Tag: políticas públicas em educação

  • A gratuidade da universidade pública é inquestionável

    Texto por Matheus Naville Gutierrez

    A PEC 206 pode destruir a universidade pública brasileira. Precisamos defendê-la de argumentos falsos.

    O deputado Kim Kataguiri (Democratas-SP) colocou em pauta hoje um projeto que visa alterar a constituição, o qual ele é relator. A PEC 206/2019, redigida em 2019 pelo deputado General Peternelli (PSL-SP), propõe a cobrança de mensalidade nas universidades públicas para todos os seus frequentadores, e aqueles que não puderem pagar, podem usufruir da universidade pública gratuitamente. O progresso científico e tecnológico brasileiro é diretamente afetado e atacado com esse projeto, que antes de mais nada, é deturpado e usa de pressupostos errôneos. Primeiramente, a PEC usa pressupostos completamente equivocados. Vamos debatê-los a seguir.

    O texto enganador da PEC

    Logo após a leitura do texto da PEC, uma problemática bem clara sobre o pressuposto do projeto de lei se mostra. A defesa nefasta que está acontecendo nas redes sociais não leva em consideração os parâmetros da lei em si.

    Trecho PEC
    Trecho retirado da PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO N.º206 , DE 2019

    Conforme o texto acima, a lei propõe justamente que exista uma comissão que avalie a situação socioeconômica dos estudantes e faça uma deliberação sobre o pagamento ou não da mensalidade. Ou seja, a base é que TODOS os estudantes paguem mensalidade, estando apenas alguns eximidos da conta. Decerto, essa lógica levanta muitas questões problemáticas. Vamos a algumas delas:

    Como essa comissão será formada? Como ela atenderá todos os estudantes? Quais critérios serão utilizados para essa escolha? Essa comissão não poderia ser utilizada de forma a excluir ainda mais os estudantes? Eles não precisariam passar por mais uma etapa burocrática para conseguir se manter na universidade pública?

    Uma vez que esse debate entrou na esfera pública novamente, podemos nos debruçar em alguns pressupostos que esse projeto de lei. A seguir, coloco algumas dessas questões para conversa.

    Quem frequenta a universidade pública?

    Inicialmente, a defesa dessa PEC sugere que as universidades públicas brasileiras são frequentadas majoritariamente por pessoas oriundas das classes mais altas. Sendo assim, elas teriam o poder aquisitivo necessário para pagar os custos de seus estudos na universidade. Ainda que esse discurso pareça verdadeiro, ele atualmente é falso. Segundo dados da pesquisa do perfil socioeconômico dos estudantes de graduação das universidades federais, o perfil brasileiro é: 53,5% dos estudantes vivem com renda de até 1 salário mínimo por pessoa nas famílias. Esta pesquisa coletou dados de 63 universidades federais brasileiras. Confira abaixo os dados na tabela:

    É necessário debater sobre as formas que universidade pública elitiza o conhecimento e cria modos de facilitar a permanência de pessoas com renda maior, nós sabemos disso. Contudo, o projeto de lei não serve como resposta para esse problema.

    Ou seja, a PEC coloca como responsável por essa problemática os estudantes. Como assim? Atualmente, a universidade não possibilita o acesso e a permanência de pessoas sem os recursos financeiros, o que falarei mais adiante. Mas o mais relevante é: cria uma disputa por vagas e cotas entre os próprios estudantes já em situação de vulnerabilidade social e financeira. Esta PEC cria, portanto, uma narrativa de embate entre os estudantes para tirar o foco da problemática real das universidades: as políticas públicas e como são feitos os investimentos.

    Atacando o problema de verdade

    Para que essa elitização velada da universidade comece a ser combatida de verdade, precisamos focar em duas frentes. Primeiramente, o debate sobre o vestibular. Ele sim, um gargalo colocado de forma proposital para excluir uma parcela dos estudantes. Ele afunila a entrada na universidade, principalmente quem não consegue dedicar o tempo necessário de estudos para enfrentar a maratona dos vestibulares (e não consegue pagar por cursos pré-vestibulares).

    Em seguida, as políticas públicas de permanência. A universidade pública brasileira é um espaço de formação que exige a dedicação quase exclusiva de seus alunos, sem tempo para trabalhos externos. Para criar condições aos estudantes usufruam de suas possibilidades formativas, a universidade precisa garantir moradia, alimentação e renda para os estudantes.

