (que apodrecem em estoques empoeirados). Ou, ainda, quando vemos mães que perdem empregos por não ter onde (ou com quem) deixar seus filhos.

    A vida inteira aconteceu quando pequenos donos de seus negócios batalham diariamente por decisões que levam ao endividamento ou à demissão de funcionários. Quando não são os dois acontecimentos simultaneamente.

    Enquanto isso,

    Nas lives com palavras de exaltação, entre flashes, dúvidas e palmas, as covas cotidianas e coletivas seguem sendo abertas, as UTIs sendo lotadas, oxigênio faltando (OXIGÊNIO FALTANDO), metrôs permanecem abarrotados, entre contas bancárias tão vazias.

    Dessa forma, tentamos entender os dados, analisá-los, debater com colegas. Neste meio tempo, vemos as fake news sendo propagadas, distorcendo nossos diálogos e análises – por pessoas que ocupam postos em veículos de comunicação tidos como mídia tradicional. E isto não pode deixar de ser mencionado!

    No meio de tudo isto, seguimos produzindo o espetáculo. Entretanto, seguimos não conseguindo respeitar o que prometemos defender: o tempo da ciência, do conhecimento, da divulgação científica para apresentar e analisar DADOS. E com estes dados, cobrar posturas políticas que (aí sim) minimizem os efeitos tão vorazes, desta pandemia.

    Não por um preciosismo extremo e sisudo. Mas por defendermos que é pelo acesso ao conhecimento científico e pelo diálogo estabelecido entre pessoas, sobre o conhecimento construído, que tomaremos decisões menos submissas, com menos opressão, obscurantismo e autoritarismo.

    Um dia de cada vez – mas sem esquecer que muitos dias nos esperam.

    Por fim,

    Este texto é um desabafo, teoricamente embasado. Mas ainda assim, um desabafo. E um abraço, longo e demorado, em cada colega da Divulgação e Jornalismo Científicos que tem arduamente trabalhado para analisar dados, artigos, documentos, buscando agir da maneira mais ética, empática e socialmente responsável quanto possível.

    E segue sendo um desabafo, para que tenhamos tempo, com responsabilidade e consigamos (juntos) ajudar a todos os que vem (literalmente) perdendo o fôlego e a vida no meio deste caos cotidiano.

    Para Saber Mais

    DEBORD, G (2000) Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.

    DEBORD, G (1997) A Sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro: Contraponto.

    LARROSA, Jorge (2002) Notas sobre a experiência e o saber da experiência, Revista Brasileira de Educação.

    MORAES, ALC (2016) Cultura da imagem e sociedade do espetáculo. São Paulo: UNI, 2016

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Por dentro da Força Tarefa da Unicamp, com Dr. Alessandro Farias

    O que é e como funciona a pesquisa? O por dentro da Força Tarefa da Unicamp estreia com o Dr. Alessandro Farias, coordenador da Frente de Diagnósticos e cientista responsável pela pesquisa sobre as semelhanças entre o coronavírus e o HIV na infecção do corpo humano!


    Entrevistado de hoje: Dr.Alessandro Farias, chefe do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia do Instituto de Biologia da Unicamp, Coordenador da Frente de Diagnósticos da Força Tarefa

    Entrevistadoras

    Drª. Ana de Medeiros Arnt – Coordenadora do Especial Covid-19 do Blogs de Ciência da Unicamp e professora do Instituto de Biologia da Unicamp

    Drª. Graciele Oliveira – Comitê técnico e científico do Especial Covid-19 do Blogs de Ciência da Unicamp

    PARA SABER MAIS

    Davanzo, G; Codo, A; Brunetti, N; (…) Mori, M; Farias, A (2020) SARS-CoV-2 Uses CD4 to Infect T Helper Lymphocytes. doi: https://doi.org/10.1101/2020.09.25.20…

    O vírus SARs-CoV-2 pode ter uma ação parecida com o vírus do HIV, ao infectar linfócitos https://bit.ly/sars-hiv1

    Sistema imune é infectado pelo SARS-CoV-2 de maneira similar ao HIV https://bit.ly/sars-hiv2

  • Por que você não deveria argumentar com radicais – o efeito “Backfire”

    Sabe aquela vez que você topou, nas redes sociais ou fora delas, com uma pessoa muito convicta defendendo algo que você tinha certeza de que estava errado?

    Pode ter sido um antivacina, um terraplanista, um negacionista da pandemia ou um apoiador ferrenho de algum político, daqueles dispostos a defender qualquer bobagem ou mentira que seu ídolo tenha dito.

    Identificou o diálogo aí nas lembranças, né?

    Então, você têm os fatos e a ciência a seu favor. Você argumentou contra o que essa pessoa convictamente defendia e ela obviamente mudou de opinião diante das evidências que você apontou, não foi? Pois é, comigo também nunca aconteceu. A verdade é que, diante de pessoas inflexíveis sobre algo, muitas vezes não as convencemos nem mesmo de fatos elementares.

    Efeito backfire: quando a tentativa de argumentar sai pela culatra.
    (fonte: https://web.northeastern.edu/nulab/backfire-effects-misinformation)

    Seria essa tentativa de argumentar com os muito convictos, então, puro desperdício de tempo e energia? A realidade dura nos mostra que pode ser ainda pior do que isso. Sua tentativa de convencer o fanático pode ter um efeito totalmente negativo e torná-lo ainda mais convicto de sua crença. Esse é o chamado “efeito backfire” e é bem provável que você já o tenha produzido em alguém ou nele incorrido em discussões por aí.

    Entendendo o conceito

    “Nenhuma opinião deve ser defendida com fervor (…) O fervor apenas se faz necessário quando se trata de manter uma opinião que é duvidosa ou demonstravelmente falsa.” — Bertrand Russell

    O efeito backfire foi verificado pela primeira vez em um estudo publicado em 2010 [1], conduzido pelos cientistas políticos Brendan Nyhan e Jason Reifler das universidades de Michigan e da Georgia, EUA. Nesse estudo, eles criaram artigos fictícios de jornal que reproduziam informações falsas amplamente difundidas nos EUA à época. Por exemplo, como a ideia de que as forças armadas estadunidenses teriam encontrado armas de destruição em massa no Iraque do ditador Sadam Husseim. Os voluntários da pesquisa liam esses artigos e, na sequência, recebiam outro texto com a informação correta. Isto é as supostas armas de destruição em massa jamais foram encontradas.

