Vamos supor que você está andando de bicicleta pela sua cidade, quando de repente seu pneu fura. Naquele momento você não consegue ir até um borracheiro, ou comprar um pneu novo. Então você pega o chiclete que você estava mascando, e tenta interromper a saída de ar naquele momento emergencial. Mesmo sabendo que depois você precisará dedicar mais tempo para arrumar o pneu, o chiclete conseguiu te ajudar durante um período. Essa analogia está relacionada com o que vimos de reposicionamento de fármacos durante a pandemia de COVID-19.
Sobre o reposicionamento de fármacos
O reposicionamento é uma estratégia rápida, barata, e segura, desde que siga algumas etapas! Basicamente ele utiliza moléculas conhecidas para tratar algumas doenças e tenta utilizá-las em outras. O exemplo mais famoso de reposicionamento de fármacos é o viagra. Inicialmente, desenvolveu-se para tratar hipertensão e angina, uma dor no peito. Mas durante as etapas de estudo clínico acabou reposicionado e agora utiliza-se para tratar disfunção erétil.
Com o aparecimento da COVID-19, vimos tentativas de reposicionamento serem muito utilizadas e comentadas até mesmo por pessoas leigas. Esse método de pesquisa trouxe resultados para algumas respostas. No entanto, ele não pode ser levado como uma verdade absoluta. Afinal, nada na ciência é irrefutável.
Reposicionar por quê?
Reposicionar um remédio custa aproximadamente 300 milhões de dólares, enquanto que desenvolver um remédio “do zero” pode custar até bilhões de dólares! Além de economizar dinheiro, também é possível reduzir o tempo de pesquisa, já que “pulamos” algumas etapas, como por exemplo a criação e descrição da molécula. Apesar disso, algumas outras etapas não podem ser puladas, e é aí que o remédio pode dar resultados negativos.
Assim como outras pesquisas, o reposicionamento começa com a formulação de uma hipótese e reconhecimento de moléculas que possam apresentar algum tipo de efeito no que está sendo estudado, no caso a COVID-19. Depois de uma primeira rodada de testes, é necessário realizar uma etapa de estudos pré-clínicos, ou seja, dentro do laboratório. Normalmente esses testes realizam-se em culturas de célula para determinar qual a concentração efetiva do remédio, tentar entender como ele age, se ele de fato elimina o vírus, ou se ele interfere nas células, entre outros. Além dos testes in vitro, é nessa etapa que ocorrem os testes com modelos in vivo, ou seja, utilizando algum modelo animal. Seres vivos são organismos bem mais complexos do que uma cultura de um único tipo de célula, então testes que possivelmente foram positivos in vitro, podem não ser efetivos in vivo.
Entretanto…
Aqui temos alguns exemplos de remédios que não passaram dessa segunda fase de testes de reposicionamento. A cloroquina funcionou em um tipo de cultura de células, mas quando testada em outros não funcionou. Já a ivermectina apresentou uma boa atividade. Todavia, a quantidade necessária era tão grande que inviabilizava tornar-se um remédio para a covid-19.
E você acha que acabou? NÃO! Os remédios podem funcionar muito bem nas etapas 1 e 2 de reposicionamento de fármacos, mas depois disso eles precisam dos testes nos ensaios clínicos. Nessa etapa, os remédios são dados para pacientes voluntários, que vão tomar de forma “cega” ou o remédio, ou um placebo. Depois disso, os resultados são coletados, analisados e o remédio pode ser aprovados ou não. O exemplo mais atual de um ensaio clínico foi o SOLIDARITY, organizado pela OMS que testou diversos remédios de reposicionamento.
Até agora, o único reposicionamento aprovado para uso é o do remdesivir, que já era estudado para Hepatite C e Ebola. Por isso, é muito importante que a população em geral tenha calma! Muitos testes são necessários para que um remédio, mesmo que seja de reposicionamento, seja considerado seguro para uso.
Isso significa que o reposicionamento é ruim?
Não! Como não conhecíamos todos os efeitos da COVID-19 e do coronavírus causador da doença, tivemos que realizar muita pesquisa de base antes de poder encontrar tratamentos efetivos. No início da pandemia não sabíamos quase nada sobre o novo coronavírus e diversos testes de reposicionamento ajudaram a entendermos mais sobre como o vírus se comporta dentro das células e do nosso organismo.
E porque não posso tomar remédio por minha conta e risco?
Apesar de serem remédios que possuem aprovação de órgãos reguladores como a Agência Americana de Alimentos e Medicamentos (FDA) e a ANVISA, todo remédio possui uma faixa de segurança para uso e o uso indiscriminado de remédios pode causar tanto problemas de saúde para quem está tomando, como por exemplo hepatite medicamentosa, até problemas mais sérios que podem nos levar a pandemias futuras, como bactérias e parasitas super resistentes a remédios!