    Nossa defesa, como política pública, é oposta ao projeto de lei. Isto é, o financiamento para permanência de estudantes na universidade pública deve ser proveniente de políticas públicas inclusivas, que abarquem a diversidade, origem e identidades diversas. Quem deve financiar esses estudantes, portanto, não devem ser eles mesmos, mas políticas públicas destinadas a sua formação.

    O que se desenvolve na universidade pública no Brasil?

    Ao mesmo tempo, o discurso de se pagar é nefasto por não compreender a complexidade da produção e da vivência nas universidades brasileiras. A ideia de que é um local de apenas estudo, em que o estudante apenas assiste aulas e realiza provas é falacioso. A universidade pública, desde os estudantes de graduação, desenvolve ciência, forma profissionais, produz conhecimento que retornará para a sociedade.

    O desenvolvimento da ciência brasileira, realizada por graduandos e pós-graduandos, foi o que nos garantiu o desenvolvimento de diagnósticos, com agilidade e eficiência, durante toda a pandemia da Covid-19, aqui na Unicamp e em várias universidades brasileiras. Além disso, a grande quantidade de pesquisas e atuações acadêmicas neste período, em todas as áreas de conhecimento, tiveram participação ativa de estudantes ainda em formação, de modo voluntário ou com bolsas, que minimizaram os efeitos da doença em toda a sociedade brasileira.

    Uma nação que busca o progresso sustentável e tecnológico precisa do desenvolvimento científico, que acontece unicamente nas universidades públicas. Isto é, a proposta de se pagar para estudar em uma universidade pública, além de afastar futuros cientistas que poderiam surgir de diversas origens sociais e econômicas, deturpa a própria ideia de desenvolvimento científico em nosso país.

    A pós-graduação: ela também pode ser afetada em médio e longo prazo

    O pós-graduando, hoje, vivencia uma carreira de uma avassaladora precarização, sem recursos, com bolsas sem ajustes e com a visão social de que é “apenas um estudante”. Não, não é. O estudante de graduação e pós-graduação são profissionais que desenvolvem trabalhos em sua área de formação, desde o início do curso. Você, por exemplo, aceita trabalhar de graça por vários anos, sem nenhuma renda? Pois é, além de atuar de graça, ainda precisaria pagar, neste caso.

    Na perspectiva desta lei, que prevê cobrança de mensalidade na graduação, também não afetaria essa etapa que acontece na universidade pública? Se cobrarmos os estudantes de graduação, depois de quanto tempo a pós-graduação que será cobrada? Essa proposta de lei é um afronte gigantesco à autonomia e ao ideal de universidade pública.

    A educação deve sempre ser pública, gratuita, de qualidade e de fácil acesso

    Em suma, esse é um projeto de lei que ataca diretamente a constituição nacional que garante o acesso à educação pública, gratuita e de qualidade para para todas as pessoas da nação. Em primeiro lugar, a garantia que ela é pública é a base para o desenvolvimento da ciência, da extensão e do ensino sem a necessidade de cumprir uma agenda empresarial e de resultados. Juntamente, a educação precisa ser gratuita, para garantir que todas as pessoas tenham acesso ao desenvolvimento cidadão, profissional, científico e humanístico. Assim como ela também precisa ser de fácil acesso, garantindo que todas as pessoas que busquem uma instituição de ensino consiga acessá-la.

    O problema da elitização velada das universidades é importante e de necessária discussão. Mas que ela seja feita de forma séria, verdadeira e com propostas reais de sua superação, e não seja retirado do Estado brasileiro a sua responsabilidade.

    Atualização (24 de maio, 19h21; Editorial)

    A PEC não está mais em tramitação, enquanto finalizávamos o texto, em função do pedido de Audiência Pública, com participação de representantes da sociedade civil organizada, conforme consta neste documento.

    Para saber mais

    Beraldo, Gabriela (2022) Bolsa Capes, do MEC, completa 9 anos sem reajuste. entenda o que isso significa, 23 de março de 2022.

    BRASIL. PEC 206/2019, Dá nova redação ao art. 206, inciso IV, e acrescenta § 3º ao art. 207, ambos da Constituição Federal, para dispor sobre a cobrança de mensalidade pelas universidades públicas.