    Um curioso resultado encontrado pela pesquisa foi o de que os voluntários mais conservadores e favoráveis à guerra contra o Iraque relataram, após a leitura do artigo com a informação verdadeira, que tinham ainda mais certeza de que as tais armas de destruição em massa realmente existiam. Em outras palavras, a tentativa de correção da crença incorreta desses voluntários “saiu pela culatra” (o efeito backfire) e eles ficaram ainda mais convictos sobre algo que nunca aconteceu de fato. Por acaso isso te soa familiar e te faz lembrar de alguma discussão que já teve com alguém?

    Mas, podemos chamar de ignorância?

    Não! Esse efeito não é fruto de ignorância ou burrice, como se poderia imaginar a princípio. Ele ocorre, na verdade, como um desdobramento do raciocínio motivado. Ou seja, é uma forma de pensar na qual selecionamos somente as evidências que nos agradam para embasar uma conclusão à qual já tínhamos chegado de antemão. Assim, ao receber uma informação que se choca com sua crença, a pessoa tende a revisar mentalmente as “evidências” (não importa muito que possam ser falsas) que a induziram a ter essa concepção equivocada e, nesse processo de revisão de suas memórias, pode acabar reforçando sua crença inicial.

    Efeito backfire e política em contexto de pandemia

    Até o uso das máscaras tem sido objeto de disputa na polarização política (fonte: Pixabay)

    No âmbito da política, que tem como motor as ideologias e paixões humanas, não faltam exemplos de racionalização de “evidências” que levam ao efeito backfire de forma coletiva. Em um cenário de intensa polarização política, quase tudo é politizado e não seria diferente com os aspectos que envolvem a pandemia de coronavírus. Nesse contexto, um exemplo do efeito backfire coletivo pôde ser observado nos que passaram a minimizar a pandemia, buscando equivaler a Covid-19 a uma gripe comum.

    As políticas negacionistas

    Nos EUA e no Brasil, foram os presidentes os principais líderes políticos a sistematicamente minimizar a gravidade do coronavírus [2, 3]. Tanto lá como cá, os seguidores de ambos, ao receberem o sinal de seus ídolos, passaram a reproduzir sua concepção. Diante do crescente número de casos comprovados e das complicações, sequelas e mortes causadas pelo vírus, parte expressiva dos defensores da ideia de que se tratava de uma “gripezinha”, ao invés de mudarem de posição perante evidências contrárias, passaram a intensificar seu negacionismo por meio de teorias conspiratórias, ou seja, acionaram o raciocínio motivado resultando no efeito backfire.

    Da afirmação — jamais comprovada — de que governadores estariam inflando os números de óbitos [4], passando pelo questionamento sobre a lotação de hospitais (com sugestão do presidente para que populares os invadissem e filmassem os leitos) [5], até o enfoque no número de casos recuperados [6], foram muitos os esforços dos negacionistas convictos para minimizar o terrível impacto da pandemia no segundo país em número de óbitos causados pela Covid-19 no mundo.

    Minimizando a pandemia

    Quanto àquele esforço de se minimizar a pandemia por meio do enfoque nos milhões de recuperados, é quase cômico observar que, na verdade, isso pesa contra o negacionismo dos fanáticos: a constatação de que há milhões de recuperados pressupõe a existência de um número ainda maior de infectados, o que por si só já expõe a extensão e a gravidade da pandemia.

    Animados pelo mesmo impulso negacionista, surgiram também inúmeros apoiadores do presidente cujos parentes ou conhecidos supostamente tiveram diagnóstico positivo para Covid-19, mas que morreram, juram eles, de câncer ou outra doença grave. Por suposto, trata-se aqui do que chamamos, em ciência, de evidência anedótica; é razoável a probabilidade, porém, de que a leitora tenha visto alguma história do tipo em suas redes sociais durante a pandemia.

    A “vacina chinesa” e o efeito backfire

    Nem mesmo a vacina contra o coronavírus escapou à lógica da polarização política. Bastou o Ministério da Saúde anunciar a intenção de adquirir a CoronaVac [7]– vacina que está sendo produzida em associação entre o Butantã e a Sinovac, uma empresa chinesa — que o presidente, pressionado por apoiadores contrários à vacina [8], cancelou o acordo de compra [9]. Após esse imbróglio, várias fake news sobre a CoronaVac inundaram as redes sociais [10], como a de que a vacina usaria células de bebês abortados [11]. Isso tudo nos faz levantar a questão: existe a possibilidade de ocorrer o efeito backfire ao argumentarmos com um antivacina? Considerando-se a ciência sobre o tema, a resposta infelizmente é “sim”.

    [Fonte: Renato Machado — cartunista]

    Os mesmos pesquisadores citados, Reifler e Nyhan, conduziram, em 2015, um estudo sobre mitos relativos a vacinas [12]. À época, 43% dos estadunidenses acreditavam que a vacina da gripe poderia fazê-los ter gripe. Assim, nesse estudo, eles buscaram verificar a eficácia de se oferecer as informações corretivas dessa crença infundada. Como resultado, o estudo apontou que informações corretas — que a vacina não causava a gripe — foram suficientes para reduzir bastante essa crença específica.

    Efeito colateral

    No entanto, os voluntários da pesquisa que demonstraram níveis mais altos de preocupação com supostos efeitos colaterais de vacinas (como acreditar que elas causam autismo) passaram a manifestar menor disposição a vacinarem seus filhos. Nesse estudo, o efeito backfire ocorreu não na crença específica, alvo da informação corretiva, mas na postura dos voluntários que já tinham uma perspectiva antivacina, os quais ficaram ainda mais convictos sobre isso.