Além disso, é importante destacar que em humanos, o uso de medicamentos como um “combo” ou “coquetel” ou “kit” precisam, também, de testes específicos para analisar as interações entre os medicamentos. E não faz sentido isto, sem um controle rígido laboratorial, pois não temos como medir os efeitos dos medicamentos nos organismos com precisão. Isto é, os medicamentos podem interagir entre si e provocar outros efeitos colaterais (ou benéficos), completamente desconhecidos. Para isto, não apenas o reposicionamento precisa de várias etapas de análise, a medicalização por kits ou coquetéis também são tratamentos que necessitam análises específicas!
Por isso, esteja sempre atento à medicação que você irá tomar, e continue utilizando as únicas medidas que são efetivas até agora: o distanciamento social, a máscara e o apoio à vacinação!
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Este texto é uma apresentação dos trabalhos dos bastidores das pesquisas do EMRC. Antes de entrar “mesmo” no laboratório, vamos falar um pouco do que é esse trabalho, como montamos projetos, como formamos pesquisadores e nos formamos pesquisadores. Ou seja, antes de falar da Medicina Experimental e o que significa trabalhar com isso, gostaríamos de falar sobre como chegamos até aqui . O que seria isso? Esse trabalho de formiguinhas coletivas, que pensam, escrevem, propõem, formam e fazem pesquisa, juntos.
Para isso, gostaríamos de começar com a noção de que não basta estar numa universidade para fazermos pesquisa. É preciso, também, cumprir várias etapas anteriores. Hoje vamos falar um pouco dos editais de pesquisa e das propostas que fazemos a estes editais!
O que é fazer pesquisa como grupo de pesquisa?
Parece que fazer pesquisa é estar em laboratório, com jaleco, cheio de equipamentos. Talvez analisando dados que aparecem em uma placa de petri, tubos de ensaio, lupas ou microscópios. Há quem pense que por sermos professores e pesquisadores universitários de universidade pública, “nosso salário está garantido”. Portanto, é só entrar no laboratório e fazer nosso trabalho (nossa pesquisa).
No entanto, não é tão simples assim… A pesquisa não é um simples “entrar em laboratório e trabalhar”. Vamos falar um pouco sobre isso hoje…
Como se forma pesquisadores
Somos um grupo de 9 pesquisadores. Parte do nosso trabalho é usar nossa trajetória de pesquisa anterior. E isto inclui nossa formação pregressa (tanto a graduação, quanto nossa especialização em uma área no Mestrado e Doutorado).
No EMRC cada pessoa tem uma formação ligeiramente diferente uma da outra. Isto é, ali somos todos da área “biomédicas” – temos biólogos, veterinários, farmacêuticos, biomédicos, bioquímicos. Consideramos, aqui no Brasil, a pós-graduação nossa entrada em projetos de pesquisa de maneira cada vez mais “autônoma”. Ou seja, termos uma atuação mais propositivas. Não apenas executando as etapas experimentais, de campo e coleta de dados, mas elaborando-os também – que é um pouco do que falaremos aqui hoje). Cada pesquisador aqui do grupo tem formações também diferentes. Como assim? Isso não se restringe apenas ao “diploma” (como bioquímica ou biologia molecular, por exemplo). Mas diz respeito à linha de pesquisa dentro destas áreas de conhecimento.
Em cada uma destas etapas de formação, aprendemos sobre nossa área e nossos objetos de pesquisa, mas também aprendemos vários detalhes de como ser pesquisadores. Isso inclui: escrever projetos, orientar e formar novos pesquisadores, formar grupos de pesquisa, elaborar experimentos, desenvolver, analisar e debater dados obtidos em nossos experimentos.
Nosso trabalho na universidade
Ao organizar nosso trabalho na Unicamp, parte de tudo o que pensamos como cientistas é que não se caminha sozinho para produzir conhecimento. Neste sentido, o EMRC foi se organizando a partir da premissa de que fazer ciência junto é melhor, mais produtivo, mais criativo. Colaborativamente, temos ideias diferentes exatamente pela nossa formação que andou por caminhos que divergem. Mas também complementares, por trazerem olhares que não são sempre iguais, para o que estamos pensando.
Isso é relevante, uma vez que a pesquisa não é – como dissemos no início deste texto – um ato de “entrar no laboratório e sair fazendo”. Isso contando que já temos um espaço para fazer pesquisa. Isto é, que os laboratórios e salas que trabalhamos já existiam quando entramos na Unicamp, ao menos em parte. Calma que isto é um capítulo a parte e vamos falar de estrutura em outro momento também, aguarde. Dessa forma, uma das etapas que precisamos para iniciar nossa pesquisa é verba para manter o trabalho cotidiano dos laboratórios. E como se consegue isso?
Os editais!