    UFES. Pesquisa nacional apresenta o perfil dos estudantes de graduação das universidades federais, 17 de maio de 2019.


    Publicado originalmente no blog PEMCIE.


    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadoresAlém disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp.

  • O que muda no pós-graduação com o ensino remoto?

    Antes de falar sobre o ensino remoto e a pós-graduação. Antes de mais nada, eu, professora Lavínia, gostaria de me apresentar para as inquietações e discussões que eu trouxer terem sentido para vocês. Sou professora há 21 anos! Aham, maioridade já! E posso dizer que se tem uma coisa que me inspira no trabalho como professora – no Ensino Médio, na graduação ou no pós-graduação – é o contato direto com os estudantes. Aquele cotidiano de sala de aula que nenhum outro tipo de interação é capaz de substituir. Nós enxergarmos aquele grupo à nossa frente, “olho no olho”. Os gestos feitos, as posições corporais tomadas e as frases ditas durante o processo de ensinar e de aprender não tem qualquer mecanismo tecnológico que substitua.

    Sim! Estou muito insatisfeita com o rumo que tivemos que tomar durante essa pandemia. Ouvíamos falar de gripe espanhola, de outras pestes que acometeram a população mundial ao longo da história e jamais, nem nos piores pesadelos, pensávamos passar por isso. Ainda mais ter no distanciamento social, uma das principais formas de prevenção a essa doença. Nem vamos falar nas vacinas, a segunda possibilidade de prevenção que o governo brasileiro também – assim como o distanciamento – não soube organizar nem possibilitar para a população.

    Esse ensino remoto é igual pra qualquer professor? E vale para qualquer nível de ensino?

    Vamos falar disso nos próximos textos. Mas hoje o assunto é pós graduação e, em relação ao ensino de pós-graduação – um dos níveis de ensino que trabalho atualmente – temos a possibilidade de continuidade pelo trabalho remoto, em nossas casas, com auxílio da internet. É a internet que nos une aos estudantes, aos colegas de trabalho e aos nossos grupos de pesquisa.

    Em termos de quantitativo de trabalho, em meu caso, não houve mudança. Isto é, continuo com as mesmas atividades que já divulgamos em outros textos aqui e aqui também neste blog. Inclusive, me sinto um pouco mais sobrecarregada! Isto porque os horários, no trabalho remoto, se ampliam e se mesclam aos afazeres de manutenção de uma casa. Ou seja, muitas vezes, quando me dou conta, ultrapasso o trabalho de 40h semanais, avançando a noite à frente do computador.

    Nessas horas, dá uma saudade do sinal sonoro da escola! Aquele marcador disciplinar que ditava o início e o fim das aulas. Ele marcava o momento em que eu veria outros rostos em uma turma diferente ou que avisava que era a hora de saída do trabalho! Tudo bem, vocês podem dizer que na graduação ou no pós-graduação não tem sinal.

    É… Não tem! Mas os marcadores do que este sinal representa dentro do contexto educacional persistem dentro de nós. Estão introjetados! Assim como a forma de nos acomodarmos em sala de aula, sejamos estudantes ou professores. E assim também, como as tarefas que temos de entregar e os objetivos que temos de alcançar, sejamos alunos ou professores. Essas tarefas e objetivos permanecem, mesmo no trabalho remoto.

    Marcadores na escola e na sociedade: os mecanismos disciplinares…

    Estamos falando aqui de mecanismos disciplinares! Desde que nascemos somos interpelados por eles. E claro que eles nos ajudam a nos tornar o que somos. Assim, vamos sendo disciplinados pela organização familiar, pelos tempos definidos para cada ação ou atividade dentro dela. Também pelo espaço que ocupamos dentro de nossa casa tanto corporalmente, quanto nas funções que assumimos nessa instituição familiar.

    Depois, conforme vamos nos desenvolvendo, outros tipos destes mecanismos de disciplina corporal, de tempo, do espaço, ou funcional nos produzem dentro da escola, e de outras instituições que vivenciamos. Aprendemos, nessas vivências, que há modos de falar e se portar em determinados contextos. Aprendemos que não se pode falar ou fazer qualquer coisa a qualquer hora! Assim, os mecanismos disciplinares são aqueles que agem sobre nossos corpos para torná-los produtivos e parte da nossa sociedade (FOUCAULT, 2002).