    A esta altura, a leitora pode estar se perguntando se, por causa da possibilidade do efeito backfire, não devemos jamais argumentar com as pessoas muito convictas que estejam defendendo algum absurdo. Todavia, na realidade, há uma situação bastante frequente na qual convém, sim, debater com dogmáticos.

    Argumentar ou não argumentar, eis a questão

    Não é possível convencer um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em evidências; baseiam-se numa profunda necessidade de acreditar.” — Carl Sagan

    Em uma conversa privada, no tête-à-tête mesmo, com alguém defendendo radicalmente alguma inverdade, talvez seja melhor não insistir. O risco de você contribuir para que a pessoa fique ainda mais convicta é real. Por isso, vale muito mais a pena argumentar com as pessoas que podem ter caído em alguma desinformação, mas que têm maior abertura ao debate. E elas são muitas. Dessa forma, como sustenta o cientista político David Redlawsk, isolam-se os fanáticos de todo tipo, reduzindo sua influência.

    Estudos mais recentes, como o dos cientistas políticos Thomas Wood e Ethan Porter, da George Washington University, não encontraram o efeito backfire em relação a fatos específicos [13]. Os pesquisadores argumentam que é possível, sim, mudar a opinião equivocada das pessoas com a exposição de fatos.

    Mas…

    É preciso lembrar, no entanto, que existe sempre a possibilidade de que elas reforcem sua postura — como ocorreu no estudo mencionado sobre a vacina — apesar de se dobrarem a um fato específico. Como um exemplo, imagine que você vai argumentar com uma pessoa que defende um remédio comprovadamente ineficaz contra a Covid-19 porque o político que ela apoia insiste se tratar de um medicamento salvador. A depender de sua abordagem e do nível de convicção dessa pessoa, talvez até a convença do fato de que o remédio é ineficaz. Não espere, porém, que diminua o apoio dela ao político, pois o mais provável é que o contrário aconteça.

    No entanto, como parte significativa de nossas vidas atualmente acontece em rede, quando o debate for em público, como no Facebook ou em grupos de Whatsapp, convém demonstrar que os radicais estão equivocados. Nas redes, terceiros quase sempre estão observando as conversas alheias. Eis aí a situação na qual vale a pena travar o bom combate contra a desinformação, a mentira e as concepções falsas. Se seu interlocutor direto ficar ainda mais convicto na defesa de alguma desinformação qualquer, paciência. Quase sempre há vários outros que podem se beneficiar do seu esforço de argumentação em prol do restabelecimento da verdade.

    Por fim

    Vivemos em tempos nos quais vicejam posturas anticientíficas e esforços de relativização da verdade, quando não de sua negação completa. Como é bastante conhecido, isso é impulsionado por líderes políticos cujo comportamento é replicado por milhões de seguidores. Por isso, é importante que continuemos disputando, se não os corações, ao menos as mentes das pessoas e ter consciência da possibilidade de que o efeito backfire ocorra é um passo fundamental nessa jornada.

    Referências:

    [1] Nyhan, B, Reifler, J (2010) When Corrections Fail: The Persistence of Political Misperceptions; Political Behavior, Vol 32, No 2, pp 303-330.

    [2] (2020) Timeline: How Trump Has Downplayed The Coronavirus Pandemic. National Public Radio (NPR), 02 de outubro de 2020.

    [3] “Gripezinha” e “histeria”: cinco vezes em que Bolsonaro minimizou o coronavírus (2020)

    [4] Bolsonaro endossa notícia falsa para dizer que Estados inflam mortes por coronavírus, Valor Econômico, 31 de outubro de 2020.

    [5] Bolsonaro recomenda invadir hospitais, Correio Braziliense, 11 de junho de 2020.

    [6] Na data em que Brasil ultrapassa 100 mil mortos, Bolsonaro destaca pacientes recuperados, Agência Brasil (EBC), 20 de outubro de 2020.

    [7] Brasil anuncia que vai comprar 46 milhões de doses da CoronaVac, Agência Brasil, 20 de outubro de 2020.

    [8] Bolsonaro sabia da intenção de compra da CoronaVac, mas recuou, Estado de Minas, Edição de 21 de outubro de 2020.

    [9] Bolsonaro diz que Governo Federal não comprará vacina CoronaVac Agência Brasil (EBC), 21 de outubro de 2020.

    [10] Aos Fatos (agência de fact-checking) – resultados de busca do verbete “coronavac”

    [11] (2020) É falso que CoronaVac usa células de bebês abortados, Aos Fatos, 28 de julho de 2020.

    [12] Nyhan, B, Reifler, J (2015) Does correcting myths about the flu vaccine work? An experimental evaluation of the effects of corrective information. Vaccine 33 (3): 459–464.

    [13] Wood, T., Porter, E. (2018). The elusive backfire effect: Mass attitudes’ steadfast factual adherence. Political Behavior, Vol41, pp135-163.

    OBS:

    Esse texto contou com a revisão primorosa de Caroline Frere Martiniuc e Eduardo Jesus Veríssimo, aos quais agradeço enormemente.

    Este texto originalmente foi escrito e postado no blog Política na Cabeça

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Todavia, não necessariamente representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • O ensino remoto durante a pandemia pelos olhos da Profa. Rogéria Veronezi

    Profa. Rogéria Veronezi (à esq.) e a colaboradora Giovana Veronezi (à dir.), mãe e filha. Arquivo pessoal. Todos os direitos reservados.

    Muitos têm sido os desafios que a pandemia da COVID-19 e as políticas de isolamento e distanciamento social vêm provocando no setor educacional. Devido a esse contexto, nós do Ciência Pelos Olhos Delas preparamos uma série especial com relatos e reflexões de profissionais da área sobre suas experiências. 

    O primeiro post da série contou com a participação da Profa. Dra. Michelle Rocha Parise, farmacêutica e professora do curso de Medicina da Universidade Federal de Jataí (UFJ). Em entrevista à colaboradora Carolina Francelin, a Dra. Michele compartilhou sua visão de como esta nova realidade tem afetado o ensino superior.