Existem várias modalidades de investimento na ciência. Os mais comuns são os editais de pesquisa públicos e privados. Todos os anos – alguns anos com mais verba do que outros – os governos Federal e Estadual lançam editais de pesquisa via agências de fomento. Mas o que é isso? São instâncias do governo que são destinadas exclusivamente a captar recursos e lançar linhas de investimento. A Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo – mais conhecida como FAPESP é uma destas instâncias no Estado de São Paulo. No âmbito federal, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – mais conhecido como CNPq – é responsável por isso. Estas agências, anualmente, buscam recursos para financiar pesquisas científicas. Por exemplo, no caso da FAPESP há uma porcentagem do ICMS arrecadado destinado à agência, mas pode haver outras fontes também. Há também agências de fomento internacionais e privadas que podem lançar editais.
Os editais são chamadas públicas para que propostas de pesquisa sejam inscritas. Isto é: qualquer instituição, grupos de pesquisa ou pesquisadores que se encaixarem nos critérios podem se inscrever. Estes editais não são para ganharmos dinheiro automaticamente… Eles são de concorrência. Ou seja: fazemos uma proposta do que pretendemos pesquisar. O que é isso? Escrever um projeto é montar um referencial teórico, perguntas, hipóteses, metodologias (que variam dependendo do tipo de pesquisa) e como analisaremos. Também há nesta proposta quantas pessoas se envolverão na pesquisa, no tempo que teremos para desenvolvê-la. Importante ressaltar que o tempo é estabelecido pelo edital, e não por nós, pesquisadores. Por fim, nós indicamos quanto dinheiro precisaremos para esta pesquisa e como nós o usaremos.
Ah então vocês ganham dinheiro para isso???
Sim, claro! O dinheiro para manter a pesquisa vem, exatamente, destes editais! E usamos o dinheiro no quê? No caso de um edital de pesquisa de laboratório, há vários itens. Por exemplo, há compras de equipamentos específicos, ou manutenção de equipamentos que já temos, compra de reagentes, cobaias, manutenção de cobaias. Além disso, temos pagamento de inscrição em eventos nacionais e internacionais para apresentar resultados, submissão dos resultados e artigos em periódicos. Muitas vezes, também podemos pedir bolsistas. Isto é, pagar para que parte do trabalho seja feito por pesquisadores em formação, tanto na graduação, quanto na pós-graduação.
As propostas que mais se encaixarem nos critérios dos editais, ficam melhor colocados. No caso de sermos contemplados, há todo um trâmite burocrático para tocarmos este projeto. Isso inclui usar o recurso financeiro. No entanto, mais do que isso, além dos resultados da pesquisa, publicações e tudo mais, prestamos contas de como usamos o recurso. Se não usamos tudo, devolvemos à agência de fomento.
Tá e a pandemia, hein?
Nós tivemos, este ano, vários desafios na pesquisa. Um desses desafios foi nos adaptarmos na pesquisa com os projetos que já estavam em andamento. Além disso, tivemos editais emergenciais para a Covid-19. No EMRC há alguns dos pesquisadores que deram o ponta-pé inicial para a Força Tarefa da Unicamp. Várias pesquisas desenvolvidas neste grupo começaram a ser pensadas a partir da Covid-19. Assim, fomos procurando verbas específicas de editais internos (da própria Unicamp) ou externos – ganhamos alguns. Todavia isso não era tudo…
Precisávamos de mais ações, então tivemos ações de diagnósticos, por exemplo. Isto é essencial: o conhecimento científico acumulado na universidade, e por pesquisadores do EMRC, foram fundamentais para prestar este serviço para a sociedade neste momento.
Isto é, o trabalho de pesquisa, os editais, as verbas que são investidos em longo prazo na ciência, revertem em condições de termos respostas rápidas e práticas. E aqui falamos tanto como grupo de pesquisa. Mas também falamos como parte de uma universidade que teve faz pesquisa arduamente para ter esta condição. Isto é, em momentos de crise como a que estamos vivendo agora, temos pesquisadores e estruturas para pesquisa!
Por fim…
Vocês perceberam que não falamos nada de Medicina Experimental hoje, nem usamos termos dificílimos da área biomédica neste texto? Pois é! Nem só de terminologias técnicas vivem cientistas!
Tudo o que estudamos na área da saúde e ciências biológicas serve para pensarmos a pesquisa e estruturarmos os próximos passos. Todavia, isso não basta. E foi um pouco disso que buscamos falar na postagem de hoje.
Para Saber Mais
LATOUR, B; WOOLGAR, S (1997) A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
O artigo que embasou esta postagem faz parte de um conjunto de postagens sobre as pesquisas científicas que a Unicamp vem fazendo desde o início da pandemia, no que chamamos “Força Tarefa”. O Especial Covid-19, do Blogs de Ciência da Unicamp, participa da Força Tarefa desde o início, com a divulgação científica sobre a doença. Mas também vai se dedicar à publicação destes conhecimentos produzidos especificamente pelos pesquisadores da Unicamp cada vez mais! Acompanhe as próximas postagens!
Este texto foi publicado originalmente no blog EMRC
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Bem como, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.