    Voltando ao nosso tema sobre o ensino remoto na pós-graduação, percebo que não temos tantas dificuldades em relação ao desenvolvimento das aulas, pois os estudantes do nível de pós-graduação já estão muito bem disciplinados. Foram, no mínimo, 16 anos de escola, incluindo Educação Básica e Ensino Superior.

    E é por isso que estes pós-graduandos abrem suas câmeras, sem receio de mostrar o rosto. Eles participam abertamente das aulas, têm muito menos vergonha de se expor, e fazem todas as tarefas disponibilizadas a eles. Neste futuro pesquisador que está se formando, os mecanismos disciplinares já estão bem internalizados no corpo e na mente.

    Mecanismos disciplinares são produtivos, qual é o problema no ensino remoto?

    Então, professora, se parece que está tudo bem ao nível de pós-graduação, o que a incomoda tanto? Aí, eu posso dizer que nem só de disciplina vive o humano… hehe!

    Como professora, não tenho queixas ou problematizações acerca do trabalho no pós-graduação em relação ao comprometimento dos estudantes. No entanto, assim como todos nós que estamos nessa “bolha” profissional daqueles que podem desenvolver trabalho remoto, a falta da convivência direta com o outro que nos abate! Essa ausência de contato físico, o “olho no olho” que comentei no início atrapalha bastante o andamento das atividades. Assim, essa ausência é sentida pelos professores – e também pelos alunos, como vocês verão na sequência da série – em qualquer nível de ensino.

    O que nos move é o contato! O contato com os espaços físicos da universidade, com os colegas no cafezinho no Centro de Convivência. Aquele papo aleatório no corredor com o colega que não via há um tempo, ou apenas a conversa que trocamos com o/a porteiro/a do prédio! É isto que a pandemia tem tirado dos professores!!!

    O que vem agora no ensinar e aprender?

    Aqueles que já vivenciaram as duas formas de ensino: presencial e remota, entendem o que tenho dito. Dessa forma, fico me perguntando se criaremos um novo modo de entender e produzir a educação nas escolas? Penso naquelas crianças que nunca vivenciaram outra forma de ensino a não ser esta mediada por tarefas impressas ou por tarefas postadas em plataformas digitais. Ou ainda, quando possível, por conversas mediadas via computadores e acesso à internet.

    Em suma, elas estão tendo um outro tipo de disciplinamento. E aquilo que há pouco me referi como o que mais move o professor em sua sala de aula, talvez possa não existir para elas. Um novo de ensinar, de aprender e de disciplinar os sujeitos vem sendo desenhado. Quais os resultados disso? Outras pesquisas e textos nos dirão.

    Para saber mais sobre o que foi trazido aqui…

    Foucault e a educação: entre o poder disciplinar e as técnicas de si (é possível educar para a liberdade?). Artigo de Fábio Antonio Gabriel e Ana Lucia Pereira, publicado na Educação em revista. V19. 2018.

    O texto clássico de Michel Foucault sobre o poder disciplinar é do livro Vigiar e Punir, cuja 12ª edição é da Editora Vozes. 2002.

    Este texto foi elaborado originalmente no Blog Pemcie

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Ensino Remoto Emergencial: não é só sobre acesso e equipamentos…

    Se a disponibilidade de tecnologias já limita quem pode ter acesso ao ensino remoto, o problema se torna ainda mais complexo quando analisamos as condições deste novo contexto de aprendizagem. É fundamental, neste momento, compreendermos que o ensino proposto está longe de ser o que se preconiza como educação, tanto quanto Educação à Distância. Vivemos um momento em que as escolas foram fechadas por uma situação de saúde pública. As escolas (e todos os serviços) foram fechados enquanto tentávamos (e ainda tentamos) entender tudo o que acontece e buscamos nos adequar da melhor maneira possível – individual e coletivamente.