    Hoje a colaboradora Giovana Veronezi traz a segunda e última parte deste especial com o relato da Profa. Rogéria Veronezi sobre sua atuação no ensino fundamental e médio. O resultado você pode conferir na íntegra abaixo.


    Todas as experiências escrevendo para o Ciência Pelos Olhos Delas são especiais à sua maneira, mas não há como comparar a oportunidade de realizar uma entrevista com a nossa própria mãe. Após compartilharmos nossos relatos pessoais em relação à pandemia aqui no blog, surgiu a ideia de trazermos também uma abordagem do ponto de vista educacional, e eu imediatamente já sabia quem gostaria de entrevistar.

    Ao longo dos anos eu pude acompanhar a trajetória da Profa. Rogéria não só no papel de filha mas também como sua aluna ao longo de todo o meu ensino fundamental. Quando a pandemia da COVID-19 resultou na interrupção das aulas presenciais e no estabelecimento do ensino remoto, acompanhei de perto também como as incertezas e adaptações afetaram sua rotina profissional.

     Atualmente Professora de Língua Portuguesa e Literatura no SESI e Coordenadora Pedagógica na EMEB Prof. José Barreto Coelho, em Mococa (SP), a Profa. Rogéria conta em detalhes quais foram tais adaptações e como estas afetaram as relações aluno-professor, professor-professor e o planejamento escolar como um todo.

    1. Conte-nos um pouco sobre a sua formação e sobre a sua experiência como docente/professora.

    Minha formação inicial é em Letras. Minha primeira Pós Graduação foi na área de Psicopedagogia Institucional. Depois senti necessidade de cursar Pedagogia e, atualmente, estou cursando uma Pós em Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. 

    Minha experiência com a docência permeia desde a Educação Infantil ao Ensino Médio. Na Educação Infantil, fui professora de Língua Inglesa para crianças a partir de 4 anos de idade, experiência também compartilhada no Ensino Fundamental I. Nos segmentos do Ensino Fundamental II e Ensino Médio minha experiência maior é na área de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. 

    Além de trabalhar como docente, atuo na área de formação de professores como Coordenadora Pedagógica, função que acumulo à de professora há, aproximadamente, dezoito anos.

    2. Como a pandemia da COVID-19 afetou as atividades da instituição de ensino em que você trabalha?

    Atualmente trabalho em duas instituições de ensino: uma da rede particular e outra da rede municipal. Na primeira, sou professora; na segunda, Coordenadora Pedagógica, o que me oportunizou experienciar a situação sob as duas vertentes. 

    A pandemia afetou fortemente o modelo de educação que conhecemos, o que exigiu que as pessoas envolvidas – gestores, professores, estudantes – ressignificassem suas concepções sobre função social da escola. O problema é que tudo aconteceu de uma forma muito inesperada, e a mudança precisou ser feita num ritmo muito acelerado e num contexto de muitas incertezas. 

    O fato de estar na sala de aula muito colaborou com o meu trabalho de Coordenação Pedagógica, pois conseguia enxergar na prática as dificuldades apresentadas pelos professores que coordeno. As incertezas e as muitas novidades ocorridas no início do trabalho com o Ensino Remoto foram, aos poucos, dando lugar ao sentimento de ser necessário encarar os desafios um a um, o que significava controlar a ansiedade e reestruturar a forma como o trabalho vinha sendo desenvolvido até então.  

    A meu ver, o que mais impactou nas atividades, em ambas escolas, foi a necessidade de o professor distanciar-se de seus estudantes, uma vez que o nosso trabalho se apoia no vínculo criado diariamente na sala de aula. Além disso, a maioria dos professores e dos estudantes não estavam preparados para lidar com esse novo formato, em que a tecnologia passou a ser uma das protagonistas do sistema educacional. Interessante foi ter notado que os adolescentes, tidos como “digitais”, também tiveram dificuldades para se adaptar à tecnologia como ferramenta no seu processo de ensino-aprendizagem.

    3. Você já tinha experiência com ensino remoto anteriormente?

    Embora tenha 26 anos de experiência docente, ainda não tinha tido a oportunidade de trabalhar integralmente em um sistema de Ensino Remoto. De alguma forma, a tecnologia já fazia parte da minha rotina de trabalho, mas num sistema híbrido.

    Aprender a lidar com as aulas síncronas talvez tenha sido o meu maior desafio, pois é como se você fosse abduzido da sua zona de conforto – a sala de aula – e teletransportado para a frente de uma tela de computador, com quem passa a conversar. O diálogo passa a ser, então, um monólogo, pois geralmente os adolescentes têm resistência em abrir as câmeras e interagir com o professor.

    É diferente de um curso on-line em que você se matricula por vontade própria, como estudante, e sabe que seu contato presencial com o professor será limitado ou, dependendo do curso, inexistente. No Ensino Remoto, ninguém teve a chance de optar.  

    4. Quais foram as adaptações necessárias para passar do ensino presencial para o remoto?

    As incertezas trazidas pela pandemia da COVID-19 fizeram com que as adaptações fossem acontecendo de forma gradual, pois no início não havia como mensurar o tempo em que ficaríamos afastados do ensino presencial. Nas escolas em que trabalho, por exemplo, uma das primeiras adaptações foi com relação ao Calendário, com a antecipação das férias de julho para abril. 

    Depois vieram as adaptações referentes à organização dos estudantes para trabalharem em um novo modelo, distantes dos seus colegas e professores;

    à disponibilização de plataformas educacionais para acesso a aulas síncronas, se possível;

    à postagem e ao acesso das atividades;

    ao investimento na formação de professores quanto a novas tecnologias;

    à reorganização do planejamento;

    à garantia de feedbacks, tanto do professor para o aluno quanto o contrário;

    ao como garantir o cumprimento das atividades pelos alunos;

    ao como auxiliar o estudante que sentisse dificuldades com as atividades propostas.