    Helder Gusso é professor e pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e tem refletido sobre a aprendizagem do ensino remoto emergencial. O pesquisador concedeu uma entrevista à Natália Flores (que assina esta postagem), e demonstrou preocupação com o ensino remoto emergencial, uma vez que a realidade das famílias brasileiras é muito heterogênea. Isto pode acarretar na falta de condições em proporcionar um ambiente favorável para o estudo de crianças e adolescentes. Inúmeros fatores entram em jogo, como a mudança na rotina, o aumento de demandas da casa, a preocupação excessiva com a contaminação, entre outros.

    Gusso aponta que mesmo que consiga acompanhar as atividades remotas, um estudante cuja família tem que lidar com problemas financeiros por conta da pandemia, parentes doentes ou o risco eminente de contaminação, caso familiares estejam trabalhando durante o período de quarentena, pode ter seu rendimento escolar comprometido. Entra na lista dos possíveis problemas, o fato de que muitos estudantes que não têm um lugar calmo e isolado para estudar, caso comum nas periferias urbanas.

    Atividades pedagógicas remotas e questões legais

    É importante pontuar que quando se fala em acesso há um grande abismo entre ter equipamentos, ter serviço de internet (com um sinal adequado para ver os materiais escolares sem restrição de dados já discutido em postagem anterior) e ter condições de acompanhar as atividades propostas pelas escolas e professores.

    E tudo isto ainda envolve um empenho público que não apenas legitime as ações, mas dê suporte técnico, legal e didático pedagógico para não aprofundarmos ainda mais as desigualdades sociais que virão em função da pandemia causada pela COVID-19.

    No dia 29 de Abril, o Conselho Nacional de Educação (CNE)* lançou o Parecer Com Diretrizes Para Reorganização dos Calendários Escolares e Realização de Atividades não presenciais pós retorno. Há vários pontos que são pauta para outras postagens. Ressaltaremos apenas que o citado Parecer aponta que atividades “não presenciais” podem ou não ser mediadas por tecnologias digitais, citando outras alternativas.

    No entanto, mais do que isso, o parecer enfatiza a necessidade de comunicação entre escola e comunidade escolar (pais e alunos) e produção de guias que orientem não apenas os estudantes, mas seus responsáveis legais, sobre o planejamento e rotina de estudos, enquanto este período durar.

    Embora o texto traga avanços e legalidade para ações necessárias, indique a comunicação como imperativa e que as atividades não presenciais não precisam ser mediadas por tecnologias digitais, não indica saídas para isto, apontando, inclusive, uso de redes sociais como whatsapp e outros comunicadores instantâneos. Além disso, no Parecer a ênfase em conteúdos e atividades que supram conteúdos regulares se faz presente, especialmente na orientação para as séries Finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio.

    Novamente, as preocupações do pesquisador Gusso se fazem relevantes, pois existe a necessidade de nos atentarmos que este não é um momento de suprirmos “todos os conteúdos” que seriam trabalhados normalmente em sala de aula presencial. Não há condições de os docentes acompanharem os estudantes com a qualidade e a efetividade necessária.

    Além disso, ignora-se a possibilidade de excessos de atividades e falta de interatividade que, especialmente para as crianças mais novas, pode ser até mais importante do que toda a centralidade no conteúdo que comumente acaba sendo o foco nestes debates.

    Segundo Luiz Carlos de Freitas, professor e pesquisador aposentado da Faculdade de Educação da Unicamp, é preciso ter cuidado com a sobrecarga de responsabilidade atribuída aos pais (que têm sido chamados de tutores em alguns casos, neste processo). A sobrecarga diz respeito às condições dos pais em atuarem de forma didática e pedagógica em relação às atribuições que comumente são não somente de docentes e escolas, mas de órgãos públicos governamentais. Freitas cita, especificamente, a situação das provas padronizadas que cobram conteúdos formais (aqui em São Paulo temos a SARESP, por exemplo). 

    Como o ensino emergencial deve ser encarado, então?

    Diante dos limites das tecnologias, muitos professores e pesquisadores da área da educação acentuam o fato do ensino remoto emergencial ser uma solução momentânea para a situação que estamos vivendo. Estamos em situação de emergência e é deste modo que temos que encarar, também, a situação no ensino. O Ensino Remoto Emergencial funciona como ferramenta para distrair e ocupar os estudantes com atividades complementares e não obrigatórias nas agendas escolares. 

    Essa é a posição defendida por vários especialistas da educação, entre eles, o próprio Helder, que estuda as razões do fracasso escolar. “Achar que os estudantes estão aprendendo o que estava previsto para eles aprenderem neste mês de março/abril e voltar, depois da pandemia, ao ensino presencial com essa suposição talvez nos coloque numa posição bastante complicada”.

    Segundo o pesquisador, alunos que não conseguem acompanhar as primeiras aulas de um semestre letivo têm grandes chances de fracassar, pois não conseguem aprender a base necessária para temas mais complexos que vêm na sequência.

    O que vai fazer a diferença é a forma como as escolas vão atuar, assim que as atividades presenciais forem restabelecidas. Formular estratégias para recuperar o que o que não foi aprendido durante esses meses, atuar de forma coletiva e compreensiva – fornecendo suporte emocional aos estudantes, que voltarão abalados pela situação – podem ser algumas soluções.

    Também neste blog:

    Desigualdade social e tecnologia: o ensino remoto serve para quem?

    Para saber mais

    BRASIL. CNE. (2020). Parecer Com Diretrizes Para Reorganização dos Calendários Escolares e Realização de Atividades não presenciais pós retorno.

    FREITAS, Luiz Carlos. (2020) Pais Defendam Seus FilhosAvaliação Educacional, publicado em 04 de Abril de 2020.

    GUSSO, Helder. Entrevista concedida à Natália Flores no dia 03 de abril de 2020 .

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Desigualdade social e tecnologia: o ensino remoto serve para quem?

    O ensino remoto emergencial foi uma das opções encontradas para contornar a falta de aulas em escolas e universidades durante a pandemia. Ainda que seja uma solução interessante para aproximar alunos e professores, o uso de plataformas virtuais e atividades escolares a distância coloca luz sobre a desigualdade de acesso a tecnologias de comunicação e informação – e pode aprofundar o abismo social da educação no Brasil. E hoje neste post, nos propusemos a apresentar um breve panorama sobre a Educação à Distância, as políticas públicas e o acesso à internet no Brasil.

     

    A educação à distância e as políticas públicas no Brasil.

    Muito embora a educação informatizada não seja um debate novo no Brasil e no mundo – tendo sua história marcada no período após a Segunda Guerra Mundial (década de 1950) e com as possibilidades sendo maiores após o advento dos computadores pessoais (na década de 1980), o acesso aos equipamentos de informática e computação e o acesso às tecnologias de internet só recentemente tornaram-se viáveis para uma parcela grande da população. As Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação (TDCI) aparecem neste cenário como ferramentas que são grandes promessas para a educação, no Brasil e no mundo. 

    A educação de um país, de modo geral, deveria seguir preceitos constitucionais e legais, pautados em políticas públicas que proporcionassem ao máximo uma igualdade de oportunidades, independente de condições socioeconômicas. Neste sentido, a educação à distância, regulamentada e estruturada a partir de políticas públicas, serviria para criar condições não apenas de trabalhar o que entendemos como conteúdo escolar (ou os conteúdos das disciplinas clássicas, digamos assim), mas também o desenvolvimento intelectual e a habilidade com diferentes estratégias e ferramentas de ensino e aprendizado.

    O uso de equipamentos como celular e computador seriam, deste modo, mais do que apenas uma porta de acesso ao conteúdo, mas um modo de aprendizado vinculado ao manuseio do próprio equipamento de múltiplas maneiras. Tudo isto, inicia-se não apenas com a pesquisa relacionada à educação à distância, mas também (e a partir destas pesquisas) com o estudo e a implementação de políticas públicas específicas.

    De modo geral, as políticas públicas de inclusão digital na educação se pautam não apenas na existência de conteúdos acessíveis, mas também na alfabetização da população sobre as TDCIs e na infraestrutura que garanta a disponibilidade de acesso a este conteúdo.

    As políticas públicas com este fim específico, no Brasil, vinham sendo discutidas e estavam previstas no Plano Nacional de Educação, e seria implementado via Programa de Inovação Educação Conectada, instituído em 2017, cujo objetivo principal era “apoiar a universalização do acesso à internet em alta velocidade e fomentar o uso pedagógico de tecnologias digitais na educação básica”. Nesta lei, argumentava-se sobre a importância de implementar políticas de acesso à internet, especialmente em populações com vulnerabilidade socioeconômicas e baixo desempenho em indicadores educacionais. O Programa previa, ainda, apoio técnico e financeiro para as escolas.