    Digo que as adaptações foram, e estão sendo feitas, de forma gradual porque muitas questões novas aparecem cotidianamente. O que fazer, por exemplo, com um estudante que, de repente, deixa de cumprir as atividades propostas mesmo tendo condições favoráveis ao acesso? Nesse momento é necessário um processo de adaptação, no sentido de se pensar em uma estratégia que possa ser transformada em uma ação eficiente, principalmente para o aluno.  

    5. Como foi a reciprocidade dos alunos no início? E a assiduidade? Todos os alunos conseguiram aderir ao ensino à distância?

    É preciso ser realista com a situação que estamos vivendo: os estudantes não têm experiência com esse sistema de ensino e, mesmo após seis meses de trabalho, podemos dizer que muitos ainda estão em fase de adaptação. Analisar a reciprocidade dos alunos implica analisar outros fatores que interferem nesse processo, como o fato de o Ensino Remoto não ser adequado para todos os tipos de estudantes, principalmente para aqueles que apresentam algum tipo de dificuldade. 

    Penso que a idade também interfere nesse processo: quanto mais novo o estudante, mais difícil lidar com o ensino remoto. Como já disse anteriormente, Ensino Remoto não é sinônimo de Ensino à Distância, embora em ambos o contato entre professor e aluno não aconteça como no ensino presencial. No Ensino à Distância o estudante, geralmente já na fase adulta, está consciente de sua escolha quando opta por um pós-graduação, por exemplo. 

    Em ambos os modelos, estudar exige uma disciplina muito maior que estudar em uma sala de aula, principalmente porque o aluno tem que aprender a gerir o seu próprio tempo. Imagine quão complicado isso pode ser para adolescentes cujos pais precisam sair para trabalhar de manhã e deixá-los sozinhos em casa…  No ensino presencial, os estudantes encontram um espaço pensado e organizado para o propósito da aprendizagem. No Ensino Remoto, o estudante perdeu essa referência e precisou se reorganizar. Obviamente, a reciprocidade e participação não têm sido 100%, e muitos são os fatores que podem justificar esse resultado, desde a dificuldade de acesso à falta de autonomia dos estudantes.  

    6. Você alterou a forma de avaliar o desenvolvimento/aquisição de conteúdo, a forma de aplicar provas e trabalhos?

    Nesse modelo, tudo mudou, inclusive a forma de avaliar o desenvolvimento e aquisição de conhecimentos. Sou consciente de que muitos alunos, durante a prova, resolvem as questões a partir de consultas na internet, conversas com colegas pelo WhatsApp… Não há como evitar isso. Então é preciso mudar o olhar sobre como avaliar, assim como o paradigma de que o aluno deve fazer essa ou aquela atividade para “ganhar nota”. Quando meus alunos me fazem a fatídica pergunta “Vale nota, professora?”, eu respondo “Vale conhecimento!”. 

    Acredito ser importante eles se convencerem de que a prova que fazem na escola é equivalente a qualquer outro processo avaliativo: a habilitação para dirigir, por exemplo. No momento da prova, o “candidato a motorista” não deve mostrar ao avaliador o resultado de tudo aquilo que aprendeu durante as aulas com o instrutor da autoescola? Tento convencer meus alunos de que na escola o processo deve ser o mesmo. 

    Outra problemática presente é o fato de o distanciamento entre professor e aluno impossibilitar a mediação do professor, tão necessária ao processo de ensino-aprendizagem. Quando estamos em sala de aula, há como percebermos a evolução do estudante através da observação durante a realização dos exercícios, a participação nas aulas, o envolvimento com as atividades propostas… No presencial, é possível fazer, como nós costumamos dizer, um trabalho “corpo a corpo”: se o aluno tem dificuldade, o professor senta com ele e o ajuda a resolver o exercício, por exemplo. No formato remoto isso inexiste, por mais que se tenha contato com o aluno nas aulas síncronas, em que, vale lembrar, há ainda um grande dificultador: o fato do aluno não interagir com o professor.

    7. Quais você acredita que são os maiores desafios neste sistema? 

    São muitos os desafios neste momento, mas um dos maiores, na minha visão, é garantir que todos os estudantes tenham acesso às atividades propostas, consigam organizar-se, tornar-se autônomos e, consequentemente, desenvolver as competências e habilidades necessárias à sua aprendizagem. Outro grande desafio é o professor conseguir lidar com as mudanças inerentes ao contexto atual e reconhecer a urgência de a necessidade de rever o seu papel como profissional do conhecimento.

    8. Você pretende continuar com alguma atividade online após o retorno às aulas presenciais?

    Não há como nos desvencilhar das novas estratégias que passaram a fazer parte do nosso planejamento. O ensino híbrido, que já não era novidade em educação, ganhou seu espaço e, efetivamente, permanecerá nos planejamentos pós-pandemia, como a “aula invertida”, que dá aos alunos a oportunidade vir à aula presencial repertoriados sobre o assunto que será discutido. 

    Não se trata de descartar todas as estratégias utilizadas antes da pandemia, mas, sim, de renová-las. Acredito que nós, professores, descobrimos novas formas de ensinar, de tornar nossas propostas muito mais significativas para os estudantes e não podemos abrir mão disso. Coordeno professores que foram meus professores e que, apesar da vasta experiência como docentes, estão se redescobrindo, aprendendo a ensinar através de meios tecnológicos. Não foi fácil no começo, mas já comemoram suas conquistas.

    9. Como você acha que essa experiência coletiva vai impactar o futuro da educação no pós-pandemia?

    Espero que essa experiência coletiva mude a nossa forma de pensar a educação. Que os alunos entendam que a escola é um lugar onde vão para compartilhar experiências, aprender, se divertir, criar vínculos, descobrir suas competências e habilidades. Que os professores se assumam como professores, como profissionais do conhecimento, que se preocupem em estar sempre se preparando para formar esses jovens que, diariamente, estão sob nossa responsabilidade. Talvez alguns, ao ler essa resposta, pensem que eu esteja sendo utópica, mas se não idealizarmos uma mudança ela nunca será realidade.


    Obrigada, mãe, por aceitar o convite e pelas valiosas reflexões. Acredito que muitas instituições de ensino compartilham desta realidade de ainda vivenciarem uma fase de adaptação em adequar este novo modelo de ensino às necessidades dos alunos e preparação dos professores, mesmo após meses de ensino remoto. Adicione diferenças socioeconômicas que limitam o acesso de muitos à esse formato digital e o desafio se torna ainda maior. Neste caminho, que cada vez mais as vozes de professores e profissionais da educação sejam reconhecidas e amplificadas.

    Este texto originalmente foi escrito e postado no blog Ciência pelos olhos delas

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • O ensino remoto durante a pandemia pelos olhos da Profa. Dra. Michelle Rocha-Parise

    Michelle Rocha-Parise. Arquivo pessoal. Todos os direitos reservados.

    Das alterações provocadas pela pandemia da COVID-19, o setor educacional foi um dos mais afetados e o retorno às aulas está sendo bastante complexo de se resolver. Pensando nisso, nós do Ciência Pelos Olhos Delas desejamos trazer um olhar por dentro da problemática do ensino remoto por meio de conversas com profissionais do ensino fundamental/médio e superior.

    Mundialmente, o primeiro decreto de quarentena levantou discussões sobre o bem e/ou mal que o isolamento de crianças e jovens adultos poderia causar no desenvolvimento intelectual e social daqueles que ficaram em casa.

    Conforme o isolamento social foi se estendendo, o ensino foi reinventado para ser apresentado por meio de uma plataforma digital – aquela que pode ser feita à distância. Acreditamos que ela foi criada com o intuito de reduzir os impactos na progressão acadêmica dos alunos e também auxiliar economicamente as instituições. Contudo, essa alteração requer estudo e ações que viabilizem o andamento das aulas de forma igualitária a todos. 

    Aqui trazemos dois relatos de experiência, um hoje e um na semana que vem, para compartilhar um pouco a realidade do ensino remoto, a fim de enriquecer discussões acerca desse assunto.  

    ****

    Hoje, eu trago a primeira parte desse material: o relato da experiência da Profa. Dra. Michelle Rocha-Parise, farmacêutica e professora do curso de Medicina da Universidade Federal de Jataí (UFJ). A Michelle é uma amiga que fiz na Unicamp, quando realizamos pós-doutorado em Neuroimunologia no Instituto de Biologia. Na UFJ, suas linhas de pesquisa apresentam projetos nos quais ela busca alternativas terapêuticas para doenças, especialmente aquelas de caráter autoimune, assim como o entendimento das alterações imunológicas causadas pelos agentes ambientais, ou seja, exposições ocupacionais de indivíduos que trabalham com substâncias deletérias (agrotóxicos). 

    Como aconteceu com grande parte dos cientistas no mundo todo, a quarentena provocou atrasos em sua pesquisa científica e alterou sua forma de lecionar. No caso dela, o isolamento social afetou não só o ir e vir dos alunos como também afetou a coleta de amostras humanas. 

    Diante da nova realidade, Michelle manteve as reuniões administrativas, orientações e aulas em diferentes plataformas digitais. Para ela, o deslocamento das aulas presenciais para o sistema de ensino remoto foi novidade, apresentou desafios e trouxe diferentes propostas de ensino. Leia a nossa conversa a seguir: 

    1. Conte-nos um pouco sobre a sua formação e sobre a sua experiência como docente/professora.

    Eu sou farmacêutica com habilitação em análises clínicas e pós graduação lato sensu em análises clínicas na subárea Imunologia. Sou Mestre em Imunologia, Doutora em Farmacologia, e Pós Doutora em Neuroimunologia.

    Minha experiência como docente começou quando eu defendi o Mestrado e comecei a dar aula de Cosmetologia no Senac em um período que fiquei sem bolsa (financiamento para pesquisa). Já quando terminei o Doutorado, eu lecionei Farmacologia e Imunologia para uma Universidade privada. Quando eu estava no primeiro ano do Pós Doutorado eu ingressei na UFJ, onde eu leciono Farmacologia.

    2. Como a pandemia da COVID-19 afetou as atividades da instituição de ensino em que você trabalha?

    A pandemia afetou de uma forma bastante expressiva as atividades da Universidade onde eu atuo, principalmente no que tange à parte da graduação. 

    Na parte administrativa houve uma comoção geral para nos adaptarmos com as tecnologias disponíveis para reunião remota e assim tudo foi sendo realizado de uma forma bastante satisfatória. Isso também porque a Universidade conta com um sistema eletrônico de informações, onde todas as assinaturas são eletrônicas, então essa parte não foi um problema. 

    Em relação às aulas houve muita discussão principalmente referente ao acesso dos discentes à tecnologias: acesso à internet e condições de ter um computador e/ou celular. Isso para que os alunos pudessem acompanhar as atividades de maneira satisfatória. Então, baseado nessa problemática, a Universidade suspendeu as atividades.

    O único curso que voltou às atividades de forma remota foi o que eu sou responsável, que é o curso de Medicina. Isso também porque fizemos um estudo e menos de 3% dos alunos não teriam como acompanhar as aulas remotas, o que foi suprido pelo curso/instituição. Esse retorno foi, muito provavelmente, possível devido à condição socioeconômica dos alunos desse curso, que têm uma posição mais privilegiada. Já os demais cursos ainda não retornaram e estão analisando os questionários para avaliar a possibilidade da volta às aulas remotamente.  

    3. Você já tinha experiência com ensino remoto anteriormente?

    Eu não tinha nenhuma experiência com ensino remoto, nunca havia feito nada nesse sentido. Inclusive, senti bastante dificuldade no início, o que foi sanado com a capacitação oferecida pela Universidade e a rotina do uso dos sistemas disponíveis para as reuniões. 

    Já por parte dos alunos, eles mesmos se organizaram e ofereceram uma semana de capacitação para manusear as diferentes plataformas e ferramentas. 

    Aqui não estamos fazendo o ensino à distância e sim o ensino remoto, onde oferecemos aulas síncronas e assíncronas, essa última é quando gravamos a aula e enviamos para o aluno previamente para que durante a aula possamos trabalhar melhor a discussão do assunto. Isso visando tentar manter a característica ativa da metodologia de ensino, utilizada pela Universidade.  