    Em pesquisa recente, constatou-se que em nosso país cerca de 82% das escolas privadas e 73% das escolas públicas do meio urbano possuem acesso à internet. No meio rural, este percentual cai para 42% para escolas privadas e 13% para escolas públicas. Só por este panorama breve das escolas, poderíamos questionar se existe condições e se os professores das escolas tiveram acesso às ferramentas antes deste momento que vivemos hoje. 

    Mas… Não estamos falando de escolas e suas condições de conexão. A Educação à Distância é diferente do que temos neste momento, pois preveria um planejamento anterior, com treinamento adequado e estrutura escolar e dos estudantes. O que temos neste momento poderia ser chamado de ensino remoto emergencial. E aí uma das questões é qual a condição desta educação mediada por tecnologias para que todos fiquem em casa enquanto durar a pandemia aconteça no Brasil?

    O acesso à internet no Brasil

    O primeiro dado que precisamos lembrar é que nem todo mundo tem equipamentos que possibilitam o acesso à internet. Em 2017, segundo dados do IBGE, 43,4% dos domicílios brasileiros possuíam computadores pessoais e 13,7% tablets. O percentual de telefones móveis, neste mesmo ano, estava presente em 93,2% dos domicílios (ao menos um por residência).

    Os dispositivos mais disponíveis para os brasileiros são, portanto, os telefones celulares. Em 2019, tínhamos 420 milhões de dispositivos digitais (computadores e smartphones) circulando no Brasil, o que dá 2 dispositivos por habitante. A distribuição desses dispositivos, no entanto, nem sempre é igualitária. Destrinchando estes números, a partir da pesquisa do CEDIC de 2018, percebemos que apesar de 83% dos brasileiros terem telefone celular, 16% ainda estão fora dessa realidade. Temos computadores portáteis em apenas 27% das residências, computadores de mesa em 19% e tablets em 14%. 

    Voltando ao IBGE, esta mesma pesquisa (que é por amostragem de domicílios) aponta que em 2017, 74,9% das residências brasileiras utilizavam internet. Este número chega a 80,1% em residências urbanas e 41% em residências rurais. Cabe ressaltar que a pesquisa do IBGE também buscou levantar os motivos pelos quais 25,1% dos domicílios brasileiros não tem (ou não tinham naquele momento) acesso à internet… As respostas variam entre: falta de interesse no serviço, valor do serviço de acesso, ninguém da residência sabe usar internet e o equipamento para acessar é muito caro, conforme gráfico abaixo (retirado na íntegra da publicação de IBGE, 2017).

    Além destes pontos levantados anteriormente, outra questão se refere à qualidade da conexão, que também pode ser um entrave para que estudantes acompanhem vídeo-aulas e conversas com a turma e professores nas plataformas virtuais.

    Neste primeiro texto da série sobre Educação e ensino remoto emergencial, buscamos apresentar um pouco sobre algumas problemáticas quanto ao acesso às Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação – enfatizando equipamentos e serviços de internet em domicílios brasileiros. 

    Mais do que dizer que estas estratégias não deveriam ser usadas pelas escolas, a ideia era brevemente apresentar um pouco as dificuldades de se implementar isto em tempos anteriores à pandemia (trazendo alguns dados históricos de políticas públicas brasileiras) e que são acentuados no atual cenário que vivemos.

    Agora é necessário, mesmo que de forma urgente, buscar formas de não acentuar desigualdades sociais que já são históricas e profundas na sociedade, em função de políticas de acesso à informação no país.

     

    Para saber mais:

    BRASIL. IBGE. (2018) PNAD – Acesso à Internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2017. Brasília: IBGE.

    HAYASHI, C.; SOEIRA, F.S.; CUSTÓDIO, F.R.; (2020) Análise sobre as políticas na Educação à Distância no Brasil. Research, Society and Development, v.9, n.1.

    MOREIRA, E. S.; LIMA, E.O.; BRITO, R.O. (2019). Estudo comparado das políticas públicas educacionais de inclusão digital: Brasil e Uruguai. Revista da Faculdade de Educação.

     

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

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