    4. Quais foram as adaptações necessárias para passar do ensino presencial para o remoto?

    As adaptações ocorreram na readequação do plano de ensino, sendo que as aulas práticas não passíveis de adaptação para vídeo serão ministradas no retorno das aulas presenciais. 

    A bibliografia também foi revista e somente textos e livros disponíveis online foram mantidos, também incluímos alguns artigos e livros de domínio público. Tudo foi adaptado de uma forma que o aluno consiga, através do acesso à biblioteca virtual da universidade ou pela rede em geral, ter acesso ao material didático proposto. 

    Já da minha parte, eu acho que tudo isso fez com que eu tornasse minhas aulas menos conteudistas e percebi agora que dá para otimizar a aula para o aluno absorver o conteúdo base. E aquilo que é adicional eu posso trabalhar com o aluno fora do horário de aula, com exercício por exemplo, tornando a hora aula mais produtiva. 

    5. Como foi a reciprocidade dos alunos no início? E a assiduidade? Todos os alunos conseguiram aderir ao ensino à distância?

    Em relação à adesão dos alunos como um todo foi muito bom, e vem sendo. Nosso retorno é muito recente, aconteceu dia 5 de outubro, e foi de maneira satisfatória. Eu tive alta adesão dos alunos com muitas perguntas durante a aula, mesmo ela sendo gravada. 

    Bom lembrar que a instituição deu um respaldo muito bom através de uma normativa para os docentes sobre como agir em relação ao registro e disponibilização da gravação das aulas. De toda forma tem sido bem proveitoso, os alunos têm participado.

    Eu controlo a frequência no início e no fim da aula, peço para que liguem câmera/microfone e tenho tido 100% de adesão. A única diferença é que tenho adaptado algumas das minhas aulas para um conteúdo mais otimizado e depois disponibilizo material complementar. Isso porque na aula virtual extensa é mais difícil manter o foco do aluno por muito tempo, tenho restringido minha aula entre 1h30 e no máximo 2 horas sem intervalo. 

    Ainda devo mencionar que o WhatsApp se tornou uma boa ferramenta durante o ensino remoto, pois virou nosso melhor meio rápido de comunicação, substituindo o email, que não olhamos durante o andamento das aulas remotas. 

    6. Você alterou a forma de avaliar o desenvolvimento/aquisição de conteúdo, a forma de aplicar provas e trabalhos? 

    Considerando que agora os alunos conseguem ter acesso à consulta, eu deixei as atividades complementares (que complementam a nota do semestre) com um grau de dificuldade maior, fazendo com que o aluno tenha que raciocinar e não somente copiar a resposta do texto de referência. 

    Também exigi que as respostas sejam manuscritas e escaneadas para carregamento na plataforma online, para que mesmo que o aluno tenha copiado as respostas ele pelo menos tenha o trabalho da cópia em próprio punho.

    Em relação às avaliações oficiais (provas finais) essas serão ministradas por meio da plataforma com tempo para resposta e uma prova com questões também mais de raciocínio, que dificulta a cópia entre colegas.

    7. Quais você acredita que são os maiores desafios neste sistema? 

    Acho que o maior desafio desse sistema remoto é contar com a maturidade do discente, para que ele entenda que ele é o principal responsável pelo seu conhecimento. E que aquilo que se esconde hoje, por exemplo copiando o exercício ou logando na aula sem participar, será evidenciado mais adiante com o retorno das aulas presenciais e práticas. 

    Assim, o aluno de alguma forma vai demonstrar se ele foi fiel ao conhecimento ou não durante esse período de aula remota.Dessa forma, eu acho que na realidade o desafio do ensino remoto é realmente conscientizar os alunos que os responsáveis pelo conhecimento são eles mesmos, e que os docentes estão ali para instruir e direcionar. 

    8. Você pretende continuar com alguma atividade online após o retorno às aulas presenciais?

    Sim, eu pensei em continuar com algumas atividades online talvez em um canal no YouTube ou algo similar para os conteúdos que eu não consiga contemplar em sala de aula de forma satisfatória ou assuntos adicionais que não estão presentes no plano de ensino, mas que eu ache pertinente para a formação do aluno. 

    Eu acho que tem muita coisa útil no ensino remoto, as turmas virtuais por exemplo, mesmo quando as aulas voltarem eu farei mais uso visando a sistematização da informação. 

    9. O que você achou dos congressos/encontros realizados online através das plataformas?

    Em relação à participação em eventos, eu tenho sentido falta da proximidade que nos permite criar parcerias, que são estabelecidas primordialmente pelo contato social direto.

    A apresentação de trabalho de forma remota teve redução de tempo, de uma forma que não é possível exprimir a essência do trabalho de uma maneira adequada. 

    No geral, eu acredito que os eventos que aconteceram de forma remota não tiveram bons aproveitamentos. Isso porque fez com que os alunos prezassem pela quantidade de participação e não qualidade, já que é possível entrar em várias salas ao mesmo tempo. 

    O que eu acho é que algumas apresentações, principalmente os posters, podem continuar de forma virtual (nos livrando dos posters impressos), mas os encontros devem voltar sim para a forma presencial assim que possível. 

    10. Como você acha que essa experiência coletiva vai impactar o futuro da educação no pós-pandemia?

    Eu acho que irá impactar de forma positiva desde que a gente tenha medidas de inclusão digital para a grande maioria dos alunos que têm uma vulnerabilidade socioeconômica muito grande. Mas eu acho que isso agora será uma tendência mundial: ter muitas coisas acontecendo de forma remota. Até mesmo as reuniões são mais produtivas, boa parte das questões administrativas podem continuar de forma remota. 

    Mas para o ensino dar certo, as ferramentas de ensino remoto precisam ser bem empregadas: treinamento, preparo e condições mínimas para uso. Desde a educação básica até o ensino superior, tudo teria que ser muito bem analisado para verificar quais seriam as principais adequações.

    Ainda, questões estruturais precisam ser revistas. Aqui mesmo na Universidade, por ser uma cidade pequena, a rede de internet Wi-Fi é ruim e dificulta o acesso dos alunos todos ao mesmo tempo. Quando voltarem às aulas presenciais, os alunos ainda utilizarão o sistema remoto e congestionarão a rede. Problemas assim precisam ser sanados.

    Outra coisa que também deve ser considerada é que o docente não recebe nenhum tipo de incentivo para o trabalho remoto. Os docentes arcam com as despesas da internet, da energia elétrica, e o computador utilizado para o trabalho é o de uso particular. Então esse é um ponto a ser considerado principalmente para os professores da educação básica que têm um salário menor e precisam de mais respaldo nessa parte. Também, os docentes mais antigos e com dificuldades para lidar com a tecnologia precisam ter algum tipo de atenção e preparo diferenciados por não terem familiaridade com os recursos tecnológicos. 

    ****

    O relato da Michelle é singular na sua atuação como docente do curso de Medicina da UFJ. Como ela cita, o ensino remoto nesse curso foi possível devido a uma posição socioeconômica favorável da maioria dos alunos; já os demais cursos de graduação ainda estão no processo de iniciar o ensino remoto. Assim, acredito que a realidade de outros Centros Universitários, públicos ou particulares, seja bastante diversa. Ainda, espero que este relato traga outras discussões entre seus pares sobre a instalação de um ensino remoto eficiente e igualitário

    Este texto originalmente foi escrito e postado no blog Ciência pelos olhos delas

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Surfando as crises globais: segunda onda da COVID-19 e ondas de calor

    A pandemia do coronavírus causou 1,3 milhões de mortes no mundo até o momento. A poluição atmosférica mata 7 milhões de pessoas todos os anos. Por que a crise climática não é vista como crise?

    A Covid-19 escancarou a vulnerabilidade da globalização e tem sido um experimento não programado sobre os impactos das mudanças do clima. Se por um lado, o confinamento afetou a economia e a sanidade mental, por outro, se revelou benéfica para o meio ambiente. Como resultado involuntário, as medidas de contenção da pandemia ajudaram a melhorar a qualidade do ar, com a redução das emissões de CO2, principal gás de efeito estufa (GEE), e dos poluentes tóxicos, especialmente nos centros urbanos.

    Segundo a Organização Mundial de Meteorologia (WMO, 2020), o confinamento resultou numa redução de 17% nas emissões de GEE em abril, em comparação com 2019. Entretanto, um estudo da Nature Climage Change reportou que a redução nas emissões globais de GEE e de poluentes por causa da pandemia será “insignificante” para alterar o rumo das mudanças climáticas na Terra, levando a uma redução de apenas 0,005ºC a 0,01ºC na temperatura do planeta.

    Esta não é a primeira vez que vivemos um período de redução das emissões de gases poluentes em decorrência de uma diminuição das atividades humanas. Durante a crise financeira de 2008, por exemplo, percebeu-se reduções destes gases. Mas, após esse período, as emissões foram retomadas em níveis ainda maiores em decorrência do esforço econômico de recuperação. Isso só reafirma que as melhorias são efêmeras e pontuais, uma vez que não estão acontecendo transformações sistêmicas, nos processos decisórios, nas estruturas de produção de bens, no modelo de consumo, no uso da terra e na matriz de transportes atuais.

    Por que a crise climática não tem o mesmo apelo da sanitária?

    A questão sanitária é vista como crise porque pressupõe a retomada ao estado “normal” após ser superada. Já a questão climática, não alcança esse status porque cresce de forma gradual. Mesmo assim, esta é uma oportunidade de testemunhar um período propício para reavermos a implementação de políticas públicas e o esforço coletivo a fim de descarbonizar a sociedade e a economia.

    Essas mudanças vão depender das políticas de recuperação das atividades no pós-pandemia, mas também de um esforço coletivo para garantir sua implementação para que essa redução não seja apenas temporária.

    Além disso, apenas mudanças estruturais na economia e nas matrizes de transporte e energia não serão capazes de sustentar reduções em longo prazo porque são oriundas de respostas individuais. Em vez de atitudes tomadas por imposição, como a suspensão de voos e a limitação do uso de carros, é preciso maior conscientização para atingirmos as metas de emissões de GEE.

    Doenças infecciosas são assustadoras porque são imediatas e pessoais, com impacto direto no dia a dia. A mudança climática pode parecer impessoal e distante, com causas difusas.

    5 medidas viáveis para reduzir os impactos do clima e evitar novas pandemias

    1. Reduzir o desmatamento ajuda a conter a perda de biodiversidade, motivo de propagação de doenças infecciosas transmitidas por animais forçados a migrarem para novos habitats porque as florestas onde viviam foram derrubadas.

    2. Repensar nossas práticas agrícolas, incluindo aquelas que dependem da criação de animais em ambientes fechados, mais suscetíveis a transmissões entre animais e humanos.

    3. Combater a poluição do ar causada pela queima de combustíveis fósseis, minimizando os impactos de infecções respiratórias como o coronavírus.

    4. Gerar energia a partir de fontes de baixo carbono, como a solar e eólica, reduzindo a emissão de poluentes atmosféricos responsáveis por problemas de saúde e mortes prematuras que pressionam os sistemas de saúde.

    5. Fomentar a governança participativa, com forte atuação dos cientistas para aconselhar os formuladores e gestores de políticas públicas em respostas baseadas em fatos e na avaliação de riscos.

    Para Saber Mais

    FORSTER, Piers M et al, Current and future global climate impacts resulting from COVID-19, Nature Climate Change, v10, n10, p913-919, 2020.

    A autora

    Por Jaqueline Nichi graduou-se em Jornalismo e Sociologia, com mestrado em Sustentabilidade pela EACH-USP. Atualmente, é doutoranda no Programa Ambiente e Sociedade do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM-UNICAMP). Sua área de pesquisa centra-se nas dimensões sociais e políticas das mudanças climáticas nas cidades e governança local.

    Este texto foi escrito originalmente no blog Natureza Crítica

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Bem como, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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